JANE GOODALL: CINCO RAZÕES PARA SE TER
Especialista em primatas, etologista e antropóloga, a inglesa Jane Goodall, aos 81 anos de idade, não é somente a ambientalista mais famosa que possivelmente já existiu como também a cientista mais conhecida e respeitada da atualidade. Sua caminhada para alcançar essa posição é tão improvável quanto inspiradora.
23 DE DEZEMBRO DE 2015 ÀS 18:32
Entrevista a: Rhett A. Butler
Fonte: Site Mongabay.com
Aconselhada pela mãe a “nunca desistir”, Jane Goodall resolveu, aos 20 anos de idade, perseguir seu sonho de criança: morar com os animais na África. Selecionada pessoalmente pelo renomado antropologista Louis Leakey, Jane foi envida a Gombe, Tanzânia, para conduzir o primeiro estudo comportamental, de longo prazo, sobre os chimpanzés selvagens. Sem nem sequer possuir um diploma universitário, Jane tornou-se a única pessoa do mundo a ter sido aceita como “mãe” por um grupo de chimpanzés. Seu trabalho resultou em profundas e controvertidas observações sobre nossos parentes mais próximos, incluindo a descoberta de que os humanos não são os únicos a utilizar ferramentas. Por fim, ao contribuir para a ampliação do movimento científico para identificar e documentar a “cultura” dentro de outras espécies, Goodall recebeu a primeira das muitas condecorações que receberia.
É necessário envolver as comunidades
Enquanto muitos biologistas ficariam satisfeitos em apenas publicar uma obra amplamente citada, em acumular uma lista impressionante de prêmios e em mudar a forma como vemos o mundo e nós mesmos, “Dra. Jane” foi além disso, transitando do trabalho de pesquisa para o de proteção dos animais. A percepção de que os chimpanzés poderiam desaparecer da natureza fez com que se dedicasse provavelmente a um empreendimento ainda mais desafiador. Jane recusou-se a permitir que o mundo perdesse aquilo que era a paixão de sua vida.
Percebendo que o envolvimento da comunidade surtia mais efeito na população do que os apelos exacerbados, Jane voltou sua atenção para as gerações mais jovens. Em 1991 ela lançou a Roots and Shoots, uma plataforma de educação ambiental e de serviços que, atualmente, possui mais de 150 mil membros em mais de 130 países. Enquanto isso, seu instituto de pesquisa e de conservação, o Jane Goodall Institute, também ampliou o foco de sua missão original e, hoje em dia, opera em 29 países.
Em mais de cinco décadas de trabalho com animais silvestres, Jane testemunhou enormes mudanças no campo da conservação e se tornou uma ávida observadora daquilo que está e não está funcionando.
No topo de sua lista estão as batalhas campais que os ambientalistas tendem a travar entre eles na disputa por dinheiro, egos e táticas. Para ela, seria mais útil se os ambientalistas trabalhassem em conjunto para combater as constantes ameaças aos animais silvestres e a seus habitats em vez de despender os escassos recursos em intrigas.
Ainda temos tempo para mudar
“Sempre quis que houvesse mais parcerias, mais compartilhamento dos recursos”, disse ao mongabay.com. “Infelizmente, a competição por financiamento faz com que muitas organizações tenham receio de tais parcerias. Fica ainda pior quando os egos tornam-se um obstáculo”.
Como exemplo de medidas de preservação que frequentemente fracassam, Jane citou as abordagens que excluem a população local da tomada de decisões.
“Os programas de conservação que reservam um pedaço da natureza sem nenhuma intenção de envolver a população que vive na região dificilmente serão bem-sucedidos, pelo menos não nos países em desenvolvimento, onde boa parte dessas pessoas vivem na pobreza”.
Se a humanidade quiser superar os enormes desafio ambientais que tem pela frente, será necessário aproximar-se da população para trabalhar em conjunto. Mas Jane tem esperanças – citando cinco razões (veja abaixo, na entrevista).
“De fato, as notícias são lastimosas, motivo pelo qual muitas pessoas sentem-se impotentes e desesperançadas. E, sentindo-se assim, elas não agem,” comentou Jane. “Se as mudanças não acontecem, então também temos mais probabilidade de desistir. Mas acredito piamente que ainda temos tempo para mudar, embora ele esteja se esgotando rapidamente”.
ENTREVISTA COM JANE GOODALL
Mongabay.com: Quais qualidades você acha que Louis Leakey viu em você para que lhe desse essa oportunidade tão importante de estudar os chimpanzés na natureza?
Jane Goodall: Inicialmente, ele ficou impressionado por eu ter juntado dinheiro para ir à África. Ficou impressionado com o meu conhecimento sobre os animais do continente, adquirido em leituras e em horas a fio de visitas ao Natural History Museum de Londres. E, acredito eu, ficou impressionado com meu entusiasmo e sinceridade. Por causa disso, me convidou para participar da pequena expedição à Garganta do Olduvai, que, na época, era uma região totalmente remota, sem estradas ou trilhas que levassem até lá. E quando chegamos lá, ficou impressionado porque parecia que, instintivamente, eu sabia como me comportar na natureza, me sentia em casa. Não tive medo quando, certa noite, me deparei com um rinoceronte ao caminhar na mata com outra moça inglesa que também participava na expedição. E aconteceu o mesmo quando, em outra noite, encontramos um jovem leão que nos seguiu por quase todo o caminho. Ele estava apenas curioso.
As qualidades citadas foram incutidas por minha mãe. Ela sempre dizia que se eu quisesse fazer algo, teria de trabalhar duro, aproveitar a oportunidade e nunca desistir. Qualquer outra pessoa teria rido do meu sonho de criança de ir para a África e viver com os animais. Essa ideia surgiu aos 8 anos de idade, quando li como o Dr. Dolittle devolveu à natureza os animais de circo. Em 1994, essa vontade aumentou, quando li Tarzan of the Apes. Eu tinha 10 anos, não tínhamos dinheiro. A África era referida como o “continente obscuro”. Não havia voos com turistas indo e vindo. A Segunda Guerra Mundial estava no auge, e eu era uma simples garota. Isso era em 1944.
Mas minha mãe me disse: “Se realmente quiser fazer algo, terá que trabalhar duro, aproveitar as oportunidades e nunca desistir”.
Não tinha dinheiro para ir à universidade, apenas o suficiente para fazer o curso técnico de secretariado. Minha mãe então disse que talvez eu conseguisse um emprego na África. Primeiro, consegui um emprego em Oxford, onde pude vivenciar a diversão da vida universitária! Meu próximo emprego foi em Londres, com documentários. Em seguida, recebi uma carta de uma amiga da universidade me convidando para ir ao Quênia, onde seus pais tinham acabado de comprar uma fazenda. Fui para minha terra natal e trabalhei como garçonete em um hotel perto de casa. Levou meses, mas economizei dinheiro suficiente para uma viagem de ida e volta para a África, de navio. Tinha 23 anos. Era incomum naquele tempo ver garotas partindo para a África. Minha mãe foi chamada de irresponsável. Graças a Deus ela não deu ouvidos!
Mongabay.com: Muitos dos livros atuais focam no tema da esperança. Frente às terríveis notícias sobre meio ambiente e aos enormes desafios que a humanidade enfrenta diariamente, o que a faz ter esperança sobre o nosso futuro?
Jane Goodall: De fato, as notícias são assustadoras, motivo pelo qual muitas pessoas sentem-se impotentes e desesperançadas. E, ao sentirem-se assim, elas não tomam atitude. É verdade que se as mudanças não acontecem, então podemos muito bem desistir. Mas acredito piamente que ainda dê tempo de mudar, embora ele esteja se esgotando rapidamente. Minhas razões para ter esperança são simples:
1o A energia, o compromisso e o trabalho duro dos jovens assim que entendem os problemas e recebem autonomia para discutir e agir para se chegar à solução. É por isso que dedico tanto tempo para o desenvolvimento do nosso programa para jovens, o Roots & Shoots. Esse projeto é voltado para jovens desde a pré-escola até a universidade. Roots and Shoots já está em 137 países. Cada grupo escolhe três projetos: melhorar as coisas para as pessoas, para outros animais e para o meio ambiente. Um tema permeia todos os outros: vamos aprender a viver em paz e em harmonia com as outras pessoas, religiões, culturas e nações. Paz entre jovens e idosos, ricos e pobres, cidadãos locais e imigrantes. E vamos aprender a viver em melhor harmonia com a natureza. O programa conta com cerca de 150 mil membros em todo o mundo, e eles estão realmente fazendo a diferença. Eles escolhem os projetos que os entusiasmam, arregaçam as mangas e agem. E, assim, muitos adultos que fizeram parte do Roots & Shoots continuam comprometidos com a causa pelo resto da vida.
2o O cérebro humano. A maior diferença (na minha opinião) entre nós e nossos parentes mais próximos, os chimpanzés, é o cérebro humano. Os chimpanzés são muito mais inteligentes do que se pensava, mas mesmo o cérebro do chimpanzé mais brilhante não pode ser equiparado ao cérebro do ser que projetou o foguete com um robô, que ainda está rastejando na superfície de Marte, tirando fotos para que os cientistas possam analisar. Então, a questão é: como é possível que a criatura mais avançada intelectualmente que já pisou no planeta Terra destrua a sua própria casa? (As fotos de Marte deixam claro que não seria possível vivermos lá!) Será que perdemos nossa sabedoria? Quando tomamos uma decisão importante costumamos nos questionar: “Qual benefício isso me trará agora? Ou daqui a 3 meses, na próxima reunião de acionistas? Ou qual será minha próxima campanha política?” Quando, na verdade, deveríamos nos perguntar quais decisões irão afetar as futuras gerações. Mas estamos começando a sentir essa necessidade. Agora mesmo, no mundo todo, estão sendo desenvolvidas soluções inovadoras para muitos dos problemas que criamos, como, por exemplo, a energia renovável, a agricultora sustentável e assim por diante. Assim, como indivíduos, deixaremos pegadas ecológicas mais leves.
3o A resiliência da natureza. No início dos anos 1990, o ecossistema em torno do minúsculo Gombe National Park, de 77,7 Km², que antigamente fazia parte da contígua cobertura vegetal ao longo da costa oriental do lago Tanganica, foi reduzido a simples colinas. Havia mais pessoas vivendo ali do que a terra podia suportar, pessoas muito pobres para poderem comprar alimentos de outros lugares. O solo altamente desgastado havia se tornado infértil. Quando olhei na janela do avião perguntei a mim mesma: “Como poderemos tentar salvar os famosos chimpanzés do Gombe quando as pessoas que vivem ao redor do parque lutam pela sobrevivência?” Essa reflexão resultou na elaboração do programa TACARE (TakeCare), criado para dar mais qualidade de vida aos aldeões de um modo holístico. O aspecto mais importante do programa baseia-se na atuação participativa. Perguntamos aos aldeões como poderíamos ajudá-los da melhor forma e, com base nas necessidades, fornecemos o know-how. Ensinamos a pescar ao invés de dar o peixe. Um componente-chave foi o microcrédito do Grameen Bank para os grupos compostos em sua maioria por mulheres, emprestando dinheiro para projetos ambientalmente sustentáveis e fornecendo informações sobre planejamento familiar. Começamos com 12 aldeias localizadas nos limites do parque. Teve tanto sucesso que agora operamos em 52 aldeias. E a cobertura florestal está reaparecendo, as matas remanescentes estão sob proteção e os aldeões aprenderam a usar o Google Earth nos tablets para monitorar a saúde das árvores replantadas ou remanescentes. E eles concordaram em reservar uma parte da terra em torno do minúsculo parque Gombe como uma área de proteção. Os chimpanzés têm três vezes mais floresta hoje do que tinham há 10 anos. E as outras aldeias reservaram uma parte da terra para formar um corredor ligando os chimpanzés de Gombe, previamente isolados, a outros grupos remanescentes. Assim, os animais que estavam à beira da extinção tiveram uma nova oportunidade. Dou muitos exemplos inspiradores no livro Hope for Animals and their World. Meu exemplo favorito é o dos tordos-negros da Nova Zelândia. A um dado momento, restaram apenas sete pássaros, dentro os quais só um era uma fêmea fértil. Ela e seu parceiro se tornaram famosos. Hoje, existem mais de 500 tordos-negros. Todos são geneticamente idênticos, mas vivem em quatro ilhas diferentes. Esperamos que, ao longo do tempo, ocorra mutação genética.
O Gombe Street View, um esforço conjunto entre o Google Maps, o Google Earth Outreach (GEO), Tanzania National Parks, e o Jane Goodall Institute (JGI), foi lançado no mês passado para destacar os esforços realizados no Gombe Stream National Park como o feito pelo Google no mapeamento das cidades ao redor do mundo. Essa imagem captada pelo Gombe Street View mostra uma mãe e um jovem chimpanzé-oriental (Pan troglodytes schweinfurthii) caminhando ao longo de uma trilha no Gombe. Foto: cortesia do Google Earth.
4o O indomável espírito humano. Pessoas que enfrentam tarefas aparentemente impossíveis e não desistem. Uma delas é Don Merton, que salvou o tordo-negro, embora tenham lhe dito que era perda de tempo. Algumas delas são figuras icônicas, como Nelson Mandela, que ressurgiu dos 17 anos de trabalho físico pesado (dos 21 anos em que passou na prisão) com uma incrível capacidade de perdoar, permitindo-o livrar sua nação do cruel regime de apartheid sem que houvesse um banho de sangue que a maioria das pessoas achavam que iria ocorrer. Na verdade, se olharmos atentamente, encontraremos esse indomável espírito por todo lado, e isso é bastante inspirador.
5o O poder das redes sociais é a razão mais recente para que eu não perca a esperança. Por exemplo, os organizadores da última caminhada pelo clima em Nova York aguardavam em torno de 100 mil participantes, mas todo mundo tuitou, retuitou e postou notícias sobre o evento no Facebook, convocando os amigos e colegas para juntarem-se. E cerca de 400 mil pessoas apareceram (na verdade, haveria mais participantes se a polícia não tivesse interditado o acesso). Fui uma dessas pessoas que participou da marcha!
Mongabay.com: Você tem sustentado a ideia de que os animais são seres sensíveis e conscientes. Poderia nos explicar o que isso significa e quais as implicações éticas?
Jane Goodall: Ao final de apenas um ano que passei estudando os chimpanzés, Louis Leakey disse-me que havia conseguido uma vaga para que eu fizesse um PhD na Universidade de Cambridge, embora eu nunca tivesse frequentado uma universidade. Imagine o horror que senti quando me disseram que não poderia falar sobre personalidade, intelecto e emoções dos animais. Diziam que essas qualidades eram únicas da espécie humana. Alguns cientistas até mesmo me reprimiam porque eu dava nomes aos chimpanzés em vez de números. Obviamente eu sabia que esses cientistas eruditos estavam errados (e tenho dúvidas se a maioria deles acreditava no que diziam). É impossível conviver com os chimpanzés e não identificar as distintas personalidades. É impossível não reconhecer a reação de sofrimento da chimpanzé fêmea diante do filhote morto. É impossível não ver o sentimento de alegria dos chimpanzés jovens quando estão brincando. Os sentimentos de raiva, frustração, inveja, prazer, tristeza etc. são igualmente perceptíveis. Entretanto, muito antes de estudar o comportamento dos chimpanzés, eu já havia aprendido, com o meu cão, Rusty, que os animais realmente têm personalidade e sentem emoções. É impossível passar um considerável período ao lado de qualquer animal, como o cachorro, gato, cavalo, coelho ou porco, e não perceber que o que digo é verdade. O problema é que a ciência simplesmente ainda não tinha encontrado formas de analisar tais sentimentos.
Durante muito tempo, os seres humanos foram definidos como “Homens - o animal capaz de fazer ferramentas”, a única criatura com essa habilidade. E então vi David Greybeard (o primeiro chimpanzé a perder o medo da minha presença) não apenas usando talos de planta para fisgar cupins dos ninhos subterrâneos, como também retirando as folhas de um graveto para fazer uma ferramenta para essa finalidade. Certo dia, avistei um chimpanzé estirado ao sol, descansando tranquilamente. Ele sentou-se, observou ao redor, caminhou até a mata com grama alta, selecionou cuidadosamente três ou quatro talos, então, com determinação, começou a fisgar cupins no ninho quase imperceptível no meio da floresta, a cerca de 100 metros adiante. É um claro exemplo de planejamento com antecedência. Tenho centenas de exemplos similares.
Uma vez que estivermos preparados para admitir que os bichos têm personalidade, uma mente pensante e, acima de tudo, sentimentos, passaremos a noite acordados pensando na dor e sofrimento (mental e físico) que sistematicamente infligimos em milhões de animais. A agricultura intensiva, os abatedouros, a caça esportiva, os entretenimentos com animais, o tratamento que damos aos “animais de estimação”, a pesca – a lista é longa. Essa é a razão pela qual me tornei vegetariana. É a razão pela qual encorajo e tento ajudar todos aqueles que trabalham para aliviar a dor e o sofrimento dos animais no mundo todo.
Vídeo: Depoimento de Jane Goodall para o Natal de 2015, com legendas em português. Se a imagem não aparecer em sua tela, clique na seta do link abaixo.