Por: Luis Pellegrini
Marina, amiga desde os tempos de colégio, me telefonou em aos prantos. Não conseguia retomar o rumo da sua vida desde a perda do filho, morto de AIDs aos 24 anos. Marquei com ela um encontro naquele mesmo dia, logo após o expediente. Fomos ver O pequeno Buda, filme de Bernardo Bertolucci que voltara a entrar em cartaz, e depois saímos para jantar e conversar.
Sentados à mesa, num canto discreto do restaurante, observei seu rosto, ainda belo, embora devastado pela amargura, pela culpa e o ressentimento. Divorciada há muitos anos, criara praticamente sozinha o casal de filhos. Sentia-se agora rejeitada pela vida, cheia de raiva por aqueles que tinham desprezado seu filho devido à natureza de sua doença. Não conseguia entender “onde falhara”, nem por que fora “punida com aquele castigo” que considerava indevido.
Cena de O Pequeno Buda, de Bernardo Bertolucci, com Keanu Reeves no papel título.
Buda visita pela primeira vez a realidade do mundo
Enquanto a ouvia, pensava com rapidez num jeito eficiente de encaminhar a conversa num sentido que pudesse ajudá-la a emergir daquela tremenda depressão. Perguntei-lhe o que mais a tinha interessado no filme que acabáramos de ver. Respondeu ter sido a cena em que o jovem príncipe Sidarta, aquele que depois converteu-se em Gautama Buda, sai do palácio onde estivera confinado desde o nascimento, e visita pela primeira vez a realidade do mundo para além das muralhas da sua casa real.
Senti certo alívio. Talvez ela mesma estivesse dando uma pista útil para o início da sua recuperação. Rememoramos juntos cada detalhe daquele episódio da vida de Buda. Sidarta, príncipe herdeiro, era filho de um dos mais ricos e poderosos reis do norte da Índia. Por ordem do pai, nunca saíra do palácio, onde vivia no maior conforto. Belo e saudável, sua existência era como a de uma criança inocente que desconhece a dor e o sofrimento.
Wei-Ji, os ideogramas chineses que significam crise, perigo e oportunidade.
Um dia, quando ele estava perto dos dezoito anos, já casado e prestes a ser pai, Sidarta finalmente sai do palácio. Ganha as ruas e, pela primeira vez, entra em contato direto com seus súditos. Teve então três encontros que modificaram completamente a direção da sua vida. O primeiro foi com um mendigo maltrapilho que lhe implorou uma esmola. Mas Sidarta não carregava nenhum dinheiro. Na pessoa desse mendigo ele conheceu a fome e a miséria. O segundo encontro foi com um velho gravemente enfermo que lhe pediu ajuda. Mas ele não soube o que fazer: distinguiu assim o que era a velhice, a doença e a dor. O terceiro encontro foi com um cortejo fúnebre que entregava o corpo de um morto às chamas que o transformariam em cinzas. Essa visão mostrou a Sidarta a realidade última da morte e da aniquilação.
Miséria, dor e morte. As três juntas fizeram nascer na alma do príncipe um sentimento novo e esmagador: o da impotência. Desde sempre enclausurado no seu luxuoso palácio, ele nunca imaginara que essas coisas pudessem existir. Mas agora, diante delas, Sidarta entrou numa profunda crise que o fez, ao final, abdicar da sua condição de herdeiro. Vestido com roupas comuns, abandonou o palácio, a mulher e o filho recém-nascido, e saiu pelo mundo como um pobre andarilho. Levava um único objetivo em mente: descobrir, para si mesmo e para todas as pessoas, as causas do sofrimento e os meios que permitem a sua superação.
Décadas mais tarde ele ressurge, não mais como Sidarta, e sim como Buda – que significa “o Iluminado” – trazendo consigo uma doutrina que deu origem a uma das mais importantes religiões do mundo, o budismo. Doutrina que, segundo seus seguidores, dá resposta para aquelas questões cruciais. O budismo, na sua sabedoria mais essencial, diz que todo sofrimento nasce de três falhas fundamentais: a ignorância, o ódio, os apegos. Seus antídotos não poderiam ser outros: o conhecimento, o amor, o desapego.
“Você vê, que grande crise pessoal viveu Sidarta. Mesmo assim conseguiu redirecionar sua vida”, disse a Marina, encarando-a firme, na esperança de que as palavras calassem fundo dentro dela. E concluí: “Essa história, contada de pai para filho nos países do Oriente, é um exemplo claro de como uma situação de crise não é uma coisa necessariamente negativa, um castigo injusto, mas pode se constituir numa grande oportunidade de transformação que convém não desperdiçar”.
“Ele não perdeu um filho em circunstâncias tão terríveis como eu perdi”, argumentou.
“Mas quase perdeu a própria alma. E, como você, não estava preparado para isso”, retruquei com cuidado para não parecer demasiado duro.
Marina, como Sidarta, tivera a alma ferida. Mas não a perdera. Além disso, era inteligente e, mesmo sem o saber, lutava para sair do fundo do poço. Depois de um tempo, perguntou com uma ponta de esperança: “Você realmente acha que uma crise dessas tem algum sentido, que pode ser uma oportunidade de transformação?”
“Sim, estou certo disso”. Ajeitei-me melhor na cadeira. A conversa seria longa.
Na China, artistas plásticos discutem a crise da arte… fazendo arte.
A crise depressiva de minha amiga tinha motivos bem claros, e era mais que justificada. Mas todos nós, em certos momentos da existência, vivemos crises que se apresentam como uma sensação de mal-estar indefinido. Sabemos que não estamos doentes, mas desconhecemos o que temos. Sentimos que algo em nossa vida deveria mudar, mas não sabemos como nem por onde começar. Em outros momentos, percebemos que estamos cansados de repetir todos os dias os mesmos gestos, as mesmas atitudes e posturas que perderam já todo o seu significado. Sabemos então que precisamos mudar, que chegou a hora de transformar nosso cotidiano desgastado, mas, como na situação anterior, não sabemos como nem por onde começar. Em ambos os momentos, estamos “em crise”.
A crise assinala sempre um ponto de transição
O que é crise? Nos dicionários a palavra tem muitos significados. Entre eles, exprime manifestação violenta e repentina de ruptura de equilíbrio; estado de dúvidas e incertezas; fase difícil, grave, na evolução das coisas, dos fatos, das idéias; é momento perigoso ou decisivo; ponto de transição entre uma época de prosperidade e outra de depressão, ou vice-versa.
Quaisquer situações de crise às quais todos, sem exceção, estamos sujeitos, são no entanto extremamente importantes. Embora em geral incômodas – já que subvertem o equilíbrio e a harmonia da situação à qual estamos habituados -, elas são fundamentais para o crescimento. Toda crise desencadeia processos de transformação e de maturação que nos levarão a estados mais avançados de consciência. Examinada de não importa qual ponto de vista, a crise representa sempre uma preciosa oportunidade de crescimento.
Na visão da sabedoria esotérica das grandes religiões e dos verdadeiros sistemas iniciáticos, tanto ocidentais quanto orientais, as situações de crise têm grande valor espiritual. Os chineses seguidores do taoismo, por exemplo, cunharam um ideograma para a palavra crise, que a relaciona com a idéia de mudança e transformação. Esse ideograma é wei-ji, composto pelos caracteres “perigo” e “oportunidade”. Crise é, portanto, nesse enfoque, uma situação de risco, mas é também, para quem a encara de frente e sabe aproveitar a lição que ela encerra, uma oportunidade de transformação. A escola taoista, como todas as outras similares, chega mesmo a afirmar que é a própria “energia da crise” o que nos impulsiona para a frente, fazendo-nos dar um salto qualitativo em nossa vida.
Provocar ou induzir estados de crise em seus alunos é uma técnica frequentemente usada por mestres espirituais. Fazem isso quando sentem a necessidade de “sacudir” o discípulo que, sem o saber, acomoda-se no conforto de uma situação de inércia que o impede de continuar seu processo de evolução e desenvolvimento. Tais métodos, que a tradição brasileira chama de “sacudimento” chegam até a parecer brutais. Mas eles apenas imitam a vida. A vida não admite a inércia. Ela é sinônimo de movimento, e não de estagnação.
Sem crise de transformação, nossa tendência é ficar parados, bloqueando qualquer processo evolutivo. Cada ser humano é um complexo sistema de energias físicas, psíquicas, mentais e espirituais. A própria física, ciência das energias, ensina que todo sistema energético tende a entrar em colapso quando se deixa cair numa situação de inércia. Ou seja, quando as forças que o compõem giram, giram, e não saem do mesmo lugar. Quantas vezes, em nossas vidas, entramos numa situação de inércia existencial, e nela nos acomodamos, sem perceber que, assim fazendo, caminhamos seguramente para a estagnação e a degeneração?
Calígrafo chinês desenha o ideograma Wei-Ji.
A natureza, por seu lado, na sabedoria dos seus processos, também nos ensina que toda mudança, toda transformação verdadeira, acontece sempre a partir de uma situação de crise. Lembremos, mais uma vez, o exemplo eloqüente da lagosta. Esse crustáceo vive tranquilo no fundo do mar, protegido pela sua carapaça dura e resistente. Mas, dentro da carapaça, a lagosta continua a crescer Ao final de um ano, surge uma situação de crise: sua casa ficou pequena. Ela tem de enfrentar um grande dilema: permanece dentro da carapaça e morre sufocada, ou arrisca sair dela, abandonando-a, até que seu organismo crie uma nova carapaça de proteção, de tamanho maior, e que lhe servirá de couraça por mais um ano.
Vagando no mar, sem a carapaça, a lagosta fica mais vulnerável aos muitos predadores que se alimentam dela. Mesmo assim, movida por um irresistível instinto de mudança, ele sempre prefere sair. Dentro da velha carapaça que se transformou em prisão ela não tem nenhuma chance. Fora, sim.
Alegoria da crise generalizada.
Uma existência inerte é como uma camisa-de-força
Quantas vezes, durante a vida, também nós ficamos prisioneiros das carapaças que são os hábitos repetitivos, os condicionamentos alienantes, as situações às quais nos acomodamos mas que, endurecidas e exaustas, nada mais têm para nos oferecer? E acabamos, por falta de coragem de mudar, nos acostumando ao tédio de uma vida monótona que fatalmente, como a velha carapaça à lagosta, acabará por nos sufocar? A maioria, infelizmente, tem dificuldade para entender tudo isso. E, para não enfrentar a crise de transformação, acaba morrendo em vida, perecendo no interior da camisa-de força em que se transformou a sua existência inerte.
Não há certamente maior exemplo de crise de transformação do que o nascimento de uma criança, quando um novo ser humano morre para a vida intra-uterina e renasce para a luz do dia. Mas alguém já ouviu falar num parto absolutamente sem dor, sem dilatações e contrações, sem derramamento de sangue, sem medo e sem risco? Sem nenhum sofrimento tanto para a mãe quanto para o bebê?
De modo análogo acontecem todos os outros “partos” na nossa vida. Seja ele o parto de uma idéia, um projeto, uma obra, um casamento, uma carreira, uma amizade, e até o próprio nascimento para a vida espiritual. Quanto a este último, há observações interessantes a fazer. Todos os nascimentos espirituais dos grandes homens e mulheres “iluminados” que a humanidade já produziu, foram precedidos por fortes situações de crise existencial, como aquela que transformou o príncipe Sidarta em Buda.
“A estrada para o céu passa pelo inferno” é um velho e sábio provérbio cuja veracidade é bem conhecida desde os primórdios da humanidade. No xamanismo dos povos primitivos, a mais antiga das religiões, que surgiu provavelmente na era paleolítica e sobreviveu até os nossos dias, existe um fenômeno bem conhecido pelos antropólogos denominado “crise xamânica ” ou “enfermidade xamânica”. A carreira de muitos xamãs – feiticeiros curadores ou curandeiros e curandeiras, como é o caso dos pajés indígenas – começa quase sempre com um dramático episódio involuntário. Nele, os futuros xamãs são tomados por um estado de grande angústia; podem perder o contato com a realidade do meio ambiente; podem desenvolver comportamentos antissociais ou auto-destrutivos; costumam ter intensas experiências interiores, que envolvem jornadas ao chamado “mundo inferior”, onde são atacados por “demônios” que os expõem a incríveis sofrimentos. Quando concluídos com sucesso, esses episódios costumam ter profundo efeito de cura; não apenas a saúde emocional como a saúde física do futuro xamã sofre uma grande melhora em consequência dessas crises psico-espirituais. Passada a crise, a pessoa torna-se um xamã e retorna à comunidade como membro pleno e honrado como tal. Seu posto na hierarquia equivale à do chefe ou rei da tribo.
Dentro dessa linha de pensamento, existe hoje toda uma corrente avançada da psicologia baseada na idéia de que algumas das experiências dramáticas e dos estados mentais incomuns que a psiquiatria tradicional diagnostica como distúrbios mentais são, na verdade, crises de transformação pessoal ou crises de “emergência espiritual”. Quando entendidas e tratadas adequadamente, em vez de serem simplesmente suprimidas pelas rotinas psiquiátricas padronizadas, essas experiências podem ter como resultado a cura e produzir efeitos benéficos nas pessoas que passam por elas. Esse potencial positivo é expresso pelo termo emergência espiritual, um jogo de palavras que sugere tanto uma crise (emergência no sentido de “urgência”), como uma oportunidade de ascensão a um novo nível de consciência (emergência como “elevação”).
Tudo na vida, na natureza e no mundo só se transforma e evolui através de situações de crise: esta é uma lei natural da qual não se pode fugir. As crises existenciais devem ser, portanto, bem vindas. É preciso aceitá-las, entender suas causas, significados e propósitos, e aproveitar o seu potencial transformador para renovar tudo aquilo que existe de superado e estagnado em nós e na nossa relação com nós mesmos, com os outros e com o mundo.
Acho que minha amiga Marina entendeu o recado. Tempos depois me telefonou novamente. Voltara a trabalhar e, nas horas vagas, colaborava como assistente social junto a um grupo de aidéticos. A cada dia sente-se um pouco mais feliz.
O que há para ler:
Crise com sabedoria, Walter de Sousa e Maria Raquel Villares, Ed. Cultrix; Emergência espiritual, Stanislav Grof e Christina Grof, Ed. Cultrix; A tempestuosa busca do ser, Christina Grof e Stanislav Grof, Ed. Cultrix; A doença como caminho, Thorwald Dethlefsen e Rudiger Dahlke, Ed. Cultrix
http://www.brasil247.com/pt/247/revista_oasis/262600/Crise-Uma-oportunidade-de-transforma%C3%A7%C3%A3o.htm