Numa gélida noite de outono, um reboque-churrasqueira está estacionado numa rua do norte de Londres, diante de um jardim plano, com feéricas luzes verdes a piscar. Um cheiro morno de frango perfuma o ambiente. Um trintão moderninho sai e dirige-se a mim, na calçada; fala arrastando as palavras, impressionado com o que está acontecendo lá dentro. “Acho que os arancini não estão suficientemente picantes”, informa, com aquele ar de já-comi-de-tudo-nesta-vida. “Podiam ter mais sabor; não, o molho não é realmente exótico”.
Nessa altura, não tenho a menor ideia do que sejam os “arancini” (nem que arancini, como panini, já é um plural, em italiano), mas aceno com ar conhecedor, enquanto digito as suas afirmações no meu celular e o meu amigo o entretém na conversa.
“Acho que o hamburger coreano está muito bom”, prossegue o moderninho, sem grande entusiasmo pelo kimchi, “mas acho que muita gente não faz os seus pratos com suficiente alma… não levam as suas criações até as últimas consequências”. Há 25 anos, ele poderia ser confundido com um fã ardoroso de indie-rock lamentando a insipidez das canções mais cotadas. Hoje, ele é arrivista social e um crítico muito-mais-gastrônomo-do-que-vocês.
Numa food rave
0 nome food rave (“delírio alimentar”, mais usado para designar uma “festa da comida”) é bem apropriado para a cultura moderna. As comidas são as coisas mais aceitáveis para se ingerir quando não queremos ser olhados de esguelho, com olho torto e crítico. Alex James, baixista dos Blur, que se tornou fazendeiro e produtor de queijos, e que agora virou colunista de gastronomia do jornal The Sun, confessou publicamente: “A festa dos meus 20 anos foi à base de álcool, a dos 30 à base de drogas, e agora percebo que, aos 40, estou muito mais voltado para a comida.” Ele não é o único.
A caminho da autofagia
A comida substitui as drogas no panteão hedonista dos gastrônomos que desejam envelhecer com suavidade. Ela traz consigo as marcas de um outro vocabulário. Ouvimos agora falar de um prato ou molho que “bate”, como se se tratasse de um “baguio” ou de uma “cheirada” (de maconha ou de cocaína). A comida começa a ser valorizada pela “trip” psicodélica que pode oferecer. Ela é a nova droga dos ex-poppers britânicos e da geração do ecstasy. É um indutor hedonista mais seguro e respeitável. É uma “pedra de crack” confortavelmente domesticada.
A civilização industrial ocidental entrou em autofagia. Vivemos agora na Idade da Comida. Os programas de culinária enchem as programações televisivas, livros de receitas transbordam das estantes das livrarias, chefs famosos apregoam, nos supermercados, as suas próprias marcas de tortas estranhas (Heston Blumenthal) ou massas moldadas em bronze (Jamie Oliver). Cozinheiros de restaurantes caríssimos, de Chicago a Copenhague, são objeto de perfis hagiográficos em revistas e jornais sérios.
Festivais de comida começam a tomar o espaço dos festivais de rock, apresentando emocionantes performances ao vivo de… arte culinária. Como observou uma testemunha de uma intervenção em palco de Jamie Oliver: “As garotas das filas da frente – trata-se de um público esmagadoramente feminino – já estão de iPhones assestados. Um grupinho à minha frente não para de gritar: ‘Ómeudeusómeudeusómeudeus’. Eu te amo, Jamie’, berra uma outra mocinha, à beira do desmaio”.
A nova série do The Great British Bake-Off (concurso televisivo multipremiado, baseado em arte culinária) desbancou em audiência O Fim de uma Época (minissérie britânica de ficção histórica) e também o espertíssimo supremo-sacerdote dos concursos de calouros, Simon Cowell (X Factor, The Voice). A mesma equipe prepara agora uma nova série chamada Food, Glorious Food! (Comida, abençoada comida).
Mundialmente conhecido pelo sua cozinha à base de espumas, o chef catalão Ferran Adrià posa na foto com modelos em plástico de suas criações culinárias, expostas como obras de arte no Somerset House, em Londres.
Culinária e metafísica
Se você não conseguir assistir a sessões de culinária na televisão ou ao vivo, pode, pelo menos, ler notícias sobre o assunto. Grandes fatias da internet foram abocanhadas por blogs de comida. Seus donos postam fotografias do que comeram no botequim de um beco escuso ou num restaurante com aspirações, e compõem textos e canções pseudoeróticos, infinitamente repetidos, sobre os efeitos estimulantes dos alimentos. Hoje, cinco de cada dez livros mais vendidos na amazon.co.uk são de culinária, com Nigellissima (livro de receitas da chef Nigella Lawson) batendo todos os recordes. Esse best-seller de receitas ultrapassou em vendas o livro As Cinquenta Sombras de Grey (que por sua vez, na Grã- Bretanha, ultrapassara as vendas de Harry Potter!)
Segundo os dados mais recentes da Bookscan (empresa tipo ibope para estudar os números do mercado de livros na Inglaterra) as vendas britânicas de livros caíram em quase todos os segmentos e gêneros literários, exceto na categoria de “comida e bebida” (subiu 26.2% ) e na de religião (subiu 13%). Antes de 1990, a categoria bibliográfica “comida e bebida” nem sequer constava.
Que só a alimentação e a religião tenham superado essa tendência negativa não é nenhuma coincidência: as atividades ligadas à culinária e à gastronomia chegaram para responder às aspirações metafísicas das pessoas, às suas preocupações com questões de “estilo de vida”. Os chefs famosos são os gurus dessa nova era.
Já não se considera sinal de perturbação psíquica grave proclamar que “mousse de chocolate continua a ser a coisa que me provoca a mais intensa atração” ou gabar-se de que jantar com celebridades na última noite do restaurante de Ferran Adriá, El Bulli, na Espanha, “me deixou em lágrimas”.
Hoje, é “out” , é “estar por fora”, numa reunião social, não ser capaz de discutir, longamente e ao mais ínfimo pormenor, sobre culinária e gastronomia. A comida não é apenas uma “paixão” segura (no sentido moderno de “paixão”, ou seja, gostar muito de algo); ela tornou-se obrigatória. Uma refeição não dissecada, como escreveu na década de 80 um par de “foodies” (gastrônomos, apreciadores de comida) não vale a pena ser comida. Perspicaz, o Departamento de Filosofia da Universidade de North Texas anunciou, já em 2011, o seu “Philosophy of Food Project” (Filosofia do Projeto Alimentar), sem dúvida por ter percebido para qual lado soprava o vento e, na esperança de ser capaz de enganar os obcecados culinários e pô-los a pensar sobre outros temas. Claro que é possível pensar filosoficamente sobre comida, como sobre qualquer outro assunto; mas não é isso que está acontecendo na gastrocultura contemporânea.
Arte culinária ou psicose gastronômica?
Onde tudo isso irá parar? Haverá algum meio de comunicação ou entretenimento ou formato social que ainda não tenha sido apanhado pela glutoneria da gastromania de propósito voraz egocêntrico? Será que a nossa “loucura gastronômica” cultural, como sugere o colunista do New York Times, Frank Rico, raia a “psicose gastronômica”? Não seria melhor preocuparmo-nos mais com o que colocamos nas nossas cabecinhas do que nas nossas bocas?
Muitos começam a ver nesse anseio desmesurado por comida e por degustação um sucedâneo do anseio de preenchimento de um vazio espiritual característico da nossa civilização. Comida tem a ver com “espiritualidade” e com “expressão de identidade”, defende o moderno cavaleiro culinário Michael Pollan. O seu elogiado catecismo da gastronomia moderna, The Omnivore’s Dilemma (O dilema do onívoro), fala em comer com “plena consciência” e afirma que cada refeição tem o seu “preço cármico”; termina com a declaração de que “o que estamos comendo é parte do corpo do mundo”. E assim, mastigar uma costeleta de porco torna-se uma união sublime do eu com o planeta, uma eucaristia da Terra Mãe.
Já notaram quantos livros de culinária se autoproclamam “bíblias”? No culto do “nutricionismo” temos a Optimum Nutrition Bible de Patrick Holford e a Food Bible de Gillian McKeith: há também a Baby Food Bible, uma Whole Food Bible, uma Gluten-Free Bible, uma Party Food Bible, uma Spicy Food Lover’s Bible, e assim por diante até nos fartarmos ou talvez até ao infinito. E se não quisermos saber mais nada das conotações judaico-cristãs que acompanham essa gastronomia bíblica, podemos entrar em comunhão com os druidas, uma hipótese levantada por Hugh Fearnley-Whittingstall no final da década de 90: “Suspeito de que o fato de os cogumelos silvestres terem se tornado populares lado a lado com o crescente interesse pelo espiritualismo New Age não é mera coincidência”.
Assim, a comida é considerada a substância adequada para todos os tipos de anseios por aperitivos espirituais. Mas supor que comer pode nutrir o espírito é exatamente o tipo de erro que levou a igreja primitiva a definir a gula como um pecado.
Nem só de pão vive o homem
Gula, no entendimento original, não era comer demasiado; era viver demasiadamente interessado por comida, independentemente da sua real ingestão. A gula, como diz Francine Prose (autora de uma monografia pertinente, Gluttony (Gula), tinha que ver com o “desejo desordenado” de comida, que nos faz “afastar do caminho da razão”. O teólogo Tomás de Aquino concordou com o Papa Gregório que a gula pode ser cometida de cinco maneiras diferentes, entre as quais procurar cada vez mais “pratos suntuosos” ou querer alimentos “mais meticulosamente preparados”. Nesse sentido, os gastrônomos modernos são certamente glutões, como B.R. Myers, escritor de The Atlantic, argumenta no seu incisivo “Moral Crusade Against Foodies” (Cruzada moral contra os “foodies”).
Então, e os cozinheiros? Se a comida é espiritual, os modernos chefs célebres tornaram-se nossos sacerdotes ou gurus, canais druídicos para o inefável. O cozinheiro está em sintonia com o território; intérprete da deusa Gaia para nosso prazer salivar e aperfeiçoamento espiritual. Perdemos a confiança nos políticos e no clero; mas estamos sequiosos pelo que os cozinheiros têm para nos dizer, não apenas sobre a forma de comer, mas sobre como viver. É uma posição moralista facilmente realizada, uma vez que agora aceitamos alegremente que a alimentação seja uma razão de vida. Um anúncio do supermercado Waitrose dizia: “Ame a comida. Ame a vida.” A incitação implica um condicional: se, e só se, adorar a comida, poderá amar a vida, de maneira correta.
A insaciabilidade moderna de dar à alimentação um “significado” espiritual parece um desenvolvimento relativamente recente: e’ um deleite notar a ausência desses exageros no muito amado livro de receitas norte-americano de 1931 The Joy of Cooking, de lrma Rombauer. A sua retórica atinge um pico modesto nas observações introdutórias: “Este livro é o resultado de uma longa experiência prática, viva curiosidade e amor verdadeiro pela cozinha. Aqui, fiz uma tentativa de satisfazer as necessidades de uma família média com pratos saborosos e meios simples, e de retirar da banalidade a culinária quotidiana”. Cozinhar, para a autora, é um ato prazenteiro, talvez digno de um certo “amor”; e o objetivo de Irma Rombauer é simplesmente ajudar outros a cozinhar alimentos mais agradáveis, no quotidiano. Que pode haver de mais civilizado?
Desde então, a retórica gastronômica tem, como o início do universo, conhecido uma expansão galopante. O movimento gastronômico, que bem poderíamos chamar de “gastronomístico”, anseia por reivindicar outros domínios culturais como virtudes inerentes à própria comida, de modo a não ter nunca de parar de pensar em manter a boca cheia. A comida deixa de ser apenas o alimento espiritual e passa a ser arte, sexo, ecologia, história, moda e ética. Chega mesmo a ser, na mente de alguns dos seus fanáticos mais perturbados, uma linguagem universal.
Comida como linguagem universal
Alex James, por exemplo, disse a The Sun: “A comida é uma excelente maneira de estabelecer contato com alguém. Antes, eu pensava que a música era “a” linguagem universal. Mas se formos para a África e tocarmos uma canção dos Blur, alguém vai ter de traduzi-la. No entanto, se lhes dermos um queijo, a reação será instantânea”. E assim, um pedaço de queijo Cheddar toma-se superior ao Nevermind dos Nirvana: um meio de comunicação universal ou, pelo menos, um solvente universal do intelecto, para gastrônomos.
Em 1932, Salvador Dali expunha em Paris o seu “relógio hipnagógico”, que descreveu como “ um enorme pedaço de pão disposto sobre um pedestal luxuoso”. Concebeu igualmente um excelente projeto para uma “sociedade secreta do pão”, em que pães gigantes (de 15 a 45 metros de comprimento) seriam deixados anonimamente em locais públicos de Paris ou Nova Iorque. Desta forma, teorizava Dalí, “podia-se a posteriori tentar liquidar sistematicamente o significado lógico de todos os mecanismos do mundo prático racional”. Tristemente, esta sociedade secreta do pão permaneceu totalmente conceitual.
De qualquer modo, para o gastrônomo, a comida já é arte. Como dizia o The Official Foodie Handbook, já em 1984: “Os ‘foodies’ consideram a comida uma arte, ao nível da pintura ou do teatro. É mesmo a sua forma de arte favorita”. Agora, esse tipo de discurso está em toda a parte, inconsciente da sua própria hipérbole.
As coxinhas de rã de Bernard Loiseau, a 60 dólares cada uma, são “um deslumbrante espetáculo artístico”. O midiático chef Anthony Bourdain refere-se hereticamente a Ferran Adriá como “o cara da espuma”, mas há quem esteja enfeitiçado pela espuma estética do espanhol: a espuma de Adriá é “incrivelmente bela como uma obra de arte”; e o seu “gênio selvagem na cozinha é muitas vezes comparado ao de Salvador Dalí no mundo da arte”. É possível obter a aplicação para iPad do Nigella Quick Collection, em cujo lançamento o relações públicas disse ter feito a “curadoria” das refeições dela como se fossem quadros ou peças de uma instalação.
A comida como arte
A noção de que comida é uma “forma de arte” em si é uma reivindicação muito mais forte do que o fraseado tradicional, como “a arte da culinária”, uma atribuição mais modesta de criatividade e artesanato à atividade quotidiana. Hoje, os principais gastrônomos são petulantes acerca da suposta falta de reconhecimento artístico.
O ex-executivo da Microsoft e agora empresário de patentes, Nathan Myhrvold, é, sem dúvida, um homem muito inteligente; mas continua a manifestar-se num tom curiosamente suplicante: “Se a música pode ser arte, porque não pode o mesmo acontecer à comida?” Myhrvold se lamenta, no seu próprio livro de receitas em seis volumes e com milhões de palavras, ameaçadoramente intitulado Modernist Cuisine: The Art and Science of Cooking (custa 395 libras esterlinas, cerca de 321 euros).
Deveria ser óbvio que um bife não é uma sinfonia, uma torta não é uma composição de passacaglia, foie gras não é uma fuga. A “composição” de um menu não é equivalente à composição de um réquiem; e o cozinheiro que aquece umas coisas na cozinha e as organiza num prato não é o contraponto artístico de Charlie Parker.
O escritor francês do nouveau roman Alain Robe-Grillet relata a seguinte cena, num almoço com seu amigo, o pensador Roland Barthes: “Num restaurante, dizia ele, é o menu que as pessoas gostam de consumir – não os pratos, mas a sua descrição. Num estalar de dedos ele relegou toda a arte culinária – que ele adorava – à condição de um exercícios abstrato de vocabulário!”
Mas Barthes percebeu o que seu amigo não viu. O cardápio do restaurante não é apenas uma espécie de poesia concreta, uma promessa provocadora de satisfação, uma nota de dívida para um consumo prazeroso num futuro próximo; nem sequer, como o próprio Barthes escreveu algures, a “sintaxe” de um determinado “sistema” de alimentos. O cardápio pode até mesmo alterar a forma como apreciamos a comida quando ela nos chega ao prato. Prova-se que o enquadramento linguístico de uma descrição de menu pode mudar o que as pessoas relatam ter experimentado.
Numa experiência, dois psicólogos deram a diferentes grupos de pessoas o “sorvete de caranguejo” de Heston Blumenthal, mas a descrição diferiu: a um grupo disse que estava prestes a comer uma “mousse salgada; ao outro grupo, disse que iriam tomar um “sorvete”. Quem esperava a mousse salgada gostou; mas quem pensava que ia comer sorvete achou “horrível” e até mesmo “o prato mais desagradável que alguma vez tinham experimentado”.
Os psicólogos concluíram que a maioria dos gostos alimentares “abrandam” ante a “expectativa do sabor causado pelo aspecto visual ou a descrição verbal do que está para ser comido”. Faz-nos lembrar o filme de Terry Gilliam, Brazil, em que pratos de uma mesma pasta castanha homogênea, no restaurante, eram diferenciados pelas fotografias coloridas postas neles e o saboroso anúncio dos seus nomes: “Número dois, pato à l’orange”, “Número um, camarões com maionese”…
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