Leonardo da Vinci


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Leonardo da Vinci

Provável autorretrato de Leonardo da Vinci, cerca de 1512 a 1515.[nb 1]
Nascimento 15 de abril de 1452
Anchiano, República de Florença
(atual Itália)
Morte 2 de maio de 1519 (67 anos)
Amboise, Reino da França
(atual França)
Ocupação Atuou em diversas áreas, como pintor, escultor, arquiteto, engenheiro, matemático, fisiólogo, químico, botânico, geólogo, cartógrafo, físico, mecânico, inventor, anatomista, escritor, poeta e músico
Principais trabalhos Mona Lisa
A Última Ceia

A Virgem das Rochas
Homem Vitruviano
Escola/tradição Ateliê de Verrocchio
Pintura Italiana
Movimento estético Alto Renascimento
Assinatura



Leonardo di Ser Piero da Vinci (Loudspeaker.svg? pron.), ou simplesmente Leonardo da Vinci (Anchiano, 15 de abril de 1452[1]  Amboise, 2 de maio de 1519), foi um polímata nascido na atual Itália,[1][nb 2] uma das figuras mais importantes do Alto Renascimento,[1] que se destacou como cientista, matemático, engenheiro, inventor, anatomista, pintor, escultor, arquiteto, botânico, poeta e músico.[2][3][4] É ainda conhecido como o percursor da aviação e da balística.[2] Leonardo frequentemente foi descrito como o arquétipo do homem do Renascimento, alguém cuja curiosidade insaciável era igualada apenas pela sua capacidade de invenção.[5] É considerado um dos maiores pintores de todos os tempos e como possivelmente a pessoa dotada de talentos mais diversos a ter vivido.[6] Segundo a historiadora de arte Helen Gardner, a profundidade e o alcance de seus interesses não tiveram precedentes e sua mente e personalidade parecem sobre-humanos para nós, e o homem em si [nos parece] misterioso e distante.[5]
Nascido como filho ilegítimo de um notário, Piero da Vinci, e de uma camponesa, Caterina, em Vinci, na região da Florença, foi educado no ateliê do renomado pintor florentino, Verrocchio. Passou a maior parte do início de sua vida profissional a serviço de Ludovico Sforza (Ludovico il Moro), em Milão; trabalhou posteriormente em VenezaRoma e Bolonha, e passou seus últimos dias na França, numa casa que lhe foi presenteada pelo rei Francisco I.
Leonardo era, como até hoje, conhecido principalmente como pintor.[6] Duas de suas obras, a Mona Lisa[1] e A Última Ceia,[1] estão entre as pinturas mais famosas, mais reproduzidas e mais parodiadas de todos os tempos, e sua fama se compara apenas à Criação de Adão, de Michelangelo.[5] O desenho do Homem Vitruviano, feito por Leonardo, também é tido como um ícone cultural,[7]e foi reproduzido por todas as partes, desde o euro até camisetas. Cerca de quinze de suas pinturas sobreviveram até os dias de hoje; o número pequeno se deve às suas experiências constantes — e frequentemente desastrosas — com novas técnicas, além de sua procrastinação crônica.[nb 3] Ainda assim, estas poucas obras, juntamente com seus cadernos de anotações — que contêm desenhos, diagramas científicos, e seus pensamentos sobre a natureza da pintura — formam uma contribuição às futuras gerações de artistas que só pode ser rivalizada à de seu contemporâneo, Michelangelo.[nb 4]
Leonardo é reverenciado pela sua engenhosidade tecnológica;[6] concebeu ideias muito à frente de seu tempo, como um protótipo de helicóptero, um tanque de guerra, o uso da energia solar, uma calculadora, o casco duplo nas embarcações, e uma teoria rudimentar das placas tectônicas.[9] Um número relativamente pequeno de seus projetos chegou a ser construído durante sua vida (muitos nem mesmo eram factíveis),[nb 5] mas algumas de suas invenções menores, como uma bobina automática, e um aparelho que testa a resistência à tração de um fio, entraram sem crédito algum para o mundo da indústria.[nb 6] Como cientista, foi responsável por grande avanço do conhecimento nos campos da anatomia, da engenharia civil, da óptica e da hidrodinâmica.
Leonardo da Vinci é considerado por vários o maior gênio da história,[10][11][12][13] devido a sua multiplicidade de talentos para ciências e artes, sua engenhosidade e criatividade, além de suas obras polêmicas. Num estudo realizado em 1926 seu QI foi estimado em cerca de 180.[14][15]

Biografia

Genealogia


Possível casa de infância de Leonardo, em Anchiano.
Leonardo nasceu em 15 de abril de 1452, "na terceira hora da noite",[nb 7] de um sábado,[nb 8] no vilarejo de Anchiano, na comuna italiana de Vinci, na Toscana, situada no vale do rio Arno, dentro do território dominado à época por Florença.[18] Era filho ilegítimo de Messer Piero Fruosino di Antonio da Vinci, um notário florentino, e Caterina,[19][20] uma camponesa[17][21] que pode ter sido uma escrava oriunda do Oriente Médio.[nb 9][22] Leonardo não tinha um sobrenome no sentido atual; "da Vinci" significa simplesmente "de Vinci": seu nome completo de batismo era "Leonardo di ser Piero da Vinci", que significava "Leonardo, (filho) de (Mes)ser,[nb 10] Piero de Vinci".[18] O próprio Leonardo da Vinci assinava seus trabalhos simplesmente como Leonardo ou Io Leonardo ("Eu, Leonardo"); presume-se que ele não usou o nome do pai por causa do estado ilegítimo.

Infância, 1452–1468


Leonardo da Vinci
Estátua na Galleria degli Uffizi
Pouco se sabe da infância de Leonardo. Provavelmente passou os seus primeiros quatro ou cinco anos no vilarejo de Anchiano, e depois do casamento de sua mãe com um lavrador de nome Accattabriga di Piero del Vaca, mudou-se para a casa da família de seu pai então casado com uma jovem de dezesseis anos chamada Albiera di Giovanni Amadori,[16] com a qual Leonardo tinha uma boa relação, a quem chamava de madrinha, em companhia de seu avô, Antonio, e tio, Francesco, na paróquia de Santa Croce em Vinci, em um ambiente bucólico aconchegante, o que é significativo na personalidade de um Leonardo ligado a natureza.[nb 11] Albiera morreu muito cedo sem filhos . A morte do seu avô Antonio a quem muito estimava deu-se logo após em 1468,[2][23] e Leonardo apesar de ilegítimo continuara filho único no segundo casamento do seu pai Piero, com Francesca di Giuliano Lanfredini; testemunharia a mais dois casamentos deste, até que em 1476, quando viviam em Florença, Piero teve o tão esperado filho legítimo.[24] Em sua vida adulta, Leonardo só se recordaria de dois incidentes de sua infância, um deles, tinha como presságio:
Parece-me que sempre fui destinado a me interessar muito profundamente por falcões, pois lembro-me como uma de minhas primeiras recordações que, quando estava no berço, um falcão desceu sobre mim e abriu-me a boca com a cauda, e me bateu muitas vezes entre os lábios com ela.[16][23]
O segundo ocorreu enquanto ele brincava nas montanhas da região, e depois de vagar por alguma distância entre as rochas projetadas acima, cheguei à boca de uma imensa caverna, diante da qual me quedei por algum tempo estupefato, pois ignorava a sua existência (…) e após ficar ali algum tempo, de repente despertaram dentro de mim duas emoções — medo e desejo — medo da escura e ameaçadora caverna, desejo de ver se haveria alguma coisa maravilhosa lá dentro.[16][23]
A infância e a juventude de Leonardo foram tema de diversas conjunturas históricas.[25] Giorgio Vasaribiógrafo do século XVI que escreveu sobre os pintores do Renascimento, conta como um camponês local teria pedido a Ser Piero que mandasse seu filho pintar um quadro numa placa redonda ou escudo. Leonardo respondeu com uma pintura de serpentes soltando fogo — ou mesmo um dragão — tão terrível e mesmo assim tão surpreendente que Ser Piero decidiu vender a um negociante de arte florentino que, por sua vez, a vendeu ao Duque de Milão. Enquanto isso, com parte do lucro da venda, Ser Piero comprou uma placa, decorada com um coração penetrado por uma flecha, que ele deu ao camponês.[26] Leonardo tornou-se um jovem instruído e sempre referido pelos estudiosos como dono de uma bela aparência de fartos cabelos louros e olhos claros, além de uma personalidade afável com o trato das pessoas.[27]

Ateliê de Verrocchio, 1469–1476

Na sua adolescência, Leonardo foi fortemente influenciado por duas grandes personalidades da época, Lourenço de Médici e o grande artista Andrea del Verrocchio.
Em 1469, com dezessete anos, Leonardo passou a ser aprendiz de um dos mais bem-sucedidos artistas de seu tempo, Andrea di Cione, conhecido como Verrocchio (Olho verdadeiro).[16] O ateliê de Verrocchio estava no centro das correntes intelectuais de Florença, o que garantiu ao jovem Leonardo uma educação nas ciências humanas. Outros pintores famosos que passaram por um aprendizado neste mesmo ateliê foram GhirlandaioPeruginoBotticelli e Lorenzo di Credi.[23][28] Leonardo foi exposto desde cedo a uma vasta gama de técnicas, e teve a oportunidade de aprender desenho técnicoquímicametalurgiamecânicacarpintaria, a trabalhar com materiais como couro e metal, fazer moldes, além das técnicas artísticas de desenho, pintura, escultura e modelagem.[29][30][31]
Boa parte da produção de pinturas do ateliê de Verrocchio era feita por seus funcionários. De acordo com Vasari, Leonardo colaborou com Verrocchio em seu O Batismo de Cristo, pintando o jovem anjo da esquerda, que segura a túnica de Jesus de maneira tão superior ao seu próprio mestre que Verrocchio teria decidido nunca mais pintar.[26] Isto provavelmente é um exagero; mas um exame atento da pintura mostra que existem diversos retoques feitos sobre a têmpera utilizando a nova técnica de pintura a óleo, como o cenário, as rochas que podem ser vistas ao fundo e boa parte da figura do próprio Jesus, todas testemunhas da mão de Leonardo.[21]
O próprio Leonardo pode ter sido o modelo para duas obras de Verrocchio, incluindo a estátua de bronze de David, no Bargello, e o Arcanjo em Tobias e o Anjo. Na altura apenas se disse que a estátua de David tinha sido inspirada num dos mais belos aprendizes do atelier de Verrocchio.[21]
Em 1472, com vinte anos de idade, Leonardo se qualificou para o cargo de mestre na Guilda de São Lucas, uma guilda de artistas e doutores em medicina,[nb 12] porém mesmo depois de seu pai ter montado seu próprio ateliê, sua ligação com Verrocchio permaneceu tal que ele continuou a colaborar com ele.[23] Aos poucos, as pessoas da corte passam a fazer encomendas diretamente a Leonardo. Sua obra mais antiga a ser datada é um desenho em pena e tinta do vale do Arno, feito em 5 de agosto de 1473.[nb 13][28]

Vida profissional, 1476–1513

A Adoração dos Magos, (1481–1482) — Uffizi. Em março de 1481, a Leonardo foi encomendada esta pintura, pelos monges de São Donato Scopeto em Florença. O notário do mosteiro era o pai de Leonardo, e é muito provável que tenha induzido os monges a contratar seu filho.[32]
Leonardo da Vinci na presença do Duque de Milão Ludovico Sforzaafresco de Nicola Cianfanelli
Estudo de um cavalodos diários de Leonardo — Royal Library, Castelo de Windsor
Desenho de Leonardo Da Vinciparte da coleção da Castello Sforzesco
Em 1476, Leonardo da Vinci, juntamente com mais três alunos do ateliê de Verrocchio, foram acusados de sodomia;[nb 14] segundo a acusação referente a Leonardo, ele teria tido relações homossexuais com Jacopo Saltarelli, um jovem de 17 anos muito popular à época em Florença como prostituto.[16] Diante, no entanto, da falta de provas concretas que confirmassem semelhante acusação, Leonardo foi absolvido.[33] A partir desta data até 1478 não existem registros nem de obras suas nem de seu paradeiro,[34] embora se costuma presumir que Leonardo tenha estado no ateliê, em Florença, entre 1476 e 1481.[21] Em 1478 foi-lhe encomendada a pintura de um retábulo para a Capela de São Bernardo, e a Adoração dos Magos, em 1481, para os monges de San Donato a Scopeto. Esta importante encomenda foi interrompida com a ida de Leonardo para Milão.[35]
Em 1482, Leonardo, que de acordo com Vasari era um músico muito talentoso,[36] criou uma lira de prata, com a forma da cabeça de um cavaloLourenço de Médici, dito "il Magnifico", grande humanista, enviou Leonardo, a portar a lira como um presente, a Milão, para selar a paz com Ludovico Sforza (dito il Moro, "o Mouro"), Duque de Milão não oficial.[37] Foi nesta época que Leonardo da Vinci escreveu uma carta a Ludovico, citada frequentemente, na qual ele descreve as coisas diversas e maravilhosas que conseguia realizar no campo da engenharia, e informando o seu senhor que ele também podia pintar.[28][38]
Leonardo continuou a trabalhar em Milão, entre 1482 e 1499. Recebeu a encomenda de pintar a Virgem dos Rochedos para a Confraria da Imaculada Conceição, e a Última Ceia para o mosteiro de Santa Maria delle Grazie.[23] Enquanto vivia em Milão, entre 1493 e 1495, Leonardo listou uma mulher, chamada Caterina, entre seus dependentes, nas suas declarações de imposto de renda. Quando ela morreu, em 1495, a lista dos gastos com o funeral sugere que ela pode ter sido sua mãe.[23][39]
Trabalhou em diversos projetos para Ludovico, incluindo o preparo de carros alegóricos e desfiles para ocasiões especiais, o projeto de uma cúpula para a Catedral de Milão, e um modelo de um imenso monumento equestre para Francesco Sforza, o antecessor de Ludovico. Setenta toneladas de bronze foram separadas para a sua confecção; o monumento permaneceu inacabado durante anos, o que não foi comum na carreira de Leonardo. Em 1492 um modelo de argila foi terminado; ele era maior, em tamanho, que as duas únicas estátuas equestres do Renascimento, a estátua de Gattemelata, em Pádua, e a de Bartolomeo Colleoni, de Verrocchio, em Veneza, e ficou conhecido como o "Gran Cavallo".[28][40]
Leonardo começou a fazer os projetos detalhados para a sua fundição;[28] Michelangelo, no entanto, sugeriu, de maneira indelicada, que Leonardo seria incapaz de fazê-lo.[23] Em novembro de 1494 Ludovico usou o bronze para fabricar canhões, visando defender a cidade da invasão de Carlos VIII da França.[28]
No início da Segunda Guerra Italiana, em 1499, as tropas invasoras francesas de Luís XII sucessor de Carlos VIII, utilizaram-se do modelo de argila do Gran Cavallo como alvo para praticar tiro. Com a deposição de Ludovico Sforza, Leonardo, juntamente com seu assistente, Salai, e seu amigo, o matemático Luca Pacioli, abandonou Milão e fugiu para Veneza, passando por Mântua, sendo que em Veneza foi empregado como arquiteto e engenheiro militar, planejando métodos de defender a cidade de um ataque naval.[21][23]
Ao retornar a Florença, em 1500, foi recebido, juntamente com sua família e criadagem, pelos monges servitas do mosteiro de Santissima Annunziata, onde tinha à sua disposição um ateliê. Foi ali que, de acordo com Vasari, criou o desenho da Virgem, o Menino, Sant'Ana e São João Batista — uma obra que conquistou tanta admiração que homens e mulheres, jovens e velhos vinham vê-la, em massa, como se estivessem frequentando um grande festival.[26] [nb 15]
Em 1502, Leonardo passou a trabalhar para César Bórgia, filho do papa Alexandre VI, atuando como arquiteto e engenheiro militar, e viajando por toda a Itália com seu patrão;[21] foi nessa viagem que conheceu Nicolau Maquiavel. Retornou a Florença, onde voltou a fazer parte da Guilda de São Lucas, em 18 de outubro de 1503; recebeu a encomenda de um retrato: a Mona Lisa, e passou os dois anos seguintes desenhando e pintando um grande mural da Batalha de Anghiari para a Signoria,[21] enquanto Michelangelo foi responsável pela peça que a acompanhava, A Batalha de Cascina.[nb 16] Ainda em Florença, em 1504, fez parte de um comitê formado para transferir, contra a vontade do próprio autor, Michelangelo, a célebre estátua do Davi.[43]
Em 1506, retornou a Milão. Muitos dos seus pupilos e seguidores mais importantes, no campo da pintura, ou o conheceram ou trabalharam com ele naquela cidade,[23] incluindo Bernardino LuiniGiovanni Antonio Boltraffio e Marco D'Oggione.[nb 17] Seu pai morreu em 1504, e como resultado, em 1507 Leonardo teve de voltar a Florença para resolver com seus irmãos os problemas decorrentes da herança e das propriedades paternas. No ano seguinte, retornou a Milão por solicitação do governador francês Charles d'Amboise, para resolver problemas de trabalhos inconclusos, onde passou a viver em sua própria casa, na região da Porta Orientale, na paróquia de São Bábila.[21]Após mercenários suíços expulsarem os franceses em 1512, Massimiliano Sforza filho de Ludovico, ascendeu ao poder, e Leonardo ficou sem patrono. No ano seguinte foi convidado por Juliano de Médici, filho de il Magnifico, para viajar para Roma, que estava sob o controle do papa Leão X, um Médici.[16]

Últimos anos, 1513–1519


Clos Lucé, na França, onde Leonardo viveu seus últimos anos de vida, até morrer em 1519.
De setembro de 1513 a 1516, Leonardo passou a maior parte do seu tempo vivendo no Belvedere, no Vaticano, em Roma, período durante o qual Rafael e Michelangelo também estavam em atividade.[21] Em outubro de 1515, Francisco I da França reconquistou Milão;[44] Leonardo estava presente no encontro entre Francisco I e o papa Leão X, em 19 de dezembro, ocorrido em Bolonha.[23][45][46]
Foi de Francisco que Leonardo recebeu a encomenda de construir um leão mecânico, que pudesse caminhar para a frente, e abrir seu peito, revelando um ramalhete de lírios.[26] [nb 18] Em 1516, passou a trabalhar diretamente a serviço de Francisco, e foi-lhe concedido o solar de Clos Lucé,[nb 19] próximo à residência do rei, no Castelo de Amboise. Foi aqui que ele passou os três últimos anos de sua vida, acompanhado por seu amigo e aprendiz, o conde Francesco Melzi, e sustentado por uma pensão que totalizava 10 000 escudos.[21]
Leonardo morreu em Clos Lucé, em 2 de maio de 1519. Francisco havia se tornado um grande amigo; e Vasari relata que o rei segurava a cabeça de Leonardo em seus braços quando este morreu — embora a história, amada pelos franceses e retratada em pinturas românticas de artistas como Ingres e Angelica Kauffmann, possa ser mais lenda do que realidade.[nb 21]

A Morte de Leonardo da VinciporIngres (1818)
Vasari também conta que, em seus últimos dias, Leonardo teria pedido que um padre lhe fosse trazido, para que se confessasse e recebesse a extrema unção.[26] De acordo com o que pediu em seu testamento, sessenta mendigos seguiram o seu cortejo. Foi enterrado na Capela de Saint-Hubert, no Castelo de Amboise.[48] Melzi foi o principal herdeiro e inventariante, e recebeu, além de todo o dinheiro de Leonardo, todos os seus cadernos, ferramentas, sua biblioteca e seus objetos pessoais. Leonardo também se lembrou de seu antigo pupilo e companheiro, Salai, e de seu criado, Battista di Vilussis; cada um recebeu uma metade das vinhas de Leonardo, sendo que de Salai tornaram-se posses as pinturas que acompanhavam o mestre desde então.[20] Seus irmãos também receberam terras, e sua criada recebeu um manto negro de bom material, com as bordas de pele.[49]
Cerca de vinte anos após a morte de Leonardo, o rei Francisco teria falado, segundo o escultor Benvenuto CelliniNunca nasceu no mundo outro homem que soubesse tanto quanto Leonardo, nem tanto [por seus conhecimentos] de pintura, escultura e arquitetura, mas por ele ter sido um grande filósofo.[50]

Relacionamentos e influências


As Portas do Paraíso, de Ghiberti (1425–1452), realizadas com o apoio de diversos artistas, eram motivo de orgulho na cidade.

Florença – contexto social e artístico de Leonardo

Ver artigo principal: Renascimento
Leonardo começou seu aprendizado com Verrocchio em 1466, no ano em que morreu o mestre do próprio Verrocchio, o grande escultorDonatello. O pintor Uccello, cujas experiências com a perspectiva influenciariam o desenvolvimento da pintura de paisagem, já era um homem de idade muito avançada, e os pintores Piero della Francesca e Fra Filippo Lippi, o escultor Luca della Robbia, e o arquiteto e escritor Alberti já estavam em seus sessenta anos de idade. Entre os artistas mais bem sucedidos da geração seguinte estavam, além do próprio professor de Leonardo, Verrocchio, Antonio Pollaiuolo e o escultor Mino de Fiesole, cujos bustos realistas são até hoje as evidências mais confiáveis da aparência real do pai de Lourenço de Médici, Piero, e de seu tio, Giovanni.[51][52][53]
Pequena Madona e o Menino de Verrocchio,c. 1470
Peça central de O Retábulo de Portinari,por Hugo van der Goes, feito para uma família florentina
Lourenço de Médici entre Antonio Pucci e Francesco Sassetti, afrescode Ghirlandaio
Estudo para um retrato de Isabella d'Este(1500) — Louvre
Leonardo passou sua juventude numa Florença decorada pelas obras destes artistas, e pelos contemporâneos de Donatello, como Masaccio — cujos afrescos figurativos estavam imbuídos de realismo e emoção, ou de Ghiberti, cujas Portas do Paraíso, folheadas a ouro, mostravam a arte da combinação de composições figurativas complexas com fundos arquitetônicos ricamente detalhados. Piero della Francesca fez um estudo detalhado da perspectiva, e foi o primeiro pintor a fazer um estudo científico da luz. Estes estudos, juntamente com o Trattato de Leone Battista Alberti, teriam um efeito profundo nos artistas mais jovens, e especialmente nas próprias observações e obras de Leonardo.[51][52][53]
A Expulsão do Jardim do Éden, de Massaccio, mostrando Adão e Eva nus e transtornados, abandonando o Jardim do Éden, criou uma imagem tremendamente expressiva da forma humana, representada em três dimensões através do uso de luz e sombra — algo que seria desenvolvido nas obras de Leonardo a ponto de influenciar a história da pintura a partir de então. As influências humanistas do Davi de Donatello podem ser vistas nas pinturas da velhice de Leonardo, em especial o São João Batista.[53]
Uma tradição recorrente em Florença era a de pequenos retábulos retratando a Virgem e o Menino. Muitos eram feitos em têmpera ou terracota vitrificada, pelos ateliês de Filippo Lippi, Verrocchio e da prolífica família della Robbia.[53] As primeiras madonas de Leonardo, como A Virgem do Cravo e Virgem Benois seguiram nesta tradição, embora mostrassem diferenças idiossincráticas, especialmente no caso da Virgem Benois, na qual a Virgem está retratada num ângulo oblíquo ao espaço do quadro, com o Menino Jesus num ângulo oposto. O mesmo tema reapareceria em diversas pinturas posteriores de Leonardo, como A Virgem e o Menino com Santa Ana.[23]
Leonardo foi contemporâneo de BotticelliGhirlandaio e Perugino, embora fossem um pouco mais velhos que ele. Teria conhecido todos no atelier de Verrocchio, com quem eles tinham ligações, e na Academia dos Médici.[23] Botticelli era especialmente preferido pela família Médici, e seu sucesso como pintor era praticamente garantido. Ghirlandaio e Perugino eram prolíficos, e também geriam grandes ateliês; foram responsáveis por comissões realizadas com competência, para patronos satisfeitos, que apreciavam a habilidade de Ghirlandaio de retratar os cidadãos ricos de Florença em grandes afrescos religiosos, e a habilidade de Perugino em criar multidões de santos e anjos de inescapável doçura e inocência.[53]
Estes três estavam entre os que foram comissionados para pintar as paredes da Capela Sistina, no Vaticano, obra que havia sido iniciada por Perugino em 1479. Leonardo não fez parte desta comissão de prestígio; sua primeira encomenda significante, a Adoração dos Magos, para os monges de Scopeto, nunca foi terminada.[23]
Em 1476, durante o período em que Leonardo esteve ligado ao atelier de Verrocchio, o pintor flamengo Hugo van der Goes chegou em Florença, trazendo o Retábulo de Portinari e as novas técnicas de pintura do Norte da Europa que afetariam profundamente os pintores florentinos do período. Em 1479 o pintor siciliano Antonello da Messina, que trabalhava exclusivamente com óleos, viajou para o norte, em direção a Veneza, onde o principal pintor da cidade, Giovanni Bellini, também adotara a técnica da pintura a óleo, transformando-a rapidamente na técnica preferida do local. Leonardo também visitaria Veneza algum tempo depois.[52]
Como dois arquitetos contemporâneos, Bramante e Antonio da Sangallo, o Velho, Leonardo experimentou com projetos para igrejas planejadas centralmente, diversas das quais aparecem em seus diários, tanto em plantas quanto vistas — embora nenhum destes projetos tenha chegado a ser posto em prática.[53][54]
Os contemporâneos políticos de Leonardo foram Lourenço de Médici (il Magnifico), três anos mais velhos que ele, e seu popular irmão mais novo, Juliano, morto na Congiura dei Pazzi de 1478. Ludovico Sforza (il Moro), que governou Milão entre 1479 e 1499, período durante o qual Leonardo foi enviado como embaixador em nome da corte dos Médici, também tinha aproximadamente a mesma idade.[51][53]
Juntamente com Alberti, Leonardo passou a frequentar o lar dos Médici, e através deles conheceu filósofos humanistas como Marsilio Ficino, proponente do neoplatonismoCristoforo Landino, autor de comentários sobre os escritos da Antiguidade Clássica, e João Argyropoulos, professor de grego e tradutor das obras de Aristóteles. Outro contemporâneo de Leonardo que também teve seu nome associado à Academia dos Médici foi o jovem e brilhante poeta e filósofo Pico della Mirandola.[52][55] Leonardo escreveu mais tarde, na margem de um de seus diários: "Os Médici me fizeram, e os Médici me destruíram." Embora tenha sido através de Lourenço que Leonardo receberia importantes trabalhos em Milão, não se sabe o que ele quis dizer exatamente com este comentário críptico.[23]
Embora costumem ser agrupados como os três gigantes do Alto Renascimento, Leonardo, Michelangelo e Rafael não pertenceram à mesma geração. Leonardo tinha vinte e três anos quando Michelangelo nasceu, e trinta e um no nascimento de Rafael, este último teve uma vida curta, morrendo em 1520, no ano após a morte de Leonardo; já Michelangelo continuou criando por mais 45 anos.[51][52]

Vida pessoal

Ao longo da vida de Leonardo, seu extraordinário poder de inventividade, sua "espetacular beleza física", "graça infinita", "grande força e generosidade", "espírito régio e tremendo alcance mental", como foram descritos por Vasari,[26] atraíram a curiosidade daqueles que o cercavam. Diversos autores especularam sobre os vários aspectos da personalidade de Leonardo; um deles, a sua adoção de éticas e práticas pessoais, que podem ser ocasionadas de sua crescente admiração pela natureza e suas criaturas, como pode ser exemplificado por seu vegetarianismo e o hábito, descrito também por Vasari, de comprar pássaros engaiolados e libertá-los.[26][56][nb 22]
Leonardo teve muitos amigos que se tornaram profissionais renomados em seus campos, ou que são célebres até hoje por sua importância histórica. Entre eles está o matemático Luca Pacioli, com quem ele colaborou num livro na década de 1490, assim como Franchinus Gaffurius e Isabella d'Estea grande dama do Renascimento.[57] Com a exceção desta última, Leonardo parece não ter se relacionado intimamente com mulheres. Isabella foi retratada por ele durante uma viagem que levou-os a Mântua; o retrato teria sido usado como rascunho para uma pintura, que já não existe mais.[23]
Além de suas amizades, Leonardo mantinha sua vida privada em segredo. Sua sexualidade foi alvo frequente de estudos, análises e especulações. Esta tendência já se tinha iniciado no meio do século XV, e tomou novo ímpeto nos séculos XIX e XX, especialmente a partir de Sigmund Freud.[58]

Assistentes e pupilos

Ver artigo principal: Leonardeschi

Salai, criado de Leonardo da Vinci, como São João Batista (c. 1514) —Louvre
Os relacionamentos mais íntimos de Leonardo foram com seus dois pupilos, Gian Giacomo Caprotti da Oreno, apelidado Salai ou il Salaino ("pequeno diabo" na gíria da época), que entrou para o seu convívio familiar em 1490. Depois de apenas um ano, Leonardo fez uma lista de suas contravenções, chamando-o de "um ladrão, um mentiroso, teimoso, e glutão", depois de ele ter roubado dinheiro e objetos de valor em pelo menos cinco ocasiões, e gastar uma fortuna em roupas.[59] Ainda assim, em seus primeiros anos, os cadernos de Leonardo contêm diversas pinturas do estudante, que permaneceu como parte da família de Leonardo pelos trinta anos seguintes.[21]Salai também fez uma série de pinturas, sob o nome de Andrea Salai; embora Vasari tenha alegado que Leonardo "ensinou-lhe muito sobre pintura",[26] sua obra é geralmente considerada como tendo um mérito artístico menor do que outros pupilos de Leonardo, como Marco d'Oggione e Boltraffio. Em 1515 Salai pintou uma versão nua da Mona Lisa, conhecida como Mona Vanna.[60] O próprio Salai era proprietário da Mona Lisa na ocasião de sua morte, em 1525, e em seu testamento ela foi estimada em 505 liras, um valor excepcionalmente alto para um pequeno retrato.[61]
Em 1506 Leonardo acolheu outro pupilo, o conde Francesco Melzi, filho de um aristocrata da Lombardia. Melzi, estudante predileto de Leonardo, viajou com o tutor para a França, onde esteve ao seu lado durante todo o fim de sua vida.[23] Com a morte de Leonardo, Melzi herdou as coleções, manuscritos e obras artísticas e científicas de Leonardo, patrimônio que ele administrou fielmente a partir de então.[62]

Obra artística

Ver também: Trattato della Pittura

Esboço a carvão para A Última Ceia.

Introdução


Apesar do recente interesse e admiração por Leonardo como cientista e inventor, durante mais de quatrocentos anos a sua enorme fama apoiou-se nos seus feitos como pintor e num punhado de obras, autenticadas ou atribuídas a ele, que têm sido vistas desde então como algumas das obras-primas supremas já criadas pelo homem.[63]
Estas pinturas ficaram famosas por uma série de qualidades que foram muito imitadas por estudantes e discutidas extensivamente por conhecedores e críticos. Entre algumas destas qualidades que tornam a obra de Leonardo única estão as técnicas inovadoras que ele usou na aplicação da tinta, seu conhecimento detalhado de anatomialuzbotânica e geologia, seu interesse na fisiognomonia e na maneira pelo qual os humanos registram emoções em suas expressões e gestos, seu uso inovador da forma humana em composições figurativas, e o uso da graduação sutil da tonalidade. Todas estas qualidades encontram-se reunidas em suas obras mais famosas, como a Mona LisaA Última Ceia e a Virgem dos Rochedos.[64]
Última Ceia (L'ultima cena ou Cenacolo), em Milão, é uma das mais conhecidas pinturas atribuídas a da Vinci, exposta no refeitório do convento de Santa Maria delle Grazie e tema central da obra O Código da Vinci de Dan Brown, assim como a Mona Lisa (também conhecida como La Gioconda, exposta no museu do Louvre, em Paris).
Leonardo não foi um pintor prolífico, mas foi o mais prolífico desenhista (projetista), mantendo diários cheios de pequenos rascunhos e desenhos detalhados registrando todas as coisas que lhe chamavam atenção. Juntamente com os diários, existem diversos estudos de pinturas, alguns dos quais podem ser identificados como preparações para trabalhos específicos como A Adoração dos Magos, a Virgem dos Rochedos e A Última Ceia.[65] Seu desenho mais antigo, é o Vale do Arno (1473), que ostenta as montanhas tão frequentes em suas obras.[23][65]
Entre seus desenhos mais famosos está o Homem Vitruviano, um estudo das proporções do corpo humano, e a Cabeça de Anjo, esboço de Uriel em A Virgem dos Rochedos, no Louvre, e um grande desenho em giz, A Virgem, o Menino, Sant'Ana e São João Batista, na National Gallery em Londres.[65] Este desenho emprega o efeito sutil do sfumato, técnica de sombreado presente em Mona Lisa. Pensa-se que Leonardo nunca fez uma pintura a partir dele, mas há uma notável semelhança com a pintura A Virgem e o Menino com Santa Ana, atualmente no Louvre.[21]
Outros desenhos de interesse incluem numerosos estudos geralmente referidos como "caricaturas", porque, embora exagerados, parecem ser baseados em observação de modelos vivos, como Cabeças Grotescas. Vasari refere que, se Leonardo encontrasse pessoas com personalidade interessante, ele iria acompanhá-las o dia todo observando.[26] Existem numerosos estudos de belos jovens, muitas vezes associados a Salai, com sua rara e muito admirada beleza facial, o então chamado "perfil grego". Outros estudos muito detalhados são os de roupagens, um bom exemplo é o macabro Retrato de Bernardo di Bandino Baroncelli executado, em que com desapaixonada integridade Leonardo descreve as vestes do participante da Congiura dei Pazzi.[65]

Primeiras obras

Em Florença, 1469–1482


Retrato de Bernardo di Baroncelli executado
Imagem horizontalmente invertida para visualização legível da escritaleonardiana
Leonardo da Vinci nasceu no seio de uma família cujas posses equivaliam à riqueza das famílias que hoje chamamos classe-média, instruída e altruísta. Jovem, Leonardo revelou desde cedo uma aptidão genial para o desenho, área em que, tecnicamente, mais se destacou, pelo menos na sua carreira prematura.[66][67]
Segundo, Giorgio Vasari, sua família, amiga íntima da família de Verrocchio, tinha um estreito contato com a arte florentinaMesser Piero, pai de Da Vinci, levou um dia alguns dos trabalhos de Leonardo ao ateliê do pintor, questionando-o sobre o eventual talento de Leonardo e se valeria a pena investir no jovem. Verrocchio ficou espantado com a habilidade de Leonardo e, prontamente, aceitou o jovem no seu estúdio.[68]
Os trabalhos prematuros de Leonardo resumiam-se, de fato, a desenhos, esboços a carvãotinta nanquim ou aguada. Embora somente se conheça um retrato masculino a óleo na sua obra, o pintor explorou com ênfase o retrato da virilidade masculina, um interesse que se revela mesmo neste tempo de aprendiz. Um dos seus trabalhos mais intrigantes deste início de carreira é Retrato de Bernardo di Baroncelli executado, já no estúdio de Verrocchio, a pena e tinta, realizado a caneta de aparo sobre papel preparado, que conclui o maior registro desenhado, realizado em 29 de dezembro de 1479. Trata-se do retrato de um cadáver, um participante da Congiura dei Pazzi, executado pelo assassinato de Juliano de Médici.[69] Na inscrição no topo do papel, Leonardo descreve o vestuário do executado, incluindo as cores com sua típica escrita invertida.[nb 24][71] Na margem inferior direita do trabalho aparece ainda uma cabeça. Referência notável para o seu trabalho é a facilidade e o domínio do traço, que revelaria mais tarde no pincel. Duas outras pinturas parecem datar deste seu período no ateliê de Verrocchio, ambas Anunciações. Uma é pequena, com 59 centímetros por 14; é uma predella, destinada a adornar a base de uma composição maior — neste caso, uma pintura de Lorenzo di Credi da qual ela foi separada. A outra é uma obra muito maior, com dois metros e 17 centímetros.[21] Em ambas as Anunciações Leonardo utilizou-se de um arranjo formal (como nas célebres pinturas de Fra Angelico sobre o mesmo assunto), da Virgem Maria sentada ou ajoelhada à direita do quadro, com um anjo de perfil se aproximando pela esquerda, com as asas eretas e portando um lírio em um cenário aberto, com um rico jogo de perspectiva linear.[nb 25] Embora tenha sido atribuído anteriormente a Ghirlandaio, a maior das duas obras é considerada de maneira unânime nos dias de hoje como sendo de Leonardo.[74]
Na menor das pinturas, Maria desvia seus olhos, e dobra suas mãos, num gesto que simbolizava a submissão à vontade de Deus; na outra, no entanto, Maria não está nem um pouco submissa. A bela jovem, interrompida em sua leitura por este inesperado mensageiro, coloca um dedo na sua Bíblia para marcar o lugar onde parou e levanta sua outra mão num gesto formal de saudação ou surpresa.[53] Esta jovem tranquila parece aceitar seu papel como a Mãe de Deus, não com resignação, mas com confiança. Nesta pintura, o jovem Leonardo apresenta a face humanista da Virgem Maria, reconhecendo o papel da humanidade na encarnação de Deus.[75]
ANGELICO, Fra Annunciation, 1437-46 (2236990916).jpgLeonardo da Vinci - Annunciazione - Google Art Project.jpg
A Anunciação de Fra Angelico
1437–1446
A Anunciação de Leonardo da Vinci
1472–1475
Uma série de estudos meticulosos o levou a concretizar trabalhos como A Anunciação ou a futura Virgem do Cravo. O estudo de roupagens das personagens das obras são um dos marcos do seu percurso artístico, concebidos com uma primazia notável.[76][77] Baseando-se em esculturas ou modelos de madeira ou terracota, cobertos por panejamentos e joias — algo em voga, para não ter que pagar cortesãs para posarem para si — Leonardo desenvolveu as suas competências no desenho e sabendo-o bem, no seu Trattato della Pittura, aconselha os artistas a praticarem o desenho através do estudo de relevos e esculturas.[nb 26] Estes estudos, primeiramente postos em prática pelo artista, prepararam um génio sagaz e um mestre inconfundível. O humanista Paolo Giovio e Vasari referem constantemente nas suas obras, a perfeição do jovem artista nos seus desenhos. Vasari refere mesmo que "os desenhos de Da Vinci são tão perfeitos e relatam tão incansável procura por novos detalhes, com um esforço de imaginação soberbo, que dificilmente os conseguem igualar."[78]

Detalhe do anjo atribuído a Leonardo em O Batismo de Cristo; caracterizado pela beleza, apresenta grande perfeição de perfil,[57] que expressaria com total maestria no Anjo Uriel em sua futura Virgem dos Rochedos.
Nesta época, Leonardo desenvolveu um vitium (na acepção portuguesa, uma «obsessão») pela perfeição das obras e desenvolveu imensamente a sua técnica, que o levou a criar outras inéditas, como o sfumato, hoje conhecido através da Mona Lisa. Tal exigência para consigo próprio levaria à não conclusão de diversos trabalhos, pois assim que os iniciava punha-os de lado, tal era a rapidez e eficácia com que aprendia novas técnicas.
Ao mesmo tempo em que realizava os seus famosos estudos de roupagens, Leonardo concretizou vários desenhos e estudos a partir da natureza. Estes são tipificados pelo trabalho que produziu ainda enquanto aprendiz, assim como uma das primeiras obras datadas constantes entre a coleção da Galeria dos Uffizi, atualmente. No canto superior de o Vale do Arno aponta, na sua acostumada escrita invertida, «no dia de Santa Maria do Milagre da Neve,[nb 27] 5 de agosto de 1473».[32]
Estudo a pena e tinta sobre um suporte preparatório quase invisível, mostra a vista sobre um vale com montes e escarpas de ambos os lados, abrindo no fundo uma escassa visibilidade do mar. A vista poderá ser do caminho entre Vinci e Pistoia e, provavelmente, terá sido esboçado a lápis ao ar livre in loco, e depois completada a pena e tinta no ateliê. No início do século XXWoldemar von Seidlitz compreendeu as fortificações de Papiano nas muralhas e torres numa colina à esquerda da composição. A importância deste desenho não se reflete só no fato de ter sido feito por Leonardo, mas sim, em figurar como um dos primeiros desenhos autónomos de paisagens de toda a História da Arte.[79][80]

Vale do Arno
5 de agosto de 1473
Estes estudos da natureza e de modelos vivos eram postos em prática nas suas obras pintadas, como no Batismo de Cristo, onde, conclusivamente, pintou o anjo que segura às vestimentas de Cristo, que é de longe, muito melhor e elegante que as figuras pintadas por Verrocchio e Botticelli, e a paisagem de sutis transições de tons cromáticos, com incríveis efeitos da luz, desfocando contornos de montanhas e colinas distantes, fundindo-as a uma neblina luminosa — efeito obtido pelo emprego prematuro do óleo em sua obra artística —, uma evocação ao desenho do Vale do Arno e antecipação do fundo de Mona Lisa.[57]

Vida profissional, 1476–1513

Dando início à carreira profissional de artista, o retrato de uma jovem foi encomendado diretamente a Leonardo. Marcante, o retrato possui uma forte presença iconográfica e uma austera amargura.
Leonardo da Vinci 048.jpgRückfläche Ginevra de' Benci.JPG
Frente e reverso de Ginevra de' Benci
Prematuramente noiva de Luigi di Bernardo di Lapo Niccolini, a juventude de Ginevra, filha de Amerigo Benci, um banqueiro,[82] e possivelmente desejada do embaixador de Veneza, Bernardo Bembo alcançou a eternidade com esta pintura, encomendada provavelmente pelo último,[57] embora seja sugerido que a encomenda tenha sido feita pela família da jovem em comemoração de seu casamento.
A pintura, inicialmente maior, sofreu danos, e proprietários posteriores provavelmente a compactaram[81][82] com um corte de cerca de nove centímetros em sua parte inferior. Tal suposição é sustentada pela pintura do reverso, e por um desenho preparatório de mãos, que seria da mesma jovem. O desenho encontra-se na Royal Library, Castelo de Windsor.[57]
Tem-se conta de que o nome da jovem e o da pintura formam um jogo iconográfico de palavras.[81] Atrás da bela jovem, surge uma juniperus. A palavra italiana que define esta árvore é ginepro, significando genebra ou zimbro.[81] Contudo, o significado renascentista da árvore era a pureza e a castidade.[82] Esta ideia é reforçada pela frase inscrita no reverso da pintura, na qual está pintado um pergaminho com louros e uma palma, ambos em torno de um pequeno ramo de zimbro. No pergaminho há os seguintes dizeres: A beleza adorna a virtude[81] (VIRTUTEM FORMA DECORAT).[57]
A criptografia
Alguns historiadores e especialistas concluem que Leonardo gostava muito de distorcer coisas como em um quebra-cabeça. Muitos acham que sua escrita invertida era um código que protegia seus esboços contra espiões. Segundo Bruce Peterson, da RYP Australia Major Projects, Leonardo da Vinci escrevia assim porque era canhoto[83] e não queria borrar os textos que criava febrilmente. Já historiadores acreditam que esta escrita era um sinal de que Leonardo da Vinci tinha dislexia, pois escrevia de forma embaralhada e às vezes gostava de formar anagramas.
A expressão facial da jovem é o mais intrigante na pintura. Olhando o espectador sem encarar, a incerteza dos seus sentimentos intriga os especialistas; não se sabe se está cansada, triste, serena, zangada, ou seja, um rol de sentimentos inacabáveis que a expressão facial lhe atribui. Uma jovem que oculta o íntimo, modesta, ausente de joias,[82] tem como maior adorno a própria beleza natural como a paisagem que a cerca, o que poderia justificar a inscrição do reverso.

Obras da década de 1480

Na década de 1480 recebeu três importantes encomendas e começou outro trabalho ainda, cujo tema abriu uma rotura em termos de composição. Infelizmente, dois desses três trabalhos nunca foram acabados (devido a sua partida para Milão) e o terceiro levou tanto tempo, que tornou-se alvo de longas negociações ao longo da sua execução e pagamento. Uma destas pinturas é São Jerônimo no Deserto. Esta pintura é associada com um período difícil da vida de Leonardo, e coincide com sinais de melancolia encontrados em seu diário: "Achei que estava aprendendo a viver; estava apenas aprendendo a morrer."[23] A composição da pintura foge às práticas costumeiras da época;[87] São Jerônimo, como um penitente, ocupa o centro da figura, levemente inclinado diagonalmente, e visto quase que de cima. A sua forma, ao ajoelhar-se, adquire um contorno trapezoide, com um braço esticado à borda exterior da pintura, e seu olhar virado para a direção oposta; alguns estudiosos apontam na obra ligações com os estudos anatômicos de Leonardo.[nb 30][44] Da Vinci serviu-se de um modelo de madeira e pano para conceber a figura do santo, como se fazia na altura. Para o poder pintar nesta posição, a cabeça de Leonardo colocava-se à mesma altura que o meio da tíbia do modelo, pintando-o na diagonal. Por toda a extensão do quadro está o seu símbolo, um grande leão cujo corpo e cauda formam uma espiral dupla ao longo da base do espaço da pintura. Outra característica que se destaca é o cenário incompleto, de rochas escarpadas, contra o qual a figura está delineada.
Virgin of the Rocks (Louvre).jpgLeonardo da Vinci - Virgin of the Rocks (National Gallery London).png
A Virgem dos Rochedos
Versão do Louvre
(Primeira Versão)
1483–1486
A Virgem dos Rochedos
Versão de Londres
(Segunda Versão)
1495–1508
Outra composição um tanto quanto atrevida, os elementos paisagísticos e o drama pessoal ressoam na obra de arte inacabada: A Adoração dos Magos, encomenda dos monges de San Donato a Scopeto. É uma composição muito complexa sobre cerca de 250 cm de largura e comprimento de uma placa de madeira. Para este trabalho o artista esboçou vários desenhos e numerosos trabalhos e estudos preparatórios, incluindo um detalhe de uma perspectiva linear das ruínas de um edifício clássico. Mas em 1482 Leonardo saiu com destino a Milão por ordens de Lourenço de Médici, em tributo a Ludovico Sforza, o mouro, e a pintura e todo o trabalho que havia tido foi abandonada.[21][74]

Em Milão, 1482–1499

Em Milão, o primeiro registo de Leonardo da Vinci é um contrato de uma Confraria religiosa intitulada Imaculada Conceição, datado de 25 de abril de 1483, para a pintura de um retábulo para abrilhantar o altar da capela de São Francisco, o Grande.[20] O resultado seria o terceiro mais importante trabalho pictórico do artista, A Virgem dos Rochedos.

A Virgem dos Rochedos (Versão Cheramy) (1494–1497),[89] é uma pintura que, juntamente a uma representação de Maria Madalena, é atribuída a Giampietrino, pupilo de Da Vinci, da qual, acredita-se atualmente, que Leonardo possivelmente tenha participado, embora essa afirmação não seja unânime.[90] Realizada após a versão do Louvre e anterior a versão de Londres.[89] Foi exibida na mostra Leonardo, Genio e Visione in terra Marchigiana no Museu Mole Vanvitelliana, em Ancona por Carlo Pedretti e Giovanni Morello (2005-2006).[91]
A encomenda era a execução de pinturas com a ajuda dos imãos Ambrogio e Evangelista de Predis, para um grande e complexo altar, já construído anteriormente por Giacomo da Maiano.[20][44]Leonardo, encarregado do painel central, escolheu pintar um enfático momento da infância de Cristo, quando o pequeno João Baptista, com a proteção do anjo Uriel, conheceu a Sagrada Família numa gruta do Egito, cena da tradição cristã dos livros apócrifos e de uma Florença deixada para trás, de numerosas lendas sobre São João Batista.[92][93] Neste cenário rochoso que evoca a um passeio de infância do artista ao Monte Ceceri (próximo do território florentino),[57] João reconhece e adora Jesus como o Cristo. A pintura mostra uma misteriosa beleza como as graciosas figuras ajoelhadas em adoração em torno do Menino Jesus, em uma paisagem selvagem de queda de rochas e um vale de águas azuis, e coincide com a abandonada Adoração dos Magos devido ao seu naturalismo e contraste de luz e sombra (chiaroscuro),[57] aqui distintamente visível. A pintura solenemente declara a riqueza do conhecimento estilístico do traje e da sua representação, a julgar pela concepção notável do vestuário de Uriel (que compete com a simples túnica enegrecida azul da Virgem), impressa numa figura sóbria e imponente, que perde lugar na segunda versão onde assume outra pose, desta feita mais singela, cedente a uma nova Virgem vestida de um manto de azul brilhante, suavizando o cenário áspero[57] e contrastando com a representação da primeira versão. Apesar das avantajadas medidas, cerca de 200 por 120 cm (a segunda versão existente cerca de 190 por 120 cm), a pintura da Virgem nas Pedras não é tão complexa quanto a encomenda dos monges de São Donato, constando em cena somente quatro figuras em vez de cerca de cinquenta — cuja forma conjunta completa uma pirâmide triangular — numa paisagem rochosa, em vez de detalhes arquitetônicos. Eventualmente, a pintura foi acabada. De fato, duas versões desta pintura foram feitas, uma entregue a Confraria religiosa e a outra levada para a França pelo próprio Leonardo.[21][28] Arasse, Daniel (1997), Leonardo da Vinci, Konecky & Konecky, ISBN 1 56852 1987</ref>
Acredita-se que a versão do Louvre seja a primeira das versões, pintada entre 1483–1486, ou mais cedo.[94] A segunda versão, pertencente a National Gallery desde 1880, foi vendida pela igreja em 1781, e,certamente, em 1785 tornou-se posse de Gavin Hamilton, que a levou para a Inglaterra, onde passou por várias coleções.[94] Nesta versão é provável a participação de outros artistas como Ambrogio de Pedris, e, de certo modo, mesmo tratando-se de uma pintura mais madura, seu naturalismo perde lugar para um idealismo muito maior do que o da versão anterior.[57]
Atualmente, existe a especulação de uma outra versão[90] (Versão Cheramy), em que Leonardo tenha participado, cronologicamente anterior a versão de Londres.
Arquitetura militar
Durante seu período em Milão com Ludovico Sforza, Leonardo projetou vários prédios com armas de guerra e reforços. Sua habilidade para arquitetura militar contribuiu para sua fama entre os Sforza.
Entre seus mais formidáveis projetos militares está uma escada para uso numa torre fortificada. O projeto incluía quatro rampas independentes de outras. Assim, os soldados podiam subir e descer de 4 andares sem esbarrar em grupos de soldados que iam em direção contrária.
Em 1502, Leonardo projetou um fosso interessante. Ele escondeu uma torre cilíndrica debaixo d'água com um teto levemente inclinado que saía um pouco da superfície da água. Os defensores que estivessem dentro da torre poderiam disparar suas armas através da superfície da água. Feno molhado cobria o teto da torre contra os danos causados pelos disparos.
Leonardo projetou também um castelo com sistema triplo de segurança. Um dos cantos dessa construção tinha duas fortificações: a primeira estendia-se até o canto do forte e a outra estendia-se sobre parte da parede externa.

Encargos na Corte

Entre 1487 e 1490, Leonardo assume uma posição de destaque na corte milanesa. O seu trabalho não se resumia a pintar, e entre outras coisas, também era responsável pela organização de festividades, trabalho que intimamente não o contentava;[16] trabalhou vários anos na realização de uma estátua equestre para o antecessor de Ludovico, Francesco Sforza, que nunca concluiu e na edificação de estruturas defensivas, como arquiteto militar do duque. Leonardo também participou da decoração de quartos e apartamentos da corte (sendo somente parte da Salla delle Asse trabalhada por volta de 1498, o que restou deste encargo), e na decoração do refeitório dos padres dominicanos de Santa Maria delle Grazie (1495–1498).[20]
É nesta época de grandes feitos que inúmeros retratos de mulheres intimamente ligadas ao seu patrono são realizados, entre eles o retrato de uma jovem muito admirada na corte, cujo resultado seria uma mistura da linguagem iconográfica de Ginevra de' Benci e o naturalismo da Virgem dos Rochedos.

Retrato de Cecília Gallerani, Dama com Arminho. É possível notar, na ponta dos dois dedos inferiores, retoques grosseiros, assim como na região esquerda do modelo, efeito de restaurações posteriores.[57]
Entre as suas obras acabadas ocupa uma posição de destaque um retrato de uma senhora da aristocracia, que segura nas mãos um arminho: o retrato de Cecília Gallerani, mundialmente conhecido como Dama com Arminho. Pintado por volta de 1488, o quadro concentra todas as inovações de Leonardo na época: a representação do rosto virado em uma posição de três-quartos, o gesto da mão,[nb 32] a definição da forma pela luz e a representação do movimento interrompido[95] visando uma estrutura helicoidal.[57] Cecília parece reagir à presença de alguém fora da pintura, em um movimento de giros de cabeça e tronco, o arminho de tamanho um tanto exagerado, repete-lhe o gesto, a mão curvada elegantemente corresponde, por sua vez, ao movimento do animal, criando um sintonia entre modelo e o arminho.
De fato, a linguagem iconográfica utilizada por Leonardo nesta obra — que nos remete a uma pintura de sua fase inicial, a Ginevra de' Benci —, fez com que permanecessem vários mistérios em relação ao simbolismo do arminho. Acredita-se que o arminho é uma alusão ao apelido da jovem aristocrata,[57] visto que o som de «Gallerani» é remanescente da acepção grega para arminho, "galée". Noutra vertente, o animal é considerado um sinal de pureza, pois, acreditava-se, o arminho preferia morrer em uma caçada, do que se refugiar em alguma toca, para não sujar seu manto branco.[20][96] Porém, a razão mais provável é a terceira, ou seja, a alusão a Ludovico Sforza.[57] A jovem era a amante de eleição de Ludovico e, a partir de meados de 1488, este começou a usar o arminho como um dos seus emblemas. Assim Ludovico, sob a simbólica forma de animal, surge no regaço da jovem, bem penteado e acariciado pelas mãos da sua amante. Existem provas documentais de que o quadro pertenceu a retratada.

Obras da década de 1490

  • Retratos de Perfil
Ambrogio de Predis - Ritratto di una dama.jpgProfile of a Young Fiancee - da Vinci.jpg
Retrato de Mulher de PerfilLa Bella Principessa
Retrato de Mulher de Perfil (c. 1493–1495), trata-se do retrato da esposa de Ludovico Sforza, Beatriz d'Este. Pintado, provavelmente, por Ambrogio de Pedris, com a qualidade do traço da cabeça da retratada sugerindo, segundo Martin Kemp, professor emérito de pesquisa em história da arte na Universidade de Oxford, que Leonardo tenha participado da pintura, se responsabilizando pelas bases do desenho.[20] A atribuição é reforçada de forma recíproca com a atribuição de um quadro a que, inicialmente, foi dada origem alemã, do século XIX, mas que foi, em 2009, atribuído a Leonardo.[97] Trata-se de um retrato de mulher igualmente de perfil e com características semelhantes ao retrato de Cecília Gallerani, que foi identificado graças a uma impressão digital e análises científicas. Inicialmente denominado Mulher de Perfil com Vestido da Renascença, foi renomeado de La Bella Principessa por Kemp, que identificou a retratada como Bianca Sforza, filha de Ludovico Sforza e sua amante Bernardina de Corradis. Os membros da família Sforza sempre foram retratados em perfil, em contraste com as amantes de Ludovico que não eram.
Por volta deste período datam-se mais dois retratos atribuídos ao artista, o inacabado Retrato de um Músico, seu único retrato pictórico masculino e La Belle Ferronière, retrato de Lucrezia Crivelli, amante de Ludovico, encerrando um ciclo de retratos femininos na corte milanesa.
Há uma referência documentada de uma encomenda, possivelmente do duque Ludovico Sforza, presente em uma lista que instruía um de seus funcionários, Marchesino Stanga, com tarefas que lhe exigiam atenção. Uma das tarefas era que
Apresse Leonardo, o florentino, a terminar o trabalho no refeitório delle Grazie, que ele começou, para que se ocupe em seguida do outro salão do refeitório delle Grazie; e que os contratos que ele assinou com sua mão sejam cumpridos, pois o obrigam a terminar o trabalho dentro do tempo que será combinado com ele — Ludovico Sforza[20]
A pintura mais famosa de Leonardo, da década de 1490, é A Última Ceia (1495–1498), pintada no refeitório dos padres dominicanos de Santa Maria delle Grazie em Milão. É uma obra fundamental da história da Arte. A pintura apresenta a Última Ceia, partilhada por Jesus com seus discípulos, antes de sua captura e execução. Mostra o momento específico em que Jesus, de acordo com o relato bíblico, teria dito aos apóstolos que um deles o trairia. Leonardo mostra a consternação que esta afirmação provocou entre os doze seguidores de Jesus.[28] O romancista Matteo Bandello observou Leonardo trabalhando na obra, e escreveu que
Por diversas ocasiões, presenciei Leonardo dirigir-se logo pela manhã para se dedicar à pintura de A Última Ceia. Costumava permanecer ali, desde o nascer do sol até o entardecer, sem deixar os pincéis descansarem de suas mãos, pintando sempre, sem comer nem beber. Depois, por três ou quatro dias, não voltava a tocar no trabalho" — Matteo Bandello[57]
Isto, de acordo com Vasari, estava além da compreensão do prior, que o atormentou até que Leonardo pedisse a intervenção de Ludovico. Vasari descreve como Leonardo, atormentado com a dúvida de sua capacidade de retratar os rostos de Cristo e do traidor Judas, disse ao duque que seria obrigado a usar o próprio prior como seu modelo.[26][nb 33]
Quando terminada, a pintura foi aclamada como uma obra-prima do desenho e da caracterização,[26] porém rapidamente deteriorou-se, a tal ponto que, cem anos depois de seu término, a obra foi descrita por um observador seu como "completamente arruinada".[21] Leonardo, em vez de usar a técnica mais confiável do afresco, utilizou-se da têmpera sobre uma superfície feita basicamente de gesso — o que resultou num material sujeito ao mofo e a esfarelar-se.[21] Apesar disso, a pintura continua a ser uma das obras de arte mais reproduzidas de todos os tempos, e incontáveis cópias suas são feitas corriqueiramente, das maneiras mais variadas — de tapetes a camafeus.

Leonardo pintou A Última Ceia, um incrível trabalho, o mais sereno e distante do mundo temporal, durante anos caracterizado por conflitos armados, intrigas, preocupações e emergências. Ele a declarou como concluída, embora eternamente insatisfeito, e continuou trabalhando nela. Foi exposta a vista de todos e contemplada por muitos. Desde então ele foi considerado sem discussão como um dos primeiros mestres da Itália, senão o primeiro. Os artistas vinham de muito longe, para, no refeitório do convento de Santa Maria delle Grazie, analisar cuidadosamente a pintura, copiando-a e discutindo-a. O rei da França, ao chegar em Milão, acariciou a ideia impossível de remover o afresco da parede para levar para o seu país. Durante a sua realização muitas lendas foram tecidas em torno do mestre e seu trabalho. Os relatos de Bandello e Giraldi, dedicados a temas radicalmente diferentes, incluíram também a gênese de A Última Ceia.[32][98][99][100]
Explode em Milão a Segunda Guerra Italiana (1499–1504), e Ludovico Sforza é deposto. Após a destruição de seu modelo em argila para o Gran Cavallo pelas tropas francesas, Leonardo sente-se fortemente motivado a abandonar a cidade. Acompanhado de Salai e seu amigo Luca Pacioli parte, passando por Mântua e depois Veneza, sendo aí empregado como engenheiro e arquiteto militar, e, no ano seguinte, vai para Florença.[21][23]

https://pt.wikipedia.org/wiki/Leonardo_da_Vinci

Continua na Parte 2
PARTE 1 E PARTE 2