(Carta 67)
4 de novembro de 1930 Queridíssima Giulia,
ignoro se te encontras ainda em soci85 e se esta
carta deve ser reenviada, ou se estás de volta do repouso. É por isso que nom
te escrevo ainda umha longa carta, à maneira do doutor Grillo86, e
que tinha já pensada, com toda a sua estrutura de dissertaçom académica. Fica
para umha próxima vez. advirto-che entretanto que se «descobriu tudo», que já
nom existem mistérios para mim, quer dizer, que fum informado polo miúdo das
tuas verdadeiras condiçons de saúde. era, a dizer verdade, o que na Itália
chamamos «o mistério do evidente», porque eu já compreendera que estavas
bastante mal, ou que atravessavas polo menos umha crise psíquica que devia ter
umha base fisiológica; teria sido um «literato» bem mesquinho se nom tivesse
compreendido isto lendo as tuas cartas, que, após a primeira leitura —que eu
chamaria desinteressada, em que só me guia o afeto por ti — som relidas, por
assim dizer, como «crítico» literário e psicanalítico. Para mim, a expressom
literária (lingüística) é umha relaçom entre a forma e o conteúdo: a análise
demonstra-me, ou ajuda-me a entender, se há, entre a forma e o conteúdo, umha
solidariedade completa ou se existem fendas, disfarces, etc. Um também pode
equivocar-se, especialmente se se quiger deduzir demasiado, mas se se tiver
critério um pode compreender algumha cousa, polo menos o estado de ánimo geral.
escrevo-che tudo isto para te advertir de que a partir de agora podes e deves
85
sochi,
centro balneário e de cura no Mar Negro.
86
o
curandeiro Grillo levava os petos cheios de receitas copiadas de velhos livros
e repartia-as ao acaso entre os doentes, dizendo para si: «acerta, Grillo».
escrever-me com máxima sinceridade. recebim algumhas
fotografias dos nossos filhos, mui mal conseguidas do ponto de vista técnico,
mas interessantíssimas na mesma para mim.
abraço-te
afetuosamente. antonio
•
(Carta
68)
17 de novembro de 1930 Queridíssima tatiana,
recebim o postal de 10 de novembro e a carta do 13.
Procurarei responder por ordem as tuas perguntas.
1° Para já, nom deves
mandar-me livros. os que tiveres, conserva-os, e aguarda a que te avise para os
enviares. Quero livrar-me antes de todas as revistas velhas que tenho acumulado
desde há quatro anos: antes de enviá-las reviso-as para apanhar apontamentos
sobre os temas que mais me interessam e naturalmente isso leva-me umha boa
parte da jornada, dado que as notas eruditas som acompanhadas por chamadas, por
comentários, etc. Centrei-me em três ou quatro temas principais, um dos quais é
a funçom cosmopolita que tivérom os intelectuais italianos até o século XVIII,
que depois se divide em muitas seçons: o renascimento e Machiavelli, etc. se
tivesse a hipótese de consultar o material necessário, penso que haveria para
escrever um livro verdadeiramente interessante ainda inédito; digo livro, por
falar só numha introduçom a um certo número de trabalhos monográficos, visto
que a questom se apresenta de maneira diferente segundo a época, e do meu ponto
de vista seria necessário remontar-se aos tempos do Império romano. entretanto
escrevo notas, também porque a leitura do relativamente pouco que tenho
lembra-me as velhas leituras do passado. de resto, nom é umha tema
completamente novo para mim, porque há dez anos escrevim um ensaio sobre a
questom da língua em Manzoni, e isso exigiu umha certa pesquisa sobre a
organizaçom da cultura italiana, desde que a língua escrita (o chamado latim
médio, isto é, o latim escrito do 400 depois de Cristo até o 1300) se afastou
completamente da língua falada polo povo, fragmentada em infinitos dialetos
após o fim da centralizaçom romana. a este latim médio sucedeu o vulgar, que
foi novamente afogado polo latim humanístico, dando lugar a umha língua douta,
vulgar polo léxico, mas nom pola fonologia e muito menos pola sintaxe, que foi
decalcada do latim: assim continuou a existir umha dupla língua, a popular, ou
dialetal, e a douta, isto é, a língua dos intelectuais e das classes cultas. o
mesmo Manzoni, ao refazer Os Noivos, e
nos seus tratados sobre a língua italiana, tomou em conta, realmente, um único
aspeto da língua, o léxico, e nom a sintaxe, que de outra parte é umha parte
essencial de qualquer língua, até o ponto de que o inglês, apesar de ter mais
de 60% de palavras latinas ou neolatinas, é umha língua germánica, enquanto o
romeno, apesar de ter mais de 60% de palavras eslavas, é umha língua neolatina,
etc. Como vês, o tema interessa-me tanto que me deixei levar.
2° relativamente às
revistas: a «Bibliografia fascista»
nom me parece mui útil, porque as revistas bibliográficas que recebo som
redigidas polos mesmos escritores e os livros resenhados som os mesmos.
Falas-me de umha revista inglesa: seria bom que me mandasses um número de
amostra por meio da Livraria. Poderias fazer que me mandassem também um número
de amostra do suplemento semanal do «Manchester
Guardian» e do «Times», que vim
no cárcere de roma: porém, acho que a prosa literária destas revistas é ainda
demasiado difícil para mim. e ademais nom tenho muita vontade de estudar
línguas.
3° Nom entendim o que
escreveche a propósito de umha «jaqueta», da qual me teria falado Carlo, [...]87.
Polo que lembro de quanto me dixo Carlo, trataria-se de umha camisola ou de
umha camisola interior de lá para o inverno. Chamas-lhe «jaqueta», e no cárcere
só é permitida a jaqueta regulamentar. Já lhe dixera a Carlo que tenho
suficientes prendas de ponto para vários anos e nom apenas camisolas normais:
tenho quatro casacos, se nom cinco, e dous nem sequer os toquei ainda. Para que
mandar-me mais umha vez objetos do mesmo tipo, embora tenham um melhor aspeto
ou simplesmente diferente? Para que os comam aos carunchos[...]88.—
escreveche demasiado rápido para a Livraria para a renovaçom das assinaturas a
revistas: demasiado zelo, porque em dous messes tenhem todo o tempo para
esquecer também o aviso. recebo regularmente o «Secolo Illustrato». o «Emporium»
nom o quero em absoluto: tenho já chinelos avondo89. Nom te enfades.
abraço-te com tenrura. antonio
recebim o sedobrol e as meias de lá. obrigado.
Manda a outra metade da folha para minha irmá teresina
Gramsci-Paulesu.
•
87 Palavras
censuradas. 88 Palavras censuradas.
89 G. di
isso porque utilizava o papel para aquecer os pés. [N. do T.]
(Carta 69)
15 de dezembro de 1930 Queridíssima mae,
nom sei explicar-me o que se passa. Carlo nom me escreve
desde há mais de três messes. a tua última carta recebim-na há cousa de uns
dous messes. Há cousa de um mês e meio recebim umha carta de teresina, que
respondim, sem ter mais contestaçom (escrevim para teresina há exatamente
quatro semanas). Na verdade, nom sei explicar-me este silêncio sistemático: por
quê nom interrompê-lo polo menos com algum postal ilustrado? tatiana escreve-me
que recebeu umha carta de Carlo, que se excusa por nom escrever mais amiúde,
aduzindo o seu grande trabalho. Penso que é umha justificaçom insuficiente;
pode explicar por que nom se escrevem cartas longas, mas nom se explica o
silêncio absoluto; um postal ilustrado pode escrever-se num instante. Pensei
que Carlo pudo ter sarilhos pola minha causa e nom quer ou nom sabe explicar-me
o seu estado de ánimo de desconcerto ou de dúvida. Pedirei-lhe por isso que me
tranquilize ou que faga que me tranquilize, talvez fazendo que Mea escreva umha
carta. desta maneira, gostaria de ser informado um pouco mais amiúde sobre as
tuas condiçons de saúde. recuperache as forças? se nom tiveres forças para
escrever fai que alguém escreva postais e depois pom-lhes apenas a tua assinatura;
para mim será suficiente. Queridíssima mamae, eis o quinto natal que passo em
privaçom de liberdade e o quarto que passo no cárcere. Na verdade, a condiçom
de desterrado com que passei o natal do 26 em Ustica era ainda umha espécie de
paraíso de liberdade pessoal em comparaçom com a condiçom de preso. Mas nom
creias que a minha serenidade diminuiu. envelhecim quatro anos, tenho muitos
cabelos brancos, perdim os dentes, já nom rio com alegria como antano, mas
creio que cheguei a ser mais sábio e que aumentei a minha experiência dos
homens e das cousas. Polo demais, nom perdim o gosto pola vida; todo me
interessa ainda e tenho a certeza de que mesmo se já nom podo «zaccurrare sa fae arrostia»90,
nom experimentaria desgosto vendo e ouvindo os demais a zaccurrare. Nom me convertim portanto num velho, de acordo?
Convertemo-nos em velhos quando começamos a temer a morte e quando nos
desagrada ver fazer aos demais aquilo que nós já nom podemos fazer. Neste
sentido, tenho a certeza de que nem sequer tu te converteche numha velha,
apesar da tua idade. tenho a certeza de que estás decidida a viver muitos anos,
para poderes ver-nos a todos juntos novamente e para conheceres todos os teus
netinhos: enquanto se deseja viver, enquanto se sente o gosto pola vida e se
deseja atingir ainda algumha meta, resistem-se todos os achaques e todas as
doenças. Porém, deves convencer-te de que é preciso também poupar um pouco as
próprias energias e nom teimar em fazer grandes esforços, como quando eras
adolescente. Precisamente, penso que teresina me indicara na sua carta, com um
pouco de malícia, que pretendes fazer demasiado e que nom queres renunciar à
autoridade nos labores domésticos. No entanto, deves renunciar e descansar.
Queridíssima mamae, desejo-te muitas cousas polas férias, que estejas alegre e
tranquila. Muitas felicidades e cumprimentos a todos os da casa. abraço-te com
tenrura. antonio
•
90 em
sardo, «mordicar favas tostadas».
(Carta 70)
15 de dezembro de 1930 Queridíssima tatiana,
sim, sim, o livro de Zangwill91 recebim-no há
algum tempo e esqueço sempre confirmá-lo. É um livro mui interessante, mas já o
conhecia; porém, relim-no com prazer.
as revistas «Pégaso» e «Les Nouvelles Littéraires» recebimnas sempre de maneira regular e
de facto parecem-me interessantes: podes confirmar a assinatura na Livraria,
mas penso que já confirmaras em geral todos as assinaturas em curso e que
portanto nom é necessária umha confirmaçom específica, nom achas?
Quanto à petiçom de
revisom, visto que foi feita já por um dos condenados, nom é preciso que a faga
eu. os elementos individuais som úteis para a apelaçom, nom para a revisom, na
qual se exige apenas, como justificaçom, a prova de defeitos de forma, ou bem
de contraste com outras sentenças do mesmo tribunal, etc., isto é, elementos de
caráter técnicojurídico que só um advogado pode identificar. eu nom sei a que
advogado terá encarregado Umberto92 tratar o seu recurso, no caso de
que ele fosse aceite; a dizer verdade, nem conheço o procedimento dos recursos
de revisom, se se trata de umha deliberaçom na cámara do conselho ou se se lhe
permite ao advogado desenvolver os motivos do recurso perante o conselho
investido para o julgamento. seja como for o caso, dado que o nosso julgamento
foi totalmente político, também o recurso será aceite ou será rejeitado por
motivos políticos,
91
Israel
Zangwill, Giuseppe il sognatore, ed.
delta, Milám, 1929.
92
Umberto
terracini.
e nom por motivos jurídicos formais; portanto, é suficiente
a petiçom de um particular. trata-se apenas de ver se no recurso se expugérom
todos os motivos jurídicos por Umberto e isso duvido-o, polo facto de que no
julgamento os advogados, do ponto de vista profissional, fôrom de umha
insuficiência estupefaciente (digo insuficiência por nom empregar palavras mais
fortes). Nom nos informárom de um facto essencial, isto é, de que noutro
julgamento, anterior ao nosso, esse do grupo florentino serafino Masieri e Cia.93,
se absolvera do crime de incitaçom à guerra civil. Porém, no nosso julgamento
constava que Masieri cometera o crime, e nós fomos condenados a 15 anos de
reclusom como «mandantes», mandantes de um crime do qual o mandatário fora
absolvido! Mas mesmo isto é umha bagatela, porque, como che dixem, o julgamento
era político, ou seja, como dixo o fiscal militar e como repete a sentença, nós
fomos condenados por sermos um «perigo potencial», porque poderíamos ter
cometido todos os crimes contemplados no código: que os tivéssemos cometido ou
nom era umha cousa secundária. Portanto, esquece o tema do recurso; o importante
era que se figesse, quer dizer, que constasse nas atas do tribunal especial que
nós recorremos a todas as instáncias permitidas pola lei para protestarmos
contra a condena; acho que ninguém tem quaisquer esperanças de revisom real, eu
polo menos nom o pensei nunca, e hoje muito menos.
Querida tatiana, ainda
nom quero escrever para Giulia; quero receber primeiro umha carta sua e ter
notícias diretas dela sobre a sua saúde. aliás, penso que continuas a mandar-
93 G. refere-se ao julgamento celebrado em 31 de janeiro de
1928, perante o tribunal especial, contra um grupo de 23 comunistas acusados de
terem participado numha reuniom secreta e «armada» na cidade de Florença no dia
24 de outubro de 1924. Masieri, ex-carpinteiro, fora condenado a dez anos de reclusom.
lhe todas as minhas cartas, embora as escritas para ti
pessoalmente. se lhe enviares também esta, lerá este desejo meu, que responde a
umha autêntica exigência psicológica que nom som capaz de superar. deve ser
porque toda a minha formaçom intelectual foi de natureza polémica; incluso
pensar «de maneira interessada» me parece difícil, isto é, o estudo polo
estudo. somente algumha vez, mas raramente, acontece que me perdo numha
determinada ordem de reflexons e que encontro, por assim dizer, o interesse nas
cousas em si, para dedicar-me à sua análise. Normalmente, é necessário para mim
situar-me num ponto de vista dialógico ou dialético; de outra maneira nom sinto
qualquer estímulo intelectual. Como che dixem umha vez, nom gosto de guindar
pedras à toa; quero escutar um interlocutor ou um adversário em concreto; mesmo
nas relaçons familiares quero dialogar. de outra maneira, pareceria-me que
escrevo um romance em forma epistolar, que sei eu, que fago má literatura.
É claro que me
interessaria saber o que delio pensa da sua viagem, que impressons tivo, etc.
Mas já nom tenho vontade de pedir para Giulia que empurre delio para contar-me
algo. Figem-no umha vez; escrevim umha carta para delio, talvez o lembres, mas
tudo ficou em nada. Nom podo pensar porque se lhe escondeu a delio que estou em
prisom, sem refletir precisamente em que ele poderia tê-lo sabido de maneira
indireta, quer dizer, da maneira mais desagradável para umha criança, que
começa a duvidar da veradicidade dos seus educadores e começa a pensar pola sua
conta e a fazer vida à parte. Polo menos assim me aconteceu a mim quando era
meninho: lembro-o perfeitamente. este elemento da vida de delio nom me empurra
a escrever-lhe diretamente: penso que cada itinerário educativo, mesmo o pior,
é sempre melhor que as interferências entre dous sistemas opostos. Conhecendo a
grande sensibilidade nervosa de delio e ignorando quase tudo da sua vida real e
do seu desenvolvimento intelectual (nem sequer sei se começou a apreender a ler
e a escrever) duvido em tomar iniciativas com respeito a ele, ao duvidar
justamente se nom irei causar interferências com estímulos sentimentais
contraditórios, que considero seriam nocivos. o que achas? Por isso seria
necessário estimular Giulia para me escrever com umha maior constáncia ou ao
melhor para me sugerir sobre o que devo escrever, e seria necessário
convencê-la de que nom é nem justo nem útil, em último análise, manter oculto
às crianças que estou no cárcere: é possível que a primeira notícia cause neles
reacçons desagradáveis, mas a maneira de informá-las deve ser escolhida com
critério. acho que é bom tratar as crianças como seres razoáveis e com quem se
fala de maneira séria, até das cousas mais sérias; isso deixa neles umha
impressom bem profunda, fortalece o caráter, mas principalmente evita que se
abandone a formaçom da criança ao acaso das impressons do ambiente e ao caráter
mecánico das circunstáncias fortuitas. É mesmo estranho que os maiores esqueçam
que fôrom crianças e que nom tenham em conta as próprias experiências; eu, pola
minha parte, lembro como me ofendia e como me induzia a fechar-me em mim
próprio e a fazer umha vida à parte cada vez que descobria um subterfúgio
empregue para ocultar-me, mesmo as cousas que podiam magoar-me; convertera-me,
por volta dos dez anos, num autêntico tormento para minha mae, e era tam
fanático da sinceridade e da verdade nas relaçons recíprocas como para fazer
cenas e provocar escándalos.
recebim
os dous pacotes de tabaco, que é bom, mas é de-
masiado forte. agradeço-cho, mas será melhor renunciar.
Gostaria de que visses
se na revista «Educazione fascista»
de dezembro foi publicado o recente discurso do senador Giovanni Gentile no Istituto di Cultura fascista94:
podes encontrar esta revista na Livraria do Littorio e talvez o empregado saiba
dizer se o discurso foi publicado noutra revista (talvez na «Bibliografia fascista», que também é
dirigida por Gentile). seja como for, agradeceria-che que me conseguisses um
número da «Educazione fascista» de
amostra, para ver como se edita e se vale a pena fazer a subscriçom: o número
de dezembro, que contém o índice do ano, é indicativo como amostra.
Queridíssima, desejo-che umhas felizes festas e abraço-te com tenrura. antonio
•
(Carta 71)
13 de janeiro de 1931 Queridíssima Giulia,
recentemente, tania fijo-me chegar cinco fotografias, nas
quais aparece delio junto com outras crianças e umha fotografia de 1929 em que
delio está sentado sobre um pequeno muro de soci, enquanto come um cacho de
uvas. som as fotografias mais interessantes que recebim nestes quatro anos e
meio, depois de separar-me de ti e dos nossos filhos. Há nelas movimento e
espontaneidade. Podo captar as diversas expressons e gestos de delio,
manifestados num pequeno espaço de tempo, captando melhor desta maneira a sua
individualidade nascente. em minha opiniom, a sua personalidade destaca mais e
com maior naturalidade justamente porque está em
94
La formazione politica
della coscienza nazionale, «Educazione
fascista», VIII, dezembro de 1930, pp. 675-686. o discurso fora pronunciado
no dia 5 de dezembro.
grupo; cada um tem um traço caraterístico, cada um tem a
sua personalidade, e no entanto o grupo é homogéneo, forma umha «massa» que se
reflete nos indivíduos e os ilumina melhor. delio cresceu, desenvolveu-se de
umha maneira harmoniosa (vê-se bem onde aparece retratado espido, na beira do
mar); acho que exageram quando me escrevem que é demasiado serio. Na fotografia
que lhe figérom no refeitório aparece, polo contrário, como umha criança normal:
chega com compará-lo com a rapariguinha sentada à sua esquerda, na qual há umha
expressom de curiosidade um pouco ingénua, mas apenas aparente: na minha
opiniom, predomina a inteligência e a ingenuidade é mais própria de umha
pequena e linda atriz. Lembras o que dizias em roma quando delio tomava banho?
«temos um filho bem lindo!»
Com certeza, as
lembranças de roma, fortalecidas novamente quando vim delio no 25, mesmo se
doente, ajudam-me muito a reconstrui-lo melhor com as atuais fotografias; isso
é mais difícil no caso de Giuliano, embora delio me ajude indiretamente.
Queridíssima Iulca,
desde há um tempo nom recebo as tuas cartas. agora temo que as minhas cartas
nom che cheguem e que também as tuas sofram extravios. Nestes últimos tempos
fum informado, acho que de maneira definitiva, sobre as tuas condiçons de
saúde. acho que este modo de comportar-se acabará por tornar as relaçons
recíprocas convencionais, bizantinas, sem espontaneidade e que nom se pensa bem
que os sentimentos criados por estes cintos de arame farpado nas relaçons
recíprocas chegam a ser exasperantes e doentios. Prometéramos ser sempre
sinceros e verdadeiros nas informaçons recíprocas sobre nós mesmos: lembras?
Por quê nom mantivemos a palavra? Por quê nom rompemos absolutamente com estas
maneiras de comportar-se que cheiram a vida feudal, a domostroi95, a legislaçom inglesa do século XVIII?
(segundo esta legislaçom, o marido escondia à mulher a vida dos filhos e os
tribunais sancionavam que entre mae e filho nom existia parentesco!). Naturalmente,
som mui feliz quando recebo umha carta tua: enche muito do meu inútil tempo e
interrompe o meu isolamento da vida e do mundo. Porém, acho necessário que
escrevas, mesmo para ti própria, porque me parece que também tu deves estar
isolada e algo afastada da vida e que quando me escreves podes sentir menos
essa soidade interior. Quando a 19 de novembro de 1926 me comunicárom o decreto
que me adjudicava cinco anos de deportaçom nas colónias, o comandante do
cárcere comunicou-me que me destinaram à somália; aos outros colegas meus
comunicáromlhes o destino à Cirenaica e a eritreia. Convencim-me de que,
conhecendo como se viaja aos lugares de reclusom, se calhar nem sequer chegaria
vivo (quase dous messes de viagem com as cadeias, com a passagem do equador) e
que de qualquer maneira nom sobreviveria durante muito tempo. Permitíromme
escrever, mas durante umhas doze horas estivem na dúvida: nom seria melhor nom
escrever para ninguém e desaparecer como umha pedra no oceano? depois
decidim-me a escrever-che, mui brevemente, e se lembras aquelas poucas
palavras, contudo, transluzem algo das minhas convicçons da altura. escrevim
para a casa, e para umha irmá minha, quando estava em Ustica (porque o 26 em
Nápoles nos comunicárom oficialmente que já nom iríamos para a áfrica),
escreveume que a minha carta lhe parecera um testamento. agora rio disso, mas
foi umha viragem moral na minha vida, porque já
95
Domostroi: texto anónimo russo
do século XVI sobre a organizaçom da vida familiar e sobre o governo da casa.
sinónimo de educaçom familiar atrasada e conservadora.
me
habituara à ideia de ter que morrer em breve. depois disso, que poderia
afetar-me de umha maneira séria? abraço-te forte forte
antonio
•
(Carta 72)
9 de fevereiro de 1931 Queridíssima Giulia,
recebim a tua carta de 9 de janeiro, que começa assim:
«Quando penso em escrever —cada dia— penso naquilo que me fai calar, penso que
a minha debilidade é nova para ti...». — também eu penso que até agora houvo um
certo equívoco entre nós, também sobre esta presente debilidade tua e sobre a
tua presumida força anterior, e deste equívoco quero assumir polo menos a maior
parte da responsabilidade que me corresponde realmente. Umha vez escrevim-che
(talvez o lembres) que estava convencido de que foras sempre mais forte do que
tu mesma pensavas, mas quase me repugnava insistir demasiado nesta ideia,
porque me parecia ser um negreiro, visto que a ti che tocárom os pesos mais
grandes na relaçom. ainda penso dessa maneira, mas o que nom significava entom,
nem significa hoje muito menos, é que me figesse de ti umha imagem de «mulher
forte», convencional e abstrata: sabia que até eras débil, que algumhas vezes
eras polo contrário mui débil, que eras, em resumo, umha mulher viva, que eras
Iulca. Mas pensei muito em todas estas cousas desde que estou no cárcere e mais
de um tempo para esta parte. (Quando nom se podem fazer previsons para o
futuro, rumina-se continuamente o passado, analisa-se, acaba-se por vê-lo
melhor em todas as suas relaçons e pensa-se sobretudo em todas as parvoíces
cometidas, nos próprios atos de debilidade, naquilo que teria sido melhor fazer
ou nom fazer, e naquilo que teria sido necessário fazer, ou nom). assim me
convencim de que, no relativo à tua debilidade e fortaleça, figera muitas
parvoíces (assim me parecem) e figem-nas por umha tenrura excessiva por ti, que
era umha torpeza pola minha parte e que, na realidade eu, que me achava
bastante forte, era todo o contrário de forte, era, antes, sem dúvida, mais
débil do que tu. assim se criou este equívoco, que tivo consequências mui
graves, se é que nom me escreveche quanto terias querido escrever, para nom
turvares a imagem que pensavas que eu me formara da tua força. os exemplos que
deveria dar destas afirmaçons minhas, tenhem um conteúdo que agora me parece
tam ingénuo, que a custo consigo representar-me as condiçons em que me
encontrava quando sentia e obrava de umha maneira tam ingénua; por isso nom me
sinto capaz de escrever-che a respeito disso. aliás, serviria de pouco. acho
que é mais importante estabelecer agora entre nós relaçons normais, conseguir
que nom tenhas que sentir freios inibidores ao escrever-me, que nom tenhas que
sentir quase repugnáncia a parecer diferente daquela que imaginas que eu creio
que és. dixem-che que estou convencido de que és bem mais forte do que tu mesma
achas: também a tua última carta me reafirma neste convencimento. Mesmo no
estado de depressom em que te encontras, de grave desequilíbrio psicofísico,
conservache umha grande força de vontade, um grande controlo sobre ti própria,
e portanto isso significa que o desequilíbrio psicofísico é muito menor do que
poderia parecer, e limita-se, na realidade, a um agravamento relativo das
condiçons da tua personalidade, que eu acho permanentes, ou polo menos que eu
percebim como permanentes, na medida em que estám relacionadas com um ambiente
social que exige de maneira permanente umha tensom da vontade extremamente
forte. opino, em resumo, que a dia de hoje estás obcecada polo sentimento das
tuas responsabilidades, que fai que as tuas forças sejam inadequadas para os
deveres que queres cumprir, extravia-te a vontade e esgota-te fisicamente,
colocando toda a tua vida ativa num círculo viçoso em que realmente (mesmo se
parcialmente) queimas as forças sem resultado, ao serem aplicadas de maneira
desordenada. Mas penso que, contudo, conservache as forças e a vontade
suficientes para superares por ti própria estas dificuldades em que te
encontras. Umha intervençom exterior (exterior apenas num certo sentido)
facilitaria-che a tarefa: por exemplo, se tatiana fosse viver contigo e te
convencesses concretamente de que as tuas responsabilidades diminuírom de
facto; por isso insisto a tatiana para que se decida a partir, como lhe insisto
para que se ponha em condiçons de poder reunir-se contigo numhas condiçons de
saúde tais que lhe permitam depressa ser ativa: de outra maneira, acho que toda
a situaçom pioraria, em lugar de melhorar. Porém, insisto em afirmar o meu
convencimento de que subestimas a tua própria força real, e que és capaz de superares
a atual crise por ti própria. sobreestimache a tua força no passado e eu
parvamente deixei-che fazer (agora digo parvamente, mas naquela altura nom
achava ser parvo); agora despreza-la, porque nom sabes adequar concretamente a
tua vontade ao fim a atingir e nom sabes graduar os teus fins, porque estás
algo obcecada. Querida, sei mui bem que isto tudo que che escrevo é
inapropriado e frio. sinto a minha impotência para fazer algo real e eficaz que
te ajude; debato-me entre o sentimento de umha imensa tenrura por ti, por umha
debilidade que me parece deve ser consolada de imediato com umha carícia
física, e o sentimento de que é necessário que faga um grande esforço de
vontade para convencer-te ao longe, com palavras frias e insípidas, de que
também tu és forte e podes, e deves, superar a crise. e logo obceca-me o
pensamento do passado. Lembras o nascimento de delio e o carrinho (mas como
pudeche esquecer que em abril de 1925 o levamos juntos de passeio naquele
carrinho a um jardim próximo à tverskaia-Yamskaia?),96 e Bianco e os
doze rublos que tomache em empréstimo? e por que rejeitache tam tenazmente a
ajuda que che mandara através de Bianco? sei que foi porque nom conseguim
impor-me sobre ti e fazer com que reconhecesses o meu direito a ajudar-che? acho
que naquela altura recebera 8.200 liras de indemnizaçom jornalística e que as
destinara totalmente ao novo jornal97. Por que permitim que
contraísses dívidas de 12 rublos, enquanto eu gastava 8.200 liras no jornal,
enquanto eu podia ter gastado, sem dificuldade nengumha e também cumprindo com
o meu dever, apenas 50%? Isto tudo fai que me irrite agora com quem era naquele
tempo e fai-me ver como as nossas relaçons eram de umha incongruência e de um
romantismo bem atroz. É verdade que entom nom me mencionache esses doze rublos;
polo contrário, riche de mim polas minhas «pretensons» de ajudarche, mas agora
sinto que deveria ter encontrado a maneira de impor-che também aquilo que nom
querias.
seja como for, tés
razom porque no nosso mundo, no meu e no teu, toda a debilidade é dolorosa e
toda a força umha ajuda. acho que a nossa maior desgraça foi a de ter estado
juntos demasiado pouco, e sempre em condiçons gerais
96
em
março-abril de 1925, G. realizara umha segunda viagem à Uniom soviética. a
tverskaia-Yamskaia, hoje rua Gorki, era umha das principais avenidas de
Moscovo; a família schucht morava no número 14.
97
trata-se,
quase com certeza, do jornal L’Unità,
que começou a sair no dia 12 de fevereiro de 1924 e cujo título fora sugerido
polo próprio G.
que nom eram normais, afastadas da vida real e concreta de
todos os dias. devíamos agora, nas condiçons de força maior em que nos
encontramos, remediar estas faltas do passado, de maneira que a nossa uniom
mantivesse toda a sua solidez moral e se salvasse da crise o que de belo houvo
também no nosso passado e que vive nos nossos filhos. Nom achas? eu quero
ajudar-che, na medida em que puder, a superar a tua depressom atual, mas é
preciso também que tu me ajudes um pouco e me ensines a melhor maneira de che
ajudar com eficácia, endireitando a tua vontade, arrancando todas as teias de
aranha das falsas representaçons do passado que podam estorvá-la, ajudando-me a
conhecer cada vez melhor os nossos dous filhos e a participar da sua vida, da
sua formaçom, da afirmaçom da sua personalidade, de maneira que a minha
«paternidade» chegue a ser mais concreta e seja sempre atual, convertendo-se numha
paternidade viva e nom apenas num feito do passado, cada vez mais longínquo e
ajudando-me assim também a conhecer melhor a Iulca de hoje, que é Iulca + delio
+ Giuliano, soma em que o mais nom indica apenas um feito quantitativo, mas
sobretudo umha nova pessoa qualitativa. Querida, abraço-te forte forte e espero
que me escrevas com mais vagar.
antonio
Querida tatiana,
acrescento umha pequena apostila para ti, para saudar-te, e
ainda : 1° para pedir que nom me envies reconstituintes, porque tomei mais umha
vez esses que já me enviaras. —2° para pedir que nom fagas a viagem a turi: se
Carlo tiver tempo de vir, bem; mas penso que também ele poderia abster-se de
fazêla e poupar o dinheiro para outra ocasiom. —3° pido-che que escrevas para a
livraria, para perguntar como é que nom recebim nengumha revista do novo ano:
como previra, as novas assinaturas devêrom sofrer umha demora, por esquecimento
ou por outra cousa. abraço-te. antonio
•
(Carta 73)
20 de março de 1931
Queridíssima Giulia,
tania enviou-me duas fotografias das crianças feitas pola
sua avó, toda umha série de observaçons muito interessantes sobre a sua vida e
o seu caráter e algumha informaçom sobre as tuas condiçons de saúde. enviou-me
também um pimpò de delio, com um
aparato crítico hermenêutico. Nom consigo interpretar nada pola minha conta.
Gostaria de escrever umha carta directamente para as crianças, mas nom sei como
fazer. escrever só para lhes agradecer a sua extensa carta pareceme demasiado
pouco. teria de haver entre eles e eu um intermediário de boa vontade e isto só
o poderias ser tu, mas nom acho que te sintas capaz de o ser; escrevim-che
sobre isso algumhas vezes, inutilmente, porque nem o mencionache. aguardo que
em breve estejas em condiçons de poder escrever-me. abraço-te com tenrura,
junto a delio e Giuliano antonio
•
(Carta 74)
7 de abril de 1931 Queridíssima tatiana,
devo responder a umha série de questons que colocache: —1° recebim o teu pacote na véspera de Páscoa
e agradeço muito o teu solícito afeto. Neste momento tenho montes de cousas que
ham de chegar-me durante alguns messes. —2° Carlo escreveu-me um postal no dia
16 de março e depois mais nada. —3° recebim o discurso do senador Gentile; fora
publicado justamente no fascículo de dezembro de Educazione Fascista. —4° os números de Leonardo que che encomendara procurar som justamente os de 1927,
que me perdêrom precisamente em Ustica, aonde a revista continuou a chegar
depois da minha partida, com a licença da direçom da Colónia, sendo entregada
aos amigos que ali ficárom, os quais me prometeram mandar-me todos os números
no fim do ano. desta maneira, elimina-se o teu escrúpulo-adivinha. —5° Gostaria
de saber que ediçom do Príncipe de
Machiavelli leche ou estás a ler. eu aqui tenho dous exemplares, mas ambos
ficárom já antiquados devido à publicaçom da ediçom crítica feita há alguns
anos polo professor Mario Casella98, quem corrigiu muitas
incorreçons e erros das impressons tradicionais. —6° Nom me surpreende que as
palestras do professor Bodrero sobre a filosofia grega nom che interessassem
muito. ele é professor de História da Filosofia, mas nom sei agora em que
universidade (outrora estava em Pádua); ele nom é nem filósofo nem historiador:
é um filólogo erudito, capaz de fazer discursos de tipo humanístico-retórico.
Lim recentemente um artigo seu sobre
98 após a ediçom na coletânea de 1929, Casella preparou
umha ediçom à parte de O Príncipe e
de outras obras, na Libreria d’Italia, Milám-roma, 1929-VII.
a Odisseia de
Homero que fijo abalar mesmo o convencimento de que é Bodrero um bom filólogo,
já que descobriu que ter ido à guerra é umha caraterística que permite
compreender a Odisseia; duvido que um
senegalês, por ter ido à guerra, poda compreender melhor Homero. de resto,
Bodrero esquece que Ulisses, segundo a lenda, foi um renitente à leva e umha
espécie de auto-lesionador, já que perante a comissom militar que o fora
procurar à ítaca, fingiu-se doido (nom auto-lesionador, corrijo, mas simulador,
para ser eximido99). —7° Na questom do gioddu nom se trata de patriotismo sardesco nem de bairrismo. Com
efeito, todos os pastores primitivos preparam o leite desta maneira. trata-se
de que o gioddu ou iogurte nom se
pode enviar nem manter por muito tempo sem que se estrague, porque caseifica. e
há também umha outra razom mui importante: parece que é necessária umha certa
dose de sujidade do pastor e do ambiente para que o gioddu seja genuíno. este elemento nom se pode fixar
matematicamente e é umha mágoa, porque doutra maneira as senhoras pastorzinhas
procurariam, por snobismo, serem porquinhas. e aliás: a sujidade necessária
deve ser autêntica sujidade, dessa genuína, natural e espontánea, dessa que fai
feder o próprio pastor como um castrom. Como vês, o tema é complexo e é melhor
que renuncies a fazer de amarillidi e de Cloe numha ceninha arcádica.
Querida tania, a tua
carta interessou-me muito e encantou-me. Figeche mui bem em nom refazê-la. Por
que pois? o facto de te apaixonares, quer dizer que há em ti muita vitalidade e
muito ardor. Na verdade, nom entendim bem algumhas
99 emilio Bodrero (1874-1949), historiador da Filosofia e
homem político; deputado de 1925 a 1928, ocupou o cargo de subsecretário de
educaçom Nacional. o artigo ao qual alude G., intitulado «Itaca Italia»,
aparecera na revista Gerarchia, X, 6,
junho 1930, pp. 452-465.
das tuas consideraçons, como esta: «deveria viver sempre
fora do próprio eu para poder gostar da vida com a maior intensidade»?, porque
nom sei imaginar como se pode viver fora do próprio eu, se é que existe um eu
identificável umha vez por sempre e nom se trata da própria personalidade em
contínuo movimento, algo polo qual se está continuamente fora do próprio eu e
continuamente dentro. em minha opiniom, a questom simplificou-se muito e
cheguei a ser, na minha altíssima sabedoria, mui indulgente. Brincadeira à
parte, pensei muito nos temas que mencionas e que te apaixonam, e acabei por
convencer-me de que a culpa de muitas cousas é mesmo minha. digo culpa, porque
nom sei encontrar outra palavra. se calhar, é verdade que existe umha forma de
egoísmo em que se cai inconscientemente. Nom acho que se trate das formas
habituais de egoísmo. Por exemplo, nom acho que se trate do egoísmo mais comum,
aquele que consiste em servir-se dos demais como instrumento para o próprio
bem-estar e a própria felicidade; neste sentido, nom me parece ter sido nunca
egoísta, porque penso que tenho dado, em toda a minha vida, polo menos tanto
quanto recebim. No entanto, há umha questom: o débito e o crédito estám
equilibrados na contabilidade geral, mas estám-no cada umha das partes? Quando
se une a própria vida a um fim e se concentra nele toda a soma das próprias
energias e toda a vontade, nom é inevitável que algumhas ou muitas, ou mesmo
umha só das partes individuais fique ao descoberto? Nem sempre se pensa nisto e
por isso num certo ponto se paga. até se descobre que um pode parece egoísta
justamente àqueles a quem menos se pensara poder parecer-lho. e descobre-se a
origem do erro que é a debilidade, a debilidade de nom ter sabido como ousar
ficar sós, nom criar vínculos, afeiçons, relaçons, etc. Chegados a este ponto,
é claro que só a indulgência pode dar a tranquilidade, ou umha certa
tranquilidade que nom seja a completa apatia e indiferença e deixando algumha
fenda para o futuro. Na verdade: amiúde relembro todo o curso da minha vida e
parece-me que somos como renzo tramaglino no fim de Os Noivos, isto é, que podo fazer um inventário e podo dizer:
apreendim a nom fazer isto, a nom fazer isto outro, etc. (embora esta soma de
aprendizagens me preste bastante pouco). estivem sem escrever para a minha mae
alguns anos (polo menos dous anos seguidos) e apreendim que é doloroso nom
receber cartas (mas provavelmente se fosse livre recairia nestas mesmas faltas
ou nom as julgaria tais, ou nom reflexionaria sobre elas em absoluto) e assim
para a frente. em resumo: envelhecim no cárcere 4 anos e 5 messes, e dentro
dalguns anos espero estar completamente embalsamado: explicarei-me tudo, de
qualquer feito encontrarei que nom podia nom suceder, explicarei e encontrarei
que as minhas explicaçons nom som absolutamente controvertíveis. acabarei por
convencer-me de que o melhor de tudo seria nom pensar mais, nom receber de fora
nengumha incitaçom a pensar e portanto nom escrever mais a ninguém, deixando a
um lado as cartas recebidas sem lê-las, etc. etc. Mas se calhar nom acontece
nada disto tudo, e somente tenha conseguido encabuxar-te e que estejas de mau
humor durante algum tempo, o qual significaria que estás fora do teu eu e que o
meu eu, hóspede desagradável, tomou o seu lugar.
Queridíssima tatiana,
nom te enfades se me burlo de ti de umha maneira algo brincalhona. Quero-te
muito e abraço-te afetuosamente.
antonio
•
(Carta 75)
18 de maio de 1931
Queridíssima tania,
recebim os óculos; vam-me mui bem. agradeço a tua
solicitude. Porém, continuo a estar convencido de que teria sido suficiente
gastar muito menos. os óculos a que rompim a armaçom custaram 48 liras; fôrom
comprados em dezembro de 1926 no cárcere de Palermo, quando viajava na
transferência para Ustica. Visto que a firma Viganò garante a armaçom até 3
anos, parece que estes óculos de 48 liras figérom um discreto serviço; nom
estám para tirar com eles, porque as lentes estám intatas e se calhar será
suficiente para os consertar umha aplicaçom de metal na armaçom.
Neste momento, recebo a
tua carta de 15 de maio e a carta de Giulia. teria desejado que me tivesses
escrito as tuas impressons sobre a carta de Giulia. Para mim é ainda difícil
orientar-me. acho que pode ser identificada umha parte positiva: quer dizer,
que Giulia conquistou umha certa confiança em si própria e nas suas próprias
forças, mas nom será esta confiança de caráter puramente intelectual e
racional, isto é, pouco profunda? opino que o caráter intelectualístico do seu
estado de ánimo é demasiado evidente, isto é, que o momento «analítico» nom se
tem convertido ainda em força vital, em impulso volitivo. aquilo que me
tranquiliza um pouco é que Giulia, como a maioria dos russos contemporáneos,
tem umha grande fé na ciência, e refiro-me a umha fé de caráter quase
religioso, isso que nós ocidentais tivemos no fim do século passado e depois
perdemos pola causa da crítica da filosofia mais moderna e nomeadamente através
do desastre da democracia política. também a ciência foi submetida à «crítica»
e foi limitada. Nom teria acreditado nunca em que em turi se pudesse encontrar
alguém que pudesse dizer qualquer cousa inteligente, como parece que che passou
a ti. além disso, terá sido entom tam inteligente, aquilo que se che dixo? acho
que nom é difícil encontrar maneiras de vida esplêndidas; o difícil, no
entanto, é viver. Lim recentemente que na europa moderna somente alguns
italianos e alguns espanhóis conservam ainda o gosto pola vida: é mesmo
possível, embora se trate de afirmaçons genéricas que dificilmente poderiam ser
provadas. algumhas vezes som equívocos bastante cómicos. Umha vez tivem umha discussom
curiosa com Clara Zetkin100, que admirava precisamente dos italianos
o seu gosto por viver e acreditava encontrar umha subtil prova disso no facto
de os italianos dizerem: «feliz noite» e nom «noite tranquila» como os russos,
ou «boa noite», como os alemáns, etc. Que os alemáns, os russos e até os
franceses nom pensem em «noites felizes» é possível, mas os italianos falam
também em «feliz viagem» e em «assuntos felizmente resolvidos», o qual diminui
o valor sintomático de «feliz»; de resto, os napolitanos dim de umha mulher
bonita que é «boa», sem malícia, é claro, porque «bonita» é precisamente um
«bonula» mais antigo. em resumo, acho que as fórmulas de vida, quer exprimidas
em palavras, quer resultado dos costumes de um povo, tenhem um único valor: servir
de incitaçom ou de justificaçom para quem apenas tem veleidades, para converter
em vontade concreta estas veleidades. a vida real nom pode ser nunca
determinada por sugestons ambientais ou por fórmulas, mas nasce antes de raízes
internas.
100 G. conhecera a Clara Zetkin (1857-1933) em Moscovo, por
ocasiom dos trabalhos do IV Congresso da Internacional Comunista, em
novembro-dezembro de 1922. Zetkin dirigia entom o movimento feminista da
Internacional Comunista.
No
caso de Giulia, é justa a sugestom de «desfazer o novelo», isto é, de procurar
em si própria as suas forças e as suas razons de vida, quer dizer, nom ser tam
tímida e nom deixarse vencer e especialmente nom fixar-se na vida objetivos
irrealizáveis ou demasiado difíceis. e acredito que esta sugestom é justa
até... para ti, que por vezes pensas que se deve ou se pode sair do próprio eu
para realizar a vida.
Perguntas-me se deves
mesmo escrever para Carlo como che dixem: penso que nom che digem nada
terrível. Carlo, desde que estivo em turi, ainda nom me escreveu (apenas um
postal ilustrado no dia 16 de março, nem sei o seu endereço) e é algo que me
desagrada muito, porque creio adivinhar as razons do seu mutismo, que deveriam
ofender-me se nom soubesse quem é Carlo. abraço-te. antonio
•
(Carta 76)
18 de maio de 1931 Queridíssima Giulia,
recebim a tua carta do 8 de maio. Há alguns dias recebim
também umha carta tua de julho de 1930, onde falas da língua «délia» (nom sei
se ainda o lembras). a tua última carta fijome mui feliz. Certamente, entende-se
depressa, lendo-a, que estás mui cambiada, que estás mais forte e és mais
«cuidadosa». Muitas cartas anteriores ressentiam-se do esforço, havia nelas
algo de embaraçoso (mas talvez nom seja esta a palavra exata), e para além
disso (devo dizê-lo, mesmo se te fago rir) formiguejavam de erros e de
deturpaçons da língua italiana, o qual demostrava umha certa turvaçom na
conceiçom e na formaçom das ideias e umha notável debilidade da memória. Porém,
esta carta é mesmo límpida e sem... um só erro. Portanto, neste caso satisfai
nom só o meu sentido... gramatical, mas também o meu sentido «antonio».
Verdadeiramente, acho que nom te surpreenderás se... che revelo que considero
as tuas cartas até de um ponto de vista gramatical; seja como for, isso significa
que também a gramática fai parte da vida. ora bem, devo dizer que é isso o que
me acontece, especialmente desde há alguns anos, a saber, desde que tento
extrair das tuas poucas cartas todo o sugo possível, analisando-as de todos os
pontos de vista: as cartas eram mui breves e em grande parte repetiam-se.
dava-me a impressom de que escrever-me che custava um grande esforço e se
calhar teria sido melhor que eu che propugesse nom escrever-me mais, para
evitar-che um castigo fadigoso (dérom-me as notícias sobre a tua saúde com
conta-gotas e acho que ainda hoje nom sei exatamente até que ponto estiveche
mal, e ainda menos os diagnósticos feitos polos médicos; pola tua carta parece
que se falou até em epilepsia, o qual é surpreendente e demostra apenas, para mim,
um excesso de subtileza científica). acho que esta carta tua inicia um novo
período nas nossas relaçons e estou feliz por isso, porque é preciso que che
confesse que começara já a «enovelar-me» pola minha conta e estava chegando a
ser mais hirto do que um ouriço-cacho. agora terás de ser tu quem me ajude um
pouquinho a voltar à superfície. Mas talvez isso aconteça de forma automática.
É certo que desde algum tempo me sentia mui deprimido, a força de ruminar
tantos pequenos episódios do passado. Porque, de outra parte, nom é verdade que
só tu tenhas sido passiva. Lembro, por exemplo, umha vez que quase chega a
haver umha cena da «terrível senhora Ciccone», como dizia delio, que eu
previra. tu dixeche daquela que, por tê-la previsto, tinha que ter-me imposto
sobre ti e que terias gostado de umha imposiçom, ou algo parecido; em resumo,
querias dizer que nom era justo que por vezes (quando eu sabia que tinha razom)
nom che figesse sentir a minha vontade. Lembro que a tua frase me causou muita
impressom (porém, estávamos nos últimos dias da tua estadia em roma) e fijo-me
cavilar. aquilo significava certamente que o chamado respeito da personalidade
dos outros se converte numha forma de «estetismo», por assim dizer, isto é, o
«outro» converte-se por vezes num «objeto», precisamente quando se acredita em
que se tem mais respeito pola sua subjetividade. em conclusom: o mundo é
grande, terrível e complexo, e estamos atingindo umha sabedoria que chegará a
ser proverbial. eu que já cheguei polo menos a ser mais sábio do que Lao-tse,
que ao nascer tinha já o conhecimento e a compostura de um homem de 80 anos;
acho que já esquecim completamente como se lançam as pedras e como se agarram
as lagartixas. sabem delio e Giuliano lançar as pedras longe, fazê-las zunir e
choutar quatro e cinco vezes na água? sinto nom ter podido ensinar-lhes todas
estas habilidades e outras mais. deste ponto de vista, acho que eles fôrom
educados algo a mais por mulherzinhas.
abraço-te com tenrura. antonio
•
(Carta 77)
1 de junho de 1931 Queridíssima Giulia,
tania referiu-me a «epístola» de delio (emprego a palavra
mais literária) com a declaraçom do seu amor polos contos de Puškin e polos
referidos à vida da mocidade. Gostei muito dela e gostaria de saber se esta
expressom foi pensada por delio de maneira espontánea ou se se trata de umha
reminiscência literária. Vejo até com certa surpresa que agora nom te assustas
polas tendências literárias de delio; acho que umha vez estavas convencida de
que as suas tendências fossem antes de... engenheiro que de poeta, enquanto
agora prevês que ele lerá dante até com amor. espero que isso nom aconteça
nunca, mesmo estando mui contente porque delio goste de Puškin e de tudo o
relativo à vida criativa nas suas primeiras manifestaçons. aliás, quem lê dante
com amor? os professores gagás, que fam religions de um poeta ou escritor
qualquer e celebram estranhos ritos filológicos. Penso que umha pessoa
inteligente e moderna deve ler os clássicos em geral com um certo
«distanciamento», quer dizer só polos seus valores estéticos, enquanto o «amor»
implica adesom ao conteúdo ideológico da poesia; ama-se o «próprio» poeta,
«admira-se» o artista «em geral». a admiraçom estética pode ser acompanhada por
um certo desprezo «civil», como no caso de Marx por Goethe101. estou
contente, portanto, polo facto de que delio ame
101 G. alude, quase com certeza, ao texto de engels (nom de
Marx) Deutscher Sozialismus in Versen und
Prosa, «Deutsche Brüsseler Zeitung»,
21 de novembro — 9 de dezembro de 1847, que ele traduziu parcialemente no
cárcere da ediçom reclam cit., onde o texto parece atribuido a Marx. Cfr. Por
exemplo a seguinte passagem: «...trata-se da luita contínua nele entre o poeta
genial anojado pola mesquindade do seu ambiente e o filho do prudente
conselheiro de Francoforte,
as obras de fantasia e fantasie também por própria
iniciativa; nom acho que por isso nom poda chegar a ser na mesma um grande
«engenheiro» construtor de arranha-céus ou de centrais elétricas, antes polo
contrário. Podes perguntar a delio, da minha parte, de qual dos contos de
Puškin gosta mais; eu verdadeiramente só lhe conheço dous: O galo pequeno de ouro e O
pescador. Conheço também a história da «bacia», com a almofada que salta
como umha rá, o lençol que sai voando, a candeia que vai aos grandes saltos
esconder-se baixo a estufa etc., mas nom é de Puškin. Lembra-las? sabes que
lembro ainda de memória dezenas dos seus versos? Quigera contar para delio um
conto da minha aldeia que acho interessante. Fago-che um resumo e tu podes
desenvolvê-lo, para ele e mais para Giuliano.
Umha criança dorme. Há
umha jarra de leite preparada para quando ela acordar. Um rato bebe-lhe o
leite. a criança, como nom tem o leite, grita e a mamae grita. o rato
desesperado bate com a cabeça contra o muro, mas repara em que nom serve de
nada e corre junto da cabra para conseguir leite. a cabra daria-lhe leite se
tivesse erva para comer. o rato vai ao campo por erva e o campo árido quer
água. o rato vai junto da fonte. a fonte está rota por causa da guerra e a água
perde-se: necessita um mestre alvanel para que a conserte. o rato vai junto do
mestre alvanel: necessita as pedras. o rato vai ter com a montanha e produze-se
um dialogo sublime entre o rato e a montanha que foi desflorestada polos
especuladores e que mostra por toda a parte os seus ossos sem terra. o
por
sua vez conselheiro secreto de Weimar, que se vê obrigado a pactuar umha trégua
com aquele e habituar-se a ele. desta maneira, Goethe é ora gigantesco, ora
minúsculo, ora um génio orgulhoso, petulante, que se burla do mundo, ora um
filisteu cauteloso, moderado, fácil de contentar».
rato conta toda a história e promete que a criança, quando
ela crescer, plantará pinheiros, carvalhos, castanheiros, etc. assim, a
montanha dá as pedras, etc., e a criança tem tanto leite que se lava também com
o ele. Cresce, planta as árvores, transforma-se tudo; desaparecem os ossos da
montanha baixo o novo húmus, a precipitaçom atmosférica volta a ser regular
porque as árvores retenhem os vapores e impedem aos torrentes devastarem a
chaira, etc. em soma, o rato concebe umha autêntica e própria piatilietca102. É um conto
próprio de umha aldeia arruinada pola desflorestaçom. Queridíssima Giulia,
deves mesmo contar este conto e referir-me depois as impressons das crianças.
abraço-te com tenrura. antonio
•
(Carta 78)
15 de junho de 1931 Queridíssima mae,
recebim a carta que teresina escreveu por ti. em minha
opiniom deverias escrever-me com esta freqüência; sentim na carta todo o teu
espírito e a tua maneira de razoar; era mesmo umha carta tua, e nom umha carta
de teresina. sabes o que me lembrou? Lembrou-me, de umha maneira bastante
transparente, quando estava em primeiro ou em segundo de primária, e tu
corrigias as minhas tarefas: lembro perfeitamente que nunca conseguia lembrar
que «pássaro» se escreve com dous s, e
corrigiche-me esse erro polo menos dez vezes.
102 Piatilietka, em russo, «plano quinquenal».
consequentemente, visto que nos ajudache a aprender a
escrever (e antes nos ensinaras muitas poesias de memória; ainda lembro Rataplan e a outra, «Lungo i clivi della Loira / che qual nastro
argentato / corre via per cento miglia / un bel suolo avventurato»103)
é justo que um de nós escreva por ti quando nom tés suficientes forças. aposto
que a lembrança de Rataplan e da
cançom do Loira che fará sorrir. e lembro também quanto admirava (devia ter
quatro ou cinco anos) a tua habilidade para imitar na mesa o toque do tambor,
enquanto declamavas Rataplan. além
disso, nom podes imaginar em quantas cousas das que lembro apareces tu, sempre
como umha força benéfica e cheia de tenrura para connosco. se o pensas bem,
todas as questons da alma, da imortalidade da alma e do paraíso, e do inferno
nom som, no fundo, afinal de contas, mais do que umha maneira de ver este
simples facto: que qualquer açom nossa se transmite aos demais em funçom do seu
valor, seja bom ou mau, passa de pai para filho, de umha geraçom para outra num
movimento perpétuo. Que todas as lembranças que temos de ti sejam de bondade e
de fortaleça, ou que desses as tuas forças para nos educar, significa que já
estás, desde entom, no único paraíso real que existe, que para umha mae, acho,
é o coraçom dos próprios filhos. Vês o que che escrevim? além de mais, nom
deves pensar que queira ofender as tuas opinions religiosas, e por outro lado,
penso que concordas comigo mais do que achas. di a teresina que aguardo a outra
carta que me prometeu. abraço-te com tenrura, junto a todos os da casa. antonio
103 a balada de «rataplám»
é Il vecchio sergente, de Pietro
Paolo Parzanese. os versos, livremente citados por G., pertencem ao início do
pequeno poema de arnaldo Fusinato, Le due
madri: «ao longo das margens do Loira/que qual fita de prata/percorre cem
milhas/de um chao venturoso...»
(Carta 79)
27 de julho de 1931
Queridíssima Giulia,
dentro de alguns dias delio fará os 7 anos e no fim do mês
Giuliano fará 5 anos. Para delio, a data é importante, porque habitualmente os
7 anos som considerados umha etapa importante no desenvolvimento da
personalidade. a Igreja Católica, que é sem dúvida o organismo mundial que
possui a maior acumulaçom de experiências organizativas e propagandísticas,
fixou nos 7 anos a entrada solene na comunidade religiosa mediante a primeira
comunhom, que significa para o miúdo a primeira responsabilidade pola escolha
de umha ideologia, que deve imprimir umha lembrança indelével para toda a sua
vida. Nom sei se concedes um caráter particular a esta festa de delio, que
deixa na sua memória umha pegada mais profunda e duradoira do que outras
festividades anuais. se Giuliano nom tivesse apenas 5 anos, e se nom fosse
impossível, polo menos dentro de certos limites, distinguir entre delio e
Giuliano, acho que este seria o momento de explicar a delio que estou no
cárcere e por qué. acho que umha explicaçom assim, unida ao facto de ser
considerado capaz num certo sentido responsável, causaria nele umha grande
impressom e marcaria, sem dúvida, umha data no seu desenvolvimento. Nom sei
exatamente o que achas a este respeito. Por vezes acho que sobre este tema
pensamos de maneira idêntica; outras vezes acho que na tua consciência há umha
certa dissidência ainda nom definida: quer dizer, tu (polo que por vezes me
parece) compreendes bem, do ponto de vista intelectual e teórico, que és um
elemento do estado e que tés o dever, como tal, de representares e exercitares
o poder da coerçom em determinadas esferas, para modificares capilarmente a
sociedade e, nomeadamente, para conseguires que a geraçom que nasce esteja
preparada para umha nova vida (desempenhando em determinadas esferas a açom que
o estado desempenha de maneira concentrada em toda a área social) e o esforço
capilar nom pode distinguir-se na teoria do esforço concentrado e
universalizado; ora, acho que na prática, quando explicas o surgimento e o
desenvolvimento de novos tipos de humanidade capazes de representar as diversas
fases do processo histórico, nom consegues liberar-te de certos costumes
tradicionais, que mantenhem presas as concepçons espontaneístas e libertárias.
assim me parece, polo menos, mas podo estar enganado. seja como for, quero que
me sintas perto de ti e dos nossos filhos nos dias em que se lhes lembra que
crescêrom um ano e que cada vez som menos crianças e cada vez mais homens.
abraço-te com tenrura. antonio
•
(Carta 80)
3 de agosto de 1931 Queridíssima tatiana,
acho que dramatizache a minha expressom sobre os «fios
arrancados» e por isso quero precisar melhor o meu estado de ánimo atual. tenho
a impressom, que cada vez se vai enraizando mais e adquirindo a força de umha
convicçom, de que o «mundo» das minhas relaçons afetivas se habituou já à ideia
de que esteja no cárcere. Isso nom acontece sem reciprocidade; também eu me
habituei à ideia de que os demais se habituem etc., e isso constitui justamente
o meu estado de ánimo. escrevim-che que no passado isso me aconteceu algumha
outra vez (embora nom fosse com respeito ao cárcere, naturalmente) e é verdade.
Porém, no passado, estas «roturas de fios» quase que me enchiam de orgulho, até
o ponto de que nom só nom procurava evitá-las, mas que as procurava de maneira
voluntária. Na realidade, eram factos progressivos necessários para a formaçom
da minha personalidade e para a conquista da minha independência; isso nom
podia acontecer justamente sem romper umha certa quantidade de fios, porque se
tratava de alterar por completo o terreno sobre o qual desenvolver a minha vida
ulterior. Hoje nom é assim, hoje trata-se de cousas mais vitais; dado que nom
existe pola minha parte umha mudança no terreno cultural, trata-se de que me
sinto isolado no mesmo terreno que por si mesmo deveria suscitar vínculos
afetivos. Nom penses que o sentimento de estar pessoalmente isolado me tenha
desesperado ou condicionado um estado de ánimo trágico. de facto, nunca sentim
a necessidade de umha achega exterior de forças morais para viver intensamente
a minha vida, nem nas piores condiçons; tanto menos hoje, quando sinto que as
minhas forças volitivas adquirírom um grau superior de concreçom e de valor.
todavia, enquanto no passado, como dixem, me orgulhava quase de encontrar-me
isolado, agora sinto, polo contrário, toda a mesquinhez, a aridez, a tacanharia
de umha vida que seja exclusivamente vontade. este é o meu estado de ánimo
atual. tenho a impressom de que ainda nom recebeche, ou recebeche com grande
atraso, umha carta minha de há algumhas semanas; tratava-se de umhas poucas
linhas para ti e de umhas poucas linhas para minha irmá teresina. sabes que nom
me escrevem da casa desde há muito e que nom me mandam notícias sobre a saúde
de minha mae? estou mui preocupado ao respeito.
dei umha primeira vista
de olhos ao artigo do príncipe Mirski sobre a teoria da história e da
historiografia e opino que se trata de um ensaio mui interessante e valioso104.
de Mirski lim há alguns messes um ensaio sobre dostoievski, publicado num
número único de Cultura, dedicado ao
próprio dostoievski105. também este ensaio era mui perspicaz e é
surpreendente que Mirski dominasse com tanta inteligência e penetraçom polo
menos umha parte do núcleo central do materialismo histórico. acho que a sua
posiçom científica é tanto mais digna de nota e de estudo, porquanto ele se
demonstra livre de certos preconceitos e incrustaçons culturais que se foram
infiltrando parasitariamente no campo dos estudos de teoria da história, como
consequência da grande popularidade gozada polo positivismo no fim do século
passado e nos inícios do atual.
Já recebim as Perspetivas Económicas de Mortara; em
minha opiniom o volume deste ano representa umha viragem na direçom mantida até
agora polo autor no seu anuário. a crise económica, com as suas terríveis
incógnitas, deve ter contri-
104
Mirski,
dimitri Petrovich (sviatopolsk-Mirski), 1890-1937, filho do príncipe Mirski,
ministro da administraçom Interna russa em 1904-1095, iniciou primeiro a
carreira das armas, combatendo durante a guerra civil russa no exército
«branco». emigrado na Inglaterra, aderiu ao movimento comunista e ensinou
literatura no King’s College de Londres, desde 1922 a 1932, para além de
desenvolver umha intensa atividade propagandística nas revistas de emigraçom
russa. o artigo ao qual se refere G., intitulado «Burgeois History and
Historical Materialism», aparecera na revista marxista inglesa The Labour Monthly. a revista, enviada a
G. por sraffa, foi para ele umha das escassas fontes de informaçom sobre o
movimento revolucionário internacional.
105
La Cultura, X, fasc. 2, fevereiro
de 1931. o número da revista dedicado a dostoievski, para além do ensaio de
Mirski, Il posto de Dostoievski nella
letteratura russa (pp. 100-115) incluia textos de e. Lo Gatto, v. Pozner,
a. Bém, W.
Giusti, e. damiani, Zino Zini.
buído para fixar a nova atitude de Mortara; seja como for,
do ponto de vista científico é escandalosa umha mudança tam radical de um ano
para o outro.
Pode-se dizer que já
nom tenho um verdadeiro programa de estudos e de trabalho e isto devia
acontecer de maneira natural. Propugera-me refletir sobre umha certa série de
questons, mas devia acontecer que num certo ponto estas reflexons passassem à
fase da documentaçom e portanto a umha fase de trabalho e de elaboraçom que
requer grandes bibliotecas. Isso nom quer dizer que perda completamente o tempo
mas, é isso, já nom tenho grandes curiosidades em determinadas direçons gerais,
polo menos para já. Quero colocar-che um exemplo: umha das ocupaçons mais
interessantes para mim nos últimos anos foi a de fixar alguns aspetos
caraterísticos na história dos intelectuais italianos. este interesse nasceu,
de umha parte, do desejo de aprofundar no conceito de estado e, de outra parte,
de ter reparado nalguns aspetos do desenvolvimento histórico do povo italiano.
Mesmo restringindo a pesquisa às linhas essenciais, permanece contudo
formidável. É preciso remontar-se necessariamente ao Império romano e à
primeira concentraçom de intelectuais «cosmopolitas» («imperiais») que aquele
causou: portanto, estudar a formaçom da organizaçom clerical cristiano-papal,
que oferece à herança do cosmopolitismo intelectual imperial umha forma de
casta europeia, etc. etc. só desta maneira, em minha opiniom, se explica que só
depois do século XVIII, isto é, após o início das primeiras luitas entre o
estado e a Igreja com o jurisdicionalismo, se poda falar em intelectuais
italianos «nacionais»: até entom, os intelectuais italianos eram cosmopolitas,
exercitárom umha funçom universalista (ou para a Igreja ou para o Império)
anacional, contribuírom para organizarem outros estados nacionais, como
técnicos e especialistas, oferecêrom «pessoal dirigente» a toda europa, e nom
se concentrárom como categoria nacional, como grupo especializado de classes
nacionais.
Como vês, este tema
poderia dar lugar a toda umha série de ensaios, mas é preciso por isso toda
umha pesquisa erudita. o mesmo acontece com outras pesquisas. também é preciso
considerar que o hábito de severa disciplina filológica, adquirido durante os
estudos universitários, me deu umha excessiva, talvez, reserva de escrúpulos
metódicos. a isto tudo soma-se a dificuldade de recomendar livros demasiado
especializados. recomendo-che aliás dous volumes que quero ler: 1° Un trentennio di lotte politiche (1894-1922)
do prof. de Viti de Marco, «Collezione
meridionale editrice», roma; 2° Lucien Laurat, L’Accumulation du capital d’après R. Luxembourg, Paris, rivière.
Isso que escreves com
respeito ao novo regulamento carcerário e sobre a hipótese de fazer traduçons
no cárcere é um projeto sem fundamento; nom quero comprometer-me a fazer
trabalhos continuados, porque nem sempre som capaz de trabalhar; de outra
parte, também nom acho que nos centros especiais poda ser legal a obriga de
trabalhar106. Queridíssima, procurarei escrever-che quanto me seja
possível. abraço-te com tenrura.
antonio
•
106 a
penitenciaria de turi era um «centro especial» para presos doentes.
(Carta 81)
24 de agosto de 1931 Queridíssima mae,
recebim as cartas de Mea, de Franco e de teresina, com
informaçons sobre a saúde de todos. Mas porque deixar-me tanto tempo sem
notícias? Mesmo com a febre da malária se pode escrever algumha linha, e eu
devo contentar-me com algum postal ilustrado. também eu estou velho, estás a
ver?, e portanto nervoso, mais irritável e mais impaciente. razoo assim: nom se
escreve para um preso por indiferença ou por falta de imaginaçom. No teu caso,
e nos demais da casa, nem penso que se poda tratar de indiferença. Penso antes
que se trata de falta de imaginaçom: nom podedes imaginar bem como pode ser a
vida do cárcere e que importáncia essencial tem a correspondência, como enche
as jornadas e oferece ainda um certo sabor à vida. Nunca falo dos aspetos
negativos da minha vida, antes de mais porque nom quero ser compadecido: fum um
combatente que nom tivo fortuna na luita imediata, e os combatentes nom podem e
nom devem ser compadecidos, quando luitárom nom porque fossem obrigados, mas
porque eles mesmos assim o quigérom de maneira consciente. Mas isso nom quer
dizer que nom existam os aspetos negativos da minha vida carcerária e que nom
sejam mui duros, e que nom podam, quando menos, serem agravados polas pessoas
queridas. além disso, este discurso nom vai dirigido a ti, quanto a teresina, a
Grazietta e a Mea, que justamente poderiam escrever-me polo menos algum postal.
Gostei muito da carta
de Franco e apreciei os seus cavalinhos, automóveis, bicicletas, etc.:
naturalmente, na medida em que me for possível, farei-lhe também um presente
para lhe mostrar que o quero muito e que tenho a certeza de que é um rapazinho
bom e com educaçom, mesmo se algumha vez, acredito, fai travessuras. enviarei
para Mea a caixa de pinturas, logo que me for possível, mas Mea nom deve
esperar qualquer cousa grandiosa. teresina nom respondeu para umha pergunta que
lhe figera: se chegou o fardo de livros e revistas que Carlo enviou de turi em
março passado. É preciso que saiba se estes livros e revistas vos incomodam,
porque ainda tenho dezenas e dezenas de quilogramas para enviar, e para que se
perdam tanto tem que, em parte polo menos, os ofereça para a biblioteca do
cárcere. Naturalmente, acho que, de qualquer maneira, mesmo se vos incomodassem
na estreiteza de espaço que sofredes, poderiam ser úteis quando as crianças
cresçam; acho que preparar-lhes umha biblioteca familiar é umha cousa
importante. especialmente teresina devia lembrar como devorávamos os livros na
nossa infáncia e como sofríamos por nom termos suficientes à nossa disposiçom.
Mas como explicas que a
malária se propague no centro da regiom? ou trata-se somente de vós? acho que
os atuais administradores da Cámara deveriam fazer os esgotos como os seus
predecessores figérom o aqüeduto: um aqüeduto sem esgotos nom faz com que que a
malária deixe de se estender por onde já tinha umha incidência esporádica. em
resumo, antes as mulheres de Ghilarza eram feias e barrigonas por causa da água
em mau estado, agora serám bem mais feias pola malária; os homens farám a cura
intensiva do vinho, imagino.
Muitos abraços afetuosos.
antonio
•
(Carta 82)
31 de agosto de 1931 Queridíssima Giulia,
umha das cousas que mais me interessárom da tua carta de
8-13 de agosto é a notícia de que delio e Giuliano se dedicam a apanhar rás. Há
alguns dias vim citado num artigo de revista um juízo de Lady astor sobre a
maneira como som tratadas as crianças em rússia (Lady astor acompanhou G. B.
shaw e Lorde Lothian na sua recente digressom): polo que parece, a única
crítica que fai Lady astor no artigo ao tratamento dado às crianças é esta: que
os russos estám de tal maneira ansiosos por manterem limpas as crianças, que
nem lhes deixam o tempo de se emporcar. Como vês, esta ilustre senhora é
engraçada e epigramática; no entanto, é certamente mais engenhoso o escritor do
artigo, que alça desesperadamente ao céu os seus braços liberais e exclama:
«Que será destas crianças quando tenham crescido tanto que seja impossível
obrigálas a tomarem banho!». Parece que pensam que enquanto se converter em
impossível a coerçom, os rapazes nom vam fazer outra cousa que mergulharem
sistematicamente na lama, como reaçom individual-liberal ao autoritarismo de
que som vítimas na atualidade. seja como for, gosto de que delio e Giuliano
tenham algumha oportunidade de se emporcarem apanhando rás. Gostaria de saber
se se trata ou nom de rás comestíveis, o qual daria à sua atividade de
caçadores um caráter prático e utilitário que nom deve ser desprezado. Nom sei
se quererás prestar-te, porque provavelmente terás contra as rás as mesmas
aristocráticas prevençons de Lady astor (os ingleses chamam depreciativamente
aos franceses de «comedores de rás»), mas devias ensinar às crianças a
distinguirem as rás comestíveis das outras: as comestíveis tenhem o ventre
completamente branco, enquanto as outras tenhem o ventre encarnado. Podem-se
apanhar colocando na fio como engado um pedaço de farrapo vermelho, ao qual
podam dar dentadas: é preciso contar com umha jarra, para metê-las dentro assim
que se lhes corta a cabeça e as patas com as tesouras. depois de esfolá-las,
podem preparar-se de duas maneiras: para fazer um caldo delicioso e neste caso
depois de fervê-las durante muito tempo com os habituais condimentos, passamse
pola peneira, de maneira que todo passe para o caldo, a exceçom dos ossos: ou
bem podem-se fritir e comer douradas e estaladiças. Num caso e no outro som
umha comida bem saborosa, mas especialmente bem nutritiva e de fácil digestom.
Penso que fazendo assim delio e Giuliano poderiam entrar à sua atual e tenra
idade na história da cultura russa, por introduzirem este novo alimento nos
costumes populares, criando-se bastantes milhons de rublos de nova riqueza
humana, arrebatada ao monopólio dos corvos, das gralhas e das serpes.
Isso que me escreves
sobre a tua saúde interessa-me muito, mas nom sei se continuas ainda com a cura
psicanalítica. Visto que Freud observa que os familiares som um dos obstáculos
mais graves para a cura no tratamento da psicanálise, nom quigem insistir nunca
no tema e também nom che insistirei agora. além disso, tu mesma lembrache como
amiúde me referia a alguns princípios da psicanálise insistindo em que te
esforçasses em «desenovelares» a tua autêntica personalidade. estava convencido
de que sofrias aquilo que os psicanalistas acho que chamam de «complexo de
inferioridade», que leva à sistemática repressom dos próprios impulsos
volitivos, isto é, da própria personalidade, e à aceitaçom servil de umha
funçom subalterna nas decisons, mesmo quando se tem a certeza de ter razom, com
a exceçom das poucas ocasions em que se tenhem explosons de irritaçom furiosa,
também por cousas insignificantes. em outubro de 1922, quando fora a Ivanovo,
umha manhá, ao encontrar a porta aberta, entrei na vossa casa sem que ninguém
se apercebesse e pudem ouvir assim, sem que o soubesses, umha destas explosons
de fúria. Falei-che depois nisso, observando que a descriçom do teu caráter
como «suave e doce» devia ser bastante corrigida, porque por vezes te armavas
um pouco em «galo».
abraço-te com tenrura. antonio
•
(Carta 83)
7 de setembro de 1931
Queridíssima tatiana,
soubem por Carlo que lhe escreveche umha carta sobre a
minha indisposiçom; nela demonstravas estar mui impressionada. também o doutor
Cisternini me dixo que recebeu umha carta em que te mostravas mui impressionada107.
Nom gostei disso, porque me parece que nom havia razom para ficares
impressionada. deves saber que já morrim umha vez e que ressuscitei, o qual
demonstra que sempre tivem a pele dura. Quando era criança, com 4 anos, tivem
hemorragias durante três dias seguidos. as hemorragias dessangrárom-me comple-
107
Na
madrugada de 3 de agosto, G. vomitou sangue pola primeira vez. seu irmao Carlo
e Piero sraffa acudírom a turi para visitá-lo, mas este nom pudo conseguir a
autorizaçom. G., numha carta de 17 de agosto (nom incluida na presente
seleçom), descreve para tatiana «da maneira mais mais objetiva possível» a sua
«indisposiçom», à qual trata de tirar importáncia.
tamente e fôrom acompanhadas de convulsons. o médico já me
dera por morto e até cerca de 1914 minha mae conservou o pequeno ataúde e o
pequeno fato especial que deviam utilizar para o meu enterro; umha tia afirmava
que ressuscitara assim que me untou os pequenos pés com o azeite de umha
candeia dedicada à virgem e por isso, quando me negava a cumprir com os atos
religiosos, renhia-me asperamente, lembrando que devia a vida à virgem, cousa
que me impressionava pouco, a dizer verdade. dali em diante, embora nunca fosse
mui forte, nom tivem nengum mal-estar grave, fora dos esgotamentos nervosos e
das dispepsias. Nom me enfadei pola tua carta arquicientífica, porque
simplesmente me fijo sorrir e lembrar um romance francês que nom che conto,
para que nom te enfades de verdade. respeitei sempre os médicos e a medicina,
embora respeite mais os veterinários, que curam animais que nom falam e nom
podem descrever os sintomas do seu mal; isso obriga-os a ser muito cuidadosos
(os animais custam dinheiro, enquanto os homens nom custam nada, enquanto umha
parte dos homens som valores negativos) enquanto os médicos nem sempre reparam
em que a língua serve também para que os homens digam mentiras ou polo menos
para exprimir impressons falazes.
entom, estou bastante
reposto (a propósito, nunca me demorei na cama nem meia hora mais do habitual e
saim sempre passear): a média da febre desceu e raramente atinge já os 37,2.
Certamente, está relacionada (polo menos empiricamente, nom sei se
cientificamente) com a digestom. Por exemplo, desde há alguns dias, como de
manhá 200 ou 300 gramas de uva; pois bem, se depois de erguer-me tenho umha
temperatura de 36,2, depois de comer a uva a temperatura sobe depressa para
36,9. a minha impressom é que estou muito melhor e que me reporei bem depressa.
Gostaria de responder a
algumhas cousas da tua carta de 28 de agosto, na qual mencionas algo do meu
trabalho sobre os «intelectuais italianos». É claro que falache com Piero,
porque certas cousas só chas pudo dizer ele108. Mas a situaçom era
diferente. em dez anos de jornalismo escrevim tantas linhas como para poder
editar 15 ou 20 volumes de 400 páginas, mas escreviam-se dia por dia e deviam,
em minha opiniom, morrer no fim do dia. Neguei-me sempre a fazer coletáneas,
mesmo se pequenas. No 18, o professor Cosmo queria que lhe permitisse fazer
umha escolha de certos artigos breves que escrevia a diário para um jornal de
turim109; ele teria-os publicado para mim com um prefácio mui
benévolo e mui honroso, mas nom quigem permiti-lo. em novembro de 20 deixei-me
convencer por Giuseppe Prezzolini para publicar na sua editora umha coletánea
de artigos que na realidade foram escritos conforme um plano orgánico, mas em
janeiro do 21 preferim pagar os custos de umha parte da composiçom já
108
Piero
sraffa. G. refere-se ao seguinte fragmento da carta de tatiana de 28 de agosto
de 1931: «... com certeza, para fazer umha história perfeita dos intelectuais deve dispor-se de umha grande biblioteca.
Mas, porque nom fazê-la imperfeita, para já, para depois perfeccioná-la, quando
tiveres livre acesso às bibliotecas? antes censuravas a Piero o excesso de
escrúpulos científicos que lhe impediam escrever qualquer cousa; parece que ele
ainda nom curou deste mal; mas, é possível que dez anos de jornalismo nom te
curassem? Há alguns anos, numha carta, davas ótimos conselhos para um amigo
preso, explicando-lhe que com vontade e método de estudo se pode utilizar mesmo
o material mais inadequado, e indicavas-lhe que uso fazer da biblioteca do
cárcere...». tatiana, no curso da carta, sugeria a G., algumhas leituras
científicas, e comentava: «é um facto curioso que na cultura de todos os italianos
haja um grande vazio: a ignoráncia das ciências naturais. Croce é um caso
extremo mas típico».
109
trata-se
dos artigos aparecidos na seçom «Sotto la
Mole», na ediçom turinesa de Avanti!,
entre 1916 e 1920, reunidos hoje em Sotto
la Mole, turim, 1960. Umberto Cosmo (1868-1944), especialista em literatura
italiana. deu aulas na Universidade de turim, frequentadas por G., quem se
figera amigo seu.
feita, e retirei o manuscrito110. ainda no 24 o
honorável Franco Ciarlantini propujo-me escrever um livro sobre o movimento do Ordine Nuovo que ele publicaria numha
coleçom sua, na qual saíram já livros de Mac donald, de Gomperz, etc.111,
comprometendo-se a nom modificar nem umha vírgula e a nom colar ao meu livro
nengum prefácio ou apostila polémica. ter publicado um livro numha editora
fascista nestas condiçons era mui atraente, e no entanto neguei-me: talvez,
penso agora, teria feito melhor em aceitar. Para Piero a questom era diferente;
qualquer escrito seu de ciência económica era mui apreciado e encetava discussons
nas revistas especializadas. Lim num artigo do senador einaudi que Piero está a
preparar umha ediçom crítica do economista inglês david ricardo112;
einaudi louva muito a iniciativa e eu estou mes-
110
trata-se,
se calhar, de artigos escritos para o semanário L’Ordine Nuovo. Na imediata pós-guerra, em roma, Giuseppe
Prezzolini devolvera a vida por pouco tempo à livraria de «La voce». em 1919,
em Florença, conheceu Piero Gobetti, através do qual é possível que contatasse
G. e o grupo de L’Ordine Nuovo, e daí
o episódio citado por G.
111
J.
ramsay Macdonald (1866-1937), homem político inglês, formou em 1923 o primeiro
governo laborista e reestabeleceu as relaçons diplomáticas com a Uniom
soviética. Gomperz é certamente samuel Gompers (1850-1924), sindicalista
americano de direitas, presidente desde 1986 da American Federation of Labor. a coleçom dirigida por Franco
Ciarlantini é a «Biblioteca de cultura
italiana», publicada a partir de 1924 pola editora alpi de Milám, e na qual
aparecêrom também obras de G. Baldesi, a. solmi, r. Murri.
112
Crf.
a resenha de Luigi einaudi à «Nuova collana di economisti», dirigida por Giuseppe Bottai e Celestino arena, para a UTET de
turim, em La riforma sociale,
XXXVIII, julho-agosto, 1931, onde se alude à ediçom das obras de david ricardo preparada
por sraffa. Com o ensaio «The Laws of returns under competitive conditions» (Economic Journal, dezembro de 1926,
trad. it., 1936), Piero sraffa iniciara um movimento de revisom da teoria
económica, relativamente às formas de mercado. a ediçom crítica de ricardo a
cargo de sraffa, em colaboraçom com M. H. dobb, está ainda em curso de
publicaçom (the works and Correspondance
of David Ricardo, Cambridge University Press, 1951, e ss.).
mo mui contente. aguardo ser capaz de ler facilmente o
inglês quando esta ediçom for publicada e poder ler ricardo no texto original.
o estudo que figem sobre os intelectuais como plano é mui vasto e na realidade
nom acho que existam em Itália livros sobre este tema. existe, com certeza,
muito material erudito, mas disperso num número infinito de revistas e arquivos
históricos locais. de resto, amplio muito a noçom de intelectual e nom me
limito à noçom corrente que se refere aos grandes intelectuais. este estudo
leva também a certas determinaçons do conceito de estado, que é entendido
habitualmente como sociedade política (ou até como aparato coercitivo para
enquadrar a massa popular, segundo o tipo de produçom e a economia de um
momento dado) e nom como um equilíbrio da sociedade política com a sociedade
civil (ou hegemonia de um grupo social sobre a inteira sociedade nacional,
exercida através das organizaçons chamadas privadas, como a igreja, os
sindicatos, as escolas etc.) e precisamente na sociedade civil, nomeadamente,
operam os intelectuais (Benedetto Croce, por exemplo, é umha espécie de papa
laico e é um instrumento mui eficaz de hegemonia, mesmo se de quando em vez
pode nom concordar com este ou aquele governo etc.). a partir desta conceiçom
do papel dos intelectuais, em minha opiniom, esclarece-se a razom, ou umha das
razons, da queda das comunas medievais, isto é, do governo de umha classe
económica, que nom soubo criar-se a própria categoria de intelectuais e
portanto exercer umha hegemonia, mais do que umha ditadura; os intelectuais
italianos nom tinham um caráter popular-nacional, mas cosmopolita, como o
modelo da Igreja, e a Leonardo era-lhe indiferente vender ao duque Valentino os
desenhos das fortificaçons de Florença. as comunas fôrom portanto um estado
corporativo, que nom conseguiu superar esta fase, nem se converteu num estado
integral, como reclamava em vam Machiavelli, que através da organizaçom do
exército queria organizar a hegemonia da cidade sobre o campo, e que por isso
pode ser chamado o primeiro jacobino italiano (o segundo foi Carlo Cattaneo,
mesmo apesar de ter demasiadas quimeras na cabeça). desta forma, como
consequência disso, o renascimento deve ser considerado um movimento
reacionário e repressivo, em comparaçom com o desenvolvimento das Comunas, etc.
Fago-che estes comentários para convencer-te de que cada período da história
acontecido na Itália, do Império romano até o Risorgimento, deve ser observado deste ponto de vista monográfico.
além disso, se tiver vontade e o permitirem as autoridades superiores, farei um
programa da matéria, que terá nom menos de 50 páginas e que hei de enviar-che;
porque, naturalmente, estarei contente tendo livros que me ajudem no trabalho e
que me estimulem a pensar. Igualmente, também che resumirei numha das próximas
cartas o tema de um ensaio sobre o Canto décimo do Inferno dantesco, para que fagas chegar o roteiro ao professor
Cosmo, quem como especialista em dante, saberá dizer-me se figem umha falsa
descoberta ou se merece realmente a pena escrever um contributo, umha migalha
para engadir aos milhons e milhons de notas semelhantes que já fôrom escritas.
Nom penses que nom continuo a estudar, ou que me envileço, porque a um certo
ponto nom poda continuar as minhas pesquisas. ainda nom perdim umha certa
capacidade inventiva, no sentido de que qualquer cousa importante que leia me
estimula a pensar: como poderia construir um artigo sobre este tema? Imagino
umha introduçom e umha conclusom perspicazes e umha série de temas
irresistíveis para mim, como muitas punhadas no olho, e desta maneira
divirto-me comigo mesmo. Naturalmente, nom escrevo essas diabruras: limito-me a
escrever sobre temas filológicos e filosóficos, sobre aqueles dos que Heine
escreveu: eram tam aborrecidos que adormecim, mas o aborrecimento foi tal que
me obrigou a acordar. abraço-te com tenrura. antonio
•
(Carta 84)
13 de setembro de 1931 Queridíssima tatiana,
recebim o pacote das medicinas e agradeço-cho. Nom sei para
que me podem servir os cigarros e o pó de abissínia contra a asma. ataques de
asma nunca os tivem, também nom nestas últimas circunstáncias: podo estar de
tanto em tanto um pouco arquejante, e certamente nom podo correr ou estar
demasiado tempo inclinado para varrer, etc., mas nom por isso me parece
necessário tomar qualquer cousa especial. de resto, fago as inalaçons de
trementina, que me fam tossir, mas nom me provocam qualquer tipo de
expetoraçom; na realidade, nom tenho expetoraçons, mas sim umha abundante e
insólita salivaçom. Nom sei por que te surpreende que nom estivesse nem um dia
na cama. Quer dizer que nom acreditache nas minhas cartas. Na realidade, sofrim
um pouco de debilidade, mas nom mui notável; nom há comparaçom com a debilidade
que me golpeou após o ataque de ácido úrico de dezembro de 28; na altura nom
pudem caminhar durante quase três messes, e passava as horas do passeio sempre
sentado, ou passeava um pouco do braço de outro preso; igualmente, sinto-me
mais débil em cada início de Primavera. esta semana ainda melhorei, porque o
sedobrol me fai dormir um pouco. Porém, tenho sempre um pouco de temperatura:
de manhá tenho 36,1 ou 2. depois de comer um pouco de uva a temperatura sobe
para 36,9 e depois de tomar meio litro de leite, sobe para 37,2. alguns dias
que comim uva e algumhas bolachas e confitura, a temperatura subiu para 37,6,
isto é, 1 grau e ½ desde a manhá. a temperatura decresce após a última comida,
que agora fago às 5, e por vezes desce a 36,6, ou no máximo a 36,9. tomarei os
fermentos lácteos com tanto mais prazer, porquanto a brochura explica que se
trata de iogurte ou de Gioddu, e nom
menciona o pam (quer dizer, o lévedo de cerveja) para prepará-lo. o pam, ou
lévedo de cerveja, dá ao leite umha fermentaçom pútrida e nom antipútrida, e
toda as tuas recomendaçons para fazer calhar o leite nom som outra cousa que a
superstiçom e o empirismo de umha mocinha, e nom «ciência»! — Num postal teu,
esse em que me falas das tuas visitas ao cinematógrafo e nomeadamente na do
filme Dous Mundos113
certas afirmaçons tuas surpreendêrom-me. Como podes acreditar em que existam
esses dous mundos? essa é umha maneira de pensar digno das Centúrias Negras114,
ou do Klu-klux-klan americano, ou das suásticas alemás. e como podes dizê-lo
precisamente tu, que tiveche o vivo exemplo na casa: existiu algumha vez umha
fratura deste tipo entre teu pai e tua mae, ou nom estám eles ainda unidos de
maneira estreita?115 o filme, certamente, é de origem austríaca, do
antisemitismo do pós-guerra. em Viena morava
113 o filme Dous mundos, dirigido polo alemám a. e.
dupont em 1930, foi projetado na Itália no ano seguinte. representava alguns
aspetos do antisemitismo na Polónia durante a Primeira Guerra Mundial.
114 organizaçom terrorista
russa aparecida em começos do século XIX para reprimir, coa ajuda da polícia, o
movimento revolucionário e para fomentar progromos antijudeus.
115 a mae de tatiana era de
origem judia.
com umha velha pequeno-burguesa supersticiosa116,
que antes de me admitir como inquilino perguntou se era judeu ou católico
romano; ela sobrevivia com o aluguer de dous quartos, especulando com o facto
de que no 18, no breve período soviético, fora promulgada umha lei que nom
reconhecia a inflaçom no pagamento aos proprietários de casas117; eu
pagava 3 milhons e ½ de coroas por mês (quer dizer 350 liras), enquanto a
pensionista pagava no máximo 1.000 das mesmas coroas ao dono da casa; quando
partim, um secretário da embaixada, cuja mulher devia ficar em Viena pola
escarlatina do filho, pediu-me que conseguisse um quarto para a mulher; na
tarde falei com a senhora, que o permitiu. Na manhá cedo, a senhora petou na
minha porta e dixo: «ontem esquecimme de perguntar se a nova inquilina é judia,
porque nom alugo a judeus». a nova inquilina era precisamente umha judia
ucraniana. Como havia de fazer? Falei disso com um francês118, que
me explicou que só havia umha hipótese: dizer à pensionista que honestamente
nom podia perguntar à nova inquilina se era judia, mas que sabia que era umha
secretária de embaixada, porque os pequeno-burgueses odeiam tanto os judeus
quanto se arrastam perante a diplomacia. e com efeito foi assim: a senhora
escuitou-me e respondeu: «se for diplomata, dou-lhe o quarto com certeza,
porque aos diplomatas
116 G. viviu em Viena de
novembro de 1923 até maio de 1924 e morou durante uns messes em dous quartos
mobiliados, com a dona, no número 5 de Floriangasse, no distrito VII
(Josefstadt) da cidade.
117 a lei sobre o bloqueio
dos alugueres, promulgada na áustria contra o fim da guerra, fora conservada
pola socialdemocracia dentro do quadro da sua política de reconstruçom de
edifícios em Viena nos anos do pós-guerra.
118 trata-se,
provavelmente, de Victor serge (1890-1947), que se encontrava naqueles messes
em Viena, como colaborador da Internationale
Presse-Korrespondenz.
nom se lhes pode perguntar se som judeus ou nom». Gostarias
agora de afirmar que partilhas o mesmo mundo com esta vienense? abraço-te com
tenrura. antonio
•
(Carta 85)
20 de setembro de 1931 Queridíssima tatiana,
escreverei-che brevemente sobre assuntos pessoais, porque
hoje queria tentar fazer o esquema sobre o Canto X para enviar e ter os
conselhos do meu velho professor de Universidade119; se nom o figer
hoje nom o farei mais. as minhas condiçons de saúde estabilizam-se: a febre nom
subiu nesta semana a mais de 37,2, mas houvo já um dia inteiro em que nom
ultrapassou 36,9: em geral, a temperatura marca esta curva parabólica: 36,2 de
manhá, 36,9 às 11, 37,2 às 14, 36,9 às 16, 36,8 e também 36,7 às 18. o máximo é
sempre por volta das 2. É curioso que diminuisse a média da temperatura
enquanto voltava o mal de cabeça, que desaparecera completamente quando a
temperatura era mais alta. Nom penses que poda ter abusado algumha vez do
sedobrol: comecei por um comprimido, e de dous passei para três (sempre umha única
vez por dia, por volta das 7 e ½ da tarde) para voltar descer para dous. as
indicaçons dim que de umha única vez se podem tomar dous ou três comprimidos, e
cinco durante todo o
119 Umberto Cosmo. trata-se
do Canto X do Inferno.
dia. de outra parte, dentro de alguns dias deixarei de
tomá-lo de vez (ficarám 60 comprimidos) porque o efeito, após um mês e meio de
tratamento, dura mesmo dous ou três messes. recebim as fotografias, mas nom cho
escrevim, porque nom gostei da de delio e Giuliano e a outra está demasiado
descolorida, apesar de que bem se vê que deveu ser mui bonita. sabes o que
devias fazer? devias fazer umha ampliaçom da tua figura no grupo de estudantes
universitários de medicina: na minha opiniom, a tua figura estava bastante
isolada no grupo como para podê-la reproduzir de maneira independente. Pido-che
que escrevas para Carlo que recebim a sua carta e que lhe responderei a próxima
vez: os dous livros que quer comprar para os seus estudos, mesmo se mal
traduzidos, som úteis. Procurarei resumir-che agora o célebre esquema.
Cavalcanti e Farinata.
1. de sanctis, no seu
ensaio sobre Farinata repara na aspereza que carateriza o canto décimo do Inferno dantesco, polo facto de
Farinata, depois de ter sido representado de maneira heróica na primeira parte
do episódio, se converter num pedagogo na última parte, isto é, por dizê-lo com
termos crocianos: Farinata, de poesia, torna-se estrutura. tradicionalmente, o
canto décimo é o canto de Farinata, por isso a aspereza observada por de
sanctis é sempre plausível. eu afirmo que no canto décimo estám representados
dous dramas, o de Farinata e o de Cavalcanti, e nom apenas o drama de Farinata.
2. É estranho que a
hermenêutica dantesca, apesar de ser tam minuciosa e bizantina, nom reparasse
nunca em que Cavalcanti é o verdadeiro castigado entre os epicúreos das tumbas
afogueadas, e digo castigado de maneira imediata e individualizada, e que
Farinata participa de maneira estreita nesse castigo, até neste caso «como se
figesse um grande desprezo ao céu»120. a lei do taliom em Cavalcanti
e em Farinata é esta: por ter querido ver o futuro (teoricamente) som privados
do conhecimento das cousas da terra durante um determinado tempo, isto é, vivem
num cono de sombra, desde cujo centro vem o passado além de um certo limite, e vem
o futuro além de outro limite semelhante. Quando dante se aproxima deles, a
posiçom de Cavalcanti e de Farinata é esta: no passado vem Guido vivo, mas no
futuro vem-no morto. Mas nesse momento Guido é morto ou vivo? Veja-se a
diferença entre Cavalcanti e Farinata: Farinata, quando sente falar em
florentino, volta a ser o homem de partido, o herói guibelino; Cavalcanti, polo
contrário, só pensa em Guido e, quando sente falar em florentino, ergue-se para
saber se Guido está vivo ou morto nesse momento (eles podem informar-se através
dos recém chegados121). o drama vivido por Cavalcanti é rapidíssimo,
embora de umha intensidade inefável. ele pergunta depressa por Guido e aguarda
que esteja com dante, mas quando ouve do poeta, que nom está informado com exatitude
da pena, o «tivo» 122, o verbo no passado, depois de um grito
dilacerante «de costas recaia, e novamente nom mostrou-se fora».
3. Na primeira parte do
episódio, o «desprezo de Guido» converte-se no centro das pesquisas de todos os
fabricantes de hipóteses e contributos; na segunda parte, igualmente, a
previdência de Farinata sobre o exílio de dante atirou toda a
120 o texto do Canto X di:
«ed ei [Farinata] s’ergea col petto e con la fronte/ com’avesse lo inferno in
gran dispitto»; o «inferno» e nom «o ceu», como parafraseia Gramsci. 121 dante
e Virgílio.
122
Cavalcanti
perguntou dante polo seu filho Guido e por que nom está consigo. e dante
responde-lhe: «...perto me aguarda quem meus passos guia, vosso Guido talvez
teve-o em desdenho» (ebbe a disdegno).
[traduçom de José Pedro Xavier Pinheiro].
atençom. em minha opiniom, a importáncia da segunda parte
consiste nomeadamente no facto de ela iluminar o drama de Cavalcanti, dando
todos os elementos essenciais para que o leitor o reviva. será por isso umha
poesia do inefável, do nom expressado? acho que nom. dante nom renuncia a
representar o drama de maneira direta, porque essa é justamente a sua maneira
de representá-lo. trata-se de umha «forma de expressom» e acho que as «formas
de expressom» podem mudar no tempo, assim como muda a língua propriamente dita.
(somente Bertoni acredita ser crociano ao recuperar a velha teoria das palavras
bonitas e das palavras feias, como umha novidade lingüística deduzida da
estética crociana).
Lembro que no 1912,
quando frequëntava o curso de História da arte do professor toesca123
conhecim a reproduçom do quadro pompeiano, em que Medea assiste à morte dos
filhos que tivera com Jasom; assiste com os olhos vendados e parece-me lembrar
que toesca dizia que esse era umha maneira de se expressar dos antigos, e que
Lessing no Laocoonte (cito aquelas
aulas de memória) nom o considerava um artifício de impotentes, mas antes a
melhor maneira de dar a impressom da infinita dor de um pai, que representada
de maneira material teria cristalizado num trejeito. a mesma expressom de
Ugolino: «da fome mais que a dor, pôde a agonia»124 pertence a esta
linguagem e o povo entendeu-no como um pano deitado sobre o pai que devora o
filho. Nada de comum entre estas maneiras de expressar-se de dante e as de
Manzoni. Quando renzo pensa em Lucia, depois de ter
123
Pietro
toesca (1877-1962) ensinou História da arte medieval e moderna na Universidade
de turim de 1907 a 1914.
124
Inferno,
XXXIII, 75. traduçom de José Pedro Xavier Pinheiro, disponível na Wikipedia em
língua portuguesa.
cruzado a fronteira véneta, Manzoni escreve: «Nom
tentaremos dizer o que ele sentia: o leitor conhece as circunstáncias:
imagine-o». Mas Manzoni já declarara que para representar a nossa reverenciada
espécie, já havia suficiente amor como para que se tivesse que falar dele
também nos livros. Na realidade, Manzoni renunciava a representar o amor por
motivos práticos e ideológicos. além disso, que o tratado de Farinata está
estreitamente ligado ao drama de Cavalcanti é cousa que di o próprio dante,
quando conclui: «dize — replico — à sombra, a quem falava, que o filho ainda
entre os vivos tem morada»125 (também no caso da filha de Farinata,
que contudo —dado que estava completamente absorto polas luitas de partido—,
nom deu sinais de turvaçom pola notícia extraída do «tivo», isto é, que Guido
morrera; na sua opiniom, Cavalcanti era o mais castigado, e o «tivo»
significava o fim da angústia da dúvida sobre se Guido estava nesse momento
vivo ou morto).
4. acho que esta
interpretaçom ataca de maneira fulcral a tese de Croce sobre a poesia e a
estrutura da Divina Comédia. sem a
estrutura nom existiria a poesia e portanto a estrutura também nom teria um
valor poético.
a questom está ligada a
estoutra: que importáncia artística tenhem as didascálias nas obras teatrais?
as últimas inovaçons introduzidas nas artes teatrais, por meio da concessom de
umha maior importáncia ao diretor do espectáculo, colocam a questom de maneira
cada vez mais áspera. o autor do drama luita com os autores e com o diretor do
espetáculo por meio das didascálias, que lhe permitem caraterizar melhor as
personagens: o autor quer que a sua divisom seja respei-
125
Inferno
X, 110-111. traduçom de José Pedro Xavier Pinheiro (vide nota anterior).
tada e que a interpretaçom do drama por parte dos atores e
do diretor (que traduzem umha arte para outra, ao mesmo tempo que som os seus
críticos) adira à sua visom. No Don
Giovanni de G. B. shaw, o autor fornece também no apêndice um manualinho
escrito por John tanner, o protagonista, para concretizar melhor a figura do
protagonista e obter do ator umha maior fidelidade à sua imagem126.
Umha obra de teatro sem didascálias é mais lírica do que umha representaçom de
pessoas vivas num choque dramático; a didascália incorporou em parte os velhos monólogos,
etc. se no teatro a obra de arte é o resultado da colaboraçom do escritor e dos
atores unidos na estética polo diretor do espectáculo, a didascália tem no
processo criativo umha importáncia essencial, entanto que limita o arbítrio do
ator e do diretor. toda a estrutura da Divina
Comédia tem esta altíssima funçom
e se é justo pola distinçom127, é preciso sermos mui cautos de cada
vez. (escrevim de um só jacto, tendo comigo apenas a ediçom de bolso de dante
da Hoepli). tenho os ensaios de de sanctis e o Dante de Croce. Lim na Leonardo
do ano 28 umha parte do estudo de Luigi russo publicado na revista de Barbi
e que menciona (na parte que lim) a tese de Croce. tenho o número de Critica com a resposta de Croce128.
Mas nom vejo este material desde há muito tempo, quer dizer, desde antes de que
concebesse o núcleo principal deste esquema, porque está no fundo de umha caixa
conservada no depósito. o professor
126
G. B. shaw, Man and Superman, ato III. o título do
manual de John tanner é The
Revolutionnist’s Handbook and Pocket Companion. 127 trata-se da distinçom crociana entre
estrutura e poesia.
128 o estudo de russo, citado por G., aparecera com o
título de Crítica dantesca no Leonardo, III, 12, 20 de dezembro de
1927. Para a resposta de Croce, cfr.
La Critica, XXVI, 2, 20 de março de
1928, pp. 122-125.
Cosmo poderia dizer-me se se trata de umha nova descoberta
da pólvora, ou se há no esquema algum ponto que pode ser desenvolvido numha
notinha, para passar o tempo.
acabo
de receber agora mesmo a tua longa carta de 19 de
setembro. acho que devias ter entendido há tempo que quando
nom trato certos temas, ou nom che respondo a propósito, é assim que quero
fazer e nom quero gerar polémicas. achas sempre que o cárcere é umha espécie de
pensom para orfanzinhas; porém, é mesmo um cárcere e mais nada. Quanto o médico
me dixo e prescreveu, contei-cho com detalhe. também no 28-29 soubeche do meu
mal-estar, dado que estavas aqui pola conversa de dezembro, justo quando eu
estava mal. seja como for, tem a certeza de que tenho em conta os teus
conselhos e que se che escrevo sobre «ciência», etc., o fago para fazer-che
raivar inutilmente, já que nom queres convencer-te de que aquilo que escrevo o
quero escrever para nom escrever outras cousas. abraço-te com tenrura. antonio
•
(Carta 86)
5 de outubro de 1931 Queridíssima tania,
nom gostei muito da fotografia de delio e Giuliano, pola
mesma razom pola que che pedira a tua fotografia de estudante. acho que é
claro: umha única fotografia fornece umha imagem fixada umha vez para sempre.
Umha série de fotografias permite reconstruir, dentro de certos limites, umha
personalidade em desenvolvimento, isto é, a personalidade real. a fotografia
das crianças nom se «insere» nas anteriores, além de ser tecnicamente infeliz,
quer dizer, mal feita desde duas perspetivas: como arte, isto é, como escolha
da postura que representa melhor, no momento dado, a personalidade, e como
técnica material. Com isto nom quero dizer que nom seja justo e obrigado louvar
e encorajar Volia, antes polo contrário. entendo que nomeadamente no caso das
crianças é preciso um fotógrafo especialista: mas a realidade nom muda, e a
minha impressom permanece.
os
matizes que introduziche à polémica por ti levantada,
a dos chamados «dous mundos», nom altera o erro fundamental
do teu ponto de vista, nem tira qualquer valor à minha afirmaçom, que se trata
de umha ideologia que pertence, mesmo se de maneira marginal, à das Centúrias
Negras, etc. entendo mui bem que nom participarias num pogrom; contudo, para
que um pogrom poda acontecer é necessário que se difunda bem a ideologia dos
«dous mundos» impenetráveis, das raças etc. Isso forma a atmosfera imponderável
que as Centúrias Negras aproveitam, fazendo que se encontre umha criança
dessangrada e acusando os judeus de tê-la assassinado para um sacrifício
ritual. o estourado da guerra mundial demonstrou como as classes e os grupos
dirigentes sabem aproveitar estas ideologias, aparentemente inócuas, para
determinarem as ondas de opiniom pública. No teu caso, a cousa parece-me tam
surpreendente, que havia de parecer que nom te quero se nom procurasse
libertar-te completamente de qualquer preocupaçom pola questom mesma.
Que queres dizer com a
expressom «dous mundos»? Que se trata como de duas terras que nom podem
aproximar-se e entrar em comunicaçom entre si? se nom quigeres dizer isto, e se
se tratar de umha expressom metafórica e relativa, tem pouco significado,
porque metaforicamente os «mundos» som inúmeros, até nisso que exprime o
provérbio camponês: «o que longe vai casar, trampa leva ou trampa vai buscar».
a quantas sociedades pertence cada indivíduo? e cada um de nós, nom fai
continuados esforços para unificar a própria conceiçom do mundo, na qual
continuam a subsistir pedaços heterogéneos de mundos culturais fossilizados? e
nom existe um processo histórico geral que tende a unificar continuamente todo
o género humano? Nós os dous, ao escrever-nos, nom descobrimos entom, de
maneira continuada, motivos de discórdia? e polo contrário, nom será que afinal
conseguimos encontrar-nos ou concordar em certas questons? e cada grupo ou
partido, ou seita, ou religiom, nom tende também a criar um «conformismo» de
seu (nom entendido em sentido gregário e passivo)?
o que importa na nossa
discussom é que os judeus fôrom liberados do gueto somente no 48 e que ficárom
no gueto, ou segregados de algumha maneira pola sociedade europeia durante
quase dous milénios, e nom pola sua vontade, mas por imposiçom externa. do 48 em
diante o processo de assimilaçom nos países ocidentais foi tam rápido e
profundo, como para fazer pensar que só umha segregaçom imposta impediu a sua
completa assimilaçom em vários países, se até a revoluçom francesa a religiom
cristá nom tivesse sido a única «cultura estatal», que pedia precisamente a
segregaçom dos judeus religiosamente irredutíveis (naquela época; agora já nom,
porque do judaísmo passam para o deísmo puro e simples, ou para o ateísmo). em
qualquer caso, é preciso observar que muitos carateres que passam por serem
devidos à raça, som devidos antes à vida do gueto, imposta em diferentes formas
nos vários países, polo qual um judeu inglês nom tem quase nada em comum com um
judeu da Galizia. Hoje parece que Gandhi representa a ideologia hinduísta; mas
os hinduístas reduzírom ao estado de párias aos dravida, que antes habitavam a
índia, fôrom um povo belicoso e só após a invasom mongol e a conquista inglesa,
pudérom expressar-se num homem como Gandhi. os judeus nom tenhem um estado
territorial, umha unidade de língua, de cultura, de vida económica, desde há
dous milénios; como se poderia encontrar neles umha agressividade, etc.? Mas
também os árabes som semitas, irmaos carnais dos judeus e tivérom o seu período
de agressividade e de tentativa de império mundial. entanto que os judeus som,
por outra parte, banqueiros e detentores do capital financeiro, como se pode
dizer que nom participam na agressividade dos estados imperialistas?
recebo
neste momento a tua carta de 2 de outubro e re-
paro em que figem mal continuando esta discussom, que só se
poderia fazer numha conversa em que o tom de voz e a possibilidade de corrigir
e esclarecer de maneira imediata aquilo que se di, impedem confusons e
asperezas. de resto, nom quero nom escrever-che esta semana, e por isso che
envio a carta tal qual está. Porém, quero esclarecer um pequeno facto. Parece
que estás convencida de que em 28-29 tivem quem sabe que males e que chos
ocultei. tivem a crise polos dias do Natal de 28, e justo o dia de Natal, e ainda
duas vezes a seguir tivem a conversa contigo. Nom estivem na cama. sofrim umha
prolongada debilidade, polo qual durante o passeio preferia ficar sentado, e
caminhar apenas 15-20 minutos, porque caminhar me cansava. É possível que nom
che escrevesse estes detalhes, porque nom lhes concedia nengumha importáncia ou
porque estavas informada por meio das conversas mantidas. Naturalmente é algo
que passará mais vezes, porque nom quero transformar as minhas cartas em
boletins médicos (!) cheios de extravagáncias e de asneiras. Quando nom escrevo
nada sobre a saúde, quer dizer que tudo é normal dentro do ámbito carcerário.
Certamente, nom vou estudar patologia geral ou outra ciência médica. sei isto:
que nom existem doenças, mas doentes, e que num doente todos os órgaos som
solidários quando um deles está doente. Chega-me para entender que o médico
deve ser umha espécie de artista, isto é, que na sua arte tem muita importáncia
algo semelhante à intuiçom, para além do conhecimento científico. Portanto,
qualquer leitura parcial nom serve de nada, mesmo se nom chega a ser perigosa
como os manuais populares sobre o «Médico para todos» e as «Curas em caso de
urgência».
abraço-te com tenrura antonio
acho que podes assinar por mim o Corriere della Sera, de 1 de outubro até 31 de dezembro, para o
receber diretamente em turi, naturalmente. terei de fazer ainda amanhá esta
pequena petiçom e caso nom me for concedida, porque nom se me considerar
merecente, poderás sempre mudar a assinatura no teu favor.
•
(Carta 87)
12 de outubro de 1931 Queridíssima tania,
recebim o teu postal de 10 de outubro, que nom atenuou em
absoluto o efeito causado pola tua carta do 2. esta carta nom foi para mim
áspera, mas ofensiva. Que poderia significar que jogo contigo à «cabra-cega» e
que procuro «encurralar-te»? deveria responder com palavras duras, mas acho que
é melhor evitar no futuro qualquer repetiçom destes incidentes desagradáveis,
por nom dizer qualquer cousa pior. de maneira que a tua alusom anterior à minha
qualidade de ex-jornalista é, por empregar umha expressom pomposa, imbelle telum sine ictu. Nunca fum um
jornalista profissional, que vende a sua caneta ao melhor postor e que deve
mentir exageradamente, dado que a mentira vai com a profissom. Fum um
jornalista mui independente, com umha única opiniom sempre, e nunca devim
ocultar as minhas profundas convicçons para agradar patrons ou cúmplices.
escreves que nom che agradou que eu escrevesse que a tua opiniom sobre os
judeus foi matizada. tés razons, já que nada matizache, pois nesta opiniom tua
há um pouco de tudo; ora bem, cada cousa numha carta diferente. Havia num
princípio um ponto de vista que conduzia direito para o antisemitismo; depois,
umha conceiçom própria de um nacionalista judeu e de um sionista e, finalmente,
pontos de vista que seriam compartilhados polos velhos rabinos que se opugérom
à destruiçom dos guetos, prevendo que a falta dessas comunidades com território
segregado acabaria por desnaturalizar a «raça» e por alentar os vínculos
religiosos que mantinham a sua personalidade. Com certeza, figem mal em
discutir; teria sido melhor brincar com isto, contrapondo a teoria da «flema»
británica, da «fúria» francesa, da «fidelidade» germánica, da «grandeza»
espanhola, do «sentido da improvisaçom» italiano e, finalmente, da «fascinaçom»
eslava, todas elas cousas bem úteis para escrever romances de folhetim ou
filmes populares. ou poderia ter levantado a questom de saber qual é o
«verdadeiro» judeu ou o judeu «em geral» e até o homem «em geral», que nom
penso se encontre em nengum museu antropológico ou sociológico. e também o que
significa hoje para os judeus a sua conceiçom de deus como «deus dos exércitos»
e toda a linguagem da Bíblia sobre o «povo escolhido» e a missom do povo judeu
que se parece com a linguagem de Guilhermom129 antes da guerra. Marx
escreveu que a questom judia nom existe desde que os cristaos se convertêrom em
judeus, assimilando o que fora a essência do judaísmo, a especulaçom, ou seja
que a soluçom da questom judia dará-se quando toda a europa seja libertada da
especulaçom, quer dizer, do judaísmo em geral. acho que é a única maneira de
propor a questom geral, à parte do reconhecimento do direito das comunidades
judaicas à autonomia cultural (de língua, de escola, etc.) e também à autonomia
nacional, caso algumha comunidade judaica conseguisse, de umha ou de outra
maneira, habitar um território definido. todo o mais, parece-me misticismo de
péssima qualidade, bom para os pequenos intelectuais judeus do sionismo, como a
questom da «raça», entendida noutro sentido que nom seja o puramente
antropológico; já no tempo de Cristo os judeus nom falavam mais a sua língua,
reduzida a umha língua litúrgica, e falavam o aramaico. Umha «raça» que
esqueceu a sua antiga língua perdeu já a maior parte da herança do passado, da
primitiva conceiçom do mundo e absorveu a cultura (junto com a língua) de um
povo conquistador; consequentemente, que mais pode significar «raça» neste
caso? trata-se evidentemente de umha comunidade nova, moderna, que recebeu a
pegada passiva ou até negativa do gueto e no quadro desta nova situaçom social
refijo umha nova «natureza».
É estranho que nom
utilizes o historicismo para a questom geral, e depois queiras de mim umha
explicaçom historizante do facto de alguns grupos de cosacos acreditarem que os
judeus tinham cauda. tratava-se de umha brincadeira que me contou um judeu,
comissário político de umha divisom
129 Guilherme II.
de assalto dos cosacos de oremburg130 durante a
guerra russopolonesa de 1920. estes cosacos nom tinham judeus no seu território
e concebiam-nos conforme a propaganda oficial e clerical como seres monstruosos
que mataram deus. Nom queriam acreditar que o comissário político fosse judeu:
«tu és dos nossos, — diziam-lhe, — nom és um judeu, estás cheio de cicatrizes
das feridas causadas polas lanças polacas, combates ao pé de nós; os judeus
som-che outra cousa». também em sardenha o judeu é concebido de várias
maneiras: existe a expressom arbeu, que
equivale com um monstro de fealdade e de maldade, lendário; existe o «judeu»
que matou Jesus Cristo, e existe ainda o bom e o mau judeu, porque o piedoso
Nicodemo ajudou Maria a descender o filho da cruz. Mas para o sardo, «os
judeus» nom estám ligados ao tempo atual; se lhe dim que um tipo é judeu,
pergunta se é como Nicodemo, mas em geral acredita que significa ser um cristao
ruim, como os que quigérom a morte de Cristo. e existe ainda o termo marranu da expressom marrano, que na espanha se dava aos
judeus que fingirom converter-se, e que em sardo tem um sentido genericamente
injurioso. ao contrário dos cosacos, os sardos, que nom fôrom objeto da
propaganda, nom distinguem os judeus dos outros homens.
desta maneira liquidei,
pola minha conta, a polémica e nom vou deixar-me persuadir a iniciar outras. a
questom das raças, fora da antropologia e dos estudos pré-históricos, nom me
interessa. (Igualmente, nom tem valor a tua alusom à importáncia dos sepulcros,
no relativo às culturas; isso é verdade só para as épocas mais antigas, quando
os sepulcros eram o
130 antiga fortaleza de
fronteira assediada polos cosacos de Pugachov em 1733-1734; de 1918 a 1925 foi
capital da república soviética dos Kirguizes. em 1938 adoptou o nome de Chkalov.
único monumento nom destruído polo tempo e porque dentro
dos sepulcros, junto com o defunto, colocavam os objetos da vida quotidiana.
seja como for, estes sepulcros dam-nos um aspeto mui limitado dos tempos em que
fôrom construídos: da história do costume ou de umha parte dos ritos
religiosos. e eles referem-se ainda às classes altas e ricas, e amiúde aos
dominadores estrangeiros do país, nom ao povo). eu mesmo nom som de nengumha
raça: meu pai é de origem albanês recente (a família escapou do Épiro após ou
durante as guerras de 1821 e italianizou-se rapidamente); minha avó era umha
González e descendia de algumha família ítalo-espanhola da Itália meridional
(como tantas que permanecêrom após o fim do domínio espanhol); minha mae é
sarda polo pai e pola mae, e sardenha uniu-se ao Piemonte só em 1847, depois de
ter sido um feudo pessoal e um património dos príncipes piemonteses, que a
obtivérom em troca por sicília, que estava demasiado longe e era menos
defendível. Contudo, a minha cultura é fundamentalmente italiana e este é o meu
mundo: nom cheguei a sentir-me nunca dilacerado entre dous mundos, embora isso
fosse escrito no Giornale d’Italia de
março de 1920, onde num artigo de duas colunas se explicava a minha atividade
política em turim, entre outras cousas, por ser eu sardo e nom piemontês ou
siciliano, etc. Que fosse oriundo albanês nom foi colocado em jogo, porque
também Crispi131 era albanês, educado num colégio albanês e falava o
albanês. de resto, na Itália estas questons nunca fôrom colocadas, e na
Ligúria ninguém se espanta se um marinheiro leva para a
vila
131 Francesco Crispi
(1819-1901), político monárquico italiano. Partidário de umha estreita aliança
com a alemanha e netamente hostil à França. Propugnou também umha política
colonialista de prestígio. Foi o promotor da megalómana empresa de abisínia,
que se saldou em 1896 com a desfeita de ádua.
umha mulher preta. Nom vam tocá-la com um dedo insalivado
para ver se o preto lhe sai, nem acreditam que os lençóis vaiam ficar tingidos
de preto.
escreveche
que querias enviar-me medicinas. Pido-che
no entanto que nom me envies mais Mugolio nem pó de
abissínia. acho que a única cousa verdadeiramente útil som os fermentos
lácteos, que quase acabei; tenho ainda para quatro dias. Pido-che por favor que
fagas assim. abraço-te com tenrura. antonio
Igualmente,
fijo-me bem a Uricedina stroschein; enviaras-me duas amostras há muito tempo e
tomei-nas recentemente: regulou bastante bem as funçons intestinais.
•
(Carta 88)
26 de outubro de 1931 Queridíssima tania,
hoje nom vou poder escrever com muito vagar. erguim-me da
cama com febre e ainda me dura; fijo (ainda fai) um par de dias de vento do sul
que deixou tudo húmido. Mas aguardo escrever o indispensável. Convencim-me
mesmo de que todo este mal-estar está causado por moléstias intestinais
convertidas em crónicas e que se nom consigo vencê-las ou a atenuálas, nom me
vam beneficiar em absoluto reconstituintes ou outras cousas do género. aquilo
que me fai passar por completo a temperatura é nom comer nada, mas nom é esta
umha cura que poda persistir muito tempo. Qualquer alimento, depois de poucos
dias, reproduz estas mesmas manifestaçons.
Há depois algumhas complicaçons de outro género, causadas
polo meu organismo: o certo é que as dores nos órgaos do sistema respiratório
estám causadas pola pressom dos órgaos do sistema digestivo, que incham, coma o
que se comer; o leite é mesmo o alimento que mais inchaçom produz. Penso que,
no mínimo, é preciso isolar este fenómeno, e é por isso que me obcecara com a
Urecidina que, mesmo em pequenas doses, melhorava a digestom. a acidez
demostra, certamente, em minha opiniom, que o ácido úrico tem responsabilidade
polas moléstias e que a Uricedina é mesmo adequada para este fim. Contém 42% de
sulfato de sódio. tomei purgantes de 30 gramas de sulfato de sódio, receitados
polo médico, que me ajudárom apenas durante 12 horas, para além da debilidade
que o purgante causa. Umha colher de café de Uricedina, tomada às 4 da tarde,
garantia-me umha digestom nocturna normal e, portanto, um certo bem-estar. de
resto, acho que os purgantes arruinam os presos que abusam deles com demasiada
freqüência, e até agora evitara-os sempre de maneira sistemática. acreditava
que me beneficiava a cura da uva, mas: 1°, a uva nom podia conseguir-se todos
os dias e 2°, nom é de mesa, mas de vinho; pode lavar-se só daquela maneira;
para comer ½ kg fai falta um dia de trabalho, se se deitarem a pele e as
pevides, e umha vez, por ser esse dia azeda ou por outra razom, deu-me 38,5 de
temperatura. de maneira que decidim nom fadigar-me mais com os muitos remédios
que me deixam pior do que antes e também que me envies a Uricedina: penso que
se combato a uricemia com ela, somado à dieta que sigo agora, poderei, quando
menos, isolar a causa, quer seja a principal ou apenas umha causa secundária.
o teu último postal de
23 de outubro fijo-me sorrir um pouco. dás-me a razom demasiadas vezes e isso
fijo com que pensasse que me julgas excessivamente irritado, ou até amuado e
alporiçado contigo. Porém, como vejo que dis nom lembrar ter-me escrito nada
desagradável, quero citar um trecho da tua carta de 2 de outubro:
«...devo repetir que o
acréscimo feito à tua última [carta], para me fazeres ver que nom era umha
afirmaçom gratuita lembrar que no 28 estivem em turi, durante o Natal, etc.,
[...] sinto-me inclinada a declarar que da minha parte considero esta notícia
um ardil de advogado (mas como pode ser umha notícia um ardil? será verdadeira
ou falsa, nom achas?) e supreende-me só que voltasses ao tema, quando deverias ter
entendido o inoportuno que no fundo é o
tom de pouca sinceridade, que deve
ser usado por vezes para tratar determinados assuntos; portanto, se che
repreendia por ter-me ocultado as tuas verdadeiras condiçons, podes também
estar certa de que independentemente de
todo o que me podas escrever a propósito, neste tema serei sempre da mesma
opiniom».
ora
vejamos: aborrece-che o tom de pouca sincerida-
de. Que quer dizer? a primeira carta que che escrevim, mal
cheguei a Milám no 1927132, foi retida polo juiz instrutor porque
era demasiado sincera: contudo, o juiz dixo-me que nom passaria para os autos,
mas que seria retida por ele a título pessoal. Isso em fevereiro: porém, em
setembro seguinte o advogado militar tei pediu para o juiz instrutor que a
carta constasse nos autos contra mim e, de facto, ela encontra-se no meu
fascículo pessoal do julgamento, com o intercámbio de cartas entre o juiz e o
advogado militar. Podia ter agravado a minha situaçom. Fum «sincero» e nom
recebeche a carta. Foche sempre sincera comigo, penso eu. Mas tenho várias
cartas tuas meio apagadas pola censura carcerária. a tua sincerida-
132 Cfr.
Carta 10, de 12 de fevereiro dirigida a tania e Giulia.
de nom me beneficiou em absoluto, porque o que escrevias
permaneceu desconhecido para mim. Que quer dizer entom «sinceridade» e que quer
dizer que te «aborrece»? também eu me aborreço desde há 5 anos por estar no
cárcere, talvez mais do que tu aborreceche por esta classe de pouca
sinceridade. Querida tania, que significaria isso de que nom podes mudar as
tuas opinions sobre um tema, seja o que ele for? significa que nom há nada mais
sobre o qual escrever, enfim, que é melhor cessar toda forma de
correspondência? em minha opiniom, já estamos bastante atormentados por
aborrecimentos de todo o tipo como para acrescentarmos outros de maneira
recíproca. Quigem só documentar-che os factos. Para além disso, nom estou nem
irritado nem zangado, e acredito mesmo que nom querias ofender-me.
abraço-te com tenrura. antonio
•
(Carta 89)
9 de novembro de 1931 Queridíssima tania,
escrevo-che justo no quinto aniversário do meu
encarceramento. Cinco anos som mesmo um bom lote de anos e ademais, som cinco
anos da idade mais produtiva e mais importante na vida de um homem. de outra
parte, agora passados estám e nom tenho nengumha vontade de fazer um balanço
dos benefícios e das perdas, nem de chorar amargamente pola boa parte da
existência ida para o diabo. No entanto, acho que coincidem largamente com um
período determinado da minha vida fisiológica, isto é, que fôrom necessários
para reduzir o organismo às condiçons carcerárias. o mal-estar que sinto de
três meses a esta parte é, com certeza, o início de um período em que a vida
carcerária se fará sentir mais duramente, como algo sempre atual, que obra
permanentemente para destruir as minhas forças.
Penso que o pacote de
medicinas que me escreves ter enviado chegou já, e que dentro de alguns dias
poderei ter o seu conteúdo. Visto que se renovou o vento do sul, tivem
novamente manifestaçons agudas de dor e aguardo, portanto, ter ao meu dispor
medicinas que ao menos me aliviem. esquecera escrever que me envies novamente
as mortalhas para cigarros. se calhar, surpreendes-te porque consumo tantas
mortalhas, quando che escrevim que reduzira muito o consumo de tabaco; nom há
contradiçom entre os dous factos, antes polo contrário, som estreitamente
dependentes um do outro. apreendim que reduzindo as mortalhas, isto é,
recortando-as em altura e largura, se podem fazer muitos cigarros pequenos
(três em lugar de um) e, portanto, pode fumar-se três vezes um pouquinho, o
suficiente para tirar a necessidade, em lugar de umha única vez, com a mesma
quantidade de tabaco fresco. os presos fumam três vezes o mesmo cigarro
(fumamno por partes) e depois utilizam novamente as beatas; este costume
repugna-me e prefiro a minha soluçom, que exige, contudo, muitas mortalhas,
mais das que se podem comprar com o tabaco e com os fósforos. Para os fósforos
chega a prática carcerária de separar, com umha agulha, cada fósforo em duas
partes, reduplicando-os. Na realidade, desde julho até hoje, nom só me habituei
a fumar apenas 40% do tabaco que fumava antes (imediatamente antes, porque já
reduzira anteriormente) mas acho que tenho a hipótese de fazer outras reduçons.
acho que conseguirei fumar mui pouco, mesmo até deixá-lo completamente, dentro
de algum outro tempo.
Porém, é verdade que o fumar pouco está ligado também ao
grau de intensidade de trabalho intelectual; leio pouco e penso menos, isto é,
nom fago senom poucos esforços intelectuais e por isso podo fumar pouco. Nom me
dou concentrado num tema; sinto-me intelectualmente desfeito, assim como o
estou fisicamente. acho que este estado de cousas vai durar todo o inverno,
quando menos, quer dizer, neste período o meu esforço mal será suficiente para
nom piorar, nom para me recuperar.
No teu último postal
nem me mencionas as tuas condiçons de saúde: nom me escreves se saíche da cama
após a angina. espero bem que sim.
abraço-te com tenrura. antonio
•
(Carta 90)
16 de novembro de 1931 Querida teresina,
obrigado por me teres escrito. Nom recebia notícias desde
havia mais de um mês. aguardo a carta da mae que me anuncias.
se tio Zaccaria133
vinhesse visitar-me, receberei-no com muito prazer, mas acho que nom vai vir.
Há quanto tempo nom o vejo? Já nem me lembro dele. tenho dele lembranças muito
vagas, de quando ele era um moço e eu um rapaz: acho
133 Primo da mae de G.
que agora deve parecer-se muito com o tio achille134,
se calhar um pouco mais civilizado e polido pola vida da cidade, mas nom sei se
tam simpático.
Mas quem pode fazer
hoje o pam na casa? Nossa mae nom; tu também nom, porque terás muito trabalho
no escritório; Grazietta nom se poderá bastar para todo; nom som capaz de
imaginar como é a vossa vida em concreto.
a frase: «Um barco que
sai do porto, bailando com passo escocês, é o mesmo que apanhar um morto e
pagá-lo no fim de mês» nom é umha adivinha, mas umha estranheza sem
significado, que serve para se mofar daqueles tipos que embrulham palavras sem
sentido, julgando que dim quem sabe que cousas profundas e de misterioso
significado. assim acontecia a muitos paisanos da aldeia (lembras o senhor
Camedda?) que para fazer ostentaçom de cultura, apanhavam grandes frases dos
romances populares e depois faziam-nas entrar a torto e a direito na conversa
para pasmar os labregos. da mesma maneira, as beatas repetem o latim das
oraçons contidas no devocionário: lembras que tia Grazia acreditava em que
existira umha «dona Bisodia» mui pia, tanto que o seu nome era sempre repetido
no Pater noster? era a dona nobis hodie que ela, como muitas
outras, lia donna Bisodia e
personificava numha dama do tempo passado, quando todos iam à Igreja, e ainda
havia um pouco de religiom neste mundo.
Poderia-se escrever um
conto sobre esta «dona Bisodia» imaginária que se adotava como modelo: quantas
vezes tia Grazia terá dito para Grazietta, para emma e talvez também para ti:
«ah, é claro que nom és como dona Bisodia!» quando nom queríades ir confessar
pola obriga pascoal. agora tu po-
134 outro primo da mae de
G.
derás
contar aos teus filhos esta história: nom esqueças logo a história da esmolante
de Mogoro, da musca maghedda135
e dos cavalos brancos e pretos que aguardamos tanto tempo.
Querida
teresina, abraço-te afetuosamente. antonio
•
(Carta 91)
30 de novembro de 1931 Queridíssima Iulca,
recebim a tua carta de 13 de novembro. respondera a tua
carta anterior de 13 de agosto, mas a minha resposta perdeu-se. Poderia ter-che
escrito noutras ocasions (desde 1° de julho podo escrever umha carta por semana
em vez de cada 15 dias) mas é preciso que che diga a verdade: cada vez acho
mais difícil escrever-che, cada vez mais difícil e também mais penoso. se eu
tivesse que reler as minhas cartas algumhas semanas mais tarde, penso que ia
sentir um certo desgosto, porque me pareceriam abstratas, fora do tempo e do
espaço, como se fossem o resultado de meia hora de esforço puramente
intelectual e nervoso, de um esforço que me parece obrigado, de ordem burocrático,
diria. Pola tua última carta acho que também tu sentes que há qualquer cousa
que nom presta nesta correspondência nossa irregular, aos poucos, a saltos de
meses e meses. o pior é que nom consigo encontrar a maneira de mudar o curso
das cousas. Nos longos intervalos do teu silêncio reflexiono sobre esta
situaçom que se foi formando, tam diferente do que pensava há cinco anos, após
o meu arresto. acredita-
135 em
sardo «mosca mágica».
va que seria ainda possível umha certa comunhom na nossa
vida, que me ajudarias a nom perder por completo o contato com a vida do mundo;
quando menos com a tua vida e com a das crianças. Porém, considero (e digo-o
mesmo se che causo um grande desgosto), que tés contribuido para agravar o meu
isolamento, fazendo com que o sentisse de maneira mais amarga. tu insistes
amiúde, nas tuas cartas, em que nós «estamos mais fortemente unidos, que somos
mais fortes», mas precisamente é isso o que me parece cada vez mais falso, e
acho que tu mesma o duvidas e luitas com a tua dúvida, no mesmo momento em que
repetes essa afirmaçom. acho que no curso destes cinco anos nos convertemos
cada vez mais em fantasmas, em seres irreais um para o outro. Como podem uns
fantasmas estar mais unidos, e serem mais fortes? Umha vez, há muito tempo,
escrevêrom-me que o teu bolso estava cheio de cartas tuas para mim, começadas e
nom acabadas: este facto afetou-me mais do que qualquer outra cousa, porque o
seu significado nom é agradável. Quer dizer que nom consegues escrever-me, que
há algo que se interpom e che impede comunicar-te comigo. de facto, nom sei
nada de ti: nem sei se retomache a tua atividade laboral. as tuas cartas som
extremamente vagas. Nom som capaz de imaginar nada da tua vida. Muitas vezes
procurei dialogar contigo: levantei questons, indiquei-che aquilo que seria
para mim de sumo interesse. Nom conseguim obter nengum resultado e justamente
entrei neste estado de ánimo polo qual escrever-che é para mim mais difícil e
penoso.
esta
carta é umha nova tentativa que fago para retomar
as nossas vidas; penso que ainda há umha maneira e um
tempo. Com certeza, nom esquecim a Iulca de um tempo; porém, nom consigo
fazê-la reviver na Giulia de hoje; nem dou imaginado a Giulia atual de umha
maneira concreta, de umha maneira viva. Gostaria de poder turvar-te fortemente,
violentamente, mesmo a custo de ser injusto e ruim contigo, mais ainda do que é
a minha vontade. Gostaria de fazer que sentisses a minha ansiedade e a minha
dor.
abraço-te com tenrura antonio
•
(Carta 92)
7 de dezembro de 1931
Querida Iulca,
poucos dias depois de ter-che escrito a última carta, tania
enviou-me a traduçom de umha carta tua para ela. de primeiras, ao ler esta
carta tua, quase me pesou ter-che escrito na maneira em que che escrevim. Mas
pensando-o melhor, concluim que antes que tivera tanta mais razom em escrever
como escrevera. de facto, por que nom informar-me também das tuas condiçons de
saúde? e para além disso, podem sequer estas condiçons explicar ou quando menos
justificar que escrevas tam pouco e que as tuas cartas para mim sejam tam vagas
e abstratas? de outra parte, isso que escreves sobre a tua doutora pode
interpretar-se de maneira extensiva: se ela se alegra quando lhe contas que
tiveche episódios de cólera, de desabafo manifestados em palavras azedas, pode deduzirse
que é útil provocar em ti estes momentos, atormentandote sem descanso. a
personalidade e a vontade som produtos dialéticos de umha luita interior que
pode e deve ser exteriorizada, quando o antagonista é asfixiado internamente
por um processo doentio; seria importante que nesse «tormento» nom houvesse um
tormento abstrato, mas um aguilhom concreto da consciência, mexido e agitado de
maneira racional. a motivaçom racional parece que seria esta: nós estamos
unidos por vínculos nom só de afeto, mas de solidariedade; esses vínculos , por
sua vez, podem ser os mais fortes e reativos? o afeto é um sentimento
espontáneo que nom cria obrigas, porque está fora da esfera da moralidade. Pode
ser suscitado irracionalmente e poderia sê-lo, por exemplo, se eu, pola minha
parte, che escrevesse cartas apaixonadas. Poderia escrevê-las, naturalmente,
com toda a sinceridade, mas nom quero; as minhas cartas som «públicas», nom
reservadas a nós os dous, e a consciência disto obriga-me firmemente a limitar
a explosom dos meus sentimentos, entanto que se exprimem em palavras escritas
nestas cartas. existem, pois, os vínculos de solidariedade, aos quais se pode e
se deve fazer apelo, e agora penso que nunca deveria ter deixado de
atormentar-te neste sentido. teria devido colocar-te amiúde face a um dever teu
objetivo, e digo objetivo precisamente porque depende apenas dos vínculos de
solidariedade. Quero dar-che o exemplo da igreja e da religiom. Para a igreja,
a crença em deus deveria ser para cada homem a fonte de máxima consolaçom e a
base inabálavel da vida moral, mas parece que a igreja nom confia demasiado
nesta inabalabilidade e na firmeza desta consolaçom serena, porque leva os
fieis a criarem instituiçons humanas que venham com meios humanos no auxílio
dos afligidos e lhes impidam duvidar e abalar a sua fé. Parece por consequência
que a igreja mesma entende de maneira implícita que deus nom é outra cousa que
umha metáfora para indicar o conjunto de homens organizados para a ajuda mútua.
Mas se a igreja, organismo espiritualista por excelência, recorre aos meios
humanos para manter viva a fé nas forças sobrenaturais, que deveria dizer-se
dos organismos laicos, realistas por excelência, que nom recorrem aos meios
humanos para se susterem? e de facto nom acontece: acontece que cada um dos
pertencentes a estes organismos descuidam nalgumhas ocasions os seus deveres a
propósito, nom obstante pertençam formalmente a instituiçons especializadas em
ajudar os aflitos, escusando-se, de forma farisaica, com o pensamento de que o
aflito deve ser tam forte como para suster com meios próprios as suas forças
morais. No entanto, mesmo se isso acontecer, e acontece certamente, o dever
cumpre-se por umha única parte e é preciso um chamamento à outra parte.
Naturalmente, eu gostaria de fazer que passasses por um episódio de cólera,
conseguindo assim que fosses louvada pola doutora. Querida Iulca, abraçote
forte.
antonio
•
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