Cartas do Cárcere 124 a 156

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(Carta 124)

14 de novembro de 1932 Queridíssima tania,
recebim esta manhá mesmo o teu vale de dia 11 e agradeçocho de todo coraçom. estava preocupado, porque o teu último postal era de dia 2; para além disso, na última carta escrevias que havias de enviar-me umha fotografia que nom chegou. ainda: em todos estes dias nom recebim correio de ninguém. Nem recebim já as revistas da livraria (se calhar Carlo, estúpido como é, pudo ter avisado que nom figessem mais envios, considerando-me já livre). estava, pois, mui preocupado e isso reforçou em mim um certo modo de pensar, e fijo que me decidisse a escrever-che sobre o tema. Nom deves reparar na estranha aparência do que vou escrever-che e nom deves pensar que sou louco ou irreflexivo, ou irresponsável. Procurarei justificar o meu ponto de vista, na medida em que poda, mas deves partir do conceito que tenho mais outros temas à parte daqueles que vou expor, temas sobre os quais, por razons várias, nom podo falar por escrito e que se calhar nem che mencionaria em pessoa. É difícil começar, mas tentareino. aí vai: soubem há algum tempo que várias mulheres, que tinham o marido no cárcere condenado a longas condenas, considerárom-se livres de qualquer vínculo moral e procurárom construir-se umha vida nova. o facto aconteceu (polo que se conta) por iniciativa unilateral. Pode julgar-se de diferentes maneiras, de diferentes pontos de vista. Pode censurar-se, pode explicar-se e mesmo justificar-se. Pessoalmente, depois de tê-lo pensado, acabei por explicá-lo e também por justificá-lo. Mas se isso acontecesse por acordo bilateral, nom estaria ainda mais justificado? Naturalmente, nom quero dizer que seja umha cousa simples, que se poda fazer sem dor e sem contrastes profundamente esgarradores. Mas, mesmo nestas condiçons, pode ser feito desde que se esteja convencido de que deve ser feito. No fundo, um sente arrepios quando pensa que na índia as mulheres deviam morrer quando morria o marido, e nom se pensa que o facto se verifica, em formas menos imediatamente violentas, também na nossa cultura. Por que um ser vivo deve ficar ligado a um morto, ou quase? Parece-me que a geraçom com os princípios morais assentes antes da guerra pensa estes assuntos com umha velha mentalidade e que a nova geraçom, mais rápida nas suas decisons e menos estorvada por sentimentos de um tipo determinado, tem a razom. Como digo, a cousa nom é simples; é preciso umha rasgadura violenta, umha dolorosa laceraçom, é preciso prever, depois da decisom, um certo período de remorsos, de arrependimentos, umha oscilaçom, mas no fundo pode prever-se que poda ser superado e que poda ser criada umha nova vida. exponho-che a questom, tem a certeza, com muita persuasom, para que lho comuniques a Giulia, ou bem que me aconselhes comunicar-lho eu diretamente. É umha cousa mui, mui seria; penso nisto desde há muito tempo, se calhar desde o primeiro dia em que fum detido, e de diversas formas; primeiro como brincadeira e depois com maior seriedade e aprofundamentos. Pensei também que podia parecer um gesto mui romántico. Pensei mesmo que podia parecer até umha pilharia, umha espécie de chantagem sentimental (como dizer? ofereço-che isto de propósito, para esmagar-te com a minha magnanimidade e te vejas obrigada a rejeitar) — pensei, enfim, que a melhor maneira deveria ser a de pôr em prática a cousa sem dúvidas, de maneira unilateral, rompendo qualquer relaçom, criando de maneira unilateral um facto consumado. este último caso atormentou-me muito, mas nom fum nem serei nunca capaz de enfrentá-lo. resolvida assim a relaçom, Giulia teria um duplo gravame, porque perderia qualquer estima por mim (o que nom seria sem consequências sobre a estima que ela deve ter por si própria) sem evitar a dor. a dor nom pode evitar-se, mas pode limitar-se e podem limitar-se outras consequências de caráter moral e intelectual. É necessário que a iniciativa parta de mim, isso é certo; que nom se oculte a consequëncia necessária disto, para enfrentá-la com todas as próprias forças. Penso que Giulia, mesmo nom sendo já umha mocinha, pode sentir-se à vontade para começar umha nova fase da sua vida. seja como for, ela pode dar, de forma violenta, até mesmo, um novo rumo à sua existência. e toda umha série de questons coordenadas seriam resolvidas. eu entraria novamente na minha «concha sarda». Nom quero dizer que nom sofreria. Mas cada dia que passa fai com que me sinta mais insensível e adaptável. Poderia suportá-lo. Habituaria-me. Já reduzim em grande medida a «carcerite», e nos últimos dias percebim que estou, deste ponto de vista, melhor do que pensava. de resto, nom perdim ainda demasiada sensibilidade para nom ser capaz ainda de compreender certas cousas. se calhar, dentro de um ano hei de estar completamente mudado, e nom terei a capacidade de sentir o que hoje ainda sinto, caindo no egoísmo mais grosseiro e animalesco. tu deves ter, neste caso, umha grande força de ánimo e deves ser absolutamente imparcial. deves pensar mui friamente isto que che escrevim, pensando no porvir de Giulia e na sua vida. Nom sei o que decidirás fazer. aviso-te que nom vou escrever para Giulia antes de ter recebido umha resposta tua. sei que che imponho umha grave responsabilidade, mas tenho a certeza de que podes assumi-la. Podes escrever para Giulia diretamente, ou comunicar-lhe esta carta minha de forma integral ou em parte. antonio

(Carta 125)

5 de dezembro de 1932 Queridíssima tania, recebim o teu postal de 30 de novembro e a carta de dia 2. sinto muito que estivesses doente e que ainda nom te repugesses. Mas por que nom mo mencionache? doi pensar que, nom sabendo do teu mal, pudesse ter contribuído (como certamente aconteceu) para te tornar mais nervosa e preocupada, para agravar consequentemente o próprio mal. Penso que dis a verdade quando dis que já estás melhor, é por isso que che escrevo certas cousas. seja como for, deves convencer-te mesmo de que ocultar-me certos factos é pior que anunciálos de repente; criam-se complicaçons que aumentam o pesar e deixam umha pegada permanente de dúvida angustiosa a causa de outras cousas ainda desconhecidas e novos pesares ocupam a cabeça.
Querida tania, pido-che de todo coraçom que nom queiras discutir, analisar nem procures confutar a minha carta de 14 de novembro177. Pareceria-me que som viviseccionado como umha cobaia. entendo mui bem que podes retrucar cada ponto dela, como dous e dous som quatro. Mas pido-che que acredites que também eu sei as quatro operaçons e a tábua pitagórica. Nom se trata entom da maior ou menor facilidade para encontrares argumentos contrários aos meus. Nem se trata de que eu necessite expressons afetuosas, de ser consolado ou de ser acariciado. estas cousas som lindas e boas, mas neste caso concreto está fora de lugar e pareceriam (devo dizêlo francamente) convencionais, como um cumprimento por obrigaçom. Pido-che por isso que nom entres em discussons.
177     Cfr. Carta 124.
Umha única cousa deves responder-me: estás disposta a tornar-te intérprete ante Giulia sobre o que che escrevim, ou tê-lo por impossível? Um sim ou um nom, eis o que desejo saber. Qualquer cousa parecida com umha discussom desgostariame imensamente. trata-se de umha operaçom cirúrgica, em certo sentido de umha decapitaçom, e justifica-se somente se for realizada com um corte neto, decidido; de outra maneira converteria-se numha tortura chinesa. teria desejado que me tivesses respondido depressa; nom o pudeche fazer. Paciência. Porém, nom deves revolver agora o punhal na ferida.
Permite que che diga umha verdade dolorosa. amiúde, quem quer consolar, ser afetuoso etc., é na realidade o mais feroz dos torturadores. também no «afeto» é preciso ser sobretudo «inteligente». em breve estaremos no 1933; começou já umha nova fase da minha vida carcerária. Pois bem, é preciso que che fale mesmo com franqueza. Visto que nem sequer ponho em dúvida o teu afeto por mim (é esta umha premissa sempre presente no meu espírito, mesmo quando a menciono e acho inútil fazê-lo, como o seria estar a lembrar sempre que minha mae ou Giulia me querem) e já penso que a minha carta de 14 de nov. vai ficar, para já, sem consequências decisivas, quero-che dizer que também a tua atitude deve mudar nalguns pontos. acredita que nom quero fazer recriminaçons (que seriam estúpidas), mas quero fazer que lembres um episódio de há alguns anos, que se calhar esqueceche e sobre o qual penso que nom refletiche avondo como para tirar dele umha norma de conduta. Lembras que no 1928, quando estava no cárcere judiciário de Milám, recebim umha carta de um «amigo» que estava no estrangeiro? Lembras que che falei dessa carta tam «estranha» e que che contei que o juiz instrutor, assim que ma entregou, acrescentou de maneira literal: «honorável Gramsci, tem amigos que desejam certamente que fique um pedaço na cadeia»?178. tu mesma me contache outro juízo emitido sobre esta mesma carta, juízo que culminava com o adjetivo «criminal». Pois bem, esta carta era extremamente «afetuosa» ao meu respeito, parecia escrita pola solicitude impaciente de me «consolar», de me encorajar etc. Contudo, quer o juízo do juiz instrutor quer o outro de que che falei, eram objetivamente exatos. Portanto, pode cometer-se um ato criminal querendo fazer bem, pode alguém, querendo-che fazer bem, ter reforçado em troca as tuas cadeias? Parece que sim, em opiniom do juiz instrutor do tribunal Militar territorial de Milám, opiniom que, como che consta, coincidiu com a de outro que está nos antípodas. e justamente, porque, lendome alguns trechos da carta, o juiz fijo-me observar que ela podia ser (à parte do resto) mesmo catastrófica para mim, de maneira imediata, e isso nom era somente porque nom queria encarniçar-se, porque se preferia deixá-lo correr. tratou-se de um ato perverso, ou de umha ligeireza irresponsável? É difícil dizê-lo. Pode ser um e outro caso ao mesmo tempo; pode ser que quem escreveu fosse apenas irresponsavelmente estúpido, e algum outro, menos estúpido, o induzisse a escrever. Mas é inútil romper-se a cabeça com questons assim. Fica o feito objetivo, que tem o seu significado.
Querida tania dixem-che que começou umha terceira fase da minha vida de preso. a primeira fase foi do meu ar-
178     trata-se de umha carta escrita polo dirigente comunista ruggero Grieco, desde Moscovo, no dia 10 de fevereiro de 1928. Griego informava assim a Gramsci (e mandava cartas análogas a terracini e a scoccimarro) da luita em curso no grupo dirigente soviético e do seu resultado. G. foi mui prejudicado por aquela iniciativa, que podia comprometer posteriormente a sorte dos detidos comunistas italianos à espera de julgamento, já que nela era exaltada a sua figura de dirigentes de primeiro plano. Cfr. o texto da carta de Griego citada em Rinascita, n.32, 9 de agosto de 1968.
resto até a chegada daquela célebre carta: até esse momento existiam probabilidades (com certeza, somente probabilidades, mas que mais se pode pedir) de umha mudança na vida, mas diferente daquela que se verificou depois; as probabilidades fôrom destruídas, e ainda podia ter passado algo pior. a segunda fase vai daquele momento a começos do novembro passado. existiam ainda possibilidades (já nom probabilidades, apenas possibilidades, mas sei que as possibilidades nom som também preciosas e sei que nom é preciso tentar agarrálas?) e também elas fôrom perdidas, asseguro-cho, nom pola minha culpa, mas porque nom se quijo dar ouvidos ao que indicara no tempo oportuno. Isto devo-lho a Carlo e à sua estupidez fátua (nom me refiro ao telegrama, que é umha estupidez menor). Mas por que nom vinheche a turi no 1932, como prometeras em começos de janeiro? se nom o tivesses prometido e eu nom tivesse contado com a promessa, teriache escrito que vinhesses. dixem-che que nom quero fazer recriminaçons. somente quero que o passado sirva polo menos de liçom para este terceiro período, para que nom se repitam os erros, as faltas do passado. esta terceira fase que começa é a mais dura e a mais difícil de superar. É por isso que che pido que nom fagas nada sem o meu consenso, nom escuites nengum conselho relativo a mim, fai só e «literalmente» o que eu che poda indicar.
Com esta longa ladainha minha quigem incutir em ti esta convicçom: que nom chegam as boas e afetuosas intençons, mas que é preciso muitas outras cousas antes de tomar umha decisom que nom seja somente relativa a nós mesmos: antes de mais, é preciso o consenso explícito do interessado sobre o que pesarám as consequências desastrosas que nem sempre se sabe prever. abraço-te antonio

(Carta 126)

19 de dezembro de 1932 Queridíssima Iulca,
recebim a tua carta de dia 2. Polo que me escreve tania, parece que nom recebeche algumhas cartas minhas (por exemplo, umha dirigida a delio). Nom me desgosta demasiado, a dizer verdade, que se extravie algumha; mas infelizmente isto só pode acontecer de forma casual e nom de umha forma acaída, é claro. o que quero dizer é que depois de escrever algumhas cartas sinto mesmo vergonha, porque percebo que adotei um tom pedante, que muitas vezes che parecerá cómico. Isto explica-se por muitas circunstáncias ligadas às minhas condiçons de vida, a alguns acontecimentos dos passados anos e também polo feito de haver nas tuas cartas poucas ideias que suscitem umha resposta. És demasiado abstrata e genérica, enquanto eu necessitaria maior concreçom. Perdim muita capacidade para imaginar, perdim a maior parte dos contatos com o corrente da vida real; as minhas lembranças, embora vivazes, tenhem seis anos mais e quanto nom terá mudado nestes seis anos? Nom podo senom ser «anacrónico» em tudo; e por isso, como acontece sempre, refugio-me na pedanteria, em ser um pregador, porque com certeza quero dizer algo e fingir que che ajudo, mas sem que poda ajudar-che de facto a superar a fase atual da tua existência, que me parece própria de umha convalescente, que fai mil projetos de atividade e que nom sabe por onde começar. Isso fai-me acreditar que também em ti há algo anacrónico, que também a ti, mesmo que seja de umha maneira mui diferente da minha, che aconteceu que durante alguns anos ficache nas margens da corrente vital e nom sabes como mergulhar nela de novo (ou pensas que nom sabes e nem percebes, se calhar, que desde há um tempo voltache a trabalhar). Umha vez aconselhei-che que retomasses a música, como eu voltaria aos meus estudos de Filologia. Visto que o estudo da música foi o ponto de partida das tuas experiências, pensava que tornando a ele reviverias o passado com umha maior consciência crítica, e retomarias as etapas da tua existência, nom para repeti-las de umha maneira mecánica, mas para percorrê-las outra vez com intensidade e para verificar o elo quebrado da cadeia (caso houvesse um elo quebrado). Neste sentido, nom sei se compreendeche o meu conselho, ou se viche nele apenas um conselho dirigido a dar um conteúdo qualquer a isso que tu chamas o «estado de inércia» em que te encontras desde há demasiado tempo. Muitas vezes acontece que ao voltar às próprias experiências passadas, com todo o enriquecimento posterior, fam-se descobertas interessantes e um repara em que se tem desviado levemente da linha que teria permitido um maior despregamento das próprias forças, e portanto um maior contributo para colaborar no desenvolvimento das forças históricas vitais. Mas o leve desvio inicial chegou a ser cada vez maior e mortificou a própria personalidade; retificá-la poderia significar umha recuperaçom mais normal, mais proveitosa, mais rica em valores. Como vês, mesmo estas som observaçons abstratas, necessariamente genéricas. Informa-me entom de maneira exata sobre a tua nova tentativa de cura. estou contente de que as crianças ficassem este outono imunes às doenças sazonais e estou contente também... de que escrevesses com a minha caneta-tinteiro. (Mas leva em conta que é preciso enchê-la com a tinta fluida das estilográficas e nom com a corrente, que fai pouso e entope os canais de escoamento). abraço-te, querida, junto aos nossos filhos.
antonio

(Carta 127)

2 de janeiro de 1933 Queridíssima tania,
recebim há pouco a tua carta e o postal dos últimos dias do ano. agradeço-che os parabéns e retribuo-os, acrescentando mais outros para a tua festa de 12 de janeiro; lembrei a tempo que santa tatiana é o 12 de janeiro. estou contente das tuas garantias a propósito do prof. arcangeli. É possível que eu tenha acima de mim algo de espírito de perseguiçom, mas a tua mofa nom me parece mui justa, porque sofrim muito e ficoume um nervosismo que nom dou superado. escrevim-che dessa maneira porque me comunicárom que a tua instáncia fora acolhida favoravelmente, isto é, permitiu-se que o prof. arcangeli me visite. Visto que devêrom comunicar-che o mesmo há algum tempo (assim o pensei eu polo menos, dado que a instáncia era tua) e tu nunca o mencionache, véu-me umha certa inquietaçom e a dúvida de que quigesses dar-me umha surpresa que teria sido mui desagradável.
Nunca che escrevim que me marcasses «a mim» umha data para umha chegada tua a turi; somente che escrevim que nom aludisses de maneira vaga à possibilidade, senom que falasses dela só quando te decidisses de maneira concreta. Igualmente, penso que nom tés razom a propósito das tuas informaçons sobre o decreto de amnistia e indulto179. escreveche-me sobre isto aos poucos, em três partes. a primeira vez dixeche que estiveras no tribunal especial, mas escrevias de um maneira curiosa; dizias que a minha hipótese mais fa-
179 Por ocasiom do «décimo aniversário» do regime fascista fôrom promulgadas disposiçons de amnistia e perdom, estendidos aos condenados políticos. em base a tais disposiçons, a condena de G. foi reduzida a 12 anos e 4 messes.
vorável se verificara, ou melhor, dizias que te «orgulhavas» de que me tivesse mostrado tam «inteligente», enquanto a realidade era bem diferente, já que em vez de 5 anos (a minha hipótese mais favorável) restavam-me por descontar 6 anos e 4 messes. a segunda vez, seguindo umha ordem tua de ideias que me era desconhecida, figeche alusons incompreensíveis em si mesmas. Finalmente, expugeche em terceiro lugar umha análise detalhada, que nom se apresentava contudo como objetiva, mas em contraste com as minhas cartas anteriores. em conclusom, nom compreendim nada, exceto que a condena foi reduzida a 12 anos e 4 messes, a saber, que devo descontar ainda 6 anos, 4 messes e 17 dias. entendo que isso nom demostra pola minha parte essa inteligência de que te orgulhavas, mas contudo é a verdade nua e crua, a minha grande vergonha e desonra. refletindo nestas cartas tuas e na maneira bem artística e original com que dás as informaçons, acabei por admirar o estilo burocrático, na sua sóbria aridez e no seu formalismo pedante: —objeto: tal— Comunica-se que etc. etc. 1°, 2°, 3°, etc.
asseguro-che que aguardei a meia-noite de 31 de dezem-
bro para ter a impressom de entrar no ano novo. o ano velho nom estivo precisamente cheio de lembranças agradáveis para mim; foi o ano mais feio que passei no cárcere. Nem sequer o ano novo se apresentava com perspectivas aliciantes. se o ano 32 foi feio, parece-me que o 33 vai ser pior. estou consumido e ao mesmo tempo os pesares vam aumentando; a relaçom entre as forças disponíveis e o esforço para aguentar piorou ainda. todavia, nom estou desmoralizado; ao contrário, a minha vontade tira o alimento precisamente do realismo com que analiso os elementos da minha existência e resistência.
abraço-te afetuosamente antonio
a propósito do prof. arcangeli quero que te convenças de que nom excluo (ao contrário) umha visita sua, mas só desejo escolher o momento mais oportuno e útil. Por isso informa-me com exatitude da resposta que dérom à tua instáncia.

(Carta 128)

16 de janeiro de 1933 Queridíssima Iulca,
desde há um tempo nom recebo cartas tuas (a última tinha a data de 2 de dezembro). antes de ontem tivem umha conversa com a tania, que véu visitar-me; nom nos víamos desde havia dous anos e meio. Como podes imaginar, isto alegrou-me muito e rompeu a terrível monotonia da minha vida.
em passados dias lim por acaso alguns trechos de um «diário» juvenil de Cesare Lombroso e encontrei nele algumha ideia que tem a ver com o que observache a propósito de Giuliano e do seu olhar-se no espelho. escreve Lombroso: «Lembro mui bem a época em que me vim no espelho e reparei na minha presença — acordou-me a mais viva curiosidade. tinha entre quatro e seis anos». Lombroso distingue na sua vida juvenil a época em que reparou na sua existência como pessoa física e aquela em que reparou na sua pessoa psíquica (polos dezasseis anos) e parece-me que a distinçom é justa e que tem a sua importáncia. Nom achas que também no caso de Giuliano se trata de um feito análogo? Quer dizer, que ele começou a pensar na sua existência, na sua personalidade, de umha maneira mais concreta e que isso o empurra a olhar-se de tanto em tanto no espelho, quase para ter a certeza que é o mesmo ou para ver se mudou nalgo? observache algumha vez como as pessoas maiores nom conseguem lembrar já que fôrom crianças e que por consequëncia compreendem dificilmente a maneira de pensar e as reaçons que se dam nas psiques das crianças com quem devem tratar? É por isso, nem sempre conseguem aperceber-se de determinadas atitudes das crianças. se calhar, torna-o mais complicado ainda a diferença dos sexos; a saber, umha mae compreende pior os filhos e vice-versa. escreve-me algo a este propósito; é algo que me interessa muito. — tania dixo-me que seria bem que che escreva algumhas cousas das modificaçons acontecidas na minha posiçom «jurídico-carcerária», após o decreto de amnistia e indulto do passado novembro. eis do que se trata: antes deste decreto, tinha que descontar ainda treze anos de cárcere (a partir do 19 deste mês); após o decreto este tempo diminuiu de forma notável. Nom tivem ainda nengumha comunicaçom oficial a respeito; porém, parece que o prazo se reduziu a seis anos e quatro messes, embora a minha opiniom é que, nos termos da lei com que fum condenado, ele deve reduzir-se a cinco anos e quatro messes. seja como for, a cousa que pode ser interessante é esta: que quando um chega a encontrar-se nestas condiçons gerais (mais precisamente, quando, além das outras condiçons, deve descontar nom mais de cinco anos) pode fazer a petiçom (se tiver o direito abstrato para o fazer) de liberdade condicional, quer dizer, umha condiçom de liberdade vigilada pola polícia. Nom sei se isto tudo pode interessar-che muito. eu penso assim: que da mesma maneira que umha pessoa normal nom pode fazer projetos e perspetivas para além dos três anos, qualquer limite de tempo que supere os três anos na prática equivale ao infinito. Mas talvez exagere e os seis anos de cárcere já descontados contribuírom para me envilecer, para me limitar os horizontes. seja como for, os factos objetivos som tal como che escrevim. Pode ser também que eles acabem por serem mais importantes do que eu poda pensar, já que no porvir se pode pensar que as probabilidades favoráveis e as desfavoráveis estám em equilíbrio. Queridíssima Iulca, abraço-te forte forte. antonio

(Carta 129)

30 de janeiro de 1933 Queridíssima Iulca,
recebim umha carta tua bastante comprida. Que Giuliano propugera mandar-me o primeiro dente de leite que perdeu agradou-me muito: parece-me que este gesto mostra de maneira concreta como ele sente um vínculo real entre nós. se calhar, terias feito bem em enviar-me de verdade o dente, de maneira que esta impressom se tivesse fortalecido ainda mais no seu ánimo. as notícias que me envias sobre as crianças interessam-me enormemente. Nom sei se as minhas observaçons som sempre adequadas; se calhar nom, porque, apesar de tudo, o meu juízo só pode ser unilateral. tania transcreveume umha carta tua para ela. Penso que tu, ao escrever-me, evitas dizer-me muitas cousas, se calhar por temor a entristeceres-me, dadas as minhas condiçons como preso. acho que deves convencer-te de que podes ter comigo toda a franqueza possível e nom ocultar-me nada; por que nom deveria haver entre nós o máximo de confidência sobre tudo? achas que é melhor nom saber, duvidar se se me oculta algo e nom estar portanto nunca certo de que a minha atitude é justa? Querida Iulca, deves mesmo escrever-me sobre ti e sobre as tuas condiçons de saúde com toda a precisom possível, sem duvidares polo temor de que caia na depressom. só me poderia deprimir saber que nom luitas por melhorar, por recuperares as forças, e nom creio que seja assim. embora o porvir seja ainda obscuro, nom por isso é necessário relaxar-se. eu atravessei muitos momentos maus, sentim-me muitas vezes fisicamente débil e quase extenuado, mas nunca cedim à debilidade física e, por quanto é possível dizer que nestas cousas, nom penso que vaia ceder tampouco de agora em diante. Contudo, podo ajudarme bem pouco. Quanto mais me dou conta que devo atravessar maus momentos, que som débil, que vejo agravar-se as dificuldades, tanto mais me endureço, tensando todas as minhas forças de vontade. algumhas vezes recapitulo estes anos passados, penso no passado e parece-me que se me tivessem anunciado há seis anos que tinha que passar polo que passei, nom o teria crido possível, teria pensado que me romperia a cada momento. Precisamente há seis anos, passei —adivinhalo?— por ravisindoli, no abruzzo180, que mencionache algumha vez, por teres estado ali em férias, no verao. Passei por ali num vagom de metal fechado que estivera toda a noite baixo a neve e eu nom tinha nem gabardina, nem camisola de lá e nem sequer podia mover-me, dado que era preciso estar sentados pola falta de espaço. tremia todo como se tivesse febre, batia os dentes, e parecia-me que nom seria capaz de acabar a viagem porque se me congelaria o coraçom. Porém, desde entom passárom seis anos e dei-me tirado de cima das costas aquele frio de frigorífero, e se algumha vez me voltam aqueles calafrios (que me ficárom um pouco nos ossos) ponho-me a rir, lembrando o que pensava entom e que parecem puerilidades. em soma, a tua carta a tania pareceu-me demasiado me-
180 durante a transferência de Útica para Milám, em janeiro-fevereiro de 1927.
lancólica e tétrica. Penso que também tu és bem mais forte do que tu mesma nom pensas e que por isso deves ainda curtirte, e entesar-te toda para superar a crise pola qual passache, de maneira decisiva. Querida, eu gostava de te ajudar, mas amiúde penso que no passado, por nom saber exatamente como estavas, pudem ter contribuído polo contrário para fazer com que te desesperasses ainda mais. escreve-me amiúde; obrigate a ti mesma e escreve-me mais amiúde. Manda também a delio e a Giuliano que me escrevam. sobre delio lim umha carta de Genia a tania da qual, na verdade, gostei pouco. depois de ter lido essa carta, o que escreves a propósito da mestra de delio, e dos seus erros de avaliaçom, nom me parece mui convincente. Parece-me que delio vive numha atmosfera ideológica um pouco doentia e bizantina, que nom o ajuda a ser enérgico, que antes o enerva e debilita. Quero escrever ainda para delio algumha história de animais, mas tenho medo de repetir cousas já escritas, porque agora esqueço as cousas mui facilmente. abraço-te forte forte, querida. antonio

(Carta 130)

13 de fevereiro de 1933 Queridíssima tania,
recebim duas cartas tuas e o Quadro Nox. teria querido dedicar esta carta toda a responder a tua de dia 3, porque me fijo pensar muito e me convenceu de que devo ser contigo muito mais franco (ou talvez seja melhor dizer «muito mais exato») do que talvez fosse até agora, mas a tua de dia 10, polo seu caráter concreto, penso que exige umha resposta imediata. o que me escreveche a propósito da minha posiçom jurídica e da proposta da instáncia para fazer ao tribunal especial interessou-me muito, como podes imaginar181. Vou-che fazer ainda alguns comentários, para serem examinados polo advogado Piero e por aqueles que segundo a tua opiniom podem ocupar-se do meu assunto, com estas condiçons. sei bem que nom entendo nada destas cousas e podo enganar-me facilmente; os comentários que fago nom derivam da «sabedoria jurídica», mas de analogias com factos chegados ao meu conhecimento ou de juízos expressados por homens que eu julgava competentes. Porém, comprovei que realmente existe um «mistério do cúmulo jurídico», já que escuitei que mesmo entre os advogados que se ocupárom do processo existiam juízos díspares. se me tivesses citado os artigos do Código Zanardelli que fam referência a este «mistério», e que eu nom lembro, teria-me desaparecido qualquer dúvida; mas nom dei entendido como nem sequer esta vez —apesar de teres afirmado há algumhas semanas que transcreveras o texto— considerache oportuno copiá-los e desta maneira pores fim à questom. sabes? Vem-me à cabeça umha anedota e quero contar-cha porque é divertida (porém, nom deves ofender-te). Há muitos anos promulgou-se unha lei sobre os campo-santos (que obrigava os Municípios a manterem os cemitérios a nom menos de 500 metros da povoaçom) e o Ministério da administraçom Interna enviou umha circular a todos os Presidentes de Cámara, perguntando a que distáncia da povoaçom do Município estava o cemitério. o Presidente da Cámara de Maracalagonis, que se figera célebre também por outros feitos, respondeu que
181 Piero sraffa empregou-se para que se concedesse a G. a liberdade condicional: petiçom contemplada polo Código Civil para os condenados que tivessem descontado já mais de metade da condena.
o cemitério distava da povoaçom um tiro de espingarda. réplica do Ministério, que pede maior precisom e nova resposta: o cemitério dista um tiro de pedra lançada por umha mao destra. o Ministério replica ainda e obtém umha nova resposta: dous voos de perdizes em idade madura, e assim a seguir. assim me parece esta questom do cúmulo jurídico segundo o Código Zanardelli. repito, nom som competente, mas reparei em que o Código Zanardelli, a diferença do novo Código, quando existe coincidência de penas na mesma condena (e nom só na mesma condena), o «cúmulo» indicava um jeito de cálculo polo qual a pena total seria sempre inferior à soma das diferentes penas (o que se entende como depois da homogeneizaçom das penas mesmas). No meu caso particular, as seis penas da condena somavam dezoito anos e oito messes de reclusom, e doze anos e dez messes de detençom; reduzida a detençom na reclusom (os doze anos e dez messes convertemse em quatro anos, três messes e dez dias) a soma teria sido de vinte três anos, um mês e dez dias, mas polo cúmulo foi de vinte anos, quatro messes e cinco dias. Como aconteceu isto nom o sei, mas aconteceu, e isso fai-me acreditar que realmente existe umha lei do cúmulo; é possível que no meu caso específico esta lei nom seja aplicável, nom o excluo, mas pola tua carta nom o parece. Como che escrevim outras vezes, lim um despacho do tribunal de apelaçom de Florença; tratava-se de um detido que com sentenças diferentes tivera duas condenas, umha a reclusom comum e umha a reclusom militar. No despacho, após a aplicaçom do indulto, calculara-se a pena total assim: 1° reduçom da reclusom militar a reclusom comum, isto é, diminuiçom de um quinto da reclusom militar, 2° passagem ao cúmulo, polo qual a reclusom militar reduzida a um quinto dividia-se ainda pola metade (por exemplo, dez anos de reclusom comum e cinco anos de reclusom militar dam um cúmulo de doze anos). este exemplo, tanto mais expressivo na medida em que se trata de duas condenas diferentes, fai-me acreditar que o advogado Piero nom aprofundou suficientemente no «mistério». Um outro ponto da tua carta que me fai pensar que fum mal entendido é este: eu dixem que pensava que no meu caso se aplicara a norma do novo Código polo cômputo do indulto devido às núpcias do príncipe herdeiro, já que de outra maneira a pena para descontar teria sido ainda maior, porque sendo excluído nesse decreto de indulto o artigo 252 do benefício, com a aplicaçom das normas do velho Código, teria-me beneficiado apenas de quatro messes (um ano de detençom dividido por três) e nom de um ano, quer dizer, em vez de doze anos e quatro messes teria que descontar ainda treze anos e dous messes. Mas vejo que a questom se complica cada vez mais. Parece-me que para estar convencido é necessário ter diante o texto dos artigos 68, 69 e 75 do Código Zanardelli. depois de ler estes artigos e convencer-me de que nom devo fazer nengumha instáncia de revisom neste terreno da aplicaçom do decreto de amnistia, poderá-se falar em realizar a proposta que me fás em nome do advogado. em linhas gerais, concordo e dou a minha autorizaçom para que o processo se inicie. acho mesmo que é melhor que o processo o assuma directamente o advogado e nom eu; tanto melhor se fosse possível alegar nele o parecer de um professor de direito Penal. No entanto, nom sei o que significa «autorizaçom», isto é, nom sei se é necessária umha autorizaçom legal, ou seja, umha procuradoria.
Queridíssima, confesso-che que todos estes processos nom me inspiram muita confiança, quer dizer, nom acredito que se poda obter algo positivo. Por que os consinto entom? É o que gostaria de ter-che escrito com maior amplitude em resposta à tua carta de dia 3, que, reconheço-o, é objetivamente mui justa em muitos aspectos; é verdade. entrei, desde há algum tempo, desde há cerca de um ano e meio, numha fase da vida que, sem exageros, podo definir como catastrófica. Já nom consigo reagir ao mal físico, e sinto que as forças me falham cada vez mais. de resto, nom quero abandonar-me à corrente, isto é, nom quero desleixar nada que, mesmo de umha maneira abstrata, poda oferecer umha hipótese para pôr fim a este sofrimento. Parece-me que se desleixasse algo, isso num certo sentido, equivaleria a um suicídio. Cheguei a estar cheio de contradiçons, é verdade, mas nom até o ponto de nom compreender estas cousas elementares. Nom penses que exagere, e sobretudo nom penses que as minhas condiçons se devem a causas psíquicas. É claro que os reflexos psíquicos existem, e nalguns momentos parece que enlouqueço, mas as causas som essencialmente físicas, já que as minhas forças estám esgotadas. digo-che isto porque entendo que necessito também a tua indulgência: certas vezes devo alporizar-te com as minhas maneiras e as minhas pretensons. e digo-cho porque quero que tenhas umha imagem neta da gravidade das minhas condiçons e que isso che induza, na medida das tuas possibilidades, a nom desleixares nada do que temos falado durante a conversa. Pola tua carta parece que tiveche a possibilidade de ver rapidamente o advogado Piero: isso pujo-me mui contente. Querida tania, em ocasions parece-me que torno a ser outra vez umha criança; teria vontade de chorar, tam esgotado me sinto, e tenho medo de acabar delirando. Nom pensava que o físico pudesse levar tanta vantagem sobre as forças morais, nem contara antes demasiado com as minhas forças. Para além disso, nom deves impressionar-te em excesso: já nom podo ocultar mais este estado de cousas. asseguroche que o que ainda me dá um pouco de forças é a noçom que tenho das responsabilidades com respeito a Iulca e aos nossos filhos; de outra maneira nem luitaria, de tam pesada e odiosa que chegou a ser para mim a vida.
abraço-te com tenrura antonio
relim a carta e percebim a puerilidade da minha insistência no cálculo do cúmulo. apesar de que pida ainda, para a minha satisfaçom, que me fagas chegar o texto dos artigos relativos, é evidente que por este lado nom há nada que fazer. Por isso podes autorizar o advogado para fazer o processo proposto, assim que o considerar oportuno, visto que chega com esta forma de autorizaçom. e agradece-lho muito da minha parte. também nom che agradecim o Quadro Nox. Queridíssima, pido-che que sejas mesmo indulgente comigo. antonio

(Carta 131)

27 de fevereiro de 1933 Queridíssima tania,
acho é inútil, depois do que dixem pessoalmente, repetir as habituais ladainhas sobre as minhas moléstias físicas. Penso que, nas condiçons em que se desenvolve o nosso diálogo, cada prolongaçom, em lugar de fornecer elementos de clareza, fornece apenas elementos de confusom. Porém, quero falar um pouco da minha situaçom moral, por assim dizer, isto é, da soma de sentimentos que me ocupam normalmente e daqueles que sobranceiam de maneira especial entre os outros e dam um aspeto geral. Penso que podo assegurar que, polo menos até agora, o elemento psíquico nom determina o físico, e nem sequer à inversa; porém, é verdade que em determinadas condiçons físicas, certos sentimentos fam-se mais imperiosos e chegam por vezes a ser obsessivos. É por isso que, pode dizer-se que quando o curso dos pensamentos assume umha certa direçom, ou se intensifica nessa direçom, corresponde com umha determinada situaçom física e indica um agravamento dela. No meu caso particular, é certo que em todos estes anos pensei sempre em certos factos (especificamente, na série de factos que podem ser resumidos simbolicamente na famosa carta de que me falava o juíz instrutor em Milám e sobre a qual conversei também recentemente contigo182), mas é certo também que nestes últimos messes estes pensamentos vinhérom, por assim dizer, intensificando-se, se calhar porque diminuía a minha confiança em poder esclarecê-los pessoalmente, em poder ocupar-me deles «filologicamente», remontando-me às fontes e chegar a umha explicaçom plausível deles. o que hoje che quero dizer é isto: que a esta série de factos ligo as manifestaçons da minha relaçom com Iulca. Quer dizer, que a esta série de preocupaçons estavam ligadas certas cartas que che escrevim há muito tempo e que se calhar nom esqueceche, até a última, que tu por vezes chamas de «célebre» e que nom está mui afastada no tempo. seja como for, inclusivamente hoje estou convencido de que nas minhas relaçons com Iulca existe um certo equívoco, um duplo fundo, umha ambigüidade que impede ver claro e sermos completamente francos: a minha impressom é que me mantenhem à parte, que represento, por assim dizer, «um processo burocrático» para arquivar, e mais nada. olha que eu som o primeiro que estou convencido de ter cometido erros, mas a impressom
182 Cfr. Carta 125.
é que nom se trata destes erros, mas sim de outra cousa que me foge e nom dou identificado de maneira precisa. de resto, como bem podes imaginar, embora viva no cárcere, isolado de qualquer fonte de comunicaçom, direta e indireta, alguns elementos de juízo e de reflexom chegam-me de todas formas. Chegam de maneira puntual, irregular, em longos intervalos —como nom pode deixar de acontecer— através dos discursos ingénuos daqueles que ouço falar, ou fago falar, e que de tanto em tanto levam o eco de outros ambientes, de outras vozes, de outros juízos, etc. Nom perdim ainda as qualidades de crítica «filológica»: sei discernir, distinguir, integrar, atenuar os exageros conscientes, etc. Podo cometer algum erro em geral —estou disposto a admiti-lo—, mas nom decisivo, capaz de dar umha direçom diferente ao curso dos meus pensamentos. de resto, nom vejo oportuno escrever-che outras cousas. Conheces a minha maneira de pensar: o escrito adquire um valor «moral» e prático que transcende muito o simples feito de estar escrito, que é contudo umha cousa puramente material... a conclusom, por dizê-lo de maneira resumida, é esta: fum condenado no dia 4 de junho de 1928 polo tribunal especial, isto é, por um determinado colégio de homens e poderiam ser indicados os seus nomes, endereços e profissons na vida civil. Mas isto é um erro. Quem me condenou é um organismo muito mais vasto, do qual o tribunal especial nom foi senom o sinal externo e material, aquele que redigiu o documento legal da condena. devo dizer que entre as pessoas que me condenárom estivo também Iulca, de umha maneira insconsciente —estou firmemente convencido—, junto a umha série de pessoas que estivo de umha maneira menos inconsciente. esta é, polo menos, a minha convicçom, já firmemente determinada, dado que é a única que explica umha série de feitos sucessivos e congruentes entre eles. Nom sei se figem bem em escrever estas cousas, pensei-no muitas vezes, hesitei e mais tarde convencim-me polo sim. Nem penses que o meu afeto por Iulca tenha diminuído. ao contrário, ao meu ver parece que aumentou, polo menos num certo sentido. Conheço por experiência o ambiente em que vive, a sua sensibilidade e a maneira em que se pudo produzir nela umha mudança. achei que devia escrever-che, porque penso que cheguei a um momento decisivo na minha vida no qual é preciso, sem mais dilaçons, tomar umha decisom. esta decisom está tomada. a linha de conduta que che indiquei nas últimas conversas e nas últimas cartas, é apenas umha parte condicional destas decisons. em certas ocasions pensei que a minha vida toda foi um grande erro (grande para mim), um engano. Mas aquilo que me convence de que isso nom é exatamente verdade é a tua atitude e especialmente a do advogado. (Nom te ofendas se ponho o advogado antes que a ti; existem razons plausíveis e nom som ofensivas para ti, e tu mesma podes entendê-las).
Mas isto nom é suficiente.
recapitulando: quero convencer-te de que as minhas condiçons psíquicas, apesar de que estám unidas às condiçons físicas, nom som contudo a sua causa e origem. som todo o mais o seu sintoma externo, ou a sua forma: polo qual, mesmo se, como hipótese, elas desaparecessem, nom desapareceriam por isso os males físicos: mudaria a forma, é assim, o qual nom me parece grande cousa. tomados em si, os males psíquicos som bastante graves (no sentido que a minha força de vontade consegue dominá-los e controlá-los cada vez menos) e este agravamento é um sintoma de cansaço físico, isto é, mais exatamente de enfraquecimento da vontade, no sentido físico da palavra: sinto mesmo umha desagregaçom das forças intelectuais em si, e disso já deviches ter umha impressom por algumhas das minhas cartas. em geral, sinto que estou atravessando a fase mais crítica da minha existência e que esta fase nom pode durar muito tempo sem causar, fisicamente e psiquicamente, resultados e complicaçons de que nom se pode voltar mais para atrás, porque som decisivas. Isto que che escrevo está destinado a ti e ao advogado que se ocupa dos meus assuntos. Nom quereria que se destinasse a Iulca, mas direicho: com ela nom penso que cheguem as declaraçons formais, como as que figem até agora. seria preciso tratar o miolo da questom de umha maneira ampla e isso nom se pode fazer (polo menos eu nom sei fazê-lo) por carta. e ainda as palavras nom chegariam por si soas; deviam acompanhar-se por feitos. acredita que isso me preocupa. tenho a impressom de que Iulca sofre um pouco o meu mesmo mal, que polo menos umha parte do seu mal-estar deriva das mesmas causas de que deriva o meu mal-estar psíquico. Nom sei se podes intervir de algumha maneira. Vejo a cousa mui difícil, porque conheço certas condiçons e certos precedentes que a ti che escapam por necessidade, e sem cujo conhecimento, de resto, penso que qualquer intervençom deva parecer superficial e convencional. Considera que em cousas assim penso desde há quatro ou cinco anos e que portanto as analisei em qualquer mínimo aspeto e em todas as combinaçons possíveis. Nom há conclusom para quanto che escrevim. Na prática, penso que a conclusom é a habitual: prosseguir com firmeza nas linhas fixadas, sem fazer cousas inúteis ou supérfluas, de maneira que tudo o que é possível realizar com a nossa vontade seja realizado de maneira exata; quanto ao resto, como nom pode ser considerado, nom deve preocupar-nos. agradece ao advogado quanto fijo por mim e há de querer fazer ainda. Com ele falar de gratitude parece-me ocioso. abraço-te com tenrura.
antonio

(Carta 132)

6 de março de 1933 Queridíssima tania,
ainda lembro (o que nem sempre passa nos últimos tempos) umha comparaçom que figem na conversa do domingo para explicar-che o que me acontece. Quero retomá-la para tirar dela algumhas conclusons práticas que me parecem interessantes. dixem-che mais ou menos assim: imagina um naufrágio e que um certo número de pessoas se refugiam num bote salva-vidas para se salvarem, sem saber onde, quando e depois de quais peripécias efetivamente se salvarám. antes do naufrágio, como é natural, nengum dos futuros náufragos pensara converter-se em... náufrago e, portanto, tanto menos pensara ver-se levado a cometer açons que os náufragos, em certas condiçons, podem cometer, por exemplo, o facto de se converterem em... antropófagos. Cada um deles, se fosse interrogado em frio sobre o que teria feito na alternativa de morrer ou converter-se em canibal, teria respondido, com a máxima boa fé, que, dada a alternativa, certamente teria escolhido morrer. Chega o naufrágio, o refúgio no bote salva-vidas, etc. após alguns dias, faltando os víveres, a ideia do canibalismo apresenta-se com umha luz diferente, até que a um certo ponto, dessas pessoas dadas, um certo número chega a ser verdadeiramente canibal. Mas trata-se na realidade das mesmas pessoas? entre os dous momentos, aquele em que a alternativa se apresentava como umha pura hipótese teórica e aquele em que a alternativa se apresenta com toda a força da imediata necessidade, aconteceu um processo de transformaçom «molecular», embora rápido, polo qual as pessoas de antes já nom som as pessoas de depois, e nom se pode dizer, senom do ponto de vista do estado civil e da lei (que som, de resto, pontos de vista respeitáveis e que tenhem a sua importáncia) que se trate das mesmas pessoas. Pois bem, como che dixem, umha mudança semelhante está a acontecer em mim (canibalismo à parte). o mais grave é que nestes casos a personalidade se desdobra: umha parte observa o processo, outra parte padece-o, mas a parte observadora (até que esta parte exista significa que há um auto-controlo e a possibilidade de se repor) sente a precaridade da própria posiçom, quer dizer, prevê que há de chegar um ponto em que a sua funçom desaparecerá, isto é, nom haverá mais auto-controlo, mas sim que a inteira personalidade será engolida por um novo «indivíduo» com impulsos, iniciativas, maneiras de pensar diferentes das anteriores. Pois bem, eu encontro-me nesta situaçom. Nom sei que poderá ficar de mim após o fim do processo de mutaçom que sinto em vias de desenvolvimento. a conclusom prática é esta: por um certo tempo é preciso nom escrever para ninguém, nem sequer para ti, além das nuas e cruas notícias sobre os feitos da vida. este tempo pode estabelecer-se, mais ou menos, no período preciso para que se desenvolva o processo do advogado em que tanto falámos. se o processo se desenvolver de maneira favorável, tanto melhor; haverá, dentro de certos limites, um passado para esquecer (no caso de que certas cousas podam ser esquecidas, quer dizer, nom deixem pegadas permanentes). se o processo se desenvolver desfavoravelmente, veremos o que é preciso fazer. entretanto, nengumha palavra que turbe de algumha maneira ou que complique a difícil sucessom das horas. recebim umha carta de Grazietta; nom tenho vontade de lhe responder. Pido-che que lhe escrevas tu, descrevendo, da forma que che pareça melhor, a tua viagem a turi. Quero dizer algo ainda, a propósito de algumhas alusons tuas, na conversa do domingo, à minha carta anterior. Nom deves pensar, de nengumha maneira, que eu tencionasse (mesmo sem razom) censurar Iulca. Na minha atitude para com Iulca nunca houvo outra cousa que tenrura, e esta tenrura, se calhar, foi aumentando nestes últimos tempos, sem que diminuísse, com certeza (e digo «se calhar», porque nom sei se poderia aumentar). até me desagrada que umha questom semelhante poda ser colocada e ser discutida. Igualmente, enganas-te ao interpretares mal umha alusom da minha carta (acho que é a carta que reenviárom a turi de roma): nunca pensei que quigesse mentir-me e de facto usou a palavra «embaraço», que em italiano nom só nom tem relaçom com as mentiras, mas nem sequer com a reticência. Na verdade, pensara que tu, depois de me teres anunciado umha carta de Iulca, terias procurado fazer-me que esquecesse a alusom, porque a carta continha notícias que podiam desgostar-me fortemente, nesse momento dado. Mais nada. Por estas razons, prefiro também durante algum tempo nom escrever outra cousa que simples notícias, sem comentários, valoraçons, etc. depois veremos. talvez seja bom que che diga o que pensei: se o advogado, depois de teres falado com ele, considera oportuno que eu seja visitado polo médico, segundo a licença concedida polo Ministério, dou o meu consenso preventivo: quer dizer, deixo que a questom seja resolvida polo advogado, conforme o critério de maior utilidade que ele considerar que deva ser aplicado. Queridíssima, abraço-te com tenrura antonio
P.S.: dixeche-me, na conversa do domingo, que só nestes últimos dias che comunicárom oficialmente em casa que o Ministério concedera a visita de um médico de confiança. dado que o advogado a considera útil e que a visita está decidida, permite que che dê alguns conselhos: 1° ter a licença escrita para o médico, de maneira que nom apareçam no último momento dificuldades burocráticas, 2° se for um costume habitual, fazer de maneira que se especifique nesta licença que o médico pode interrogar-me e eu podo responder (e falar-lhe) de todas as questons que consideremos necessárias ao caso. a saber, o médico nom deve vir só para umha consulta pessoal, para indicar um tratamento pessoal, mas para estar em condiçons de fazer relatórios oficiais para as autoridades superiores sobre o andamento geral das cousas, na medida em que influam ou podam influir nas condiçons de saúde dos presos. este ponto parece-me fundamental. entenderás que tomar umha medicina e seguir um tratamento enquanto continuam a subsistir as condiçons que causam a doença é umha mofa, equivale a gastar inutilmente o dinheiro. o meu mal-estar depende mesmo disso e disso depende a ineficácia dos medicamentos. se calhar, é tarde de mais «formalmente» para mudar as cousas ou para obter que a mudança das cousas motive umha mudança nas condiçons de saúde. seja como for, só este ponto torna compreensível e racional a possível visita de um médico. É por isso, decidindo-me a umha iniciativa, nom podo separar a decisom da condiçom que torna a iniciativa racional e útil.
afetuosamente antonio

(Carta 133)

14 de março de 1933 Queridíssima tania,
escrevo-che apenas umhas poucas palavras. Na terça-feira passada, exatamente, de manhá cedo, quando me erguia da cama, caim ao chao sem que conseguisse erguer-me só. todos estes dias estivem sempre na cama, mui débil. o primeiro dia estivem sob um certo estado de alucinaçom, se assim se puder chamar, e nom dava coordenado ideias com ideias, e as ideias com as palavras apropriadas. estou ainda débil, mas menos que aquele dia. Pido-che que venhas à conversa logo o permitam depois desta carta minha, porque gostaria de falar-che de um projeto que mencionei ao doutor Cisternino, que nom o encontrou de impossível realizaçom, embora difícil. Quero falar contigo disto, também porque tenho a cabeça confusa e tu poderás ajudar-me a juntar as suas partes com precisom.
abraço-te com tenrura. antonio
Parece-me lembrar que o doutor Cisternino qualificou a minha crise de anémia e de debilidade cerebrais.

(Carta 134)

10 de abril de 1933 Queridíssima tania,
recebim a tua carta de dia 4, com a cartinha de delio e o postal ilustrado. Nom figeche mal, acho eu, ao escrever que as minhas condiçons de saúde melhorárom (dado que o telegrama de Genia se refere a mim e nom a ti). Nom é exato que na minha carta de há quinze dias escrevesse que as condiçons pioraram; polo menos, eu nom queria escrevê-lo assim. Queria dizer que as condiçons eram (e som ainda) oscilantes, com altos e baixos; por outras palavras, nom excluo no meu caso umha recaída, mas realmente nom a houvo. Que quereria dizer «piores condiçons»? Piores em comparaçom com qual momento? Com a crise de 7 de março nom, abofé, porque nom sei o que significaria piorar neste sentido. Na realidade, as alucinaçons passárom completamente e diminuiu também a contraçom ou retraçom das articulaçons, especialmente nas pernas e nos pés. as maos continuam a doer muito e nom podo fazer esforços ou aguantar pesos, mesmo pequenos. se tento, como prova, fazer um pequeno esforço, perdo novamente o controlo do movimento: isto é, as maos e os braços funcionam pola sua conta, de maneira impulsiva e brusca, e os dedos rangem e deformam-se a causa dos estiramentos doentios dos tendons. Penso que estas condiçons durarám ainda muito tempo; no 1922-23 durárom por volta de 8 messes e podia curar-me da melhor maneira; mesmo entom nom tivem contraçom das articulaçons nem complicaçons cardíacas, como agora.
É verdade que a cartinha de delio demonstra muita segurança no ditado e na escrita das letras, de forma simples e retilínea: parece-me que só há um único erro (esqueceu um i em primula). digo-cho porque em 1916 dei explicaçons de italiano para um rapaz de 3ª do Gimnásio e nunca conseguim que escrevesse com simplicidade pequenos rascunhos de poucas linhas como escreveu delio. Como lembrache o volume sobre Hegel183 para Iulca? Parece-me que che falei dele em 1930; naquela época tinha um significado, porque se desenvolvia na imprensa umha polémica sobre a dialética mas hoje que significado poderia ter? a Giulia há de parecer-lhe umha estranheza. abraço-te afetuosamente. antonio
Foi-nos comunicado que por ocasiom das férias de Páscoa é possível receber da família «produtos alimentares». Nom te pudem avisar na segunda-feira passada, porque quando no-lo comunicárom já saíra a carta.

(Carta 135)

16 de maio de 1933 Queridíssima tania, recebim a carta de Giulia e algumhas cartas e postais teus. Nom me sinto capaz de responder para Giulia e nom vejo, dada a minha maneira de compreender e de conceber a minha situaçom, quando serei capaz de o fazer. a carta de Giulia é a expressom de um estado de ánimo absurdamente otimista, estado de ánimo que aparece mesmo nalgumhas das expressons das tuas cartas e que eu estou bem longe de partilhar. e
183    trata-se do Saggio sullo Hegel, de Bennedetto Croce, Laterza, Bari, 1927.
nom só isso, senom que qualquer colaboraçom minha para o corroborar pareceria-me criminal. devo dizer que a nossa última conversa reforçou-me nesta convicçom. Na medida em que isso é possível para mim, nas condiçons de atonia física e moral em que me encontro, exasperou-me saber por ti que, mais umha vez, fôrom desatendidas e desprezadas, de maneira estúpida e caprichosa, as minhas indicaçons sobre o andamento dos assuntos referidos à minha existência fisiológica, sem umha razom plausível ou de qualquer género. estou profundamente convencido de que tu repetiche, de outra maneira mas com umha leviandade semelhante, a mesma cadeia de sarilhos que se verificou em 1927-28184 e pola qual o juiz instrutor tivo razom quando me dixo que realmente parecia que os meus amigos colaboravam para manter-me o maior tempo possível no cárcere. estas afirmaçons minhas ham magoar-te, mas é impossível para mim nom dizê-las. Quando em janeiro passado che falei na conversa, pedim-che com toda a força de que era capaz que te ativesses escrupulosamente às minhas indicaçons. depois do acontecido em setembro anterior, parecia-me impossível que faltasses aos teus compromissos. dixem-che que me sentia esgotado (e acho que o 7 de março confirmou a exatitude desta impressom minha) e que nom tinha forças para longas discussons. o que me exaspera é ver como a minha vida se converteu num brinquedo de decisons impulsivas e irracionais e com que facilidade assumiche a responsabilidade de persuadir-me de que, se os factos nom se
184    G. fora visitado no dia 20 de março polo professor arcangeli, que emitira depois um documento que demostrava as graves condiçons de saúde do detido, perdurando as quais «G. nom poderá sobreviver muito tempo». o depoimento do médico, feito público no estrangeiro, suscitou umha nova campanha de denúncia: campanha que G. considerava contra-producente para a sua libertaçom, como aquela de 1927-1928.
desenvolvem segundo umha certa linha, pode ter acontecido porque as minhas indicaçons nom fôrom seguidas. Quando leio depois, num postal teu, que o meu «trabalho terá sempre um valor excecional», à parte da convencionalidade da afirmaçom, nom podo deixar de pensar na ironia implícita nela, quando vejo que os meus conselhos, que som o resultado de umha elaboraçom cuidadosa e completada com o máximo de experiência pessoal, som simplesmente desprezados como iniciativas caprichosas, que nem tenhem em conta as repercussons que vam ter em mim, bem fáceis de imaginar, depois do que sucedera em setembro.
Nestas condiçons, nom vejo o que podo escrever para Giulia, qual atitude podo assumir com respeito a ela para consolá-la e reforçar os elementos de recuperaçom na vida ativa que ela anuncia. após a conversa de janeiro parecera-me que podia entreabrir-se certamente algumha pequena fenda no meu futuro e, mesmo se este estado de ánimo nom pudo evitar em março um desmoronamento das minhas forças físicas, nom deve excluir-se, porém, que sem elas o desmoronamento pudesse ter sido mais grave. tu nom entendeche que estou realmente extenuado, depois de mais de dous anos de desgaste, lento mas implacável, que continua, que todas as minhas reservas estám esgotadas e que a umha pessoa esmagada por um peso insuportável nom se lhe deve deitar encima nem um garabulho, por assim dizer. de resto, o excesso mesmo do mal, dando cabo de qualquer reatividade, provocou um tipo de calma que é a das substáncias gelatinosas. [...]. (risquei umha oraçom, que apesar de que nom a creio exagerada no meu íntimo, prefiro no entanto nom pôr sob os teus olhos). — Pido que nom respondas a esta carta minha com afirmaçons genéricas sobre, por exemplo, o «valor excecional do meu trabalho», que som irritantes, ou com esperanças genéricas sobre a minha saúde. Nom respondas de modo nengum, porque nom há resposta possível. o que nom tem remédio, remediado está, e qualquer comentário é umha ociosidade que fai mais odioso o que sucedeu. o que aconteceu convence-me de que cheguei a ser nécio para qualquer cousa, mesmo para viver. será preciso tirar as conclusons disto e resignar-se, como se di, já que cada iniciativa minha para reagir à situaçom reduzese à nada pola incapacidade de execuçom daqueles que dim querer ajudar-me. abraço-te antonio
depois de ter reflexionado, relim mais umha vez quanto está escrito acima, para verificar posteriormente as minhas convicçons e ver se podia corrigi-las ou modificá-las de algumha maneira. Mas nom me foi possível. Por muito que tenha procurado destilar o cérebro nom dei encontrado um motivo qualquer que desviasse o curso dos meus pensamentos. Para além disso, nom penses que estou excitado; quase quase desejaria está-lo, porque isso seria umha prova de um contraste interno, de umha dúvida, e portanto de um resíduo de otimismo razoável. relim também a carta de Giulia, mas isso só aumentou o meu amargor. Pido-che que nom queiras escrever-me sobre estes temas. deixa passar um pouco de tempo e deixame esquecer. será o melhor. Nom deves acreditar que esteja demasiado alporiçado contigo; já me habituei a pensar que a todo isto que me sucede devo procurar a causa em mim próprio e na minha necidade [...] para viver, como já escrevim. se calhar, cheguei tarde de mais a esta forma de sabedoria. Mas melhor tarde que nunca, nom achas? antonio

(Carta 136)

18 de junho de 1933 Queridíssima tania,
recebim o teu postal de dia 16. Nom sei se é mesmo verdade que as tuas condiçons melhorassem em poucos dias. Quando te vim na última conversa pareceu-me que perderas todo o bom aspecto que tinhas recém chegada a turi. — Nom sei o que escreveche para o advogado, porque nem eu lembro o que che dixem há alguns dias. estou padecendo um novo processo de deterioramento, como o que deu na crise de 7 de março. Mas agora atormenta-me ademais umha continua dor de cabeça mui forte. Queridíssima, penso que está na hora de que tome umha decisom enérgica. este lamento continuado aborreceu-me mesmo a mim de um modo inacreditável. Visto que já me parece seguro que nom se pode fazer nada, o melhor será deixar que tudo siga o seu caminho. Precisamente, fai hoje dous messes que me visitou o inspetor sanitário185. Quanto ruído por nada! ou seja, nom por nada, mas sim para piorar as cousas, porque se antes havia a perspetiva de poder fazer algo, agora mesmo esta perspetiva nom existe mais, e já nom tenho mais forças. acho que esta será a última vez que che escreva de estes temas e, visto que nom vou saber sobre o que escrever, será bem que durante algumhas semanas nom che escreva de nada. depois veremos. Pido-che mesmo que tornes para roma assim que puderes viajar. se necessitares repouso, podes dirigir-te a algumha aldeia do Lácio, onde
185     No dia 18 de abril de 1933, G. fora visitado no cárcere polo professor Filippo saporito, inspetor sanitário, que afinal concluía o seu relatório para o Ministério considerando «nom indispensável em absoluto» para a cura do detido a sua transferência para um hospital civil ou a sua eventual libertaçom.
terás um ambiente melhor do que este. acredita que ver-te tam estragada e doente aumenta o meu desánimo e a minha depressom. Podes dizer para o advogado que lhe agradeço o que fijo por mim e que estou convencido de que fijo o factível, na linha que ele considerou a melhor. Mas agora é necessário tirar a conclusom de que tanto tempo passado à espera é mesmo umha conclusom clara. espero que poda ver-te ainda umha vez antes de partires, mesmo se já nom sei o que dizer. Polo menos terias a hipótese de mudar a estranha opiniom que tinhas umha vez e que tanto pesou, infelizmente, nos últimos acontecimentos: quer dizer, que eu nom fago nada para evitar estar mal, que estou abúlico, que nom quero fazer perguntas, etc. É algo que me amargou muito no passado, já que fôrom precisos muitos esforços para destruir em ti (e nom sei ainda se está completamente destruída) a conceçom idílica e arcádica que te formaras do estado das cousas. Como viche, nom querer ver as dificuldades e os obstáculos, é precisamente aquilo que impediu superar as dificuldades e suprimir os obstáculos, e nom apenas, mas o que provavelmente contribuiu para agravar as dificuldades e criar novos obstáculos. — se calhar, teria acontecido melhor se tivesses concordado logo com aquilo que che escrevim, parece-me que em novembro passado; tornei àquele mesmo estado de ánimo, que por outro lado nunca me abandonou por completo. Giulia sofreria, mas o tempo já curaria a ferida. e porém, estamos novamente no ponto de partida. e já nom tenho a força que ainda tinha por entom. Queridíssima, é melhor que deixe de escrever, em lugar de seguir todos os vespons que me zumbam no cérebro.
abraço-te com tenrura antonio

(Carta 137)

24 de julho de 1933
Queridíssima tania,
recebim a tua carta de 20 do mês corrente, com a carta de Giulia. ainda nom me sinto capaz de escrever para Giulia, nom sei por onde começar nem que dizer-lhe. Pola sua carta parece que está informada da minha doença. escreveche-lhe tu e como? Penso que che podo dizer, apesar de ter visto que precárias som estas constataçons, que estou um pouco melhor. a mudança de cela186 e portanto de algumhas das condiçons exteriores da minha existência, beneficiou-me, pois agora polo menos podo dormir, ou polo menos nom existem as condiçons que impediam o sono, mesmo quando já adormecera e que me acordavam bruscamente, agitando-me e inquietando-me. ainda nom durmo de maneira regular, mas poderei dormir; seja como for, mesmo quando nom durmo, nom estou mui agitado. Penso que é para estar contente; já que um organismo alterado nom pode, com certeza, reabituar-se rapidamente à normalidade e, além disso, a pressom arterial inesperada deve estar a produzir agora de por si umha certa insónia. Naturalmente, para dormir um pouco devo tomar calmantes; assim é que voltei a consumir os que tinha antes de março, também o Quadro Nox, ao qual davas tanta importáncia e que agora realmente me fai bem. Vê-se que o parecer do prof. Fumarolo nom era infundado e também que a tua consciência científica pode estar tranquila. dentro duns dias iniciarei um tratamento reconstituinte de vacinas a base de
186 G. obtivera a transferência para umha nova cela a rês-de-chao do cárcere a fim de substrair-se aos «ruídos infernais da seçom» onde permanecera até entom.
estricnina e fósforo. o novo médico que me visitou assegurame que me beneficiará muito. dixo-me que na base do meu mal-estar há um esgotamento nervoso e que as outras manifestaçons som de carácter funcional e nom orgánico. Polo que parece, é preciso tratar também a minha psique. todo isto, pense o que eu pensar, é verosimilhante. Nom sei se a arteriosclerose pode ser considerada umha manifestaçom funcional e nom orgánica; seja como for, quer polo efeito da elastina, quer polo feito de ter dormido algo durante quatro ou cinco noites, tenho a impressom de que sinto menos a pressom e de que diminuírom certamente (atenuárom-se) a palpitaçom e a dor no coraçom; só as maos me doem intensamente e nom podo aguantar nengum peso nem apertar com algo de energia. No relativo à psique, nom podo dizer nada concreto: é certo que durante muitos meses vivim sem nengumha perspetiva, porque nom estava sendo tratado e nom via umha via de saída qualquer para o desgaste físico que me consumia. Nom podo dizer que este estado de ánimo cessasse, isto é, que me convencesse de que já nom estou em condiçons de extrema precaridade; no entanto, acho que podo dizer que este estado de ánimo nom é obsessivo como no passado. de resto, nom pode cessar com um esforço de vontade; entretanto, devia ser capaz de fazer este esforço, ou de esforçar-me por esforçar-me, ou de me esforçar por esforçar-me por esforçar-me, etc. de palavra é simples, nos factos cada esforço conseguinte chega logo a ser umha obsessom e umha inquietaçom. agora que estou melhor, os que estavam comigo quando me encontrava no ponto crítico da doença dixérom que nos momentos de desvario havia umha certa lucidez nos meus delírios (que por outro lado estavam entrecortados de longas tiradas em sardo). a lucidez consistia nisto: que estava convencido de morrer e tentava demostrar a inutilidade da religiom e a sua inanidade e preocupado porque, aproveitando a minha debilidade, o padre me obrigasse a fazer ou praticasse cerimonias que me repugnavam e das quais nom sabia como defender-me. Parece que durante umha noite inteira falei da imortalidade da alma num sentido realista e historicista, a saber, como a necessária supervivência das nossas açons úteis e necessárias e como umha incorporaçom delas, à margem da nossa vontade, ao processo histórico universal, etc. a escuitar-me estava um obreiro de Grosseto que caia co sono que deveu achar que eu enlouquecera, também segundo o guarda carcerário de serviço. No entanto, lembrava os pontos principais do meu delírio, pontos que eu repetira continuamente. Queridíssima, como vês, o mesmo feito que che escreva estas cousas demostra que me sinto um pouco melhor. se calhar nom te importas de me mandar um pouco de Quadro Nox, que aqui nom se encontra.
abraço-te com tenrura. antonio

(Carta 138)

13 de outubro de 1933 Querida tatiana,
recebim os medicamentos e duas cartas tuas de dia 6 e de dia 12. Nesta última, anuncias-me que o Ministério teria acolhido a instáncia apresentada por Carlo há algum tempo187, etc. Nom
187 trata-se da instáncia apresentada por Carlo, no Verao de aquele ano, para obter a transferência de G. à penitenciaria de turi. a instáncia fora com efeito acolhida e o Comando da Polícia de Milám comunicara a Carlo que a direçom de polícia escolhera para G. a clínica do doutor Cusumano, em Formia.
recebim ainda nengum aviso oficial sobre o assunto e nom entendo o que pode significar isso exatamente, porque Carlo nunca me informou do que fijo. aliás, visto que de um ano para esta parte, quer por parte de Carlo quer pola tua, fum enganado várias vezes (se quigeres, de umha maneira objetiva ou de umha maneira inconsciente), podo pensar mesmo que Carlo entendeu mal a comunicaçom recebida. seja como for, nom podo dar-che nengumha indicaçom, mesmo no caso de que o facto que me anuncias seja verdade. Podo dizer-che apenas que o médico que estava em turi e que me tivo em observaçom nestes últimos messes, partiu há umha quinzena de dias e se encontra precisamente em roma. Considero, no caso da notícia ser verdade, que tanto Carlo como tu devedes meter-vos o menos possível nas questons práticas, porque tendes a especial qualidade de turvar o que é claro e de embrulhar as cousas mais simples e retilíneas. abraço-te antonio

(Carta 139)

20 de novembro de 1933 Querida tatiana,
recebim o teu postal de dia 17 no mesmo momento em que me comunicavam que saía imediatamente para a penitenciaria de Civitavecchia188. escrevo já, como vês, da nova residência,
188 deixada turi na manhá de 19 de novembro de 1933, G. chega na noite do mesmo dia a Civitavecchia. aqui permaneceu durante dezoito dias na enfermaria da penitenciaria, à espera de que na Clínica Cusumano se ultimassem os trabalhos que deviam transformar o quarto destinado ao doente quase que numha cela carcerária.
aonde cheguei ontem à noite: foi-me impossível comunicarche a viagem a causa da rapidez com que se executou a medida. estou contente de que recebesses o meu telegrama de dia 17. É bem certo que nom figem qualquer objeçom a ser transferido à clínica, conforme à concessom do Chefe do Governo. Porém, é verdade que ao nom ter pormenores, nem pola tua parte nem pola parte de Carlo, sobre a possível duraçom da minha recuperaçom na clínica e considerando-a breve, escrevim, por volta de finais de outubro ou primeiros de novembro, umha instáncia a s. e. Novelli, diretor Geral das Penitenciarias, a fim de que mal decorresse o período de recuperaçom na clínica me destinassem a umha enfermaria que nom fosse a de turi. Nom era possível nengum mal-entendido ou equívoco e nom consigo explicar-me a medida fulminante da transferência a Civitavecchia. Pensei que seria melhor que o processo o continuássedes tu e Carlo, porque considero que nom se deve renunciar a ele. Qualquer intervençom minha pode ser intempestiva. — acho que quererás vir ver-me a Civitavecchia, tam perto de roma. acho que será bom que ao passares polo Ministério por toda esta balbúrdia, aproveites para obter algumha licença especial para as conversas e para qualquer outra cousa que considerares oportuna. Pensa que Civitavecchia é três ou quatro vezes maior que turi e isso leva consigo, automaticamente, em minha opiniom, maiores complicaçons. de outra parte, confio no teu bom senso. Como podes imaginar, estou meio desfeito pola viagem. espero as tuas notícias com ánsia. abraço-te afetuosamente. antonio
se vinheres, traz-me um pouco de Quadro Nox, porque nom sei quando será transmitida de turi a autorizaçom ministerial pola qual nom haveria limite, no que me di respeito, para a compra de medicaçons especiais por parte da administraçom. sabes que só agora lembrei que tu, em 1928, quando me enviache a mala que che entregaram no Judiciário, nom enviaras a chave? Perdera-se já na altura? ou esqueceche enviá-la? a tanta distáncia de tempo estas perguntas farám-che rir, mas por vezes som mesmo estas cousinhas as que se lembram, melhor do que outras mais importantes.

(Carta 140)

8 de março de 1934
Queridíssima mamae189,
no ano passado, por causa das graves condiçons de saúde em que me encontrava precisamente nestes dias, nom me foi possível enviar-che os parabéns polo teu santo. Nom quero que também este ano decorra sem lembrar-che a minha grande tenrura.
tatiana mantivo informada teresina das minhas novas condiçons de vida, que mesmo se nom fôrom as melhores, nom podem ser comparadas, certamente, com as de um ano atrás. Nom escrevim até agora porque estivem sempre um pouco despistado e também porque sabia que tatiana, que vem visitar-me todos os domingos, vos mantinha informadas.
189     Como se vê, G. ignorava ainda nesta data a morte da mae, acontecida no fim de 1932.
Nom voltei a ser novamente senhor das minhas forças físicas e intelectuais; nos últimos tempos passados em turi consumim-me de umha maneira quase catastrófica e a recuperaçom é mui lenta, com recaídas e oscilaçons. Para além disso, sabes que som bem resistente, e que tenho umha certa reserva de energias e de paciência que fijo com que superasse até agora os momentos, por vezes bastante azedos, polos que tivem que passar.
tenho poucas informaçons sobre as tuas condiçons de
saúde: teresina escreve pouco, igual que Grazietta. espero escrever, de agora em diante, de maneira regular, mesmo se nom demasiado amiúde. recebo notícias de Giulia e dos meninhos e parece que as suas condiçons nom som más.
Queridíssima mamae, abraço-te com todo o meu afeto, junto a todos os da casa. antonio

(Carta 141)

[25 de novembro de 1935190] Queridíssima,
recebim as tuas duas cartas. estou mais tranquilo desde que recomecei a escrever-che191, mesmo se escrever me custa mui-
190               G. fora transferido à clínica Quisisana de roma, em 24 de agosto de 1935, onde se encontrava em estado de «liberdade condicional».
191               tatiana a teresina, roma, 13 de abril de 1934: «desde novembro Nino nom escreveu mais para Giulia e também nom o fijo para mim; a única carta sua foi a que dirigiu à sua casa polo onomástico da sua pobre mamae [cfr. Carta 140, 8 de março de 1934]. ele nom tem, acho, forças para escrever e ela poderá imaginar bem quanto pode fazer sofrer a Giulia, que desde há mais de um ano
to trabalho e me deixa durante algumhas horas (ou durante alguns dias) em condiçons de excitabilidade pouco agradáveis. tania contou-me algo do que lhe escreveche e das outras notícias recebidas. Contou-me, de umha maneira mui divertida, que delio pensava untar com a vaselina um elefante, do qual ouvira, provavelmente, que tinha a pele áspera sob as patas: nom me parece mui estranho que um rapaz pense em untar um elefante com vaselina, mas o que nom me parece é que quando era rapaz me pudessem vir essas ideias. Contou-me também que Julik quer saber todo sobre mim: penso que isso se deve a que viu um retrato meu numha mostra192. Queridíssima, quando penso em todas estas cousas, e em que a vossa vida, desde há tantos anos (quase um quarto da minha existência e mais de um quarto da tua) se desenvolveu tam afastada da minha, nom me sinto mui alegre. Contudo, é preciso aguentar, resistir, procurar adquirir força. de resto, o que aconteceu nom era por completo imprevisível; tu que lembras tantas cousas do passado, lembras quando che dizia que «ia à guerra»? talvez nom fosse mui sério pola minha parte, mas era a verdade, e realmente assim o sentia. e queria-te muito, muito. sê forte e fai quanto possível para estares melhor.
abraço-te com tenrura, junto aos nossos filhos. antonio
nom recebeu notícias directas de Nino.» G. sofrera umha nova crise grave em junho de 1935.
192 Umha grande fotografia de G. fora exposta numha rua de Moscovo, junto com as de outros comunistas e antifascistas encarcerados em vários países.

(Carta 142)

[14 de dezembro de 1935] Querida Iulca,
recebim a tua carta e tania contou-me o que lhe escreveu Genia sobre o teu estado de ánimo e sobre as tuas condiçons de saúde. deves considerar que nom som capaz de escrever como deveria e gostaria (já é muito que conservasse umha consciência bastante nítida do que som e do que gostaria). Nom compreendim bem o que me contou tania, mas acho que podo dizer que os nossos estados de ánimo se parecem muito. Penso, portanto, que farias umha cousa magnífica vindo a Itália193, baixo todos os pontos de vista. Pola tua saúde, que talvez havia de restabelecer-se de maneira definitiva, e por mim, que necessito sentir-te próxima, recuperar profundamente os laços que sempre nos unírom, mas que desde há demasiados anos se convertêrom em algo etéreo e abstrato. Querida, eu sempre aguardei por ti, e tu foche sempre um dos elementos essenciais da minha vida, mesmo quando nom tinha nengumha notícia precisa de ti ou quando recebia de ti cartas raras e sem substáncia vital, mesmo quando nom che escrevia porque nom sabia o que escrever-che, como escreverche, porque achava que nom querias dar-me qualquer ponto de referência e de contato. Considero que está na hora de dar cabo deste estado de cousas e isso pode ser feito se tu vinheres onda mim, porque eu nom podo mover-me. Certamente estou bem acabado, e parece-me difícil poder recuperar as minhas forças de outrora: no entanto, acho que podes fazer muito por mim e acho também que eu podo fazer algumha
193 Polas suas condiçons de saúde, Giulia nom pudo empreender a viagem projetada a Itália que G. tanto desejava.
cousa por ti, nom muito, mas algumha cousa. aliás, penso que é preciso fazer isto tudo o antes possível, quer dizer, deves tomar umha decisom enérgica rapidamente, considerando as circunstáncias, mas sem deixar-te vencer polas circunstáncias, mesmo se elas nom som simples. Querida, ponho nisto que che escrevo toda a minha tenrura, embora nom o pareça nas palavras escritas. de resto, lembra que em 1923 eu nom era mui eloquente, mas sei que sentias a profundidade toda dos meus sentimentos por ti, os quais nom mudárom em absoluto, ou antes pelo contrário se figérom mais fortes, chegando a ser mais serenos, porque junto com nós estám os nossos dous filhos. abraço-te forte antonio

(Carta 143)

[25 de janeiro de 1936] Querida Iulca,
a tua carta coloca-me numha situaçom terrivelmente embaraçosa. Nom decidim ainda se devo escrever ou nom. Parece-me que só polo simples facto de eu escrever exerço umha coerçom sobre a tua vontade e se de umha parte me repugna profundamente exercer qualquer coerçom sobre ti (nesse sentido, parece-me mesmo indireta e inocente), de outra parte penso —razoando friamente— se a coerçom nom será por vezes, mesmo nestas cousas, desnecessária e se tem qualquer cousa de boa. Na verdade, encontro-me nesta situaçom desde há muitos anos, se calhar desde o mesmo 1926, logo a seguir ao meu arresto, desde que a minha existência foi, de forma brusca e com nom pouca brutalidade, constringida numha direçom determinada por forças externas, e os limites da minha liberdade fôrom reduzidos à vida interior e a vontade se converteu apenas em vontade de resistir. Mas nom quero sairme demasiado do assunto que nos interessa atualmente, e que che interessa também a ti, mesmo se nom o mencionas na tua breve carta: a tua viagem, isto é, a tua viagem a Itália, por um tempo que tu mesma podes decidir o longo ou curto que deve ser, que nom che compromete em absoluto, que deve ter como fim principal a tua procura de umha recuperaçom definitiva das forças necessárias para umha vida normal de trabalho ativo. acho necessário que te convenças, racionalmente, que esta viagem é necessária para ti, para os rapazes (entanto que, no estado atual das cousas, o seu porvir está ligado essencialmente a ti e à tua capacidade de trabalho) e por outras cousas ainda. Mas para que te convenças disto, é preciso que a viagem seja vista nos seus autênticos termos, como umha cousa prática, despojada de qualquer morbosidade sentimental, que te deixará livre ou talvez te liberte definitivamente de um feixe de pensamentos, de preocupaçons, de sentimentos reprimidos, e nom sei que outra bagagem obsessiva: eu som o teu amigo, essencialmente, e após dez anos necessito verdadeiramente falar contigo, como amigos, com grande franqueza e sem inibiçons. desde há dez anos estou fora do mundo (que impressom terrível experimentei no trem194, após seis anos sem ver outra cousa que os mesmos teitos, os mesmos muros, as mesmas faces torvas, quando vim que durante este tempo o vasto mundo continuara a existir, com os seus prados, os seus bosques, a gente comum, as turmas de rapazes, certas árvores, certos hortos, — mas especialmente que impressom ti-
194 durante a deslocaçom de turi para o cárcere de Civitavecchia (cidade do Lácio a umha hora de roma), o 19 de novembro de 1933.
vem quando me vim no espelho, depois de tanto tempo: voltei rapidamente onda os carabineiros)... Nom penses que quero comover-te: o que quero dizer é que depois de tanto tempo, depois de tantos acontecimentos, que em grande parte me fugírom, se calhar no seu significado mais real, depois de tantos anos de vida mesquinha, penetrada, cingida de obscuridade e de misérias sórdidas, poder falar contigo como amigos, seria mui beneficioso para mim. É por isso que, nom deves sentir sobre os ombros o peso de quem sabe quais responsabilidades; penso em simples conversas, como as que se tenhem normalmente entre amigos. entom, estou convencidíssimo de que sob qualquer ponto de vista a tua viagem teria consequências ótimas para os dous. eu mudei muito, assim me parece, e também tu deves ter mudado. Nom deves preocupar-te polas questons práticas: penso que podem ser resolvidas. Podes viajar acompanhada: tatiana pode ir ao teu encontro, para que te encontres fisicamente segura em qualquer circunstáncia, mesmo se as forças te abandonassem. achas que estar afastada dos rapazes e do teu ambiente durante alguns messes (6, 8 messes) é umha cousa tam trágica como para renunciar por isso a outros benefícios que che serám de proveito posteriormente? estou certo de que os lados positivos da iniciativa som mais numerosos do que os negativos, e neste momento quase que me surpreende nom ter pensado antes nisto tudo (mas estava sempre como o bicho-da-seda no casulo, e nem sequer agora estou a desnovelar-me). Gostaria principalmente de que nom te inquietasses demasiado, mas sim que considerasses as cousas de forma lenta, concreta, prática, sem sentimentos doentios: e ainda, que fosses mesmo tu quem decidisse, pacatamente, sem te deixares impressionar por ninguém, também nom por mim. achas que os rapazes nom vam estar contentes ao saberem que vés ao meu encontro, se sabem que nom podo mover-me por força maior? — a tua breve carta começa com umha frase que parece de d’annunzio; nom gosto muito disso. depois há palavras incompletas. devias estar mui agitada. Nom sei se umha carícia minha poderia calmar-te.
abraço-te.
antonio a carta é bem confusa, mas nom quero escrevê-la outra vez.

(Carta 144)

[16 de junho de 1936] Queridíssima Iulca,
nom che escrevim na anterior ocasiom porque, como já che mencionei, escrever é difícil para mim, seja para ti ou para os rapazes. devo fazer um grandíssimo esforço e depois de escrever fico durante muito tempo descontente e desiludido. dantes nom era assim; mesmo a lembrança desse tempo passado, quando sentia prazer ao manter correspondência convosco, me desconforta e me amarga. estivem à espera da fotografia de delio junto com a de Giuliano: e também da tua. os rapazes, nesta idade sua, mudam tam rapidamente, que de umha fotografia para outra parecem outras pessoas: Giuliano parece-me completamente mudado. e tu? Nom sei que pensar exatamente sobre o que escreves. entendo todas as dificuldades que deves superar, primeiro para te habituares à ideia de vires e depois para te decidires na prática a subir ao trem na hora x do dia x; contudo, parece-me que ainda há algumha cousa que te contém e que nom consigo compreender. Leio as tuas cartas, que me parecem escritas por umha pessoa forte e completamente senhora de si: nom deves abandonarte à inércia e adiá-lo sempre. É algo que me fai muito dano, porque também eu devo tomar decisons e fiquei indeciso à espera de umha atitude tua, positiva ou negativa, mas certa. Nom quero escrever-che sobre mim; penso que estou no ar e portanto qualquer juízo só pode ser falso. a minha vida nom depende de mim; depende das autoridades da polícia, em primeiro lugar, e depois de muitas outras circunstáncias. Quero escrever-che agora umha série de pensamentos que me vinham quando estava no cárcere: procurava responder à pergunta «que me condenou ao cárcere, isto é, a levar esta determinada vida desta determinada maneira?». a resposta nom era simples, porque na realidade, para além da força principal que determina o ato no seu conjunto, existem outras tantas forças, que de maneira consciente ou inconscientemente participam da determinaçom concreta de umha circunstáncia ou de outra, as quais som sentidas por vezes com mais força que o ato principal. em soma, quero dizer que a tua incerteza é a causa da minha incerteza, e que deves ser forte e corajosa para me ajudares tudo quanto possível, tal como eu gostaria de fazer por ti e infelizmente nom podo. Um abraço antonio

(Carta 145)

[julho 1936] Querida Iulca,
no dia 10 de agosto será o aniversário de delio e no 30 o de Giuliano. envio dous relógios como presente. estás contente? e estarám contentes os rapazes? espero que nom os rompam logo, ou logo de mais. Lembras o relógio que che levara a roma, há quase dez anos? Mal cho dera quando delio o apanhou e o deitou no chao. Figera um grande esforço para encontrar um relógio que nom fosse de metal precioso e que incluísse no preço a garantia de umha certa distinçom e solidez: gastara 400 liras e pedira ao senhorio que mo comprasse195, pois era um bom homem e conhecia pessoalmente o relojoeiro (ambos os dous eram alemáns e nom o teria enganado, nem o senhorio, por quem sentia um certo afeto, me teria enganado). Porém, o relógio estragou-se rápidamente e converteu-se num brinquedo para delio. Nom é que isso me desgostasse demasiado: o relógio era teu e podias fazer com ele o que quigesses, mas pensei que para que brincasse umha criança nom era necessário um relógio de 400 liras; chegava com um de 5 liras e o meninho divertiria-se na mesma. agradeço-che as notícias que me envias, que estejas me-
lhor e também os rapazes. Que estejas melhor nom sei se podo deduzi-lo verdadeiramente das cartas: tania di que sim. eu nom sei o que escrever, como escrever, etc. Nem sei o que vou fazer; acho que se voltasse para sardenha, todo um ciclo da minha vida se encerraria, se calhar definitivamente196. Por
195     o senhor Passarge; Gramsci morou com a sua família em roma desde junho de 1924 até o seu arresto.
196     Para esta eventualidade, os familiares encontrárom-lhe nos messes se-
que nom me escreves qualquer cousa certa e precisa? Mencionas, tam de passagem, que em finais de julho terás lugar no sanatório. o que me fai dano é o facto de a minha vida depender, de qualquer cousa burocrática, nom apenas e especialmente de quem nom podo esperar nada bom, mas também daqueles de quem espero algo bom. em qualquer caso, fai o que quigeres. abraço-te antonio
É verdade que estou sempre descontente e irritável: a tua carta devia polo menos tranquilizar-me em parte. Nom te irrites também tu; nom quero fazer-che dano de nengumha maneira. Gostaria de conhecer de maneira mui exata o estado de saúde de delio.

(Carta 146)

[Verao de 1936] Querida Giulia,
nom sei o que podes ter entendido na minha expressom «acabar um ciclo da vida», mas parece-me que nom a entendeche exatamente e que deche à expressom um significado demasiado trágico, que nom entendo mui bem. Para além disso, nom tés razom quando dis que «nem a doença nem outros feitos podem dividir umha vida humana em ciclos diferentes». Isto, por dizê-lo de umha maneira pedante, é evolucionismo vulgar e, sob a aparência de um otimismo racional, é umha forma de
guintes um quarto em santu Lussurgiu.
fatalismo quietista. o que pretendo dizer quando penso que o meu retiro em sardenha (que sinto seria e poderia ser até benéfico para a minha saúde) iría ser o início de um novo ciclo da minha vida é a expressom de umha análise bem ponderada, nas condiçons dadas da minha posiçom, que é a de um isolamento completo, de degradaçom intelectual mais acentuada que a atual, de anulaçom, ou quase, de certas formas de espera que nestes anos, mesmo se me atormentárom, dérom também um certo conteúdo à minha vida. Mas nom penso que poda escrever sobre este tema de umha maneira que che pareça profunda. além disso —e isto parece-me para já o mais importante—, nom deves pensar que estes sentimentos meus exprimam desánimo e um pessimismo qualquer, que denominaria «histórico». Pensei sempre que a minha sorte individual era secundária; o que nom quer dizer que a minha sorte individual, como a de qualquer outro indivíduo, nom me preocupe, e que nom me «deva» preocupar. Preocupa-lhe suficiente à «outra parte» como para que eu poda desinteressar-me, nom achas? Mas sinto-me débil fisicamente e considero que a resistência necessária é grande de mais. tu escreves que o havemos discutir e eu penso que quando quigeres vir, pode acontecer que isso che pareça mais difícil, bem mais difícil do que teria sido alguns messes atrás, mesmo se te sentes mais forte fisicamente como, com certeza, parece também hoje pola tua carta.
estás a ver que extravagante som? agora que escreves que
podes vir com maior segurança, som eu a pôr impedimentos. alegra-me que gostasses dos relógios dos rapazes. No momento oportuno, escreverás-me o que sentírom delio e Giuliano? tés razom com respeito ao... 31; é vergonhoso da minha parte, mas tenho algumha desculpa. eu quereria escrever-che muito sobre a doença de delio, sobre Julik, mas escrever sobre certos temas, relativos à nossa tenrura polos nossos filhos, parece-me inacreditavelmente difícil, porque me debilita e me turba. Querida, nom estou contente com esta carta minha (como também nom o estou das outras anteriores), mas nom quero começar mais umha vez. espero que sejas mui mui forte, também por mim. Um abraço antonio

(Carta 147)

[5 de novembro de 1936] Queridíssima Giulia,
escreves-me que tes a «certeza» de poder falar comigo sobre qualquer cousa, nom só sobre as tuas alegrias, mas também sobre o teu sofrimento. e contudo, dis-me verdadeiramente tudo? acho que nos anos mais belos da nossa vida, e nomeadamente no 23, falávamos habitualmente destas cousas, quer dizer, até que ponto, num determinado círculo de pessoas que se querem bem, um acaba sempre acreditando em que é a única pessoa capaz de suportar com fortaleça determinados sofrimentos e por isso os oculta às outras pessoas, criando-se afinal umha espécie de «comédia dos equívocos», se se puder chamar assim. sempre fum da opiniom que a verdade contém em si a sua própria medicina e é, em qualquer caso, preferível a um silêncio prolongado que, entre outras cousas, chega a ser mesmo ofensivo e degradante, porque quem cala um facto que pode provocar dor, parece que está convencido de que a outra parte nom compreende que o mesmo silêncio tem um significado único, mas nom pode pensar que o silêncio pode ocultar cousas bem mais graves que aquelas que se querem esconder. Portanto: verdade, clareza e sinceridade nas nossas relaçons. o que escreves sobre delio interessa-me, mas... pensei
sempre que, na minha condiçom, é difícil escrever para rapazes que nom conheço intimamente, rapazes cujo desenvolvimento intelectual e moral nom tenho acompanhado e cuja sensibilidade e reaçons nom som capaz de «re-sentir». Por vezes imagino-os quando crianças, outras vezes grandes: de resto, penso que os rapazes amam e som felizes quando som considerados como «iguais». É por isso que sempre considerei, e escrevim-che sempre sobre isso, que contava com a tua colaboraçom, para «traduzires» nom de maneira literal —mas com a sua mentalidade— as minhas cartas para eles, para me ajudares a compreendê-los de umha maneira íntima. aliás, estou convencido de que sem esta colaboraçom tua, umha correspondência minha continuada com delio e Giuliano seria impossível, ou converteria-se num puzzle. — escreveme muito sobre a tua saúde, e com franqueza. abraço-te com tenrura antonio

(Carta 148)

[dezembro de 1936] Querida Iulca,
emociono-me sempre muito com as tuas cartas, mas... (estes malditos «mas...») deixam-me algo confuso e com pensamentos que vagam no vazio. sabes que tenho a mania do concreto e que admiro muito os... «relatórios» (daklad) —quando estám bem feitos— e também as relaçons, como as dos reverendíssimos padres jesuítas na China, que ensinam cousas mesmo vários séculos mais tarde. Querida, som terrivelmente pedante: escreve como quigeres; tu sempre escreves bem, com umha grande espontaneidade e com muito sentimento. — Nom é que queira escrever um... relatório sobre tania. ela vive à sua maneira, naturalmente, e é por isso que por vezes tenho a terrível e sarda vontade de ter na mao um nodoso bastom; porém, considero que tem umha vitalidade prodigiosa e que se encontra bem. Por vezes discutimos, porque ela é descuidada nas comidas, quer dizer, come pouco e mal, embora tenha razons para pensar que é umha mulher de bom garfo, desde que algo se lhe achegue à boca. embora proteste e tente disfarçar, é um facto que em Formia a vim comer um frango inteiro (cozido, di ela, nom assado), —nom enorme, é verdade, mas respeitável— e isso como primeiro almoço (savtrak). Igualmente, vim-na comer doses consideráveis de cordeiro assado com batatas fritidas. Contudo, acho que agora que nom se está a cuidar e tenho a impressom de que perdeu peso. Com certeza, chegam poucas semanas de alimentaçom normal para que mude muito, para que se veja mais jovem, etc. — sabes que lamento escrever isto tudo, porque lhe estou a renhir sempre e nom gosto disso (ontem, até meu irmao Carlo lhe renhiu por este motivo); de facto, até é umha cousa que por vezes me amua bastante. Quanto a tania, stop.
estou mui contente polas crianças e polas suas duas últi-
mas cartas. Iulik é lacónico, epigráfico. Nem um adjetivo nem umha palavra a mais: um estilo quase telegráfico. delio é mui diferente. e tu, querida, como és? Já nom consigo imaginar-te bem, embora esteja a cavilar sempre no passado. envia-me fotografias; som pouca cousa, mas ajudam. Quando estava desterrado em Ustica, um beduíno afeiçoara-se muito a mim: também ele fora desterrado; vinha encontrar-me, sentava, tomava o café, contava-me contos do deserto e enseguida calava durante horas, enquanto me via ler ou escrever; ele invejava as fotografias que eu tinha e dizia que a sua mulher era tam estúpida que nunca pensaria em mandar-lhe a fotografia do filho (nom sabia que os muçulmanos nom podem retratar a aparência humana, e nom era estúpido). Chegarás tu a ser umha «mulher de beduíno»?
Querida, abraço-te com grande tenrura.
antonio

(Carta 149)

Querido Giuliano,
leche apenas meio conto de Wells e quererias julgar já a obra toda deste escritor, que escreveu dezenas e dezenas de romances, coletáneas de contos, ensaios históricos, etc.? Parece-me «um pouco exagerado». e afinal que conto leche? o melhor ou o pior, ou aquele que seria a média das possibilidades do autor? o maior escritor da antiga Grécia foi Homero e o escritor latino Horácio escreveu que mesmo Homero «dormita» por vezes. Com certeza Wells, em comparaçom com Homero, dormita polo menos trezentos sessenta dias por ano, mas poderia ser que nos outros cinco ou seis dias (quando o ano é bissexto) estivesse totalmente acordado, e tivesse escrito algo agradável e resistente à crítica. também tu nom és com frequëncia mui cuidadoso: a tua carta está escrita às pressas, com muitas palavras deixadas pola metade; contudo, penso que podes escrever muito melhor, com mais ordem, com mais atençom. É por isso que, nom te julgarei por esta carta e nom direi: olha que filho tam burricám! Querido Iulik, nom te amues; escreve sempre tudo quanto pensas, mesmo que de maneira apurada; mais tarde pensará-lo melhor e corrigirás os teus erros, reforçando os teus juízos. sinto nom poder discutir contigo em pessoa. Nom creias que eu som tam pedante; gostaria de rir e brincar contigo e com delio, e falar de muitas cousas que me interessavam muito também a mim quando era criança.
abraço-te com tenrura. твой папа

(Carta 150)

Querido delio,
recebim a pena do papagaio e as florzinhas e gostei delas. Mas nom consigo imaginar como é que é o passarinho e por que se arranca umhas penas tam grandes; se calhar, a calor artificial fijo-lhe mal na pele ou talvez nom tenha nada grave e durante o verao lhe passarám os comichons todos. talvez necessite que lhe dem de comer algo mui fresco, que substitua o que os seus congéneres comem no seu país de origem, já que lim que os passarinhos que se tenhem em casa, quando som alimentandos de maneira inadequada, sofrem de avitaminose, perdem as penas e tenhem umha espécie de sarna (que nom é contagiosa): eu próprio vim como um pardal, que chegou a estar mui enfermo por comer sempre miga de pam balorento, curava somando à ementa um pouco de leituga. — Já nom lembro em que sentido che falei da «fantasia»; se calhar, aludia à tendência a fantasiar no vazio, a fazer castelos no ar, etc.
Querido, um abraço mui forte de Папа
(Carta 151)
Querido Iulik, nesta ocasiom nom recebim nengumha carta tua. Lamento-o. É verdade que eu nom respondim a tua última carta, mas nom me sentia mui bem. alegraria-me se me escrevesses muito; de facto, prometeras (tenho a impressom) escrever algo cada dia durante as férias e que depois me enviarias o escrito junto com as cartas de delio, de tua mai e de Genia. Vê-se que és um pouco descuidado e que esqueces o que para ti era um compromisso. Podes escrever-me sobre qualquer cousa e eu responderei-che com seriedade. agora já és um rapaz e deves ter um certo sentido da responsabilidade. Que pensas disso? escreve-me sobre o que fás na escola, se apreendes com facilidade, sobre o que che interessa. Quando umha cousa nom che interessa e mesmo assim tés que apreendê-la, como fás? e que jogos preferes? Querido Iulik, interessa-me cada momento da tua vida. Um abraço. Папа

(Carta 152)

Querido Iulik,
recebim notícias tuas nas cartas de tua mae e da avó, mas por que nom escreves tu algumhas linhas? alegro-me muito quando recebo umha carta tua e quem sabe quantas cousas poderias escrever sobre a escola, sobre os teus companheiros, sobre os professores, sobre as árvores que vês, sobre os teus jogos etc. e depois... prometeras escrever-me algo todos os dias durante as férias. É preciso manter sempre as promessas, mesmo a custo de algum sacrifício, e imagino que para ti nom deve ser um grande sacrifício escrever algo. Prometeras mandar-me as cartas quando tua mae fosse visitar-te à escola... Querido, abraço-te. папа

(Carta 153)

Queridíssimo delio,
nom sei se o elefante pode (ou pudo) evoluir até devir um ser capaz, como o homem, de dominar na terra as forças da natureza e de se servir dela para os seus próprios fins — em abstrato. Concretamente, o elefante nom tivo o mesmo desenvolvimento que o homem, e com certeza nom o terá, porque o homem se serve do elefante, enquanto o elefante nom pode servir-se do homem, nem sequer para comê-lo. Isso que pensas sobre a hipótese de o elefante adaptar as suas patas para o trabalho prático nom corresponde com a realidade: de facto, o elefante tem como elemento «técnico» a tromba, e do ponto de vista «elefantesco» serve-se dela maravilhosamente para arrancar árvores, para se defender em certas circunstáncias, etc. — escreveras-me que gostavas da história e assim chegamos à tromba do elefante. acho que para estudares história nom é preciso fantasiares demasiado sobre o que teria acontecido «se»... (se o elefante se tiver erguido sobre as patas posteriores para dar um maior desenvolvimento ao cérebro, se... se...; e se o elefante tivesse nascido com rodas? teria sido um elétrico natural! e se tivesse tido asas? Imagina umha invasom de elefantes como a dos gafanhotos!). Já é bem difícil estudar a história tal como se passou na realidade, umha vez que se perdêrom quaisquer documentos de umha grande parte dela; como se pode perder o tempo estabelecendo hipóteses sem fundamento? e ainda por cima, nas tuas hipóteses há demasiado antropomorfismo. Por que deveria evoluir como o homem? Quem sabe se algum velho elefante sábio ou algum pequeno elefante com imaginaçom, do seu ponto de vista, nom fará hipóteses sobre por que o homem nom chegou a ser um proboscídeo! Fico à espera de umha longa carta tua sobre este tema. aqui nom fijo muito frio e por outra parte este ano nom sofro polo frio como em anos passados. Há sempre flores com abrolhos. Nom tenho comigo nengum passarinho, mas vejo sempre no pátio duas parelhas de melros e os gatos que se escondem para apanhá-los; mas nom parece que os melros se preocupem com isso e som sempre alegres e elegantes nos seus movimentos. Um abraço папа

(Carta 154)

Queridíssimo delio,
sinto-me um pouco canso e nom podo escrever muito. tu escreve-me sempre e de quanto che interessar na escola. Penso que gostas da história, como eu quando tinha a tua idade, porque ela di respeito dos homens e daquilo que tem a ver com eles, com quantos mais homens for possível, com todos os homens do mundo, entanto formam umha sociedade e trabalham e luitam e se fam melhores; nom podes nom gostar mais que de outra cousa. Mas é assim? Um abraço antonio

(Carta 155)

Querido Iulik,
como vai a tua cabecinha? Gostei muito da tua carta; a tua maneira de escrever é mais firme do que antes e isso demonstra que estás a crescer. Perguntas-me o que me interessa mais. devo responder que nom existe nada que «me interesse mais», quer dizer, muitas cousas me interessam muito ao mesmo tempo. Por exemplo, no que a ti se refere, interessa-me que estudes bem e com proveito, mas também que sejas forte e robusto e moralmente cheio de coragem e de resoluçom; assim é que me interessa que descanses, que comas com apetite etc.; tudo está conectado e tecido estreitamente e se um elemento desse tudo chega a falhar ou a ter um defeito, esboroa-se o conjunto. É por isso que nom gostei de que escrevesses que nom podes responder à questom de se caminhas com resoluçom para a tua meta, que neste caso significa estudares bem, seres forte etc. Por que nom podes responder, se depende de ti ser disciplinado, resistir os impulsos negativos, etc.? escrevoche com seriedade, porque vejo que já nom és um rapazinho, e também porque tu mesmo me escreveche umha vez que querias ser tratado com seriedade. a mim parece-me que tés muitas forças latentes no cérebro; o facto de expressares que nom podes responder à pergunta significa que pensas e que és responsável polo que fás e escreves. e depois, vê-se também na fotografia que recebim que há muita energia em ti. Viva Iulik! quero-te muito.
Целую

(Carta 156)

Querido delio,
por que nom me falas do teu papagaio? Vive ainda? seica nom falas mais dele porque eu, umha vez, comentei que falavas sempre dele? Coragem delio! tatanička quer que che escreva que com a tua idade tinha um canzinho e que chegara a estar meio louco pola alegria de o ter. Vês? É verdade que um cam (mesmo se muito pequeno) dá bem mais satisfaçons que um papagaio (mas se calhar tu pensas o contrário), porque joga com o seu dono, afeiçoa-se a ele... Vê-se que o meu ficara a ser um cachorro, porque, para mostrar o máximo do seu entusiasmo, subia ao meu lombo e mexava-me por cima. Quantas ensaboadelas! era mesmo pequeno, tanto que durante muito tempo nom conseguiu subir os degraus das escadas; tinha o pêlo preto e longo e parecia um esmolante em miniatura. Cortara-lho como a um leonzinho, mas nom era bonito, de um ponto de vista objetivo; antes polo contrário, era feio, bastante feio, agora que o penso. Mas como me divertia e quanto o queria! o meu jogo favorito era este: quando íamos de passeio ao campo, punha-o sobre um penedo sainte e afastava-me sem que ele, que me olhava e gemia, ousasse saltar. eu afastava-me em zigue-zague e depois agachava-me num fosso ou numha gábia. Primeiro, o cam choromicava, depois conseguia dar com a maneira de descer e corria na minha procura: isto divertia-me, porque o pobrinho, que entom era, polo demais, ainda mais jovem, procurava embaixo de todas as pedras, ladrava, debruçava-se sobre as pequenas (mas grandes para ele) e enlouquecia porque me movia com rapidez assim que o chamava. Que festas, quando afinal me deixava encontrar! e que abundáncia de mijos! Querido, escreverás agora sobre o papagaio?

Um abraço папа


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