Discurso à Humanidade

Fala genial de Charles Chaplin em “O Grande Ditador”

Em 1940, quando a Segunda Guerra Mundial iniciada um ano antes estendia seus tentáculos e avançava na Europa e no mundo, Charlie Chaplin escreveu e dirigiu um filme genial, “O Grande Ditador”. Veja – e sobretudo ouça – aqui, com legendas em português, o trecho em que o protagonista do filme faz o seu célebre “Discurso à Humanidade”.

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Por: Equipe Oásis

Embora pensado e criado para ser uma comédia/drama satírico, O Grande Ditador era na verdade um retrato metafórico do estado da nossa civilização contemporânea, caracterizado pela paranoia de poder de alguns dos nossos governantes.

O Discurso à Humanidade, ponto mais alto do filme, representa um apelo à união, à fraternidade e à solidariedade em um momento da História marcado pela tirania, o inchaço das grandes potências mundiais, o crescimento exponencial das indústrias e da tecnologia, o domínio da cultura da produtividade e do consumismo insustentáveis. Chaplin faz também uma análise sobre o chamado American way of life – um modelo de civilização no qual os valores superiores da humanidade são esquecidos em troca de um outro padrão existencial no qual as pessoas só se sentem felizes e realizadas quando adquirem coisas materiais e conseguem alcançar e exercer o poder.

Não à toa, por causa deste filme e do discurso que ele contém, Charlie Chaplin foi obrigado a sair dos Estados Unidos e fugir para a Suíça, só conseguindo voltar anos depois.

Vídeo: O “Discurso à Humanidade”, de Charles Chaplin em “O Grande Ditador”.

Tradução integral do “Discurso à Humanidade”, de Charlie Chaplin:

“Sinto muito, mas não pretendo ser um imperador. Não é esse o meu ofício. Não pretendo governar ou conquistar quem quer que seja. Gostaria de ajudar – se possível – judeus, o gentio… negros… brancos.

Todos nós desejamos ajudar uns aos outros. Os seres humanos são assim. Desejamos viver para a felicidade do próximo – não para o seu infortúnio. Por que havemos de odiar e desprezar uns aos outros? Neste mundo há espaço para todos. A terra, que é boa e rica, pode prover a todas as nossas necessidades.

O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos. A cobiça envenenou a alma dos homens… levantou no mundo as muralhas do ódio… e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido.

A aviação e o rádio aproximaram-nos muito mais. A própria natureza dessas coisas é um apelo eloquente à bondade do homem… um apelo à fraternidade universal… à união de todos nós. Neste mesmo instante a minha voz chega a milhares de pessoas pelo mundo afora… milhões de desesperados, homens, mulheres, criancinhas… vítimas de um sistema que tortura seres humanos e encarcera inocentes. Aos que me podem ouvir eu digo: “Não desespereis! A desgraça que tem caído sobre nós não é mais do que o produto da cobiça em agonia… da amargura de homens que temem o avanço do progresso humano. Os homens que odeiam desaparecerão, os ditadores sucumbem e o poder que do povo arrebataram há de retornar ao povo. E assim, enquanto morrem homens, a liberdade nunca perecerá.

Soldados! Não vos entregueis a esses brutais… que vos desprezam… que vos escravizam… que arregimentam as vossas vidas… que ditam os vossos atos, as vossas ideias e os vossos sentimentos! Que vos fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a uma alimentação regrada, que vos tratam como gado humano e que vos utilizam como bucha de canhão! Não sois máquina! Homens é que sois! E com o amor da humanidade em vossas almas! Não odieis! Só odeiam os que não se fazem amar… os que não se fazem amar e os inumanos!

Soldados! Não batalheis pela escravidão! Lutai pela liberdade! No décimo sétimo capítulo de São Lucas está escrito que o Reino de Deus está dentro do homem – não de um só homem ou grupo de homens, mas dos homens todos! Está em vós! Vós, o povo, tendes o poder – o poder de criar máquinas. O poder de criar felicidade! Vós, o povo, tendes o poder de tornar esta vida livre e bela… de fazê-la uma aventura maravilhosa. Portanto – em nome da democracia – usemos desse poder, unamo-nos todos nós. Lutemos por um mundo novo… um mundo bom que a todos assegure o ensejo de trabalho, que dê futuro à mocidade e segurança à velhice.

É pela promessa de tais coisas que desalmados têm subido ao poder. Mas, só mistificam! Não cumprem o que prometem. Jamais o cumprirão! Os ditadores liberam-se, porém escravizam o povo. Lutemos agora para libertar o mundo, abater as fronteiras nacionais, dar fim à ganância, ao ódio e à prepotência. Lutemos por um mundo de razão, um mundo em que a ciência e o progresso conduzam à ventura de todos nós. Soldados, em nome da democracia, unamo-nos!

Hannah, estás me ouvindo? Onde te encontrares, levanta os olhos! Vês, Hannah? O sol vai rompendo as nuvens que se dispersam! Estamos saindo da treva para a luz! Vamos entrando num mundo novo – um mundo melhor, em que os homens estarão acima da cobiça, do ódio e da brutalidade. Ergue os olhos, Hannah! A alma do homem ganhou asas e afinal começa a voar. Voa para o arco-íris, para a luz da esperança. Ergue os olhos, Hannah! Ergue os olhos!.”



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Jesus era judeu e moreno

A história de como ele se tornou um branco europeu

O Jesus bíblico era judeu da Galileia e, como tal, muito provavelmente teria pele escura, olhos castanhos e cabelos negros. Durante o Renascimento, ao redor do século 16, passou a ser cada vez mais representado com os traços de homem europeu, com pele clara e cabelos louros. Agora, na onda mundial das manifestações antirracismo, ativistas querem trazer de volta a imagem original do Cristo semita moreno.
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Por: Anna Swartwood House – Professora de história da arte na Universidade da Carolina do Sul, EUA.
A representação de Jesus como um homem branco e europeu passa por dura contestação neste momento em que as manifestações anti-racistas são cada vez mais fortes nas cidades americanas. Por outro lado, estudiosos examinam o legado do racismo na nossa sociedade, presente em mil e um detalhes sem que tenhamos consciência disso.
Ao mesmo tempo em que os manifestantes pedem a remoção das estátuas de figuras históricas de confederados considerados racistas e escravagistas, o ativista Shaun King vai além, sugerindo que murais e obras de arte representando um “Jesus branco” também devem ser removidos de seus pedestais.
A Transfiguração de Cristo

Na pintura A Transfiguração de Jesus, de Rafael, Jesus surge louro e radiando luz no alto de uma montanha.
As inquietudes de Shaun King sobre a representação de Cristo e como ela é usada para sustentar noções de supremacia branca não são isoladas e únicas. Eruditos proeminentes e o próprio arcebispo de Canterbury pediram para se reconsiderar o retrato de Jesus como um homem branco de estampa europeia.
Como historiadora de arte do Renascimento Europeu, estudo a imagem em evolução de Jesus Cristo de 1350 a 1600. Algumas das representações mais conhecidas de Cristo, da “Última Ceia” de Leonardo da Vinci ao “Último Julgamento” de Michelangelo, na Capela Sistina, foram produzidas durante esse período.
Mas, nos Estados Unidos, a imagem mais reproduzida de todos os tempos de Jesus vem de outro período. É a “Cabeça de Cristo” de Warner Sallman, de cabelos claros, de 1940. Sallman, um ex-artista comercial que criou inúmeros trabalhos de arte para campanhas publicitárias, vendeu com sucesso essa imagem em todo o mundo.

“Cabeça de Cristo” (1940), de Warner Sallman
Por meio de parcerias de Sallman com duas editoras cristãs, uma protestante e a outra católica, a Cabeça de Cristo passou a ser incluída em tudo, desde cartões de oração a vitrais, pinturas a óleo falsas, calendários, hinários e até painéis de iluminação noturna. Essa pintura de Sallman marca o apogeu de uma longa tradição de europeus brancos criando e divulgando imagens de Cristo feitas à sua própria imagem e semelhança.
Em busca da santa face
O Jesus histórico muito provavelmente tinha os olhos castanhos e a pele morena da imensa maioria dos judeus do primeiro século na Galileia, uma região de Israel nos tempos bíblicos. Mas ninguém sabe exatamente como Jesus era. Não existe nenhuma imagem conhecida de Jesus, e, embora os reis Saul e David do Antigo Testamento sejam explicitamente chamados de altos e bonitos na Bíblia, há pouquíssima indicação da fisionomia de Jesus tanto no Antigo quanto no Novo Testamento.
O Bom Pastor

“O bom pastor”, Joseph Wilpert
Até mesmos esses textos são contraditórios: Isaías, o profeta do Antigo Testamento, diz que o futuro salvador “não teria beleza nem majestade”, enquanto o Livro dos Salmos afirma que ele era “mais justo do que os filhos dos homens”, a palavra “justo” aqui significando beleza física. As primeiras imagens de Jesus Cristo surgiram entre o primeiro e o terceiro século d.C., em meio a preocupações com a idolatria. Os primeiros retratistas cristãos estavam menos interessados em capturar a aparência real de Cristo do que em esclarecer seu papel como governante ou salvador. Para indicar claramente esses papéis, aqueles primeiros artistas cristãos costumavam confiar no sincretismo, o que significa que combinavam formatos visuais de outras culturas. Provavelmente a imagem sincrética mais popular é a de Cristo como o Bom Pastor, uma figura jovem e sem barba, bastante baseada nas representações pagãs de deuses e heróis como Orfeu, Hermes e Apolo.
Em outras representações comuns, Cristo usa a toga ou outros atributos do imperador. O teólogo Richard Viladesau argumenta que o Cristo barbudo e maduro, com cabelos longos no estilo “sírio”, combina características do deus grego Zeus e da figura de Sansão, personagem do Antigo Testamento, entre outras.
Cristo como autor de autorretratos
Os primeiros retratos de Cristo eram considerados autorretratos, tais como o da milagrosa “imagem não feita por mãos humanas”, ou acheiropoietos.
Acheiropoietos

Acheiropoietos. Galeria Tretiakov, Moscou
Essa crença se originou no século 7 d.C., com base na lenda de que Cristo curou o rei Abgar de Edessa, na Turquia, através de uma imagem milagrosa de seu rosto, agora conhecido como Mandylion. Uma lenda semelhante adotada pelo cristianismo ocidental entre os séculos 11 e 14 conta como, antes de sua morte por crucificação, Cristo deixou uma impressão de seu rosto no véu de Santa Verônica, uma imagem conhecida como “Volto Santo” (Rosto Santo).
Cristo de Antonello da Messina

Cristo com coroa de espinhos. Artista: Antonello da Messina, atualmente no Metropolitan Museum de Nova York.
Essas duas imagens, juntamente com outras relíquias semelhantes, formaram a base de tradições iconográficas sobre a “imagem verdadeira” de Cristo. Do ponto de vista da história da arte, esses artefatos reforçavam uma imagem já padronizada de um Cristo barbudo, com cabelos escuros na altura dos ombros. No Renascimento, artistas europeus começaram a combinar o ícone e o retrato, fazendo Cristo à sua própria semelhança. Isso aconteceu por várias razões, e a primeira delas é a identificação com o sofrimento humano de Cristo.
Albert Durer, autorretrato

Albrecht Dürer, autorretrato de Albrecht Dürer/Alte Pinakothek Collections
O pintor siciliano Antonello da Messina, do século 15, por exemplo, pintou pequenas imagens do sofrimento de Cristo, formatadas exatamente como retratos de pessoas comuns, gente que o artista encontrava pelas ruas no seu dia-a-dia, com o tema central do quadro posicionado entre um parapeito fictício e um fundo preto liso.
O artista alemão do século 16, Albrecht Dürer, obscureceu a linha entre a face sagrada e sua própria imagem em um famoso autorretrato de 1500. Para a obra, Dürer posou frontalmente como um ícone, com sua barba e cabelos na altura dos ombros, lembrando a imagem de Cristo. O monograma “AD” pode significar igualmente “Albrecht Dürer” ou “Anno Domini” – “no ano do Senhor”.
À imagem de quem?
Essa diversidade dos traços fisionômicos de Cristo não se restringiu à Europa: existem imagens dos séculos 16 e 17 de Jesus com, por exemplo, traços etíopes e indianos. Na Europa, no entanto, a imagem de um Cristo europeu de pele clara começou a influenciar outras partes do mundo através do comércio e da colonização europeus.
Adoração dos Magos

“Adoração dos Reis Magos”, artista Andrea Mantegna. Museu J. Paul Getty
A “Adoração dos Reis Magos”, do pintor italiano Andrea Mantegna, de 1505 d.C., apresenta três Reis Magos distintos, que, segundo uma tradição contemporânea, vieram da África, Oriente Médio e Ásia. Eles apresentam objetos caros de porcelana, ágata e latão que teriam sido valorizados pelas importações da China e dos impérios persa e otomano.
Mas no quadro a pele clara e os olhos azuis de Jesus sugerem que ele não é do Oriente Médio, mas sim nascido na Europa. E a escrita falsa-hebraica bordada nos punhos e na bainha de Maria desmente uma relação complicada com o judaísmo da Sagrada Família.
Na Itália de Mantegna – em pleno período renascentista -, os mitos antissemitas já eram predominantes na maioria da população cristã, com o povo judeu frequentemente segregado em seus próprios bairros nas principais cidades.
Foi então que os artistas, provavelmente estimulados pelas autoridades da Igreja, tentaram distanciar Jesus e seus pais, Maria e José, do judaísmo. Até mesmo detalhes aparentemente pequenos e destituídos de importância, como orelhas furadas, aparecem nas obras da época: os brincos eram associados a mulheres judias, e sua remoção representava uma conversão ao cristianismo.
Séculos depois, forças antissemitas na Europa, incluindo os nazistas, tentaram separar Jesus totalmente da sua origem judaica, em favor de um estereótipo branco ariano.
Jesus branco no exterior
Quando os europeus colonizaram terras cada vez mais distantes, levavam com eles a imagem de um Jesus europeu. Os missionários jesuítas estabeleceram escolas de pintura nos países pagãos colonizados, e nelas ensinava-se aos cristãos recém convertidos os padrões da arte cristã europeia.
O noivado místico

“O noivado místico de Santa Rosa de Lima”, de Nicolas Correa
Na América Latina colonial – chamada “Nova Espanha” pelos colonos europeus – as imagens de um Jesus branco reforçavam um sistema de castas em que europeus brancos cristãos ocupavam o nível superior, enquanto aqueles com pele mais escura, com percepção de mistura com populações nativas, eram consideravelmente inferiores. A pintura do artista Nicolas Correa, em 1695, de Santa Rosa de Lima, a primeira santa católica nascida na “Nova Espanha”, mostra seu casamento metafórico com um Cristo loiro e de pele clara.
Os estudiosos Edward J. Blum e Paul Harvey argumentam que, nos séculos após a colonização europeia das Américas, a imagem de um Cristo branco o associou à lógica do império e foi usada para justificar a opressão sobre os indígenas nativos e os afro-americanos. Em uma América multirracial, mas desigual, havia uma representação desproporcional de um Jesus branco na mídia. A Cabeça de Cristo de Warner Sallman não foi a única imagem a ser amplamente reproduzida e divulgada; um grande número de atores que interpretaram Jesus na televisão e no cinema eram brancos de olhos azuis. As imagens de Jesus historicamente têm servido a muitos propósitos, desde simbolicamente representar o seu poder, até representar sua real semelhança. Mas, no atual momento histórico marcado pelo combate ao racismo, é importante que os espectadores conheçam a complicada história das imagens de Cristo que consomem.

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Destruição do habitat natural


A verdadeira causa da pandemia

É fácil acusar um morcego ou um pangolim, mas a grande responsável pela pandemia que tomou conta do mundo é a destruição indiscriminada da natureza e dos habitats tradicionais de espécies animais e vegetais. A cada dia, mais e mais especialistas veem uma ligação direta entre a perda de biodiversidade, principalmente de origem humana, e a disseminação de doenças mortais como o Covid-19. Segundo eles, a única maneira de impedir que essas novas doenças nos destruam é através da preservação dos nossos ecossistemas e da biodiversidade.
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Por: John Vidal (*)
Fonte: The UNESCO Courier (courier@unesco.org)

Matopiba

A agricultura industrial intensiva no nordeste do Brasil (a assim chamada região de Matopiba, considerada a grande fronteira agrícola nacional da atualidade e que compreende o bioma de cerrado dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia e responde por grande parte da produção brasileira de grãos e fibras) é um dos ecossistemas tropicais mais diversificados do mundo.
Em 1997, em Bornéu, eu estava investigando os incêndios não controlados que durante meses devastaram vastas áreas de floresta virgem. Um intenso episódio do fenômeno El Niño causou uma seca terrível, e uma espessa névoa amarela invadiu grande parte da Indonésia, Malásia e além.
Os danos ecológicos e humanos foram consideráveis. Algumas das florestas de biodiversidade mais bem preservadas e mais ricas do planeta estavam em chamas, e milhares de espécies raras de plantas, pássaros e animais, como os orangotangos, estavam em risco. O céu escureceu, a temperatura caiu, as árvores não estavam mais florescendo, as culturas agrícolas estavam prestes a ser colhidas, e milhões de pessoas começaram a sofrer de doenças respiratórias graves.
Após meses de destruição geral, as chuvas das monções chegaram e apagaram, finalmente, os incêndios. Foi então que uma doença misteriosa e mortal apareceu a centenas de quilômetros de distância, na Malásia, perto da cidade de Sungai Nipah, a oeste da capital Kuala Lumpur. Dezenas de milhares de porcos eram criados lá, nas proximidades de grandes pomares comerciais de manga e durião (Durio zibethinus).
Morcego frugívoro

Por alguma razão desconhecida, primeiro os porcos e depois muitos humanos começaram a ter convulsões e dores de cabeça. Para impedir a propagação dessa nova doença altamente contagiosa, centenas de milhares de porcos tiveram que ser exterminados, mas isso só aconteceu após a morte de 105 pessoas. Foram necessários seis anos para especialistas em ecologia de doenças encontrar a ligação entre a destruição da floresta de Bornéu e a doença das fazendas de porcos da Malásia. O que aconteceu, e isso só se soube em 2004, era que certas espécies de morcegos frugívoros (que se alimentam de frutas) que geralmente vivem próximos a árvores que florescem e dão frutos das florestas de Bornéu foram forçadas pelos incêndios de 1997 a procurar novas fontes de alimento.
A devastação da natureza por mão humana
Milhares desses morcegos se deslocaram até Sungai Nipah, onde foram vistos empoleirados em árvores frutíveras. Do alto delas, deixavam cair pedaços semi comidos de frutas nos chiqueiros de porcos localizados logo abaixo. Ora, os morcegos são um reservatório bem conhecido de muitos vírus e, como na África, onde estão ligados ao desenvolvimento de doenças mortais como o Ebola e o Marburg. Pesquisadores logo descobriram que aqueles que desembarcaram na Malásia eram portadores do vírus  Nipah, que eles haviam passado para os porcos através dos restos de frutas e da sua urina. Nipah é apenas uma das várias centenas de doenças animais, ou zoonoses, que se espalharam para os seres humanos nos últimos 50 anos. Mas está se tornando cada vez mais certo que essa transmissão é, para muitos, uma consequência direta da devastação humana da natureza. Uma devastação que, hoje, faz com que cerca de um milhão de espécies estejam ameaçadas de extinção (**).
Mosaico do desflorestamento

“Quanto mais destruímos a natureza, maior a probabilidade de vermos o surgimento de doenças assustadoras como a Covid-19”, diz Kate Jones, diretora de ecologia e biodiversidade da University College London. Para ela, há uma forte coincidência entre essas doenças emergentes e a destruição que estamos promovendo da biodiversidade. Algumas dessas doenças estão entre as condições mais mortais já encontradas pelos seres humanos: HIV, febre Ebola, febre Lassa, vírus Marburg e vírus da espuma símia (originária da África), vírus Nipah (originário do sudeste da Ásia), doença de Chagas, vírus Machupo e hantavírus (nascido na América Latina), vírus Hendra da Austrália, a síndrome respiratória do Oriente Médio (MERS) identificada na Arábia Saudita e a síndrome de doença respiratória aguda grave (SARS) e agora a doença de coronavírus (Covid-19), que surgiram na China. Algumas dessas doenças, como o Ebola, estão ligadas ao desmatamento; outras, como a doença de Lyme, são causados ??pela expansão de cidades em terras recém-desmatadas. Acredita-se que ainda mais sejam causadas ??pela caça ou associados a mercados oficiais ou clandestinos que exploram a vida selvagem, e a agricultura intensiva. “Cortando estradas através de florestas, fragmentando ecossistemas, minerando em áreas remotas e incentivando o comércio global”, diz Kate Jones, “não estamos apenas destruindo a vida selvagem, estamos também criando as condições perfeitas para novas doenças aparecerem e serem transmitidas para nós”.
Nossas ações têm repercussões
“A perda de biodiversidade está desempenhando um papel crescente no surgimento de alguns desses vírus”, diz ela. “Desmatamento em larga escala, degradação e fragmentação de habitats, intensificação da agricultura, nosso sistema alimentar, comércio de espécies animais e vegetais e mudanças climáticas antropogênicas são, todos eles, fatores que contribuem e se somam para a perda de biodiversidade e o aparecimento de novas doenças. Hoje, dois terços das infecções e doenças emergentes são provenientes da vida selvagem”.  E completa Kate Jones: “A preservação dos ecossistemas e da biodiversidade nos ajudará a reduzir a prevalência de alguns deles. A maneira como cultivamos, usamos o solo, protegemos os ecossistemas costeiros e tratamos nossas florestas ou arruinará o nosso futuro, ou garantirá nossa sobrevivência”.
Coruja

“O culpado não é exatamente a perda ou redução da biodiversidade, mas as interações entre pessoas e biodiversidade”, insiste Sean O’Brien, presidente e CEO da NatureServe, uma ONG sem fins lucrativos com sede nos Estados Unidos, cujos pesquisadores trabalham com organizações globais de conservação. “A agricultura intensiva, em particular a derrubada de florestas para desenvolver a agricultura, tende a aumentar a frequência do contato humano-vida selvagem e nos expõe a doenças anteriormente desconhecidas”, diz O’Brien. “Dessa forma, favorecemos o encontro entre animais silvestres que permaneceriam distantes uns dos outros na natureza, e criamos vínculos anormais que permitem que uma doença, provavelmente incapaz de nos infectar diretamente, passe de uma espécie animal para os seres humanos através de outras espécies que atuam como vetores”.
Interação entre biodiversidade e ações humanas
A preservação dos ecossistemas e da biodiversidade nos ajudará a reduzir a prevalência de alguns deles. A maneira como cultivamos, usamos o solo, protegemos os ecossistemas costeiros e tratamos nossas florestas arruinará nosso futuro ou garantirá nossa sobrevivência”, conclui.
Floresta queimada

“Os agentes patógenos circulam entre os hospedeiros da vida selvagem e alguns podem ser transmitidos aos seres humanos, embora raramente o façam em ecossistemas naturais não perturbados. Mas quando os seres humanos degradam ou destroem esses habitats naturais, a comunidade animal muda radicalmente”, confirma Richard Ostfeld, pesquisador sênior do Instituto Cary de Estudos de Ecossistemas em Millbrook, Nova York, que estuda o surgimento de doenças como a doença de Lyme em ambientes degradados.
“Alguns dos principais hospedeiros que conservam os patógenos em seus organismos são roedores e, às vezes, morcegos”, continua Ostfeld. “Tais animais, vetores de vírus, costumam ver suas populações crescerem quando seus predadores e competidores são caçados. A perda de biodiversidade aumenta as taxas de contato entre essas espécies de reservatórios de vírus e os seres humanos, acentuando a ameaça de doenças infecciosas”, conclui.
Vice-Presidente Associado de Conservação e Saúde da EcoHealth Alliance, pesquisador do Herbário Nacional da Bolívia, o cientista Carlos Zambrana-Torrelio estuda os vínculos entre biodiversidade e ações humanas em relação à Convenção das Nações Unidas sobre diversidade biológica. “A atual pandemia de Covid-19 não é a primeira epidemia ou pandemia originária da vida selvagem que causa alta mortalidade de humanos. O HIV se espalhou de primatas para humanos, febres hemorrágicas como o hantavírus ou o vírus Machupo na Bolívia, de roedores para humanos”, diz Zambrana-Torrelio.
A biodiversidade não é em si mesma uma ameaça
“O problema é que nós, humanos, nos acostumamos a destruir os hábitats e os hábitos desses animais e isso faz com se multipliquem as possibilidades de nos contagiarmos com as doenças deles. A biodiversidade não é, por si só, um risco para os seres humanos. É quando interagimos com ela que o problema começa”, diz Zambrana-Torrelio.
Animais tentam fugir da destruição do seu habitat

A perda de biodiversidade aumenta ou reduz o número de vírus transmitidos aos seres humanos? A resposta é complexa. As áreas recentemente devastadas da Amazônia por incêndios e pelo desmatamento proposital constituem um local ideal para a criação de mosquitos e para propiciar a infecção humana por malária ou dengue. Da mesma forma, os carrapatos que transmitem a doença de Lyme ou o vírus do Nilo Ocidental nos Estados Unidos prosperam em terras recentemente desmatadas e estão se espalhando pelo mundo com as mudanças climáticas.
Mais espécies, menos doenças
A lógica comum seria que, quanto mais rica a biodiversidade, mais haveriam patógenos e vírus nos animais e, portanto, maior exposição e risco para os seres humanos. Mas a verdade é que muitos estudos mostram que mais espécies significam menos doenças e que, contrariamente ao que se poderia pensar, uma rica biodiversidade tem um efeito protetor sobre as espécies que evoluem juntas. É apenas quando ocorrem perturbações do sistema natural que surge a transmissão de vírus como o Ebola ou o coronavírus.
As mudanças ambientais terão consequências dramáticas para os homens, prevê Felicia Keesing, especialista em ecologia das doenças no Bard College de Annandale, no estado de Nova York.
Quando a biodiversidade recua, explica Felicia Keesing, as primeiras espécies a fugir para outras áreas são geralmente os grandes mamíferos com baixas taxas de reprodução. Pequenos animais, como morcegos, ratos ou carrapatos, que se reproduzem em grande número, precisam procurar novos hospedeiros e provavelmente transmitirão patógenos aos seres humanos. Felicia Keesing estudou doze doenças, incluindo a febre do Nilo Ocidental e a doença de Lyme, em ecossistemas ao redor do mundo. A cada vez, ela descobriu que a prevalência de doenças aumentava com a perda de biodiversidade. Espécies aglomeradas em habitats pobres também podem espalhar novas doenças, acrescenta Eric Fèvre, especialista em doenças infecciosas animais na Universidade de Liverpool. “Os animais de fazenda são frequentemente o produto final da perda de biodiversidade. Ao selecionar as melhores vacas, porcos ou galinhas, criamos populações de animais que frequentemente vivem em condições de pecuária intensiva e que são, geneticamente, muito semelhantes. Isso cria riscos de doenças emergentes, porque quando essas grandes populações geneticamente uniformes são vulneráveis, a doença pode se espalhar muito rapidamente”, observa ele.
Terra arrasada

“Embora a Covid-19 seja derivada de um morcego, ele pode ter sido amplificada em um sistema agrícola intensivo antes de ser transmitido aos seres humanos”, diz Eric Fèvre. Ele trabalha em parceria com Christine Kreuder Johnson, diretora de pesquisa do Instituto de Saúde One da Universidade da Califórnia, na Escola de Medicina Veterinária Davis. Em um estudo recente, realizado durante quatro anos, esses dois cientistas mostram que os vírus dos animais que caçamos e cujos habitats são também os que mais destruímos, são os mais perigosos para os seres humanos. “A primeira consequência disso é que esses animais compartilham seus vírus conosco. As ações humanas ameaçam a sobrevivência das espécies e também aumentam o risco de contágio. Numa infeliz convergência de muitos fatores, isso resulta no tipo de distúrbio em que estamos agora”, acrescenta Kreuder Johnson. “Ao quebrar as barreiras naturais entre as espécies e destruir a biodiversidade, abrimos a porta, não apenas ao Covid-19, mas também, potencialmente, a muitos outros vírus e agentes patógenos que, potencialmente, podem ser ainda mais perigosos”.
(*) John Vidal é Jornalista e escritor, foi colunista ambiental do The Guardian, em Londres

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Racismo é uma doença

Um sentimento abominável

O racismo é, talvez, o mais abominável de todos os sentimentos humanos. Ele é causa de incontáveis sofrimentos de indivíduos e de sociedades inteiras, vítimas das diferentes formas do preconceito racial. Existe desde que o mundo é mundo, e continua a existir nos dias de hoje, como um estigma odioso que pode se manifestar em qualquer pessoa desavisada.
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Por: Luis Pellegrini
Racismo, como conceito filosófico, é a denominação que se dá à convicção que, além de proclamar a superioridade de uma raça, prega a separação, a subordinação ou a segregação de outras raças em relação àquela escolhida.
Branca e negra

Qualquer postura racista é irracional, já que nenhum argumento lógico é capaz de sustentá-la. Vários pensadores, no entanto, tentaram encontrar razões racionais para justificá-la. No século dezoito, quando o alemão Blumembach diferenciou as características das raças humanas através da conformação craniana, aparecem as primeiras manifestações de um racismo pseudo racional. Simplesmente baseado nas diferenças morfológicas dos crânios dos indivíduos das diferentes raças, o francês Gobineau aproveita para afirmar em sua obra Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas que a única raça pura é a ariana e, por isso, superior às demais. Afirmação obviamente despropositada e ridícula, mas cujas consequências, ao longo da história, foram terríveis. O pangermanismo, que surgiu na Alemanha nas últimas décadas do século 19, adota a doutrina de Gobineau para justificar sua tentativa de unir as “raças puras” que povoavam não só a Alemanha como outros países europeus. Tal sentimento de “purismo racial” desembocou, finalmente, na primeira metade do nosso século, na loucura racista do nazismo antissemita, com todo o seu horrível séquito de muitos milhões de judeus, ciganos e indivíduos de outras minorias trucidados nos campos de concentração.
Tais fatos, deve-se lembrar, não aconteceram num passado remoto, num momento tão recuado da história que nos permita dormir tranquilos, como se nada tivéssemos a ver com eles. São fatos muito recentes. Ocorreram há pouco mais de meio século, quando muitos de nós já tínhamos nascido. E, por outro lado, e infelizmente, estão longe de serem fatos excepcionais. De certa forma constituem mais a regra do que a exceção no conturbado mundo moderno em que vivemos. Praticamente não há dia em que os jornais e as televisões não noticiem massacres étnicos em muitos países da África, renovados conflitos entre árabes e judeus no Oriente Médio, ou entre as diferentes etnias das nações da ex-União Soviética. Ao mesmo tempo, na desenvolvida Comunidade Europeia, proliferam agora líderes políticos e partidos que desfraldam sem pudor a bandeira do racismo travestido na alegação de que “é preciso proteger nossas fronteiras nacionais contra a invasão dos refugiados”. Na África do Sul, só há poucos anos, e a duras penas, aboliu-se o famigerado apartheid, regime que privilegiava a minoria branca em detrimento da grande maioria negra, esta última segregada em guetos em nada diferentes das nossas favelas. Nos Estados Unidos permanece a generalizada hostilidade contra os negros e os chicanos (imigrantes latino-americanos).
Multicor

“País mulato”, um racista disfarçado
O Brasil, por seu lado, não escapa ao racismo. “País mulato”, país da miscigenação, caldeirão de variadas raças que para cá vieram através da imigração, cultiva-se aqui, em larga escala, uma das piores formas de racismo. Aquele que aparece como lobo em pele de cordeiro, travestido na ficção da “democracia racial”. Mas a realidade é outra: qualquer pesquisa sociológica demonstra que as classes mais pobres e desvalidas da nossa população são constituídas por extrema maioria de negros, mulatos e outros mestiços. Nosso país, que muitos ainda insistem em chamar de “coração do mundo e pátria do evangelho”, na assertiva generosa porem ingênua de Chico Xavier, trata com extrema crueldade os seus filhos mais carentes. Na base dessa postura madrasta, na pior acepção dessa palavra, o que persiste na verdade é um profundo sentimento racista.
O racismo que prega a separação racial pela cor da pele é a forma mais exterior e evidente de estabelecer qualificações e separações entre as raças. Mas se visualizarmos a questão como uma cebola composta de diferentes camadas, talvez nos surpreendamos com o que se encontra ao examinarmos os conteúdos dos seus estratos mais internos e ocultos. Suas origens remotas, em termos de socio-antropologia, vão ser achadas nos componentes primitivos do homem entendido mais como animal do que como ser humano pensante e consciente. Vêm do arcaico instinto de defesa territorial, que leva o bicho a tomar posse de um território e a atacar qualquer invasor que nele se aventure a penetrar.
Em termos psicológicos, o racismo tem outras explicações. Deriva de uma patologia do ego individual e coletivo à qual dá-se o nome bem conhecido de egoísmo. O ego neurótico, ao concentrar-se cada vez mais em si mesmo, ao desenvolver a convicção falsa de que é o centro do mundo, de que é uma espécie de sol ao redor do qual tudo e todos giram como satélites, começa a perder cada vez mais a sua capacidade de ver o outro, e portanto de estabelecer relações verdadeiras com o outro. Não mais é capaz de projetar-se com entusiasmo e coragem no mundo, e de perceber o mundo naquilo que ele realmente é: um paraíso de diversidade. Longe disso, o ego autocentrado torna-se cada vez mais endurecido, menos flexível e maleável, e menos apto a desempenhar o seu verdadeiro papel de intermediário entre a consciência desperta e as coisas e fenômenos do mundo. Perdido no interior de si mesmo, esse ego doente vive na solidão e no medo. A patologia que imediatamente decorre dessa situação é o terror do diferente. Tudo aquilo que não o espelha e reflete, tudo aquilo que ele não reconhece como igual ou semelhante a si mesmo, e portanto como parte integrante de si mesmo, passa a ser para esse ego um perigo e uma ameaça. O contato com qualquer diferença o acua e amedronta, e ele, por instinto de defesa, tende a esmagar e destruir o que, neuroticamente, considera um “inimigo”.
Sorrisos

Microcosmo que concentra todo o macrocosmo
No entanto, cada um de nós é um microcosmo que concentra e sintetiza em si todo o macrocosmo. Em cada um de nós convivem, de forma manifestada ou em potencial, todas os diferentes fenômenos do mundo e da natureza humana. E assim, quando combatemos aquilo que é diferente de nós apenas pelo fato de que é aparentemente diferente, estamos na verdade combatendo alguma coisa que existe em nós, que faz parte de nós, e que pode vir à tona e se manifestar a qualquer momento. O terror do diferente é portanto o terror da nossa própria diversidade.
O racismo, consequência direta do medo do diferente, é uma anomalia perigosa e mortal, porque antes de levar a pessoa racista a matar os seus pretensos inimigos, ele mata a alma do próprio racista. Ao contrário do ego neurótico, aquela componente fundamental da psique a que damos o nome de alma ama a diversidade. A alma sadia tende a se interessar e a integrar tudo aquilo de diferente com que entra em contato. Ela se alimenta das diferenças, e por isso não têm limites a sua curiosidade e o seu interesse pelos múltiplos fenômenos que ocorrem no mundo exterior e no mundo interior do ser humano. Por isso diz-se, com acerto, que a alma é a sede da criatividade. Sempre interessada pelo novo, pelo inédito, pelo transformado, é ela quem nos arrasta consigo, fazendo-nos mergulhar com ela na aventura do mundo onde vamos encontrar todas as infinitas formas criadas. É ela, a nossa alma aventureira que, ao agir de tal forma, impede a cristalização da nossa pessoa, fazendo com que sejamos realmente seres em permanente processo de evolução, e não pedras enrijecidas perdidas à beira dos caminhos.        
Se o ego é o instrumento que nos liga ao mundo, a alma é o instrumento que nos conduz ao Self, o Eu Superior, a centelha divina que, segundo todos os grandes sistemas religiosos e a moderna psicologia, brilha no mais profundo de cada um de nós. Uma alma mal servida pelo ego ao qual está ligada, uma alma impedida por esse ego de lançar-se livremente no mundo de modo a poder alimentar-se de diversidade, certamente definhará e decairá. E uma alma definhada e decaída não tem condições de desempenhar aquela sua função primordial de ponte de conexão entre o indivíduo e o seu Self. Convém sempre lembrar que entre um indivíduo desconectado de seu Self e um indivíduo morto há, na verdade, pouquíssima diferença. Porque a vida sem o Self não é mais que existência mecânica, uma ilusão transitória e falível.
A natureza ama a diversidade
O racismo, algoz da alma, é um sentimento antinatural. Porque a mãe natureza, da mesma forma que a alma humana, também ama a diversidade. Nenhuma criação natural se repete; todas elas são infinitamente variadas. Não há uma única impressão digital igual a outra; nenhum rosto exatamente igual a outro, desde que o homem existe sobre a terra; nenhum planeta ou estrela, nenhuma folha; nenhum dia ou noite que se repitam. Como cada pessoa, cada coisa que existe é única, irrepetível, e diferente de todas as outras.      
Por que, então, só aceitar e acolher aqueles ou aquilo que é igual a nós?
A partir de tudo isso, pode-se entender que o racismo é um conceito muito mais amplo do que aquele limitado às diferenças causadas pelo maior ou menor teor de melanina na pele humana. É também racismo, por exemplo, o ódio ou desprezo por aqueles que professam crenças religiosas diferentes das nossas; que defendem ideias, posturas existenciais, preferências afetivas ou sexuais que não correspondam exatamente às nossas.
Do ponto de vista da espiritualidade o racismo é um tremendo equívoco. Ele contraria preceitos fundamentais de qualquer religião verdadeira. A começar pela religião de Cristo: “ama ao próximo como a ti mesmo”. Não à toa Helena Blavatsky, ao estabelecer na segunda metade do século passado os fundamentos básicos da Sociedade Teosófica – que ela propunha como núcleo da Sabedoria Universal – defendeu em primeiro lugar a ideia da fraternidade universal, sem distinção de credo, raça ou cor.
No entanto, quando se examina a história das religiões, o que mais se vê são episódios de racismo, radicalismo e intolerância fratricida. Quase nenhuma Igreja escapa a esse estigma. Quantos milhares, ao longo dos séculos, a Inquisição católica assou nas fogueiras, torturou até à morte nos calabouços, fez sucumbir sob as lanças e espadas dos cavaleiros da Cruzadas, sob o mero pretexto de “destruir os inimigos de Deus”?
Agiram da mesma forma diferente, em muitos momentos da história, os judeus seguidores de Jeová, e os muçulmanos seguidores de Maomé. E também os hindus de Rama e Krishna, os budistas de Buda, e os chineses taoistas de Lao Tsé. Razão pela qual, desde sempre, os conflitos religiosos constituem uma das principais causas de guerras, mortandades e sofrimentos sem fim.
Não é igual a mim, deve ser destruído
Na origem de toda essa discórdia, lá está, antecedendo a todos os argumentos de ordem territorial, política, econômica, militar, a grande patologia do medo daquilo que é diferente. “Não é igual a mim, é perigoso e deve ser destruído”, afirmam na sua loucura os racistas.
Trazendo esse tema para bem perto, testemunhei há alguns anos um episódio exemplar de como o racismo patológico penetra no seio de movimentos religiosos travestido de ato de “purificação espiritual”. Visitei, como pesquisador jornalista, um templo de “inspiração bíblica” cujo nome prefiro omitir – até porque, para ser justo, deveria elencar junto a ele muitas dezenas de outros nomes de templos que adotam posturas similares. Num determinado momento do culto, dirigido por um pastor de voz inflamada, procedeu-se a um simulacro de exorcismo de “entidades” de umbanda e candomblé que se manifestavam em fiéis recém-chegados. O espetáculo era simplesmente repugnante. Uns pobres caboclos, pretos-velhos e outros tantos exus e pombagiras “incorporados” naqueles fiéis recebiam tratamento digno de demônios da pior espécie. Só faltou levarem pancada de porrete e sova de chicote. Segundo o pastor aquele exorcismo era necessário para “limpar os recém-chegados das cargas negativas que traziam”, sem o que não poderiam ser aceitos como novos membros da comunidade.
Examinei os sete ou oito candidatos que carregavam, talvez pela última vez, os caboclos, pretos-velhos, exus e pombagiras que durante tanto tempo os seguiram como companheiros espirituais de viagem. Eram todos pessoas muito humildes e quase todos pretos ou mulatos. Gente cujos antepassados aqui chegaram presos aos grilhões da escravidão. Gente arrancada da África, ou das suas tribos indígenas, de quem tudo foi tomado: seus nomes, sua língua, sua identidade nacional e pessoal, sua liberdade. Tudo, menos a sua espiritualidade, de alguma forma ainda preservada nos terreiros afro-brasileiros. E agora vinha uma outra religião, filha do puritanismo anglo-saxão, produto acabado da mentalidade capitalista e consumista, acabar com aquilo que restara da herança original daquela gente. Era demais. Levantei-me e fui embora, levando comigo um coração apertado.
Um exu ou uma pombagira, no panteão afro-brasileiro, representam, entre outras coisas, a liberdade, a sensualidade, a esperteza lícita, a rebeldia contra os preconceitos descabidos e contra os condicionamentos que oprimem o indivíduo e a sociedade; os caboclos representam a sabedoria, o discernimento, a capacidade de lutar por ideais justos, a defesa dos valores que elegemos para nós e nos quais acreditamos; e os pretos-velhos representam, antes de tudo, a raríssima capacidade do amor compassivo, a compaixão. Por que, por quais motivos devem ser exorcizados todos esses valores? Resposta: por racismo.
Criança não tem preconceito

Racismo pela cor da alma
Essa igreja dos exorcismos certamente daria o seu aval a todos aqueles valores, e sem pestanejar os incluiria na categoria dos fundamentos superiores da espiritualidade. Mas com uma condição: desde que eles viessem da Bíblia, ou da boca dos seus pastores, e nunca de outras fontes. O recado que ela queria dar àqueles candidatos era portanto bem claro: seriam aceitos desde que renunciassem publicamente a tudo neles que cheirasse a negritude, tudo que tivesse sabor de índio, tudo que fosse diferente dos padrões eleitos pela igreja.
Racismo puro. Mas não racismo pela cor da pele, e sim pela cor da alma. Racismo cultural e religioso.
Mas há, felizmente, uma grande diferença entre religião e espiritualidade, e nunca será demais insistir nela.
Religiões são sistemas de crenças que vão se cristalizando no tempo e no espaço, até tornarem-se, via de regra, organismos duros e impermeáveis. O movimento das religiões é em geral de tipo côncavo, voltado para si mesmo. Como o ego neurótico que pouco a pouco perde o contato com o mundo exterior e que desenvolve uma fobia para com tudo aquilo que é diferente dele, a maioria das religiões acaba comprimida e limitada em si mesma, isolada de qualquer contexto maior. Por isso precisa de dogmas, de postulados e fundamentos arbitrários, muitas vezes destituídos de qualquer lógica, para preservar o seu poder e a sua ortodoxia. Para as religiões, racismos disfarçados constituem uma triste constante.
Espiritualidade é o contrário de tudo isso. A verdadeira espiritualidade é aberta. Seu movimento é de tipo convexo, heterodoxo, voltado para o mundo e para o cosmo. Espiritualidade não é coisa do ego, e sim da alma. Aquela parte de nós que, por estar mais perto do Self, não conhece barreiras nem limites, e está a um passo de Deus. Espiritualidade é livre, e não precisa de nenhuma lógica para existir, porque ela é a própria lógica na acepção superior da palavra. Suas crenças – se é que neste caso podemos usar o termo crença – são colhidas no vasto celeiro da Sabedoria Universal. Aquele acervo infinito de valores que, por não pertencerem a ninguém, pertencem a todos. E por isso podem ser encontradas na própria base da sabedoria de qualquer religião verdadeira, seja ela ocidental ou oriental, preta, branca, amarela, azul ou violeta. A espiritualidade, como a mãe natureza e como a alma humana, também ama a diferença, pois sabe perfeitamente que Deus, a Unidade, manifesta-se no mundo através da diversidade. E sabe que cada parte diversa que existe no mundo é uma parte de Deus. Por isso, para a espiritualidade, qualquer racismo é uma abominação.


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