investigação realizada pelo Pr. Psi. Jor Jônatas David Brandão Mota
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O PROBLEMA DA IDENTIDADE PELO INIMIGO
Ao longo da história das religiões abraâmicas, especialmente no judaísmo e no cristianismo, a identidade comunitária foi muitas vezes construída pela oposição a um "outro". Esse "outro" poderia ser um povo vizinho, uma cultura diferente, ou mesmo membros internos que pensavam de maneira distinta. A narrativa da eleição divina frequentemente se articulou com a ideia de exclusividade e rejeição, criando um paradoxo entre o Deus que ama a todos e o povo que só consegue se ver como escolhido ao custo de excluir ou combater outros.
A FUNÇÃO POLÍTICA E RELIGIOSA DO INIMIGO
No contexto do Antigo Testamento, os inimigos foram fundamentais para a consolidação de uma nação e para a legitimação de lideranças. Moisés, Josué, os juízes e os reis precisaram reafirmar continuamente a existência de opositores para manter coesa a comunidade israelita. A religião, nesse sentido, forneceu a justificativa teológica para guerras, extermínios e exclusões. Esse modelo foi herdado, em maior ou menor grau, pelo cristianismo, que em sua expansão histórica também usou a figura do inimigo para fortalecer sua unidade e autoridade.
AS CONSEQUÊNCIAS HISTÓRICAS DA NECESSIDADE DE INIMIGOS
A insistência em construir identidades a partir da exclusão trouxe repercussões graves: exílios, perseguições, divisões internas e perda de credibilidade espiritual. O que deveria ser sinal de fé e de amor ao próximo tornou-se, em muitos momentos, causa de ódio e violência. Tanto judeus quanto cristãos, em diferentes épocas, sofreram os resultados daquilo que eles mesmos praticaram: perseguições, massacres e expulsões. A história demonstra que a "necessidade de inimigos" não apenas destrói os outros, mas também corrói quem a alimenta.
A RELEITURA A PARTIR DE JESUS
O cristianismo, ao nascer, teve em Jesus uma proposta de ruptura radical com essa lógica: amar os inimigos, dar a outra face, conviver em paz com todos. Porém, ao longo do tempo, muitos cristãos retornaram ao padrão antigo, reforçando guerras, cruzadas, inquisições e exclusões. O desafio contemporâneo é recuperar a essência da mensagem de Jesus e reinterpretar a história para aprender com os erros, entendendo que a fé verdadeira não precisa de inimigos para sobreviver, mas de amor, respeito e diálogo.
BIBLIOGRAFIA
Aqui estão 20 livros fundamentais para o estudo do tema (história bíblica, judaísmo, cristianismo, violência religiosa, identidade e poder):
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ASSMANN, Jan. Moisés, o Egípcio. 1998.
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ARMSTRONG, Karen. Campos de Sangue: Religião e a História da Violência. 2014.
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BOYARIN, Daniel. Border Lines: The Partition of Judaeo-Christianity. 2004.
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CROSSAN, John Dominic. Jesus: A Revolutionary Biography. 1994.
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CULLMANN, Oscar. Cristologia do Novo Testamento. 1959.
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EHRMAN, Bart. Jesus, Interrupted. 2009.
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EHRMAN, Bart. Lost Christianities. 2003.
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ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. 1939.
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FLAVIUS, Josephus. Antiquities of the Jews. c. 93 d.C.
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FREEMAN, Charles. A Nova História do Cristianismo. 2009.
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GALEANO, Eduardo. As Veias Abertas da América Latina. 1971.
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HORSLEY, Richard. Jesus and the Spiral of Violence. 1987.
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LÉVI-STRAUSS, Claude. As Estruturas Elementares do Parentesco. 1949.
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PAGELS, Elaine. The Gnostic Gospels. 1979.
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RENAN, Ernest. Vida de Jesus. 1863.
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SANCHIS, Pierre. Catolicismo: Unidade Religiosa e Pluralismo Cultural. 1983.
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SAND, Shlomo. A Invenção do Povo Judeu. 2008.
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SENNETT, Richard. As Metamorfoses do Trabalho. 1998.
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TILLICH, Paul. Teologia Sistemática. 1951.
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WRIGHT, N. T. Jesus and the Victory of God. 1996.
(1) O REGISTRO HISTÓRICO
O relato bíblico de Abel e Caim aparece em Gênesis 4:1-16. Nele, Caim, agricultor, oferece do fruto da terra, enquanto Abel, pastor de ovelhas, apresenta as primícias e a gordura de seus rebanhos. Deus teria aceitado a oferta de Abel, mas rejeitado a de Caim. Esse episódio culmina no primeiro homicídio da narrativa bíblica: Caim mata Abel no campo. Historicamente, esse relato reflete tensões arcaicas entre agricultores sedentários e pastores nômades, possivelmente espelhando rivalidades reais no Crescente Fértil. Autores como Josephus (Antiquities of the Jews, c. 93 d.C.) e estudiosos modernos como Jan Assmann (Moisés, o Egípcio, 1998) veem nesse mito uma construção identitária, mais simbólica do que factual, usada para explicar a violência humana em suas origens.
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(2) A PERSPECTIVA PSICOLÓGICA E SOCIOLÓGICA
Psicologicamente, o episódio ilustra o mecanismo da inveja e do ressentimento quando alguém sente sua identidade ameaçada pela comparação. Freud, em Moisés e o Monoteísmo (1939), discute como a religião canaliza rivalidades fraternas para estruturas simbólicas. Sociologicamente, esse mito pode ser lido como justificação da necessidade de inimigos para coesão interna: os pastores (abelitas) versus os agricultores (cainitas). Tanto no judaísmo quanto no cristianismo, esse modelo reforçou a ideia de que a aceitação de Deus recai sobre uns, enquanto outros são rejeitados, alimentando um senso de exclusividade e unidade contra o “outro”. O benefício aparente é a consolidação de uma identidade grupal clara.
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(3) A VONTADE DO DEUS JEOVÁ ENTENDIDO POR MOISÉS
Na leitura tradicional judaico-cristã, sobretudo moldada pelo entendimento de Moisés, Jeová deseja sacrifícios corretos, a obediência à sua forma de culto e a rejeição daquilo que não se conforma à sua ordem. O texto bíblico dá a entender que a oferta de Abel foi aceita por corresponder melhor à vontade divina, enquanto a de Caim foi rejeitada. Assim, a interpretação foi de que Deus distingue, escolhe e prefere, gerando a narrativa de um Deus que se agrada de uns e reprova outros (cf. Hebreus 11:4; 1 João 3:12). Muitos cristãos ainda sustentam essa leitura como expressão da “justiça seletiva” de Deus.
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(4) A VONTADE DO DEUS DE JESUS
Jesus reinterpretaria a situação a partir do amor e da reconciliação. Em Mateus 5:21-24, ele ensina que a ira contra o irmão já é homicídio no coração, e a prioridade não é o sacrifício, mas a reconciliação. Em Mateus 9:13, Jesus diz: “Misericórdia quero, e não sacrifícios.” A vontade do Deus revelado por Jesus não seria a de aceitar ofertas diferentes e rejeitar pessoas, mas de ensinar que a relação com o próximo é mais importante que a ritualidade. Nesse sentido, o conflito entre Caim e Abel deveria ser resolvido pelo amor, não pela competição, algo que muitos cristãos esquecem ao perpetuar exclusões e divisões.
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(5) ATUALIDADE DO EXEMPLO
Hoje, este relato bíblico serve de alerta contra a tendência humana e religiosa de criar inimigos internos e externos como forma de se autoafirmar. Tanto no judaísmo quanto no cristianismo, há o risco de repetir a lógica de Caim: a inveja, a comparação, o ódio ao “irmão diferente”. A superação disso exige resgatar o princípio do amor ao próximo como fundamento da fé. Em sociedades plurais, a lição de Abel e Caim pode ajudar a combater fundamentalismos e intolerâncias, lembrando que a espiritualidade autêntica não precisa da rejeição do outro para se justificar, mas sim do cultivo da fraternidade.
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(6) BIBLIOGRAFIA
Aqui estão 10 livros relevantes sobre o tema:
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ASSMANN, Jan. Moisés, o Egípcio. 1998.
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ARMSTRONG, Karen. Campos de Sangue: Religião e a História da Violência. 2014.
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BOYARIN, Daniel. Border Lines: The Partition of Judaeo-Christianity. 2004.
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CROSSAN, John Dominic. Jesus: A Revolutionary Biography. 1994.
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EHRMAN, Bart. God’s Problem: How the Bible Fails to Answer Our Most Important Question. 2008.
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FREUD, Sigmund. Moisés e o Monoteísmo. 1939.
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GIRARD, René. A Violência e o Sagrado. 1972.
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HORSLEY, Richard. Jesus and the Spiral of Violence. 1987.
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PAGELS, Elaine. The Gnostic Gospels. 1979.
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WRIGHT, N. T. Jesus and the Victory of God. 1996.