quando a coragem restaura a política
A Primeira-Ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, acaba de alcançar mais um feito memorável: graças à sua política de isolamento social severo e de testagem em massa para combater a Covid-19, seu país é um dos primeiros a voltar à normalidade pré-pandêmica. Em março de 2019, Jacinda tornou-se exemplo internacional ao abraçar a comunidade islâmica, alvo de atentado terrorista em seu país. A jornalista Inês Castilho, em artigo abaixo, traça um retrato dessa mulher-símbolo de toda uma nova geração de políticos.
Em 2019, em um discurso durante um evento privado sobre “liderança”, em Cingapura, o ex-presidente americano, Barack Obama, fez uma reflexão sobre o poder e disse: “Se as mulheres governassem todos os países do mundo, haveria uma melhora geral no padrão de vida e nos resultados”. Ele certamente fazia alusão à atuação da atual Primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern.
A Nova Zelândia suspendeu todas as restrições sociais e econômicas, exceto os controles de fronteira, depois de declarar nesta segunda-feira, 8 de junho, que estava livre do coronavírus. O país é um dos primeiros a voltar à normalidade pré-pandêmica. O governo local apostou em regras de isolamento social severas antes mesmo do primeiro óbito e em testagem em massa para combater a Covid-19.
Jacinda Ardern, Primeira-ministra da Nova Zelândia tornou-se exemplo internacional em março de 2019 ao abraçar a comunidade islâmica, alvo de atentado terrorista em seu país, e politizar a vida privada, dando à luz no poder.
A Primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern
Por: Inês Castilho
Fonte: Site https://outraspalavras.net/
Duas semanas após o ataque terrorista contra muçulmanos na Nova Zelândia, mais de 20 mil manifestantes se reuniram para homenagear as vítimas na sexta-feira, 29 de março, num parque próximo à mesquita Al Noor, onde tombaram mais de 40 pessoas. Na sexta-feira 15 de março, dia islâmico de orações, um homem australiano de extrema direita invadira duas mesquitas e metralhara 50 pessoas na cidade de Christchurch, na Ilha do Sul da Nova Zelândia.
A primeira-ministra do país, Jacinda Arden, uma das oradoras do memorial, subiu ao palco coberta por um manto do povo Maori e foi ovacionada de pé. Suas primeiras palavras, em língua nativa, invocaram o espírito dos que habitaram seu país muito antes dos europeus.
“As marés da lembrança fluem hoje sobre Christchurch.
“Vamos então nos reunir com amor, em paz, em honra desta família, para que ela possa viver de novo verdadeiramente, para que todos possamos viver de novo verdadeiramente.”
Presentes na linha de frente, os representantes da comunidade muçulmana, alvo do ataque. A mensagem da primeira ministra não poderia ser mais clara: estou ao lado das vítimas, e os muçulmanos são parte da nossa sociedade.
O respeito aos imigrantes, exibido ao honrar os nativos e assumir-se assim a si mesma, de origem europeia, como imigrante – fora demonstrado já no dia seguinte ao ataque. Num encontro com líderes religiosos muçulmanos ela, agnóstica, cobriu os cabelos em sinal de apoio à comunidade islâmica. Foi seguida por muitas neozelandesas.
As imagens do encontro correram mundo e tornaram-se exemplares para a comunidade internacional. Choveram elogios dentro e fora do país, comentou a imprensa europeia. “Estou cheio de admiração pelo tipo de amor que demonstrou, que passa por tudo o que ela fez e é precisamente o tipo de amor que aprendi a valorizar”, escreveu o professor de antropologia Ghassan Hage, no The Guardian.
Que a paz esteja convosco, As-salamu alaikum. Com a saudação de paz em árabe ela abriu a primeira sessão parlamentar depois da tragédia, e recusou-se a considerar como “outros” os muçulmanos que vivem na Nova Zelândia. “Eles são nós”, repetiu.
Em respeito às famílias das vítimas e rejeição a tudo o que o assassino representa, recusou-se a pronunciar seu nome. “Falem dos que perderam suas vidas em vez do homem que as levou. Ele pode ter procurado notoriedade, mas na Nova Zelândia não vamos lhe dar nada — nem mesmo o nome.”
Quem é ela
Jacinda Ardern assumiu o mandato de primeira-ministra da Nova Zelândia aos 37 anos, em outubro de 2017, semanas após ser eleita líder do Partido Trabalhista. Foi a segunda mulher a dirigir o partido e uma das mais jovens chefes do executivo da história do seu país – e do mundo.
Negociadora hábil, coligou-se aos verdes e aos conservadores para governar, mas desde a primeira hora adotou uma postura de acolhimento dos imigrantes. Investiu em políticas públicas de acesso à educação, redução da desigualdade social, criação de empregos e proteção do ambiente. No último orçamento, deu prioridade à redução da pobreza infantil, incentivo à saúde mental e à transição para uma economia de baixo carbono. Agora desafia o lobby armamentista e promete que “todas as armas semiautomáticas do estilo militar” serão proibidas na Nova Zelândia. O governo vai comprar as armas dos que as adquiriram legalmente, o que custará cerca de 120 milhões de euros (ou 528,73 milhões de reais) ao país.
Dilema feminino:
Mas Jacinda é notável não só por seus méritos na política institucional. Ela politizou também a vida privada, nacional e internacionalmente.
Primeira mulher a engravidar e parir no exercício do poder máximo de um país desde 1990 (antes, Benazhir Butho, no Paquistão) ela anunciou em janeiro de 2018 que estava grávida e daria à luz em junho, tensionando os polos aparentemente inconciliáveis da gestação e da vida pública. Na página oficial do Facebook escreveu que ia ser “primeira-ministra E mãe”. Usufruiria de seis semanas de licença-maternidade e quando voltasse ao trabalho seu namorado, o apresentador de programas de pesca na TV Clarke Gayford, assumiria os cuidados com a criança. Aos jornalistas, declarou que ela não era “diferente de uma mulher que trabalha em três empregos e assume várias responsabilidades”, e que esse é um dilema enfrentado por muitas mulheres.
Fez história novamente ao levar a filha de três meses, em fase de amamentação, à Cúpula da Paz que celebrou os 100 anos de Nelson Mandela na ONU, em Nova York. Além da comitiva, foi acompanhada da bebê, chamada Neve Te Aroha Ardern Gayford (Neve, do irlandês Niamh, significa brilhante, radiante; Te Aroha, amor no idioma Maori) e do parceiro Clarke Gayford, que cuidou da filha para a mãe poder trabalhar. Em declaração à imprensa, disse desejar “normalizar” a ideia de que há mães trabalhadoras.
Assim como a então deputada estadual Manoela D’Ávila e sua filha Laura na Assembleia do RGS, também sofreu machismo.
Ao discursar, Jacinda reivindicou da ONU mais apoio à diversidade cultural e esforços para combater as mudanças climáticas. Suas palavras foram lembradas nas Fridays for Future, protestos de adolescentes e crianças contra as políticas que alimentam o aquecimento global, realizados nas sextas-feiras em várias cidades do planeta.
Votar em mulheres antipatriarcais
A Nova Zelândia é valorizada por sua natureza e pela luz que encanta turistas e fotógrafos. Devido ao isolamento geográfico – fica a cerca de 2.000 km a sudeste da Austrália – desenvolveu um ecossistema único, com grande variedade de pássaros. É considerada um país pacífico e com boa qualidade de vida.
“Não estamos imunes aos vírus do ódio, do medo, dos outros. Nunca estivemos”, disse a primeira-ministra. “Mas podemos ser a nação que descobre a cura.”
Como diz um amigo, inspirador deste artigo. “Jacinda Ardern, Ocasio-Cortez, Sâmia Bonfim, Tabata Amaral. Se essa semana nos ensinou alguma coisa, foi: elejam jovens mulheres antipatriarcais, cada vez mais.”