investigação realizada pelo Pr. Psi. Jor Jônatas David Brandão Mota
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O PROBLEMA DA IDENTIDADE PELO INIMIGO
Ao longo da história das religiões abraâmicas, especialmente no judaísmo e no cristianismo, a identidade comunitária foi muitas vezes construída pela oposição a um "outro". Esse "outro" poderia ser um povo vizinho, uma cultura diferente, ou mesmo membros internos que pensavam de maneira distinta. A narrativa da eleição divina frequentemente se articulou com a ideia de exclusividade e rejeição, criando um paradoxo entre o Deus que ama a todos e o povo que só consegue se ver como escolhido ao custo de excluir ou combater outros.
A FUNÇÃO POLÍTICA E RELIGIOSA DO INIMIGO
No contexto do Antigo Testamento, os inimigos foram fundamentais para a consolidação de uma nação e para a legitimação de lideranças. Moisés, Josué, os juízes e os reis precisaram reafirmar continuamente a existência de opositores para manter coesa a comunidade israelita. A religião, nesse sentido, forneceu a justificativa teológica para guerras, extermínios e exclusões. Esse modelo foi herdado, em maior ou menor grau, pelo cristianismo, que em sua expansão histórica também usou a figura do inimigo para fortalecer sua unidade e autoridade.
AS CONSEQUÊNCIAS HISTÓRICAS DA NECESSIDADE DE INIMIGOS
A insistência em construir identidades a partir da exclusão trouxe repercussões graves: exílios, perseguições, divisões internas e perda de credibilidade espiritual. O que deveria ser sinal de fé e de amor ao próximo tornou-se, em muitos momentos, causa de ódio e violência. Tanto judeus quanto cristãos, em diferentes épocas, sofreram os resultados daquilo que eles mesmos praticaram: perseguições, massacres e expulsões. A história demonstra que a "necessidade de inimigos" não apenas destrói os outros, mas também corrói quem a alimenta.
A RELEITURA A PARTIR DE JESUS
O cristianismo, ao nascer, teve em Jesus uma proposta de ruptura radical com essa lógica: amar os inimigos, dar a outra face, conviver em paz com todos. Porém, ao longo do tempo, muitos cristãos retornaram ao padrão antigo, reforçando guerras, cruzadas, inquisições e exclusões. O desafio contemporâneo é recuperar a essência da mensagem de Jesus e reinterpretar a história para aprender com os erros, entendendo que a fé verdadeira não precisa de inimigos para sobreviver, mas de amor, respeito e diálogo.
BIBLIOGRAFIA
Aqui estão 20 livros fundamentais para o estudo do tema (história bíblica, judaísmo, cristianismo, violência religiosa, identidade e poder):
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ASSMANN, Jan. Moisés, o Egípcio. 1998.
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ARMSTRONG, Karen. Campos de Sangue: Religião e a História da Violência. 2014.
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BOYARIN, Daniel. Border Lines: The Partition of Judaeo-Christianity. 2004.
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CROSSAN, John Dominic. Jesus: A Revolutionary Biography. 1994.
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CULLMANN, Oscar. Cristologia do Novo Testamento. 1959.
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EHRMAN, Bart. Jesus, Interrupted. 2009.
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EHRMAN, Bart. Lost Christianities. 2003.
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ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. 1939.
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FLAVIUS, Josephus. Antiquities of the Jews. c. 93 d.C.
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FREEMAN, Charles. A Nova História do Cristianismo. 2009.
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GALEANO, Eduardo. As Veias Abertas da América Latina. 1971.
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HORSLEY, Richard. Jesus and the Spiral of Violence. 1987.
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LÉVI-STRAUSS, Claude. As Estruturas Elementares do Parentesco. 1949.
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PAGELS, Elaine. The Gnostic Gospels. 1979.
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RENAN, Ernest. Vida de Jesus. 1863.
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SANCHIS, Pierre. Catolicismo: Unidade Religiosa e Pluralismo Cultural. 1983.
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SAND, Shlomo. A Invenção do Povo Judeu. 2008.
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SENNETT, Richard. As Metamorfoses do Trabalho. 1998.
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TILLICH, Paul. Teologia Sistemática. 1951.
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WRIGHT, N. T. Jesus and the Victory of God. 1996.
(1) O REGISTRO HISTÓRICO
O relato bíblico de Abel e Caim aparece em Gênesis 4:1-16. Nele, Caim, agricultor, oferece do fruto da terra, enquanto Abel, pastor de ovelhas, apresenta as primícias e a gordura de seus rebanhos. Deus teria aceitado a oferta de Abel, mas rejeitado a de Caim. Esse episódio culmina no primeiro homicídio da narrativa bíblica: Caim mata Abel no campo. Historicamente, esse relato reflete tensões arcaicas entre agricultores sedentários e pastores nômades, possivelmente espelhando rivalidades reais no Crescente Fértil. Autores como Josephus (Antiquities of the Jews, c. 93 d.C.) e estudiosos modernos como Jan Assmann (Moisés, o Egípcio, 1998) veem nesse mito uma construção identitária, mais simbólica do que factual, usada para explicar a violência humana em suas origens.
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(2) A PERSPECTIVA PSICOLÓGICA E SOCIOLÓGICA
Psicologicamente, o episódio ilustra o mecanismo da inveja e do ressentimento quando alguém sente sua identidade ameaçada pela comparação. Freud, em Moisés e o Monoteísmo (1939), discute como a religião canaliza rivalidades fraternas para estruturas simbólicas. Sociologicamente, esse mito pode ser lido como justificação da necessidade de inimigos para coesão interna: os pastores (abelitas) versus os agricultores (cainitas). Tanto no judaísmo quanto no cristianismo, esse modelo reforçou a ideia de que a aceitação de Deus recai sobre uns, enquanto outros são rejeitados, alimentando um senso de exclusividade e unidade contra o “outro”. O benefício aparente é a consolidação de uma identidade grupal clara.
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(3) A VONTADE DO DEUS JEOVÁ ENTENDIDO POR MOISÉS
Na leitura tradicional judaico-cristã, sobretudo moldada pelo entendimento de Moisés, Jeová deseja sacrifícios corretos, a obediência à sua forma de culto e a rejeição daquilo que não se conforma à sua ordem. O texto bíblico dá a entender que a oferta de Abel foi aceita por corresponder melhor à vontade divina, enquanto a de Caim foi rejeitada. Assim, a interpretação foi de que Deus distingue, escolhe e prefere, gerando a narrativa de um Deus que se agrada de uns e reprova outros (cf. Hebreus 11:4; 1 João 3:12). Muitos cristãos ainda sustentam essa leitura como expressão da “justiça seletiva” de Deus.
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(4) A VONTADE DO DEUS DE JESUS
Jesus reinterpretaria a situação a partir do amor e da reconciliação. Em Mateus 5:21-24, ele ensina que a ira contra o irmão já é homicídio no coração, e a prioridade não é o sacrifício, mas a reconciliação. Em Mateus 9:13, Jesus diz: “Misericórdia quero, e não sacrifícios.” A vontade do Deus revelado por Jesus não seria a de aceitar ofertas diferentes e rejeitar pessoas, mas de ensinar que a relação com o próximo é mais importante que a ritualidade. Nesse sentido, o conflito entre Caim e Abel deveria ser resolvido pelo amor, não pela competição, algo que muitos cristãos esquecem ao perpetuar exclusões e divisões.
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(5) ATUALIDADE DO EXEMPLO
Hoje, este relato bíblico serve de alerta contra a tendência humana e religiosa de criar inimigos internos e externos como forma de se autoafirmar. Tanto no judaísmo quanto no cristianismo, há o risco de repetir a lógica de Caim: a inveja, a comparação, o ódio ao “irmão diferente”. A superação disso exige resgatar o princípio do amor ao próximo como fundamento da fé. Em sociedades plurais, a lição de Abel e Caim pode ajudar a combater fundamentalismos e intolerâncias, lembrando que a espiritualidade autêntica não precisa da rejeição do outro para se justificar, mas sim do cultivo da fraternidade.
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(6) BIBLIOGRAFIA
Aqui estão 10 livros relevantes sobre o tema:
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ASSMANN, Jan. Moisés, o Egípcio. 1998.
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ARMSTRONG, Karen. Campos de Sangue: Religião e a História da Violência. 2014.
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BOYARIN, Daniel. Border Lines: The Partition of Judaeo-Christianity. 2004.
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CROSSAN, John Dominic. Jesus: A Revolutionary Biography. 1994.
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EHRMAN, Bart. God’s Problem: How the Bible Fails to Answer Our Most Important Question. 2008.
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FREUD, Sigmund. Moisés e o Monoteísmo. 1939.
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GIRARD, René. A Violência e o Sagrado. 1972.
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HORSLEY, Richard. Jesus and the Spiral of Violence. 1987.
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PAGELS, Elaine. The Gnostic Gospels. 1979.
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WRIGHT, N. T. Jesus and the Victory of God. 1996.
A humanidade inteira se torna inimiga de Deus, apenas Noé e sua família são poupados. A narrativa legitima exclusividade e condenação.
(1) O REGISTRO HISTÓRICO
O relato do dilúvio está em Gênesis 6–9. Segundo a narrativa, Deus viu que a maldade humana havia se multiplicado, e decidiu exterminar todos os seres vivos, poupando apenas Noé, sua família e um casal de cada espécie de animal. A arca, o dilúvio e a posterior aliança do arco-íris marcam esse episódio como central na teologia bíblica. Historicamente, muitos estudiosos associam o mito do dilúvio a tradições mesopotâmicas anteriores, como a Epopéia de Gilgamesh (século XVIII a.C.) e o mito de Atrahasis. Pesquisadores como Mircea Eliade (O Sagrado e o Profano, 1957) e Karen Armstrong (A History of God, 1993) destacam como esses relatos refletem catástrofes naturais antigas, transformadas em explicações teológicas para justificar destruição e renovação.
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(2) A PERSPECTIVA PSICOLÓGICA E SOCIOLÓGICA
Psicologicamente, o dilúvio serve como metáfora de limpeza radical: destruir para recomeçar. A humanidade passa a ser vista como inimiga de Deus, e o “remanescentes” (Noé e sua família) tornam-se os únicos justos. Isso responde à necessidade de separar puros de impuros, corretos de incorretos, salvos de condenados. Sociologicamente, a narrativa legitima a ideia de que somente um grupo específico é digno de sobrevivência, criando uma forte coesão interna. Para o judaísmo e o cristianismo, o benefício presumido é a sensação de identidade exclusiva diante do “mundo corrupto”.
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(3) A VONTADE DO DEUS JEOVÁ ENTENDIDO POR MOISÉS
No entendimento mosaico, Jeová é apresentado como um Deus que pune o pecado com severidade, chegando a destruir a humanidade inteira. Sua vontade seria extirpar a maldade por meio do juízo universal, preservando apenas os obedientes. Muitos cristãos leem esse texto como demonstração da justiça divina, que não tolera o pecado, mas também como sinal de misericórdia em salvar Noé. Textos como 2 Pedro 2:5 e Hebreus 11:7 reforçam essa interpretação de que o dilúvio foi um ato justo de Deus.
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(4) A VONTADE DO DEUS DE JESUS
Jesus, porém, dá outra releitura. Em Mateus 24:37-39, ele usa o dilúvio como exemplo não de destruição, mas de vigilância espiritual. A vontade do Deus de Jesus não é destruir os ímpios, mas salvar todos (João 3:17). Em Lucas 6:36, Jesus convida a ser misericordioso como o Pai é misericordioso, sinalizando que o verdadeiro caráter divino não é aniquilar inimigos, mas oferecer reconciliação. Enquanto muitos veem o dilúvio como punição divina, em Cristo entendemos que a vontade de Deus é dar vida e não morte.
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(5) ATUALIDADE DO EXEMPLO
Hoje, o mito do dilúvio precisa ser lido com cuidado, para não reforçar narrativas de exclusivismo e destruição. Em um mundo ameaçado por mudanças climáticas e desastres ambientais, o texto pode ser reinterpretado como chamado à responsabilidade ecológica e ética. Para o judaísmo e o cristianismo, é urgente abandonar a visão de um Deus que precisa destruir inimigos, e adotar a visão de Jesus: Deus que quer salvar, transformar e reconciliar. Isso ajudaria as religiões a se tornarem forças de diálogo, em vez de justificativas de violência e exclusão.
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(6) BIBLIOGRAFIA
Aqui estão 10 livros relevantes sobre este tema:
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ARMSTRONG, Karen. A History of God. 1993.
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ASSMANN, Jan. Moisés, o Egípcio. 1998.
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CROSSAN, John Dominic. The Birth of Christianity. 1998.
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EHRMAN, Bart. God’s Problem. 2008.
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ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. 1957.
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GUNKEL, Hermann. Genesis. 1901.
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HAMILTON, Victor. The Book of Genesis: Chapters 1–17. 1990.
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LEVENSON, Jon D. Creation and the Persistence of Evil. 1988.
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SPEISER, E. A. Genesis (Anchor Bible). 1964.
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WESTERMANN, Claus. Genesis 1–11: A Commentary. 1984.
(1) JORNALISTICAMENTE
A narrativa da Torre de Babel (Gênesis 11:1–9) registra que, após o dilúvio, a humanidade falava uma só língua e decidiu edificar uma cidade com uma torre cujo topo chegasse ao céu. O objetivo era alcançar glória e evitar a dispersão pelo mundo. Deus, ao observar, confundiu suas línguas e os dispersou sobre a terra. A história bíblica marca a origem da diversidade linguística e cultural, ao passo que, em registros seculares, encontra ecos nos zigurates da Mesopotâmia, especialmente na antiga Babilônia. O contexto geral mostra uma tentativa de unidade que acaba sendo interpretada como rebelião contra Deus, legitimando a fragmentação como um juízo divino.
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(2) PSICOLOGICAMENTE E SOCIOLOGICAMENTE
O episódio de Babel, interpretado pelo judaísmo e pelo cristianismo, alimenta a ideia de que a diversidade é um risco à unidade e que os diferentes podem ser potenciais rivais. Psicologicamente, cria-se um arquétipo de desconfiança frente ao “outro” que não fala a mesma língua ou não compartilha da mesma cultura. Sociologicamente, a dispersão legitima fronteiras e identidades nacionais, oferecendo benefícios como coesão interna de cada povo, mas também fomentando antagonismos e justificativas para guerras e exclusões.
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(3) TEOLOGICAMENTE – DEUS JEOVÁ ENTENDIDO POR MOISÉS
Na leitura mosaica, o Deus de Israel é um legislador que pune a soberba humana. A torre não é apenas uma construção, mas um símbolo de autossuficiência e rebelião contra a ordem divina. A vontade de Jeová, portanto, é entendida como a de preservar a dependência do homem em relação a Ele, impedindo que o poder humano se torne absoluto. Muitos cristãos ainda compartilham dessa visão: a diversidade como consequência inevitável de tentar usurpar a glória divina.
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(4) TEOLOGICAMENTE – DEUS DE JESUS
O Deus revelado em Jesus traz outra perspectiva: a diversidade não é castigo, mas parte da criação divina. Em Atos 2, no Pentecostes, as línguas diversas não são anuladas, mas acolhidas pelo Espírito Santo, que permite comunicação e comunhão entre os povos. Isso mostra que a vontade de Deus, em Jesus, é transformar a diversidade em unidade pelo amor e não pela uniformidade imposta. Essa leitura é frequentemente ignorada por setores cristãos que ainda veem as diferenças como ameaça em vez de riqueza.
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(5) ATUALIDADE
Nos dias atuais, Babel deve ser relida como uma advertência contra a demonização da diversidade. Religiões que seguem essa narrativa precisam compreender que a pluralidade cultural e linguística não é inimiga da fé, mas um campo de diálogo e aprendizado mútuo. O mundo ao redor só ganha quando a diversidade é vista como patrimônio humano, e não como sinal de divisão. A lição de Pentecostes deveria ser mais lembrada do que a de Babel, promovendo cooperação e solidariedade globais.
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(6) BIBLIOGRAFIA
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Mircea Eliade – História das Crenças e das Ideias Religiosas (1983). Análise das mitologias de origem e suas implicações religiosas.
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Karen Armstrong – A História de Deus (1993). Explora visões sobre Deus nas tradições monoteístas.
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Walter Brueggemann – Gênesis (1982). Comentário teológico e exegético do primeiro livro bíblico.
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John H. Walton – The Lost World of Genesis One (2009). Interpretações do contexto cultural do Gênesis.
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Robert Alter – The Five Books of Moses (2004). Tradução e comentário literário da Torá.
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André Chouraqui – A Bíblia (1985). Tradução e comentários sobre os textos bíblicos.
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Gerhard von Rad – Old Testament Theology (1962). Reflexão sobre a teologia do Antigo Testamento.
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James Barr – The Semantics of Biblical Language (1961). Estudo sobre linguagem e interpretação bíblica.
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Jonathan Sacks – The Dignity of Difference (2002). Reflexão judaica sobre diversidade cultural e religiosa.
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Richard Elliott Friedman – Who Wrote the Bible? (1987). Análise crítica das origens dos textos bíblicos.
(1) JORNALISTICAMENTE
A narrativa bíblica em Gênesis 12–25 apresenta Abraão como o patriarca escolhido por Deus, que recebe a promessa de uma terra já habitada por outros povos, como os cananeus, hititas, amorreus e jebuseus (Gn 15:18–21). O texto registra também momentos de convivência, como a aliança com Abimeleque (Gn 21:22–34), e episódios de conflito, como a libertação de Ló na guerra contra reis locais (Gn 14). Na história secular, Abraão não aparece como figura documentada, mas a tradição hebraica e posterior judaica o coloca como pai fundador da identidade israelita, o que legitima a reivindicação territorial sobre Canaã. O contexto geral mostra uma promessa divina que cria inevitavelmente a ideia de povos rivais e uma narrativa de disputa por espaço sagrado.
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(2) PSICOLOGICAMENTE E SOCIOLOGICAMENTE
A promessa da terra a Abraão inaugura um paradigma identitário: o “nós” (o povo escolhido) contra o “eles” (os povos da terra). Psicologicamente, isso atende à necessidade de coesão interna, fortalecendo a identidade em torno da promessa. Sociologicamente, legitima práticas de exclusão e conflito, fornecendo um senso de missão coletiva. O benefício presumido é a criação de uma comunidade unida em torno de um ideal comum, mas à custa de transformar vizinhos em potenciais inimigos. Tanto no judaísmo quanto no cristianismo, essa lógica alimenta a noção de que o “povo de Deus” deve se diferenciar e até se opor aos demais.
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(3) TEOLOGICAMENTE – DEUS JEOVÁ ENTENDIDO POR MOISÉS
Na leitura mosaica, a promessa da terra a Abraão é entendida como expressão da vontade soberana de Jeová: separar um povo para Si e conceder-lhe um território próprio. Essa visão, registrada em textos como Deuteronômio 7:1–6, legitima a ideia de conquista e expulsão dos habitantes originais. Para muitos cristãos que leem o Antigo Testamento literalmente, esse é um modelo de fidelidade: Deus premia Seu povo e entrega a terra prometida, mesmo que isso implique conflitos com povos vizinhos.
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(4) TEOLOGICAMENTE – DEUS DE JESUS
Jesus ressignifica a herança de Abraão, deslocando o foco da terra para a fé (João 8:39; Mateus 3:9). Em sua visão, a verdadeira descendência de Abraão não se define por território, mas por viver a fé e o amor. A promessa deixa de ser geográfica e se torna espiritual e universal. Essa leitura desafia a interpretação belicista e exclusivista, mas muitos cristãos preferem ignorar esse deslocamento, ainda defendendo rivalidades baseadas em heranças territoriais ou étnicas.
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(5) ATUALIDADE
Hoje, narrativas como a de Abraão e os povos vizinhos precisam ser lidas com cautela. Elas não devem servir para justificar conflitos étnicos ou religiosos modernos, como a questão Israel–Palestina, mas como reflexões sobre a complexidade histórica da relação entre fé e território. Tanto judeus quanto cristãos têm a responsabilidade de reinterpretar essa tradição de maneira que promova diálogo, coexistência e justiça. A terra pode ser vista como símbolo de cuidado e responsabilidade coletiva, não como justificativa para exclusão.
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(6) BIBLIOGRAFIA
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Gerhard von Rad – Genesis: A Commentary (1972).
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Walter Brueggemann – The Land: Place as Gift, Promise, and Challenge in Biblical Faith (1977).
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John Bright – A History of Israel (1981).
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Nahum M. Sarna – Understanding Genesis (1966).
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Jon D. Levenson – The Death and Resurrection of the Beloved Son (1993).
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Karen Armstrong – Jerusalem: One City, Three Faiths (1996).
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Shlomo Sand – The Invention of the Jewish People (2009).
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Richard Elliott Friedman – The Bible with Sources Revealed (2003).
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Jonathan Sacks – Not in God’s Name: Confronting Religious Violence (2015).
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Ilana Pardes – The Biography of Ancient Israel: National Narratives in the Bible (2000).
(1) JORNALISTICAMENTE
O relato bíblico de Isaque e Ismael está em Gênesis 16, 17 e 21. Abraão gera Ismael com Agar, serva de Sara, por sugestão desta, mas depois Sara engravida e dá à luz Isaque, considerado o “filho da promessa”. Por ciúmes, Sara exige que Agar e Ismael sejam expulsos, e Abraão, orientado por Deus, concorda (Gn 21:10–12). A tradição judaica coloca Isaque como herdeiro legítimo da aliança, enquanto Ismael é marginalizado, embora também receba bênçãos (Gn 17:20). Historicamente, textos islâmicos posteriores reivindicam Ismael como ancestral dos árabes e da linhagem do profeta Maomé. O contexto geral é o da origem de uma rivalidade que atravessaria milênios, usada para justificar antagonismos entre judeus, cristãos e muçulmanos.
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(2) PSICOLOGICAMENTE E SOCIOLOGICAMENTE
A separação de Isaque e Ismael cria o arquétipo do “filho legítimo” versus o “filho rejeitado”. Psicologicamente, isso estabelece uma identidade baseada na exclusão, em que o grupo precisa de um “outro” para se afirmar como escolhido. Sociologicamente, o benefício para judaísmo e cristianismo é reforçar a noção de eleição divina e singularidade histórica, mesmo que isso alimente rivalidades. Essa lógica reforça a coesão interna, mas ao custo de perpetuar uma hostilidade simbólica e concreta contra descendentes de Ismael, que mais tarde foram associados aos povos árabes e ao Islã.
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(3) TEOLOGICAMENTE – DEUS JEOVÁ ENTENDIDO POR MOISÉS
Na perspectiva mosaica, a vontade de Jeová é que a promessa da aliança siga pela linhagem de Isaque (Gn 17:19). Assim, Ismael é abençoado, mas não herda a mesma promessa. Essa distinção alimenta a ideia de um povo exclusivo de Deus, reforçando o modelo de eleição. Para muitos judeus e cristãos que seguem essa linha, a exclusão de Ismael é vista como parte da ordem divina, ainda que ele também receba cuidados providenciais.
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(4) TEOLOGICAMENTE – DEUS DE JESUS
Jesus desloca o foco da promessa para a fé e o amor, dissolvendo a rivalidade étnica. Em Gálatas 3:28–29, Paulo, interpretando a mensagem de Cristo, afirma que “não há judeu nem grego, escravo nem livre... todos são um em Cristo Jesus” e herdeiros segundo a promessa. Assim, a visão de Jesus é a de incluir tanto o “filho da escrava” quanto o “filho da livre” numa mesma herança espiritual. Contudo, muitos cristãos esquecem essa universalidade e continuam reproduzindo a exclusão simbólica que marca a relação entre Isaque e Ismael.
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(5) ATUALIDADE
Na atualidade, a narrativa de Isaque e Ismael deve ser lida como um convite à reconciliação e não à perpetuação da rivalidade. O conflito entre judeus, cristãos e muçulmanos ainda carrega ecos desse relato. O desafio é reinterpretar a promessa como um chamado à fraternidade, reconhecendo que as três tradições compartilham raízes comuns em Abraão. O mundo só ganha quando esse episódio deixa de ser usado como justificativa para exclusão e passa a ser compreendido como uma advertência contra os perigos da divisão.
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(6) BIBLIOGRAFIA
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Karen Armstrong – Islam: A Short History (2000).
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Jon D. Levenson – Inheriting Abraham: The Legacy of the Patriarch in Judaism, Christianity, and Islam (2012).
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Reza Aslan – No god but God (2005).
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Bruce Feiler – Abraham: A Journey to the Heart of Three Faiths (2002).
-
Gerhard von Rad – Genesis: A Commentary (1972).
-
Walter Brueggemann – Genesis (1982).
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Mark G. Brett – Genesis: Procreation and the Politics of Identity (2000).
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Shlomo Sand – The Invention of the Land of Israel (2012).
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Richard Elliott Friedman – The Bible with Sources Revealed (2003).
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Jonathan Sacks – The Dignity of Difference (2002).
(1) JORNALISTICAMENTE
O relato de Jacó e Esaú encontra-se em Gênesis 25–36. Gêmeos de Isaque e Rebeca, Esaú nasce primeiro, mas Jacó, cujo nome significa “aquele que segura o calcanhar” (ou “suplantador”), toma seu lugar como herdeiro da bênção paterna. Primeiro compra o direito de primogenitura com um prato de lentilhas (Gn 25:29–34) e depois engana o pai cego para receber a bênção (Gn 27). Esaú promete matar o irmão, e Jacó foge para Harã. Séculos depois, os descendentes de Esaú formam a nação de Edom, e os de Jacó, Israel — inimigos constantes (cf. Nm 20:14–21; Obadias 1). Historicamente, Edom foi subjugado por Davi (2Sm 8:14) e, mais tarde, ressentido, tornou-se símbolo dos adversários de Israel. Na tradição judaica, Edom passou a representar o império romano e, para alguns intérpretes, o próprio cristianismo ocidental.
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(2) PSICOLOGICAMENTE E SOCIOLOGICAMENTE
O episódio de Jacó e Esaú expressa a origem simbólica da competição fraterna e da rivalidade por bênçãos, poder e identidade. Psicologicamente, ele representa o arquétipo do irmão “escolhido” e do “rejeitado”, reforçando o mecanismo de identidade por contraste: o “eu eleito” só existe em oposição ao “outro não eleito”. Sociologicamente, esse mito reforça a coesão nacional e religiosa de Israel, legitimando sua superioridade sobre outros povos. No cristianismo, a ideia foi ressignificada como a vitória da “graça” sobre a “carne”, mas manteve a dinâmica de oposição. A criação de inimigos simbólicos — Esaú, Edom, os gentios — alimenta a ideia de um povo moralmente mais puro e espiritualmente superior, o que traz sensação de segurança e propósito coletivo.
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(3) TEOLOGICAMENTE – DEUS JEOVÁ ENTENDIDO POR MOISÉS
Na leitura mosaica, Jeová escolhe Jacó antes mesmo de seu nascimento: “Amei Jacó e odiei Esaú” (Ml 1:2–3; Rm 9:13). A eleição divina justifica o privilégio espiritual e territorial de Israel. O Deus Jeová, entendido por Moisés, legitima o favoritismo como expressão de soberania e propósito divino. Assim, a vitória de Jacó não é apenas uma astúcia humana, mas parte do plano de Deus em eleger uma linhagem específica para levar Sua aliança adiante. Muitos judeus e cristãos, ao longo da história, interpretaram esse texto como um modelo de exclusividade: Deus abençoa uns e rejeita outros conforme Sua vontade, reforçando a ideia de separação entre “povo santo” e “profanos”.
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(4) TEOLOGICAMENTE – DEUS DE JESUS
Jesus desconstrói a lógica da eleição por sangue ou privilégio. Em Lucas 6:27–36, ensina a amar os inimigos, fazer o bem aos que nos odeiam e ser “misericordiosos como o Pai”. No contexto de Jacó e Esaú, o Deus de Jesus não escolhe um irmão em detrimento do outro, mas oferece reconciliação. A parábola do “filho pródigo” (Lc 15:11–32) é um eco direto dessa história, propondo o perdão como superação da inveja e do ressentimento fraternal. A vontade do Deus de Jesus é que Jacó e Esaú se abracem — como de fato ocorre no reencontro de Gênesis 33, quando Esaú corre ao encontro do irmão e o beija, prefigurando a reconciliação messiânica que o Evangelho prega.
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(5) ATUALIDADE
Nos tempos atuais, o conflito entre Jacó e Esaú continua ecoando nos embates políticos, religiosos e étnicos entre povos que se consideram “herdeiros legítimos” de promessas divinas. Tanto no Oriente Médio quanto nas divisões entre tradições cristãs e judaicas, a disputa pela bênção continua se manifestando como orgulho espiritual e exclusivismo. Para o bem das religiões e da humanidade, é necessário reinterpretar a bênção de Isaque como herança universal — um chamado à fraternidade, não à separação. A lição contemporânea é clara: a espiritualidade autêntica não se mede por eleição, mas pela capacidade de reconciliar-se com o irmão e reconhecer no “outro” a imagem de Deus.
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(6) BIBLIOGRAFIA
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Walter Brueggemann – Genesis: Interpretation: A Bible Commentary for Teaching and Preaching (1982).
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Gerhard von Rad – Old Testament Theology (1962).
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Jon D. Levenson – The Death and Resurrection of the Beloved Son (1993).
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Robert Alter – The Art of Biblical Narrative (1981).
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James Kugel – The Bible As It Was (1997).
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Phyllis Trible – Texts of Terror (1984).
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Thomas Römer – The Invention of God (2015).
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Karen Armstrong – The Battle for God (2000).
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Avivah Gottlieb Zornberg – The Beginning of Desire: Reflections on Genesis (1995).
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Reza Aslan – God: A Human History (2017).
(1) O CONFLITO FRATERNO E A TRAIÇÃO INTERNA
O relato de José e seus irmãos, conforme registrado em Gênesis 37–50, é um dos mais ricos em camadas humanas e teológicas do Antigo Testamento. José, o filho amado de Jacó, recebe do pai uma túnica especial, símbolo do favoritismo que desperta inveja nos irmãos. O sonho de José — em que seus irmãos se curvam diante dele — intensifica o ódio e culmina na sua venda como escravo para mercadores ismaelitas. Historicamente, o episódio revela o ambiente tribal e patriarcal da antiga Canaã, onde disputas familiares podiam resultar em graves rupturas. No contexto mais amplo, o Egito surge como o cenário de reconciliação e providência, evidenciando o papel político e econômico do império egípcio sobre as famílias nômades semitas. Jornalisticamente, este é o retrato de um drama familiar que transcende o tempo, transformando-se em uma narrativa sobre poder, perdão e superação — uma história que se repete sob diferentes roupagens no seio das religiões que dela herdaram valores e conflitos.
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(2) NECESSIDADE DE INIMIGOS E OS BENEFÍCIOS PSICOSSOCIAIS
Psicologicamente, a história de José revela como o favoritismo pode provocar disfunções emocionais dentro dos grupos sociais. Os irmãos, incapazes de lidar com o amor diferenciado do pai, projetam em José o papel de inimigo. A inveja, segundo René Girard em “A Violência e o Sagrado” (1972), é a força motriz que sustenta o mecanismo do bode expiatório — o escolhido como culpado pela desordem coletiva. Sociologicamente, o episódio representa a necessidade humana de canalizar tensões internas para um alvo comum, reforçando laços entre os “traidores” e criando um senso de pertencimento na exclusão. Para o judaísmo e o cristianismo, a figura do inimigo serve muitas vezes como meio de purificação moral: o conflito é espiritualizado, e o sofrimento do justo é interpretado como caminho de redenção. Assim, a criação do inimigo “interno” produz coesão no grupo e sentido existencial, mesmo à custa de uma injustiça emocional.
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(3) A VONTADE DE JEOVÁ SEGUNDO MOISÉS
Teologicamente, segundo a visão mosaica, Jeová é o Deus da justiça que transforma o mal em bem. A história de José, reinterpretada por Moisés e pelos redatores do Gênesis, mostra um Deus que age soberanamente nas circunstâncias humanas para cumprir Seu plano. “Vós intentastes o mal contra mim, porém Deus o tornou em bem” (Gênesis 50:20) é o resumo do pensamento teológico que emerge desse episódio. A vontade de Jeová é restauradora e pedagógica: Ele usa a injustiça para preservar a vida e manter o pacto com Israel. Assim, a rivalidade fraterna não é glorificada, mas instrumentalizada por Deus para consolidar uma nação. No entendimento judaico posterior, a provação e o exílio de José prefiguram o sofrimento do povo hebreu — um ciclo de queda e restauração constante sob a condução divina.
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(4) A VONTADE DO DEUS DE JESUS
Na perspectiva cristã, o Deus revelado por Jesus transcende a ideia de um plano divino que utiliza a rivalidade como instrumento. O ensinamento do Cristo propõe o amor aos inimigos (Mateus 5:44) e a reconciliação como o maior sinal do Reino de Deus. Se no relato mosaico o perdão de José é um ato excepcional, no Evangelho ele se torna o novo mandamento universal. O Deus de Jesus não deseja apenas transformar o mal em bem, mas eliminar o próprio ciclo do mal por meio do amor incondicional. Muitos cristãos, no entanto, ainda preferem a teologia do castigo e da vingança, revivendo os dramas de inveja e exclusão dentro da própria comunidade religiosa. Esquecem que o verdadeiro milagre de José não foi a ascensão ao poder, mas o perdão concedido aos que o traíram — o gesto que antecipa o perdão da cruz.
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(5) ATUALIDADE E RELEVÂNCIA ÉTICA
Na contemporaneidade, o episódio de José e seus irmãos convida as religiões a revisarem sua relação com a ideia de inimigo. Dentro das igrejas, o “irmão invejado” continua sendo o alvo de exclusões, fofocas e disputas por reconhecimento. Entre povos e nações, o favoritismo e a inveja seguem alimentando guerras e divisões — muitas vezes sob o nome de Deus. O desafio ético do nosso tempo é resgatar o espírito reconciliador do relato: transformar o rancor em empatia e o sofrimento em aprendizado coletivo. A lição de José é que não há povo escolhido sem reconciliação interna, e não há fé verdadeira enquanto se precisa de inimigos para existir.
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(6) BIBLIOGRAFIA
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René Girard — A Violência e o Sagrado (1972)
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Sigmund Freud — Totem e Tabu (1913)
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Carl G. Jung — Aion: Estudos sobre o Simbolismo do Si-mesmo (1951)
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Erich Fromm — A Anatomia da Destrutividade Humana (1973)
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Mircea Eliade — O Sagrado e o Profano (1957)
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Karen Armstrong — Uma História de Deus (1993)
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Walter Brueggemann — Gênesis: A Bíblia Comentada (1982)
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Paul Tillich — A Coragem de Ser (1952)
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Martin Buber — Eu e Tu (1923)
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Gustavo Gutiérrez — Teologia da Libertação (1971)
(1) A LUTA DE UM POVO PELA LIBERDADE
O livro do Êxodo apresenta o confronto entre Moisés e o Faraó como o grande drama fundacional do povo hebreu. Escravizados no Egito, os israelitas clamam por libertação, e Jeová envia Moisés para exigir de Faraó: “Deixa o meu povo ir” (Êxodo 5:1). O embate culmina nas dez pragas, no endurecimento do coração do Faraó e na travessia do Mar Vermelho — símbolo máximo da intervenção divina na história. Historicamente, há poucos registros egípcios diretos sobre o êxodo, mas evidências arqueológicas e estudos comparativos sugerem que populações semitas realmente viveram e trabalharam no Egito durante o período do Novo Império. Jornalisticamente, é uma narrativa que une política, fé e libertação nacional, moldando a consciência coletiva dos hebreus e influenciando posteriormente diversos movimentos de resistência — dos profetas até os líderes cristãos e revolucionários. O Faraó se torna, desde então, o arquétipo do opressor político, e Moisés, o protótipo do libertador teocrático.
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(2) O INIMIGO COMO FUNDADOR DA IDENTIDADE COLETIVA
Psicologicamente e sociologicamente, o confronto entre Moisés e o Faraó atende à necessidade de construir uma identidade a partir da oposição. Como analisa Émile Durkheim em As Formas Elementares da Vida Religiosa (1912), a coesão social nasce muitas vezes de símbolos de resistência compartilhados. O Egito, para os hebreus, é o “outro” necessário para a definição do “nós”. A escravidão e a libertação tornam-se marcos psíquicos de um povo que precisa do inimigo para justificar sua aliança e missão divina. Na psicologia coletiva, o inimigo externo também serve para canalizar frustrações internas — um mecanismo que, segundo Freud em Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921), mantém a unidade de grupos religiosos ou étnicos em meio à tensão e ao sofrimento. O cristianismo herdou esse paradigma: o mal personificado no opressor legitima a fé e reforça o senso de propósito dos fiéis.
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(3) A VONTADE DE JEOVÁ SEGUNDO MOISÉS
Na teologia mosaica, Jeová é o Deus da libertação e da vingança justa. “Eu ouvi o clamor do meu povo” (Êxodo 3:7) expressa o caráter de um Deus que intervém na história em favor dos oprimidos. A vontade de Jeová é demonstrar Seu poder diante das potências humanas e afirmar que nenhum império pode dominar eternamente sobre o povo escolhido. A destruição do Egito, com suas pragas e a morte dos primogênitos, simboliza o triunfo da justiça divina sobre os deuses pagãos e os tiranos terrenos. Esse entendimento moldou séculos de teologia judaica: a libertação é sinal do favor divino e o sofrimento do opressor é a punição merecida. Mesmo os cristãos primitivos, lendo o Êxodo à luz de Cristo, mantiveram essa lógica — Deus como libertador que julga as forças da opressão.
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(4) A VONTADE DO DEUS DE JESUS
No Evangelho, contudo, Jesus revela um Deus que não destrói o inimigo, mas o transforma. O mesmo Egito que antes simbolizava a tirania se torna, em Mateus 2:13–15, o refúgio do menino Jesus — um gesto simbólico que inverte o papel dos povos. O Deus de Jesus não busca libertar o povo à força, mas libertar o coração humano da necessidade de dominar e vingar-se. A vontade divina, nesse caso, é que a opressão seja vencida pela reconciliação e não pela aniquilação. Muitos cristãos, porém, ainda preferem o Deus guerreiro de Moisés ao Deus pacificador do Sermão do Monte. Esquecem que a libertação em Cristo não se faz contra o inimigo, mas a favor da humanidade inteira — inclusive dos que oprimem.
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(5) LIÇÕES PARA O MUNDO ATUAL
Na contemporaneidade, o episódio de Moisés contra o Faraó deve ser relido com atenção crítica. As religiões que descendem dessa tradição — judaísmo e cristianismo — precisam questionar o quanto ainda dependem da figura do inimigo para afirmar sua fé. O “Egito” moderno pode ser o Estado laico, o pensamento científico, ou o próprio outro religioso. Quando a religião se define por quem combate, perde o sentido de quem serve. O desafio espiritual é libertar-se da necessidade de ter Faraós para derrotar. A mensagem que resta do Êxodo, se lida à luz de Jesus, não é a de destruir o opressor, mas de vencer a opressão no coração humano — o verdadeiro mar que precisa se abrir.
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(6) BIBLIOGRAFIA
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Mircea Eliade — O Sagrado e o Profano (1957)
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Sigmund Freud — Moisés e o Monoteísmo (1939)
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Émile Durkheim — As Formas Elementares da Vida Religiosa (1912)
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Jan Assmann — Moisés, o Egípcio (1997)
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Karen Armstrong — Uma História de Deus (1993)
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Walter Brueggemann — Êxodo: A Bíblia Comentada (1982)
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Gustavo Gutiérrez — Teologia da Libertação (1971)
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Martin Buber — Moisés: O Revelador de Deus (1958)
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José Comblin — A Libertação e o Reino de Deus (1985)
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Leonardo Boff — Jesus Cristo Libertador (1972)
(1) CONFLITOS NA TRAVESSIA DO DESERTO
Durante a longa travessia do deserto rumo à Terra Prometida, narrada em Êxodo, Números e Deuteronômio, o povo hebreu enfrenta povos vizinhos — entre eles amalequitas, moabitas e edomitas. Os amalequitas atacam os israelitas em Refidim (Êxodo 17:8-16), provocando a primeira batalha após a saída do Egito, vencida sob a liderança espiritual de Moisés e militar de Josué. Já os edomitas (descendentes de Esaú) negam passagem a Israel em Números 20:14-21, enquanto os moabitas, sob influência de Balaque e Balaão (Números 22–25), tornam-se inimigos espirituais e culturais. Historicamente, esses povos habitavam as regiões áridas ao sul e leste de Canaã e disputavam rotas de pastoreio e comércio. Do ponto de vista jornalístico e histórico, o texto bíblico mistura memória tribal, geopolítica e teologia: o deserto se torna palco da formação identitária de um povo que aprende a se ver como “o escolhido” em meio a ameaças externas.
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(2) O INIMIGO COMO ESTRUTURA PSICOSSOCIAL
Psicologicamente e sociologicamente, o conflito com os povos do deserto representa o arquétipo da sobrevivência coletiva. Para um povo em formação, a guerra cria coesão e sentido. Segundo René Girard em A Violência e o Sagrado (1972), a identidade religiosa nasce frequentemente da exclusão e da oposição — o inimigo serve como espelho do medo e justificativa da união interna. No caso de Israel, a hostilidade com os povos vizinhos legitima o pacto com Jeová e o senso de missão divina. As batalhas não são apenas militares: são narrativas simbólicas que organizam o inconsciente coletivo. No cristianismo primitivo, essa herança persiste — o “deserto” torna-se metáfora do mundo hostil, e o “inimigo” se transforma em figura espiritual (Satanás, o tentador), que deve ser combatido. O benefício psíquico é a manutenção de uma identidade resistente, mas o preço é o risco de perpetuar a mentalidade de guerra espiritual e exclusão.
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(3) A VONTADE DE JEOVÁ SEGUNDO MOISÉS
Na teologia mosaica, Jeová é um Deus guerreiro que protege e exige fidelidade absoluta. “O Senhor fará guerra contra Amaleque de geração em geração” (Êxodo 17:16) expressa a compreensão de um Deus que se envolve diretamente nas batalhas de seu povo. A guerra santa é, portanto, vista como expressão da justiça divina. Jeová se mostra parcial: favorece Israel, pune os idólatras e garante o cumprimento da promessa de posse da terra. A vontade divina, segundo essa perspectiva, é pedagógica e nacionalista — purificar o povo da influência estrangeira e moldá-lo pela obediência e pela provação. Moisés compreende Jeová como o Senhor dos Exércitos, cuja presença legitima o domínio político e religioso do povo eleito.
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(4) A VONTADE DO DEUS DE JESUS
Com Jesus, a interpretação da vontade divina se desloca da guerra para a misericórdia. O “inimigo do deserto” é reconfigurado como o próximo a quem se deve amar (Mateus 5:44). Enquanto Jeová ordenava a destruição dos amalequitas, o Cristo ensina a reconciliação universal. Em sua ótica, o deserto deixa de ser campo de batalha e se torna lugar de tentação e superação espiritual (Mateus 4:1-11). O Deus de Jesus não busca inimigos a serem derrotados, mas corações a serem transformados. Contudo, muitos cristãos ainda preferem manter a mentalidade do “povo em guerra”, projetando em adversários políticos ou religiosos a figura de amalequitas modernos. A vontade divina revelada em Cristo é clara: “Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus” (Mateus 5:9).
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(5) RELEITURA NECESSÁRIA NA CONTEMPORANEIDADE
Hoje, a lição dos povos do deserto convida judaísmo e cristianismo a uma revisão profunda de seus fundamentos narrativos. Em vez de alimentar a lógica do inimigo — cultural, religioso ou ideológico —, essas tradições precisam redescobrir o valor espiritual da diferença. O “deserto” contemporâneo é o espaço do diálogo e da convivência plural. A humanidade só sobreviverá se compreender que a diversidade não é ameaça, mas riqueza. Reler as guerras do Antigo Testamento à luz do Evangelho é um passo para a descolonização teológica: transformar a fé da exclusão em espiritualidade da inclusão. O verdadeiro milagre, hoje, não é vencer Amaleque, mas vencer o instinto de precisar de um Amaleque para justificar a própria fé.
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(6) BIBLIOGRAFIA
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René Girard — A Violência e o Sagrado (1972)
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Karen Armstrong — Uma História de Deus (1993)
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Walter Brueggemann — Teologia do Antigo Testamento (1997)
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Mircea Eliade — História das Crenças e das Ideias Religiosas (1976)
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Jan Assmann — A Mente Egípcia: Memória, Religião e Política (2003)
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Sigmund Freud — Moisés e o Monoteísmo (1939)
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Gustavo Gutiérrez — Teologia da Libertação (1971)
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Martin Buber — O Caminho do Homem Segundo o Ensinamento Hassídico (1947)
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Leonardo Boff — A Águia e a Galinha: Uma Metáfora da Condição Humana (1997)
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Paul Tillich — Teologia Sistemática (1951)