investigação realizada pelo Pr. Psi. Jor Jônatas David Brandão Mota
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O PROBLEMA DA IDENTIDADE PELO INIMIGO
Ao longo da história das religiões abraâmicas, especialmente no judaísmo e no cristianismo, a identidade comunitária foi muitas vezes construída pela oposição a um "outro". Esse "outro" poderia ser um povo vizinho, uma cultura diferente, ou mesmo membros internos que pensavam de maneira distinta. A narrativa da eleição divina frequentemente se articulou com a ideia de exclusividade e rejeição, criando um paradoxo entre o Deus que ama a todos e o povo que só consegue se ver como escolhido ao custo de excluir ou combater outros.
A FUNÇÃO POLÍTICA E RELIGIOSA DO INIMIGO
No contexto do Antigo Testamento, os inimigos foram fundamentais para a consolidação de uma nação e para a legitimação de lideranças. Moisés, Josué, os juízes e os reis precisaram reafirmar continuamente a existência de opositores para manter coesa a comunidade israelita. A religião, nesse sentido, forneceu a justificativa teológica para guerras, extermínios e exclusões. Esse modelo foi herdado, em maior ou menor grau, pelo cristianismo, que em sua expansão histórica também usou a figura do inimigo para fortalecer sua unidade e autoridade.
AS CONSEQUÊNCIAS HISTÓRICAS DA NECESSIDADE DE INIMIGOS
A insistência em construir identidades a partir da exclusão trouxe repercussões graves: exílios, perseguições, divisões internas e perda de credibilidade espiritual. O que deveria ser sinal de fé e de amor ao próximo tornou-se, em muitos momentos, causa de ódio e violência. Tanto judeus quanto cristãos, em diferentes épocas, sofreram os resultados daquilo que eles mesmos praticaram: perseguições, massacres e expulsões. A história demonstra que a "necessidade de inimigos" não apenas destrói os outros, mas também corrói quem a alimenta.
A RELEITURA A PARTIR DE JESUS
O cristianismo, ao nascer, teve em Jesus uma proposta de ruptura radical com essa lógica: amar os inimigos, dar a outra face, conviver em paz com todos. Porém, ao longo do tempo, muitos cristãos retornaram ao padrão antigo, reforçando guerras, cruzadas, inquisições e exclusões. O desafio contemporâneo é recuperar a essência da mensagem de Jesus e reinterpretar a história para aprender com os erros, entendendo que a fé verdadeira não precisa de inimigos para sobreviver, mas de amor, respeito e diálogo.
BIBLIOGRAFIA
Aqui estão 20 livros fundamentais para o estudo do tema (história bíblica, judaísmo, cristianismo, violência religiosa, identidade e poder):
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ASSMANN, Jan. Moisés, o Egípcio. 1998.
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ARMSTRONG, Karen. Campos de Sangue: Religião e a História da Violência. 2014.
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BOYARIN, Daniel. Border Lines: The Partition of Judaeo-Christianity. 2004.
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CROSSAN, John Dominic. Jesus: A Revolutionary Biography. 1994.
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CULLMANN, Oscar. Cristologia do Novo Testamento. 1959.
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EHRMAN, Bart. Jesus, Interrupted. 2009.
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EHRMAN, Bart. Lost Christianities. 2003.
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ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. 1939.
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FLAVIUS, Josephus. Antiquities of the Jews. c. 93 d.C.
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FREEMAN, Charles. A Nova História do Cristianismo. 2009.
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GALEANO, Eduardo. As Veias Abertas da América Latina. 1971.
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HORSLEY, Richard. Jesus and the Spiral of Violence. 1987.
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LÉVI-STRAUSS, Claude. As Estruturas Elementares do Parentesco. 1949.
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PAGELS, Elaine. The Gnostic Gospels. 1979.
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RENAN, Ernest. Vida de Jesus. 1863.
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SANCHIS, Pierre. Catolicismo: Unidade Religiosa e Pluralismo Cultural. 1983.
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SAND, Shlomo. A Invenção do Povo Judeu. 2008.
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SENNETT, Richard. As Metamorfoses do Trabalho. 1998.
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TILLICH, Paul. Teologia Sistemática. 1951.
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WRIGHT, N. T. Jesus and the Victory of God. 1996.
(1) O REGISTRO HISTÓRICO
O relato bíblico de Abel e Caim aparece em Gênesis 4:1-16. Nele, Caim, agricultor, oferece do fruto da terra, enquanto Abel, pastor de ovelhas, apresenta as primícias e a gordura de seus rebanhos. Deus teria aceitado a oferta de Abel, mas rejeitado a de Caim. Esse episódio culmina no primeiro homicídio da narrativa bíblica: Caim mata Abel no campo. Historicamente, esse relato reflete tensões arcaicas entre agricultores sedentários e pastores nômades, possivelmente espelhando rivalidades reais no Crescente Fértil. Autores como Josephus (Antiquities of the Jews, c. 93 d.C.) e estudiosos modernos como Jan Assmann (Moisés, o Egípcio, 1998) veem nesse mito uma construção identitária, mais simbólica do que factual, usada para explicar a violência humana em suas origens.
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(2) A PERSPECTIVA PSICOLÓGICA E SOCIOLÓGICA
Psicologicamente, o episódio ilustra o mecanismo da inveja e do ressentimento quando alguém sente sua identidade ameaçada pela comparação. Freud, em Moisés e o Monoteísmo (1939), discute como a religião canaliza rivalidades fraternas para estruturas simbólicas. Sociologicamente, esse mito pode ser lido como justificação da necessidade de inimigos para coesão interna: os pastores (abelitas) versus os agricultores (cainitas). Tanto no judaísmo quanto no cristianismo, esse modelo reforçou a ideia de que a aceitação de Deus recai sobre uns, enquanto outros são rejeitados, alimentando um senso de exclusividade e unidade contra o “outro”. O benefício aparente é a consolidação de uma identidade grupal clara.
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(3) A VONTADE DO DEUS JEOVÁ ENTENDIDO POR MOISÉS
Na leitura tradicional judaico-cristã, sobretudo moldada pelo entendimento de Moisés, Jeová deseja sacrifícios corretos, a obediência à sua forma de culto e a rejeição daquilo que não se conforma à sua ordem. O texto bíblico dá a entender que a oferta de Abel foi aceita por corresponder melhor à vontade divina, enquanto a de Caim foi rejeitada. Assim, a interpretação foi de que Deus distingue, escolhe e prefere, gerando a narrativa de um Deus que se agrada de uns e reprova outros (cf. Hebreus 11:4; 1 João 3:12). Muitos cristãos ainda sustentam essa leitura como expressão da “justiça seletiva” de Deus.
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(4) A VONTADE DO DEUS DE JESUS
Jesus reinterpretaria a situação a partir do amor e da reconciliação. Em Mateus 5:21-24, ele ensina que a ira contra o irmão já é homicídio no coração, e a prioridade não é o sacrifício, mas a reconciliação. Em Mateus 9:13, Jesus diz: “Misericórdia quero, e não sacrifícios.” A vontade do Deus revelado por Jesus não seria a de aceitar ofertas diferentes e rejeitar pessoas, mas de ensinar que a relação com o próximo é mais importante que a ritualidade. Nesse sentido, o conflito entre Caim e Abel deveria ser resolvido pelo amor, não pela competição, algo que muitos cristãos esquecem ao perpetuar exclusões e divisões.
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(5) ATUALIDADE DO EXEMPLO
Hoje, este relato bíblico serve de alerta contra a tendência humana e religiosa de criar inimigos internos e externos como forma de se autoafirmar. Tanto no judaísmo quanto no cristianismo, há o risco de repetir a lógica de Caim: a inveja, a comparação, o ódio ao “irmão diferente”. A superação disso exige resgatar o princípio do amor ao próximo como fundamento da fé. Em sociedades plurais, a lição de Abel e Caim pode ajudar a combater fundamentalismos e intolerâncias, lembrando que a espiritualidade autêntica não precisa da rejeição do outro para se justificar, mas sim do cultivo da fraternidade.
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(6) BIBLIOGRAFIA
Aqui estão 10 livros relevantes sobre o tema:
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ASSMANN, Jan. Moisés, o Egípcio. 1998.
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ARMSTRONG, Karen. Campos de Sangue: Religião e a História da Violência. 2014.
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BOYARIN, Daniel. Border Lines: The Partition of Judaeo-Christianity. 2004.
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CROSSAN, John Dominic. Jesus: A Revolutionary Biography. 1994.
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EHRMAN, Bart. God’s Problem: How the Bible Fails to Answer Our Most Important Question. 2008.
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FREUD, Sigmund. Moisés e o Monoteísmo. 1939.
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GIRARD, René. A Violência e o Sagrado. 1972.
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HORSLEY, Richard. Jesus and the Spiral of Violence. 1987.
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PAGELS, Elaine. The Gnostic Gospels. 1979.
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WRIGHT, N. T. Jesus and the Victory of God. 1996.
A humanidade inteira se torna inimiga de Deus, apenas Noé e sua família são poupados. A narrativa legitima exclusividade e condenação.
(1) O REGISTRO HISTÓRICO
O relato do dilúvio está em Gênesis 6–9. Segundo a narrativa, Deus viu que a maldade humana havia se multiplicado, e decidiu exterminar todos os seres vivos, poupando apenas Noé, sua família e um casal de cada espécie de animal. A arca, o dilúvio e a posterior aliança do arco-íris marcam esse episódio como central na teologia bíblica. Historicamente, muitos estudiosos associam o mito do dilúvio a tradições mesopotâmicas anteriores, como a Epopéia de Gilgamesh (século XVIII a.C.) e o mito de Atrahasis. Pesquisadores como Mircea Eliade (O Sagrado e o Profano, 1957) e Karen Armstrong (A History of God, 1993) destacam como esses relatos refletem catástrofes naturais antigas, transformadas em explicações teológicas para justificar destruição e renovação.
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(2) A PERSPECTIVA PSICOLÓGICA E SOCIOLÓGICA
Psicologicamente, o dilúvio serve como metáfora de limpeza radical: destruir para recomeçar. A humanidade passa a ser vista como inimiga de Deus, e o “remanescentes” (Noé e sua família) tornam-se os únicos justos. Isso responde à necessidade de separar puros de impuros, corretos de incorretos, salvos de condenados. Sociologicamente, a narrativa legitima a ideia de que somente um grupo específico é digno de sobrevivência, criando uma forte coesão interna. Para o judaísmo e o cristianismo, o benefício presumido é a sensação de identidade exclusiva diante do “mundo corrupto”.
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(3) A VONTADE DO DEUS JEOVÁ ENTENDIDO POR MOISÉS
No entendimento mosaico, Jeová é apresentado como um Deus que pune o pecado com severidade, chegando a destruir a humanidade inteira. Sua vontade seria extirpar a maldade por meio do juízo universal, preservando apenas os obedientes. Muitos cristãos leem esse texto como demonstração da justiça divina, que não tolera o pecado, mas também como sinal de misericórdia em salvar Noé. Textos como 2 Pedro 2:5 e Hebreus 11:7 reforçam essa interpretação de que o dilúvio foi um ato justo de Deus.
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(4) A VONTADE DO DEUS DE JESUS
Jesus, porém, dá outra releitura. Em Mateus 24:37-39, ele usa o dilúvio como exemplo não de destruição, mas de vigilância espiritual. A vontade do Deus de Jesus não é destruir os ímpios, mas salvar todos (João 3:17). Em Lucas 6:36, Jesus convida a ser misericordioso como o Pai é misericordioso, sinalizando que o verdadeiro caráter divino não é aniquilar inimigos, mas oferecer reconciliação. Enquanto muitos veem o dilúvio como punição divina, em Cristo entendemos que a vontade de Deus é dar vida e não morte.
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(5) ATUALIDADE DO EXEMPLO
Hoje, o mito do dilúvio precisa ser lido com cuidado, para não reforçar narrativas de exclusivismo e destruição. Em um mundo ameaçado por mudanças climáticas e desastres ambientais, o texto pode ser reinterpretado como chamado à responsabilidade ecológica e ética. Para o judaísmo e o cristianismo, é urgente abandonar a visão de um Deus que precisa destruir inimigos, e adotar a visão de Jesus: Deus que quer salvar, transformar e reconciliar. Isso ajudaria as religiões a se tornarem forças de diálogo, em vez de justificativas de violência e exclusão.
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(6) BIBLIOGRAFIA
Aqui estão 10 livros relevantes sobre este tema:
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ARMSTRONG, Karen. A History of God. 1993.
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ASSMANN, Jan. Moisés, o Egípcio. 1998.
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CROSSAN, John Dominic. The Birth of Christianity. 1998.
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EHRMAN, Bart. God’s Problem. 2008.
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ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. 1957.
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GUNKEL, Hermann. Genesis. 1901.
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HAMILTON, Victor. The Book of Genesis: Chapters 1–17. 1990.
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LEVENSON, Jon D. Creation and the Persistence of Evil. 1988.
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SPEISER, E. A. Genesis (Anchor Bible). 1964.
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WESTERMANN, Claus. Genesis 1–11: A Commentary. 1984.
(1) JORNALISTICAMENTE
A narrativa da Torre de Babel (Gênesis 11:1–9) registra que, após o dilúvio, a humanidade falava uma só língua e decidiu edificar uma cidade com uma torre cujo topo chegasse ao céu. O objetivo era alcançar glória e evitar a dispersão pelo mundo. Deus, ao observar, confundiu suas línguas e os dispersou sobre a terra. A história bíblica marca a origem da diversidade linguística e cultural, ao passo que, em registros seculares, encontra ecos nos zigurates da Mesopotâmia, especialmente na antiga Babilônia. O contexto geral mostra uma tentativa de unidade que acaba sendo interpretada como rebelião contra Deus, legitimando a fragmentação como um juízo divino.
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(2) PSICOLOGICAMENTE E SOCIOLOGICAMENTE
O episódio de Babel, interpretado pelo judaísmo e pelo cristianismo, alimenta a ideia de que a diversidade é um risco à unidade e que os diferentes podem ser potenciais rivais. Psicologicamente, cria-se um arquétipo de desconfiança frente ao “outro” que não fala a mesma língua ou não compartilha da mesma cultura. Sociologicamente, a dispersão legitima fronteiras e identidades nacionais, oferecendo benefícios como coesão interna de cada povo, mas também fomentando antagonismos e justificativas para guerras e exclusões.
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(3) TEOLOGICAMENTE – DEUS JEOVÁ ENTENDIDO POR MOISÉS
Na leitura mosaica, o Deus de Israel é um legislador que pune a soberba humana. A torre não é apenas uma construção, mas um símbolo de autossuficiência e rebelião contra a ordem divina. A vontade de Jeová, portanto, é entendida como a de preservar a dependência do homem em relação a Ele, impedindo que o poder humano se torne absoluto. Muitos cristãos ainda compartilham dessa visão: a diversidade como consequência inevitável de tentar usurpar a glória divina.
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(4) TEOLOGICAMENTE – DEUS DE JESUS
O Deus revelado em Jesus traz outra perspectiva: a diversidade não é castigo, mas parte da criação divina. Em Atos 2, no Pentecostes, as línguas diversas não são anuladas, mas acolhidas pelo Espírito Santo, que permite comunicação e comunhão entre os povos. Isso mostra que a vontade de Deus, em Jesus, é transformar a diversidade em unidade pelo amor e não pela uniformidade imposta. Essa leitura é frequentemente ignorada por setores cristãos que ainda veem as diferenças como ameaça em vez de riqueza.
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(5) ATUALIDADE
Nos dias atuais, Babel deve ser relida como uma advertência contra a demonização da diversidade. Religiões que seguem essa narrativa precisam compreender que a pluralidade cultural e linguística não é inimiga da fé, mas um campo de diálogo e aprendizado mútuo. O mundo ao redor só ganha quando a diversidade é vista como patrimônio humano, e não como sinal de divisão. A lição de Pentecostes deveria ser mais lembrada do que a de Babel, promovendo cooperação e solidariedade globais.
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(6) BIBLIOGRAFIA
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Mircea Eliade – História das Crenças e das Ideias Religiosas (1983). Análise das mitologias de origem e suas implicações religiosas.
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Karen Armstrong – A História de Deus (1993). Explora visões sobre Deus nas tradições monoteístas.
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Walter Brueggemann – Gênesis (1982). Comentário teológico e exegético do primeiro livro bíblico.
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John H. Walton – The Lost World of Genesis One (2009). Interpretações do contexto cultural do Gênesis.
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Robert Alter – The Five Books of Moses (2004). Tradução e comentário literário da Torá.
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André Chouraqui – A Bíblia (1985). Tradução e comentários sobre os textos bíblicos.
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Gerhard von Rad – Old Testament Theology (1962). Reflexão sobre a teologia do Antigo Testamento.
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James Barr – The Semantics of Biblical Language (1961). Estudo sobre linguagem e interpretação bíblica.
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Jonathan Sacks – The Dignity of Difference (2002). Reflexão judaica sobre diversidade cultural e religiosa.
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Richard Elliott Friedman – Who Wrote the Bible? (1987). Análise crítica das origens dos textos bíblicos.
(1) JORNALISTICAMENTE
A narrativa bíblica em Gênesis 12–25 apresenta Abraão como o patriarca escolhido por Deus, que recebe a promessa de uma terra já habitada por outros povos, como os cananeus, hititas, amorreus e jebuseus (Gn 15:18–21). O texto registra também momentos de convivência, como a aliança com Abimeleque (Gn 21:22–34), e episódios de conflito, como a libertação de Ló na guerra contra reis locais (Gn 14). Na história secular, Abraão não aparece como figura documentada, mas a tradição hebraica e posterior judaica o coloca como pai fundador da identidade israelita, o que legitima a reivindicação territorial sobre Canaã. O contexto geral mostra uma promessa divina que cria inevitavelmente a ideia de povos rivais e uma narrativa de disputa por espaço sagrado.
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(2) PSICOLOGICAMENTE E SOCIOLOGICAMENTE
A promessa da terra a Abraão inaugura um paradigma identitário: o “nós” (o povo escolhido) contra o “eles” (os povos da terra). Psicologicamente, isso atende à necessidade de coesão interna, fortalecendo a identidade em torno da promessa. Sociologicamente, legitima práticas de exclusão e conflito, fornecendo um senso de missão coletiva. O benefício presumido é a criação de uma comunidade unida em torno de um ideal comum, mas à custa de transformar vizinhos em potenciais inimigos. Tanto no judaísmo quanto no cristianismo, essa lógica alimenta a noção de que o “povo de Deus” deve se diferenciar e até se opor aos demais.
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(3) TEOLOGICAMENTE – DEUS JEOVÁ ENTENDIDO POR MOISÉS
Na leitura mosaica, a promessa da terra a Abraão é entendida como expressão da vontade soberana de Jeová: separar um povo para Si e conceder-lhe um território próprio. Essa visão, registrada em textos como Deuteronômio 7:1–6, legitima a ideia de conquista e expulsão dos habitantes originais. Para muitos cristãos que leem o Antigo Testamento literalmente, esse é um modelo de fidelidade: Deus premia Seu povo e entrega a terra prometida, mesmo que isso implique conflitos com povos vizinhos.
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(4) TEOLOGICAMENTE – DEUS DE JESUS
Jesus ressignifica a herança de Abraão, deslocando o foco da terra para a fé (João 8:39; Mateus 3:9). Em sua visão, a verdadeira descendência de Abraão não se define por território, mas por viver a fé e o amor. A promessa deixa de ser geográfica e se torna espiritual e universal. Essa leitura desafia a interpretação belicista e exclusivista, mas muitos cristãos preferem ignorar esse deslocamento, ainda defendendo rivalidades baseadas em heranças territoriais ou étnicas.
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(5) ATUALIDADE
Hoje, narrativas como a de Abraão e os povos vizinhos precisam ser lidas com cautela. Elas não devem servir para justificar conflitos étnicos ou religiosos modernos, como a questão Israel–Palestina, mas como reflexões sobre a complexidade histórica da relação entre fé e território. Tanto judeus quanto cristãos têm a responsabilidade de reinterpretar essa tradição de maneira que promova diálogo, coexistência e justiça. A terra pode ser vista como símbolo de cuidado e responsabilidade coletiva, não como justificativa para exclusão.
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(6) BIBLIOGRAFIA
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Gerhard von Rad – Genesis: A Commentary (1972).
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Walter Brueggemann – The Land: Place as Gift, Promise, and Challenge in Biblical Faith (1977).
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John Bright – A History of Israel (1981).
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Nahum M. Sarna – Understanding Genesis (1966).
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Jon D. Levenson – The Death and Resurrection of the Beloved Son (1993).
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Karen Armstrong – Jerusalem: One City, Three Faiths (1996).
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Shlomo Sand – The Invention of the Jewish People (2009).
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Richard Elliott Friedman – The Bible with Sources Revealed (2003).
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Jonathan Sacks – Not in God’s Name: Confronting Religious Violence (2015).
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Ilana Pardes – The Biography of Ancient Israel: National Narratives in the Bible (2000).
(1) JORNALISTICAMENTE
O relato bíblico de Isaque e Ismael está em Gênesis 16, 17 e 21. Abraão gera Ismael com Agar, serva de Sara, por sugestão desta, mas depois Sara engravida e dá à luz Isaque, considerado o “filho da promessa”. Por ciúmes, Sara exige que Agar e Ismael sejam expulsos, e Abraão, orientado por Deus, concorda (Gn 21:10–12). A tradição judaica coloca Isaque como herdeiro legítimo da aliança, enquanto Ismael é marginalizado, embora também receba bênçãos (Gn 17:20). Historicamente, textos islâmicos posteriores reivindicam Ismael como ancestral dos árabes e da linhagem do profeta Maomé. O contexto geral é o da origem de uma rivalidade que atravessaria milênios, usada para justificar antagonismos entre judeus, cristãos e muçulmanos.
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(2) PSICOLOGICAMENTE E SOCIOLOGICAMENTE
A separação de Isaque e Ismael cria o arquétipo do “filho legítimo” versus o “filho rejeitado”. Psicologicamente, isso estabelece uma identidade baseada na exclusão, em que o grupo precisa de um “outro” para se afirmar como escolhido. Sociologicamente, o benefício para judaísmo e cristianismo é reforçar a noção de eleição divina e singularidade histórica, mesmo que isso alimente rivalidades. Essa lógica reforça a coesão interna, mas ao custo de perpetuar uma hostilidade simbólica e concreta contra descendentes de Ismael, que mais tarde foram associados aos povos árabes e ao Islã.
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(3) TEOLOGICAMENTE – DEUS JEOVÁ ENTENDIDO POR MOISÉS
Na perspectiva mosaica, a vontade de Jeová é que a promessa da aliança siga pela linhagem de Isaque (Gn 17:19). Assim, Ismael é abençoado, mas não herda a mesma promessa. Essa distinção alimenta a ideia de um povo exclusivo de Deus, reforçando o modelo de eleição. Para muitos judeus e cristãos que seguem essa linha, a exclusão de Ismael é vista como parte da ordem divina, ainda que ele também receba cuidados providenciais.
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(4) TEOLOGICAMENTE – DEUS DE JESUS
Jesus desloca o foco da promessa para a fé e o amor, dissolvendo a rivalidade étnica. Em Gálatas 3:28–29, Paulo, interpretando a mensagem de Cristo, afirma que “não há judeu nem grego, escravo nem livre... todos são um em Cristo Jesus” e herdeiros segundo a promessa. Assim, a visão de Jesus é a de incluir tanto o “filho da escrava” quanto o “filho da livre” numa mesma herança espiritual. Contudo, muitos cristãos esquecem essa universalidade e continuam reproduzindo a exclusão simbólica que marca a relação entre Isaque e Ismael.
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(5) ATUALIDADE
Na atualidade, a narrativa de Isaque e Ismael deve ser lida como um convite à reconciliação e não à perpetuação da rivalidade. O conflito entre judeus, cristãos e muçulmanos ainda carrega ecos desse relato. O desafio é reinterpretar a promessa como um chamado à fraternidade, reconhecendo que as três tradições compartilham raízes comuns em Abraão. O mundo só ganha quando esse episódio deixa de ser usado como justificativa para exclusão e passa a ser compreendido como uma advertência contra os perigos da divisão.
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(6) BIBLIOGRAFIA
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Karen Armstrong – Islam: A Short History (2000).
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Jon D. Levenson – Inheriting Abraham: The Legacy of the Patriarch in Judaism, Christianity, and Islam (2012).
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Reza Aslan – No god but God (2005).
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Bruce Feiler – Abraham: A Journey to the Heart of Three Faiths (2002).
-
Gerhard von Rad – Genesis: A Commentary (1972).
-
Walter Brueggemann – Genesis (1982).
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Mark G. Brett – Genesis: Procreation and the Politics of Identity (2000).
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Shlomo Sand – The Invention of the Land of Israel (2012).
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Richard Elliott Friedman – The Bible with Sources Revealed (2003).
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Jonathan Sacks – The Dignity of Difference (2002).
(1) JORNALISTICAMENTE
O relato de Jacó e Esaú encontra-se em Gênesis 25–36. Gêmeos de Isaque e Rebeca, Esaú nasce primeiro, mas Jacó, cujo nome significa “aquele que segura o calcanhar” (ou “suplantador”), toma seu lugar como herdeiro da bênção paterna. Primeiro compra o direito de primogenitura com um prato de lentilhas (Gn 25:29–34) e depois engana o pai cego para receber a bênção (Gn 27). Esaú promete matar o irmão, e Jacó foge para Harã. Séculos depois, os descendentes de Esaú formam a nação de Edom, e os de Jacó, Israel — inimigos constantes (cf. Nm 20:14–21; Obadias 1). Historicamente, Edom foi subjugado por Davi (2Sm 8:14) e, mais tarde, ressentido, tornou-se símbolo dos adversários de Israel. Na tradição judaica, Edom passou a representar o império romano e, para alguns intérpretes, o próprio cristianismo ocidental.
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(2) PSICOLOGICAMENTE E SOCIOLOGICAMENTE
O episódio de Jacó e Esaú expressa a origem simbólica da competição fraterna e da rivalidade por bênçãos, poder e identidade. Psicologicamente, ele representa o arquétipo do irmão “escolhido” e do “rejeitado”, reforçando o mecanismo de identidade por contraste: o “eu eleito” só existe em oposição ao “outro não eleito”. Sociologicamente, esse mito reforça a coesão nacional e religiosa de Israel, legitimando sua superioridade sobre outros povos. No cristianismo, a ideia foi ressignificada como a vitória da “graça” sobre a “carne”, mas manteve a dinâmica de oposição. A criação de inimigos simbólicos — Esaú, Edom, os gentios — alimenta a ideia de um povo moralmente mais puro e espiritualmente superior, o que traz sensação de segurança e propósito coletivo.
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(3) TEOLOGICAMENTE – DEUS JEOVÁ ENTENDIDO POR MOISÉS
Na leitura mosaica, Jeová escolhe Jacó antes mesmo de seu nascimento: “Amei Jacó e odiei Esaú” (Ml 1:2–3; Rm 9:13). A eleição divina justifica o privilégio espiritual e territorial de Israel. O Deus Jeová, entendido por Moisés, legitima o favoritismo como expressão de soberania e propósito divino. Assim, a vitória de Jacó não é apenas uma astúcia humana, mas parte do plano de Deus em eleger uma linhagem específica para levar Sua aliança adiante. Muitos judeus e cristãos, ao longo da história, interpretaram esse texto como um modelo de exclusividade: Deus abençoa uns e rejeita outros conforme Sua vontade, reforçando a ideia de separação entre “povo santo” e “profanos”.
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(4) TEOLOGICAMENTE – DEUS DE JESUS
Jesus desconstrói a lógica da eleição por sangue ou privilégio. Em Lucas 6:27–36, ensina a amar os inimigos, fazer o bem aos que nos odeiam e ser “misericordiosos como o Pai”. No contexto de Jacó e Esaú, o Deus de Jesus não escolhe um irmão em detrimento do outro, mas oferece reconciliação. A parábola do “filho pródigo” (Lc 15:11–32) é um eco direto dessa história, propondo o perdão como superação da inveja e do ressentimento fraternal. A vontade do Deus de Jesus é que Jacó e Esaú se abracem — como de fato ocorre no reencontro de Gênesis 33, quando Esaú corre ao encontro do irmão e o beija, prefigurando a reconciliação messiânica que o Evangelho prega.
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(5) ATUALIDADE
Nos tempos atuais, o conflito entre Jacó e Esaú continua ecoando nos embates políticos, religiosos e étnicos entre povos que se consideram “herdeiros legítimos” de promessas divinas. Tanto no Oriente Médio quanto nas divisões entre tradições cristãs e judaicas, a disputa pela bênção continua se manifestando como orgulho espiritual e exclusivismo. Para o bem das religiões e da humanidade, é necessário reinterpretar a bênção de Isaque como herança universal — um chamado à fraternidade, não à separação. A lição contemporânea é clara: a espiritualidade autêntica não se mede por eleição, mas pela capacidade de reconciliar-se com o irmão e reconhecer no “outro” a imagem de Deus.
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(6) BIBLIOGRAFIA
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Walter Brueggemann – Genesis: Interpretation: A Bible Commentary for Teaching and Preaching (1982).
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Gerhard von Rad – Old Testament Theology (1962).
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Jon D. Levenson – The Death and Resurrection of the Beloved Son (1993).
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Robert Alter – The Art of Biblical Narrative (1981).
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James Kugel – The Bible As It Was (1997).
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Phyllis Trible – Texts of Terror (1984).
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Thomas Römer – The Invention of God (2015).
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Karen Armstrong – The Battle for God (2000).
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Avivah Gottlieb Zornberg – The Beginning of Desire: Reflections on Genesis (1995).
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Reza Aslan – God: A Human History (2017).
(1) O CONFLITO FRATERNO E A TRAIÇÃO INTERNA
O relato de José e seus irmãos, conforme registrado em Gênesis 37–50, é um dos mais ricos em camadas humanas e teológicas do Antigo Testamento. José, o filho amado de Jacó, recebe do pai uma túnica especial, símbolo do favoritismo que desperta inveja nos irmãos. O sonho de José — em que seus irmãos se curvam diante dele — intensifica o ódio e culmina na sua venda como escravo para mercadores ismaelitas. Historicamente, o episódio revela o ambiente tribal e patriarcal da antiga Canaã, onde disputas familiares podiam resultar em graves rupturas. No contexto mais amplo, o Egito surge como o cenário de reconciliação e providência, evidenciando o papel político e econômico do império egípcio sobre as famílias nômades semitas. Jornalisticamente, este é o retrato de um drama familiar que transcende o tempo, transformando-se em uma narrativa sobre poder, perdão e superação — uma história que se repete sob diferentes roupagens no seio das religiões que dela herdaram valores e conflitos.
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(2) NECESSIDADE DE INIMIGOS E OS BENEFÍCIOS PSICOSSOCIAIS
Psicologicamente, a história de José revela como o favoritismo pode provocar disfunções emocionais dentro dos grupos sociais. Os irmãos, incapazes de lidar com o amor diferenciado do pai, projetam em José o papel de inimigo. A inveja, segundo René Girard em “A Violência e o Sagrado” (1972), é a força motriz que sustenta o mecanismo do bode expiatório — o escolhido como culpado pela desordem coletiva. Sociologicamente, o episódio representa a necessidade humana de canalizar tensões internas para um alvo comum, reforçando laços entre os “traidores” e criando um senso de pertencimento na exclusão. Para o judaísmo e o cristianismo, a figura do inimigo serve muitas vezes como meio de purificação moral: o conflito é espiritualizado, e o sofrimento do justo é interpretado como caminho de redenção. Assim, a criação do inimigo “interno” produz coesão no grupo e sentido existencial, mesmo à custa de uma injustiça emocional.
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(3) A VONTADE DE JEOVÁ SEGUNDO MOISÉS
Teologicamente, segundo a visão mosaica, Jeová é o Deus da justiça que transforma o mal em bem. A história de José, reinterpretada por Moisés e pelos redatores do Gênesis, mostra um Deus que age soberanamente nas circunstâncias humanas para cumprir Seu plano. “Vós intentastes o mal contra mim, porém Deus o tornou em bem” (Gênesis 50:20) é o resumo do pensamento teológico que emerge desse episódio. A vontade de Jeová é restauradora e pedagógica: Ele usa a injustiça para preservar a vida e manter o pacto com Israel. Assim, a rivalidade fraterna não é glorificada, mas instrumentalizada por Deus para consolidar uma nação. No entendimento judaico posterior, a provação e o exílio de José prefiguram o sofrimento do povo hebreu — um ciclo de queda e restauração constante sob a condução divina.
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(4) A VONTADE DO DEUS DE JESUS
Na perspectiva cristã, o Deus revelado por Jesus transcende a ideia de um plano divino que utiliza a rivalidade como instrumento. O ensinamento do Cristo propõe o amor aos inimigos (Mateus 5:44) e a reconciliação como o maior sinal do Reino de Deus. Se no relato mosaico o perdão de José é um ato excepcional, no Evangelho ele se torna o novo mandamento universal. O Deus de Jesus não deseja apenas transformar o mal em bem, mas eliminar o próprio ciclo do mal por meio do amor incondicional. Muitos cristãos, no entanto, ainda preferem a teologia do castigo e da vingança, revivendo os dramas de inveja e exclusão dentro da própria comunidade religiosa. Esquecem que o verdadeiro milagre de José não foi a ascensão ao poder, mas o perdão concedido aos que o traíram — o gesto que antecipa o perdão da cruz.
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(5) ATUALIDADE E RELEVÂNCIA ÉTICA
Na contemporaneidade, o episódio de José e seus irmãos convida as religiões a revisarem sua relação com a ideia de inimigo. Dentro das igrejas, o “irmão invejado” continua sendo o alvo de exclusões, fofocas e disputas por reconhecimento. Entre povos e nações, o favoritismo e a inveja seguem alimentando guerras e divisões — muitas vezes sob o nome de Deus. O desafio ético do nosso tempo é resgatar o espírito reconciliador do relato: transformar o rancor em empatia e o sofrimento em aprendizado coletivo. A lição de José é que não há povo escolhido sem reconciliação interna, e não há fé verdadeira enquanto se precisa de inimigos para existir.
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(6) BIBLIOGRAFIA
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René Girard — A Violência e o Sagrado (1972)
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Sigmund Freud — Totem e Tabu (1913)
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Carl G. Jung — Aion: Estudos sobre o Simbolismo do Si-mesmo (1951)
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Erich Fromm — A Anatomia da Destrutividade Humana (1973)
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Mircea Eliade — O Sagrado e o Profano (1957)
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Karen Armstrong — Uma História de Deus (1993)
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Walter Brueggemann — Gênesis: A Bíblia Comentada (1982)
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Paul Tillich — A Coragem de Ser (1952)
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Martin Buber — Eu e Tu (1923)
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Gustavo Gutiérrez — Teologia da Libertação (1971)
(1) A LUTA DE UM POVO PELA LIBERDADE
O livro do Êxodo apresenta o confronto entre Moisés e o Faraó como o grande drama fundacional do povo hebreu. Escravizados no Egito, os israelitas clamam por libertação, e Jeová envia Moisés para exigir de Faraó: “Deixa o meu povo ir” (Êxodo 5:1). O embate culmina nas dez pragas, no endurecimento do coração do Faraó e na travessia do Mar Vermelho — símbolo máximo da intervenção divina na história. Historicamente, há poucos registros egípcios diretos sobre o êxodo, mas evidências arqueológicas e estudos comparativos sugerem que populações semitas realmente viveram e trabalharam no Egito durante o período do Novo Império. Jornalisticamente, é uma narrativa que une política, fé e libertação nacional, moldando a consciência coletiva dos hebreus e influenciando posteriormente diversos movimentos de resistência — dos profetas até os líderes cristãos e revolucionários. O Faraó se torna, desde então, o arquétipo do opressor político, e Moisés, o protótipo do libertador teocrático.
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(2) O INIMIGO COMO FUNDADOR DA IDENTIDADE COLETIVA
Psicologicamente e sociologicamente, o confronto entre Moisés e o Faraó atende à necessidade de construir uma identidade a partir da oposição. Como analisa Émile Durkheim em As Formas Elementares da Vida Religiosa (1912), a coesão social nasce muitas vezes de símbolos de resistência compartilhados. O Egito, para os hebreus, é o “outro” necessário para a definição do “nós”. A escravidão e a libertação tornam-se marcos psíquicos de um povo que precisa do inimigo para justificar sua aliança e missão divina. Na psicologia coletiva, o inimigo externo também serve para canalizar frustrações internas — um mecanismo que, segundo Freud em Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921), mantém a unidade de grupos religiosos ou étnicos em meio à tensão e ao sofrimento. O cristianismo herdou esse paradigma: o mal personificado no opressor legitima a fé e reforça o senso de propósito dos fiéis.
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(3) A VONTADE DE JEOVÁ SEGUNDO MOISÉS
Na teologia mosaica, Jeová é o Deus da libertação e da vingança justa. “Eu ouvi o clamor do meu povo” (Êxodo 3:7) expressa o caráter de um Deus que intervém na história em favor dos oprimidos. A vontade de Jeová é demonstrar Seu poder diante das potências humanas e afirmar que nenhum império pode dominar eternamente sobre o povo escolhido. A destruição do Egito, com suas pragas e a morte dos primogênitos, simboliza o triunfo da justiça divina sobre os deuses pagãos e os tiranos terrenos. Esse entendimento moldou séculos de teologia judaica: a libertação é sinal do favor divino e o sofrimento do opressor é a punição merecida. Mesmo os cristãos primitivos, lendo o Êxodo à luz de Cristo, mantiveram essa lógica — Deus como libertador que julga as forças da opressão.
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(4) A VONTADE DO DEUS DE JESUS
No Evangelho, contudo, Jesus revela um Deus que não destrói o inimigo, mas o transforma. O mesmo Egito que antes simbolizava a tirania se torna, em Mateus 2:13–15, o refúgio do menino Jesus — um gesto simbólico que inverte o papel dos povos. O Deus de Jesus não busca libertar o povo à força, mas libertar o coração humano da necessidade de dominar e vingar-se. A vontade divina, nesse caso, é que a opressão seja vencida pela reconciliação e não pela aniquilação. Muitos cristãos, porém, ainda preferem o Deus guerreiro de Moisés ao Deus pacificador do Sermão do Monte. Esquecem que a libertação em Cristo não se faz contra o inimigo, mas a favor da humanidade inteira — inclusive dos que oprimem.
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(5) LIÇÕES PARA O MUNDO ATUAL
Na contemporaneidade, o episódio de Moisés contra o Faraó deve ser relido com atenção crítica. As religiões que descendem dessa tradição — judaísmo e cristianismo — precisam questionar o quanto ainda dependem da figura do inimigo para afirmar sua fé. O “Egito” moderno pode ser o Estado laico, o pensamento científico, ou o próprio outro religioso. Quando a religião se define por quem combate, perde o sentido de quem serve. O desafio espiritual é libertar-se da necessidade de ter Faraós para derrotar. A mensagem que resta do Êxodo, se lida à luz de Jesus, não é a de destruir o opressor, mas de vencer a opressão no coração humano — o verdadeiro mar que precisa se abrir.
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(6) BIBLIOGRAFIA
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Mircea Eliade — O Sagrado e o Profano (1957)
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Sigmund Freud — Moisés e o Monoteísmo (1939)
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Émile Durkheim — As Formas Elementares da Vida Religiosa (1912)
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Jan Assmann — Moisés, o Egípcio (1997)
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Karen Armstrong — Uma História de Deus (1993)
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Walter Brueggemann — Êxodo: A Bíblia Comentada (1982)
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Gustavo Gutiérrez — Teologia da Libertação (1971)
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Martin Buber — Moisés: O Revelador de Deus (1958)
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José Comblin — A Libertação e o Reino de Deus (1985)
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Leonardo Boff — Jesus Cristo Libertador (1972)
(1) CONFLITOS NA TRAVESSIA DO DESERTO
Durante a longa travessia do deserto rumo à Terra Prometida, narrada em Êxodo, Números e Deuteronômio, o povo hebreu enfrenta povos vizinhos — entre eles amalequitas, moabitas e edomitas. Os amalequitas atacam os israelitas em Refidim (Êxodo 17:8-16), provocando a primeira batalha após a saída do Egito, vencida sob a liderança espiritual de Moisés e militar de Josué. Já os edomitas (descendentes de Esaú) negam passagem a Israel em Números 20:14-21, enquanto os moabitas, sob influência de Balaque e Balaão (Números 22–25), tornam-se inimigos espirituais e culturais. Historicamente, esses povos habitavam as regiões áridas ao sul e leste de Canaã e disputavam rotas de pastoreio e comércio. Do ponto de vista jornalístico e histórico, o texto bíblico mistura memória tribal, geopolítica e teologia: o deserto se torna palco da formação identitária de um povo que aprende a se ver como “o escolhido” em meio a ameaças externas.
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(2) O INIMIGO COMO ESTRUTURA PSICOSSOCIAL
Psicologicamente e sociologicamente, o conflito com os povos do deserto representa o arquétipo da sobrevivência coletiva. Para um povo em formação, a guerra cria coesão e sentido. Segundo René Girard em A Violência e o Sagrado (1972), a identidade religiosa nasce frequentemente da exclusão e da oposição — o inimigo serve como espelho do medo e justificativa da união interna. No caso de Israel, a hostilidade com os povos vizinhos legitima o pacto com Jeová e o senso de missão divina. As batalhas não são apenas militares: são narrativas simbólicas que organizam o inconsciente coletivo. No cristianismo primitivo, essa herança persiste — o “deserto” torna-se metáfora do mundo hostil, e o “inimigo” se transforma em figura espiritual (Satanás, o tentador), que deve ser combatido. O benefício psíquico é a manutenção de uma identidade resistente, mas o preço é o risco de perpetuar a mentalidade de guerra espiritual e exclusão.
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(3) A VONTADE DE JEOVÁ SEGUNDO MOISÉS
Na teologia mosaica, Jeová é um Deus guerreiro que protege e exige fidelidade absoluta. “O Senhor fará guerra contra Amaleque de geração em geração” (Êxodo 17:16) expressa a compreensão de um Deus que se envolve diretamente nas batalhas de seu povo. A guerra santa é, portanto, vista como expressão da justiça divina. Jeová se mostra parcial: favorece Israel, pune os idólatras e garante o cumprimento da promessa de posse da terra. A vontade divina, segundo essa perspectiva, é pedagógica e nacionalista — purificar o povo da influência estrangeira e moldá-lo pela obediência e pela provação. Moisés compreende Jeová como o Senhor dos Exércitos, cuja presença legitima o domínio político e religioso do povo eleito.
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(4) A VONTADE DO DEUS DE JESUS
Com Jesus, a interpretação da vontade divina se desloca da guerra para a misericórdia. O “inimigo do deserto” é reconfigurado como o próximo a quem se deve amar (Mateus 5:44). Enquanto Jeová ordenava a destruição dos amalequitas, o Cristo ensina a reconciliação universal. Em sua ótica, o deserto deixa de ser campo de batalha e se torna lugar de tentação e superação espiritual (Mateus 4:1-11). O Deus de Jesus não busca inimigos a serem derrotados, mas corações a serem transformados. Contudo, muitos cristãos ainda preferem manter a mentalidade do “povo em guerra”, projetando em adversários políticos ou religiosos a figura de amalequitas modernos. A vontade divina revelada em Cristo é clara: “Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus” (Mateus 5:9).
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(5) RELEITURA NECESSÁRIA NA CONTEMPORANEIDADE
Hoje, a lição dos povos do deserto convida judaísmo e cristianismo a uma revisão profunda de seus fundamentos narrativos. Em vez de alimentar a lógica do inimigo — cultural, religioso ou ideológico —, essas tradições precisam redescobrir o valor espiritual da diferença. O “deserto” contemporâneo é o espaço do diálogo e da convivência plural. A humanidade só sobreviverá se compreender que a diversidade não é ameaça, mas riqueza. Reler as guerras do Antigo Testamento à luz do Evangelho é um passo para a descolonização teológica: transformar a fé da exclusão em espiritualidade da inclusão. O verdadeiro milagre, hoje, não é vencer Amaleque, mas vencer o instinto de precisar de um Amaleque para justificar a própria fé.
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(6) BIBLIOGRAFIA
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René Girard — A Violência e o Sagrado (1972)
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Karen Armstrong — Uma História de Deus (1993)
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Walter Brueggemann — Teologia do Antigo Testamento (1997)
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Mircea Eliade — História das Crenças e das Ideias Religiosas (1976)
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Jan Assmann — A Mente Egípcia: Memória, Religião e Política (2003)
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Sigmund Freud — Moisés e o Monoteísmo (1939)
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Gustavo Gutiérrez — Teologia da Libertação (1971)
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Martin Buber — O Caminho do Homem Segundo o Ensinamento Hassídico (1947)
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Leonardo Boff — A Águia e a Galinha: Uma Metáfora da Condição Humana (1997)
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Paul Tillich — Teologia Sistemática (1951)
(1) A NARRATIVA DA CONQUISTA NA HISTÓRIA BÍBLICA E SECULAR
A conquista de Canaã, narrada sobretudo em Josué e complementada em Juízes, apresenta Israel realizando campanhas militares para ocupar a terra prometida. As cidades cananeias — Jericó, Ai, Hazor e outras — são destruídas com ordens explícitas de herem, o anátema, que exigia a eliminação total dos habitantes (Josué 6:21; 8:24; 11:10-15). Jornalisticamente, trata-se da mais violenta narrativa militar da Bíblia. Já na arqueologia e história secular, estudiosos como Israel Finkelstein (The Bible Unearthed, 2001) apontam que não há evidências de destruições repentinas em toda Canaã, sugerindo que o processo foi mais gradual, envolvendo assimilação cultural e revoltas internas. Mesmo assim, a memória coletiva israelita transformou este episódio em uma narrativa fundante: a legitimação divina da posse da terra em contraste com o suposto caráter “corrupto” dos cananeus (Deuteronômio 9:4-5). Assim, história, mito e teologia se entrelaçam para construir a identidade de um povo que se vê como eleito e em guerra santa.
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(2) O INIMIGO COMO ESTRATÉGIA PSICOSSOCIAL DE COESÃO
Psicologicamente e sociologicamente, a demonização dos cananeus responde a uma necessidade humana muito conhecida: a fabricação de um inimigo coletivo para fortalecer a identidade do grupo. A lógica do “nós contra eles” é uma das bases da coesão tribal, como explicitado por sociólogos como Zygmunt Bauman e psicólogos como Erich Fromm. O discurso religioso de separação (“não vos mistureis”, Deuteronômio 7:3-6) cria segurança e clareza moral, dois elementos que reduzem a ansiedade coletiva num período de transição e instabilidade. Para o judaísmo antigo, expulsar os cananeus significava preservar pureza cultural e religiosa. Para o cristianismo posterior, esse episódio se tornou metáfora da luta contra o mal — um inimigo espiritual — mas muitas vezes voltou a ser utilizado literalmente para legitimar expansionismos, cruzadas e colonialismo. O benefício percebido era simples: um inimigo externo mantém o grupo unido. O preço real: perpetuação da violência.
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(3) A VONTADE DO DEUS JEOVÁ COMO ENTENDIDA POR MOISÉS
Na teologia mosaica e deuteronomista, Jeová é apresentado como o Deus que dá a terra e exige obediência radical. A destruição cananeia é interpretada como cumprimento de um juízo moral contra povos considerados idólatras (Deuteronômio 9:4) e como forma de impedir que Israel adotasse suas práticas religiosas. Jeová aparece, portanto, como soberano territorial e moral. Sua vontade, entendida por Moisés e pela tradição que redigiu estes textos, envolve purificação da terra e separação absoluta. A guerra é vista como instrumento divino; o massacre como cumprimento da santidade de Deus. Essa leitura moldou séculos de compreensão judaica e posteriormente cristã: Deus seria aquele que escolhe um povo e elimina outros em nome de um plano maior.
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(4) A VONTADE DO DEUS DE JESUS NA RELEITURA DO TEMA
Jesus rompe com o paradigma da conquista territorial e religiosa. Ele não reivindica nenhuma terra, nem legitima guerras em nome de Deus. Pelo contrário, afirma: “meu Reino não é deste mundo” (João 18:36). Em Sua teologia, o inimigo não deve ser exterminado, mas amado (Mateus 5:44). A figura do cananeu é ressignificada quando Jesus elogia a fé de uma mulher cananeia (Mateus 15:21-28), gesto que deliberadamente confronta a tradição exclusivista de Israel. O Deus de Jesus não santifica massacres passados, mas aponta para um Reino de reconciliação, onde a fronteira entre “puro” e “impuro” deixa de existir. Contudo, muitos cristãos preferem ignorar essa releitura, mantendo a imagem do Deus guerreiro quando lhes convém — seja em política, religião ou moralidade.
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(5) ATENÇÕES NECESSÁRIAS PARA A CONTEMPORANEIDADE
Hoje, o relato da conquista de Canaã precisa ser lido com cautela ética. Tanto judeus quanto cristãos devem considerar que o uso literal dessas narrativas pode alimentar intolerâncias, extremismos e políticas de ódio. O contexto original é tribal, pré-estatal, pré-humanista — não oferece modelo para sociedades contemporâneas. A leitura responsável exige distinguir mito fundante de legitimidade moral. Em um mundo marcado por conflitos territoriais, inclusive no Oriente Médio, revisitar Canaã não para copiar sua lógica, mas para aprender com seus equívocos, é essencial. A espiritualidade madura busca paz, não conquista. A religião do futuro não terá espaço para “herem”, mas para diálogo, coexistência e respeito à diversidade.
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(6) BIBLIOGRAFIA
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Israel Finkelstein & Neil Asher Silberman — The Bible Unearthed (2001)
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Walter Brueggemann — The Land: Place as Gift, Promise, and Challenge in Biblical Faith (1977)
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Mark S. Smith — The Early History of God (1990)
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Karen Armstrong — Fields of Blood: Religion and the History of Violence (2014)
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John Bright — A History of Israel (1959)
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Gerhard von Rad — Old Testament Theology (1957)
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Eric H. Cline — The Battles of Armageddon (2000)
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René Girard — Violence and the Sacred (1972)
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James Barr — The Concept of Biblical Theology (1999)
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Kenton Sparks — God’s Word in Human Words (2008)
(1) A NARRATIVA DE JUÍZES NA HISTÓRIA BÍBLICA E NO CONTEXTO ANTIGO
Juízes retrata um período tribal marcado pela ausência de governo central: “naqueles dias não havia rei em Israel; cada um fazia o que parecia direito aos seus próprios olhos” (Juízes 21:25). Jornalisticamente, o livro registra ciclos repetidos: pecado → opressão por povos vizinhos → clamor → libertação por um juiz. Entre os inimigos citados estão mesopotâmios (3:8), moabitas (3:12), cananeus (4:2), midianitas (6:1), amonitas (10:7) e filisteus (13:1). Do ponto de vista da história secular, estes conflitos refletem tensões típicas de povos seminômades buscando se fixar na Palestina do final da Idade do Bronze, competindo por terras, pastos e rotas comerciais. Os “juízes” — Débora, Gideão, Jefté, Sansão — não eram magistrados, mas chefes militares carismáticos que lideravam clãs em guerras de sobrevivência. A narrativa funciona como memória épica de resistência e como explicação teológica para a instabilidade nacional.
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(2) CONSTRUÇÃO PSICOSSOCIAL DO INIMIGO COMO MECANISMO DE SOBREVIVÊNCIA
Psicologicamente e sociologicamente, Juízes responde diretamente à necessidade humana de fortalecer a coesão interna criando inimigos externos. Em tempos de ameaça, tribos fragmentadas se unem — a guerra funciona como cimento social. A literatura bíblica desse período utiliza a derrota e opressão como punição divina para a “infidelidade”, reforçando a obediência coletivo-religiosa. Para o judaísmo antigo, cada inimigo servia como espelho negativo: “não sejamos como eles”. Para o cristianismo posterior, estas histórias alimentaram a leitura espiritual do inimigo — o “pecado”, os “demônios” — mas também serviram para justificar cruzadas, intolerâncias e violência institucional. O benefício percebido na antiguidade era claro: narrativas de libertação criavam identidade e propósito. O risco moderno: transformar antigos inimigos tribais em justificações contemporâneas para hostilidades étnicas, nacionalistas e religiosas.
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(3) A VONTADE DE JEOVÁ COMO ENTENDIDA PELA TRADIÇÃO MOSAICA
Na teologia que molda Juízes, Jeová é visto como o soberano que pune a infidelidade e salva quando o povo retorna a Ele (Juízes 2:11-19). Sua vontade, na ótica mosaica, é dupla: exclusividade religiosa e proteção territorial. Os inimigos representam julgamento divino, e os juízes, instrumentos de restauração. Deus é guerreiro, defensor de Israel, e a guerra é consequência da fidelidade ou infidelidade. Essa leitura, enraizada no Deuteronômio, ensina que “obedecer traz paz; desobedecer traz opressão”. Muitos cristãos ainda entendem que Deus opera historicamente dessa maneira: castigando por meio de crises e intervindo com libertadores. Contudo, esta teologia reflete um mundo tribal, não um modelo universal para todas as eras.
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(4) A VONTADE DO DEUS DE JESUS NA RELEITURA DO CONFLITO
Jesus não legitima guerras santas nem identifica inimigos étnicos como ameaças divinas. Ao contrário do ciclo militar de Juízes, Ele cria um ciclo ético radical: não-violência, perdão e amor aos inimigos (Mateus 5:38-48). Em Sua prática, rompe hostilidades históricas — fala com samaritanos, cura estrangeiros, acolhe romanos, elogia a fé de siro-fenícios. A vontade de Deus, segundo Jesus, não é destruir opressores, mas transformar relacionamentos e corações. Muitos cristãos ignoram essa virada teológica, preferindo um Deus guerreiro ao Deus que desarma. A leitura cristã madura de Juízes precisa reconhecer que Jesus reinterpreta o conceito de inimigo, deslocando a batalha do território humano para a ética do Reino.
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(5) ATENÇÕES NECESSÁRIAS PARA A LEITURA CONTEMPORÂNEA
Na atualidade, Juízes precisa ser lido como documento histórico-teológico, não como manual de identidade tribal. Sua mensagem pode inspirar reflexão sobre ciclos de violência, instabilidade política, manipulação religiosa e busca por líderes carismáticos — temas atuais em muitas sociedades. É fundamental evitar leituras literais que transformem “inimigos antigos” em justificativas modernas para políticas excludentes, racismos, xenofobia ou guerras religiosas. Tão importante quanto reconhecer o valor literário e espiritual do livro é identificar o perigo de mitos de libertação que se baseiam na eliminação do outro. A religião responsável aprende com o passado, não o replica. Juízes deve ser ponte para compreensão da fragilidade humana, não combustível para novos conflitos.
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(6) BIBLIOGRAFIA
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Daniel I. Block — Judges, Ruth (1999)
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Robert G. Boling — Judges: Introduction, Translation and Commentary (1975)
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Barry G. Webb — The Book of Judges (2012)
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Marc Zvi Brettler — The Creation of History in Ancient Israel (1995)
-
Susan Niditch — War in the Hebrew Bible (1993)
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Yairah Amit — Reading Biblical Narratives: Literary Criticism and the Hebrew Bible (2001)
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Walter Brueggemann — The Prophetic Imagination (1978)
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Erich Fromm — The Anatomy of Human Destructiveness (1973)
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Zygmunt Bauman — Modernity and Ambivalence (1991)
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Karen Armstrong — The Bible: A Biography (2007)
(1) CONTEXTO HISTÓRICO E BIBLÍCO-JORNALÍSTICO
A narrativa de Saul e Davi contra os filisteus está registrada em 1 Samuel 17–31 e 2 Samuel 5–10. Historicamente, os filisteus eram um povo do mar que se estabeleceu na costa da Palestina, com forte presença militar e tecnológica (uso de ferro). Jornalisticamente, o episódio de Golias (1 Samuel 17) constrói Davi como herói nacional: a derrota do gigante filisteu simboliza a vitória do povo de Israel contra um inimigo temido. A Bíblia apresenta os filisteus como inimigos constantes, reforçando a identidade coletiva de Israel através da oposição a um “outro” claramente definido, criando narrativa épica e memória histórica do conflito.
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(2) PSICOLOGIA E SOCIOLOGIA DA CRIAÇÃO DO INIMIGO
Psicologicamente, a presença de inimigos externos, como os filisteus, fortalece a coesão interna, a lealdade e a unidade do grupo. A narrativa de Davi e Golias funciona como mito fundacional, gerando orgulho nacional e heroísmo. Sociologicamente, o inimigo fornece propósito e valida estruturas de liderança: Saul e Davi usam os filisteus como catalisadores de poder, legitimando a monarquia nascente. A existência de um inimigo concreto gera disciplina, identidade coletiva e mobilização social. Em termos modernos, esse mecanismo pode gerar xenofobia, hostilidade interétnica ou justificação de guerras preventivas se mal interpretado.
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(3) A VONTADE DE JEOVÁ SEGUNDO MOSÉS E A TRADIÇÃO
Na ótica mosaica, Jeová protege Israel e legitima a guerra contra inimigos que ameaçam o povo escolhido (Deuteronômio 20). O desafio de Golias e a vitória de Davi são apresentados como ação direta de Deus: a força e coragem do herói refletem a intervenção divina. A guerra contra os filisteus é interpretada como cumprimento da vontade de Jeová — garantir a sobrevivência, consolidar a identidade do povo e preparar o caminho para a futura monarquia. Cristãos tradicionais também entendem este episódio como demonstração da fidelidade de Deus àqueles que obedecem, reforçando a lógica de recompensas divinas por confiança e coragem.
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(4) A VONTADE DE JESUS E A REINTERPRETAÇÃO DO CONFLITO
O Deus de Jesus rejeita a lógica de inimigos étnicos como critério de julgamento. Jesus ensina que o verdadeiro herói não é o guerreiro que vence o outro, mas aquele que ama o próximo, inclusive o inimigo (Mateus 5:44). A vitória sobre Golias, no plano ético de Jesus, poderia ser reinterpretada como superação interior — coragem para enfrentar injustiça, opressão e pecado — em vez de derrota física de um adversário externo. Muitos cristãos ignoram esta perspectiva e mantêm a leitura literal de guerra e inimigo como modelo de identidade coletiva, perdendo a dimensão ética da vitória sobre o mal.
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(5) ATENÇÕES PARA A LEITURA CONTEMPORÂNEA
Hoje, o relato de Saul e Davi deve ser analisado como narrativa histórica, literária e ética. É preciso distinguir o valor literário e simbólico da aplicação literal como justificação de hostilidades contemporâneas. A ênfase deve estar no desenvolvimento de coragem, liderança e confiança ética, não no ódio a grupos externos. Interpretar o inimigo como metáfora para desafios internos ou sociais promove aprendizado sem reproduzir ciclos de violência ou discriminação.
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(6) BIBLIOGRAFIA
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Israel Finkelstein & Neil Asher Silberman — The Bible Unearthed (2001)
-
Richard Elliott Friedman — Who Wrote the Bible? (1987)
-
Robert Alter — The David Story (1999)
-
Baruch Halpern — David’s Secret Demons (2001)
-
Avi Hurvitz — Studies in Biblical Poetry and Narrative (2000)
-
William G. Dever — Did God Have a Wife? (2005)
-
Michael Coogan — The New Oxford Annotated Bible (2010)
-
John Bright — A History of Israel (2000)
-
Roland de Vaux — Ancient Israel (1997)
-
Mark S. Smith — The Early History of God (2002)