PILAR DO MITO AMERICANO
Tragédias como a de Las Vegas, no dia 1o de outubro, ou da igreja do Texas, no dia 5 de novembro, pouco impacto deverão ter na revisão da legislação sobre armas que deverá ocorrer dentro em breve nos Estados Unidos. Ter uma arma (no limite semelhante às militares) está simbolicamente associado à fundação dos EUA. Trata-se de uma lenda, e já está mais que na hora de a reescrever.
25 DE NOVEMBRO DE 2017 ÀS 15:18 // TV 247 NO YOUTUBE
Por: Gary Younge (*)
Fonte: Jornal The Guardian, Londres
Pelas três e meia da madrugada de 23 de novembro de 2013, uma bala perdida estilhaçou a janela de um apartamento em Indianápolis, onde um casal via televisão enquanto o filho de dois meses dormia. O homem ligou para a polícia em pânico. “Preciso de ajuda. Pode enviar um carro para me tirar daqui?” “Creio que vários policiais já estão no local”, respondeu a telefonista, serenamente. As gravações revelam a respiração ofegante do homem a falar com a sua mulher. “Põe as coisas do bebê na mala. Vamos para um hotel.” Foi insistindo ao telefone para os policiais se apressarem, até que a agente perdeu a paciência: “Vão chegar assim que possível, está bem? Assim que for possível, OK? Fique em casa e não saia. Vamos mandar um agente”.
Quatro meses depois, na mesma cidade, o maior lobby de armas do país, a National Rifle Association (NRA) realizou a sua convenção anual sob o lema Stand and Fight (Ergue-te e Luta”). Num discurso tão demagógico quanto apocalíptico, o presidente da instituição, Wayne LaPierre, evocou uma nação em perigo e decadência. “Há terroristas e assaltantes de casas, cartéis de droga e puxadores de carros, agressores e violadores, pessoas que incitam ao ódio, assassinos nas universidades. assassinos nos aeroportos… E eu lhes pergunto: confiam no Governo para os proteger? Estamos por nossa conta… as coisas que mais prezamos estão mudando… é por isso que cada vez mais cidadãos compram armas e munições.”
O trágico incidente em Las Vegas, no primeiro domingo de outubro [58 mortos e quase 550 feridos a tiro, durante um festival de música junto ao hotel Mandalay Bay, onde estava hospedado e de onde disparou o atacante], foi o incidente com armas de fogo número 273 deste ano nos EUA. Pouco depois, mais disparos em Miami mataram quatro pessoas que participavam de uma vigília após a morte de uma mulher de 30 anos, alvejada dentro do carro. Em 5 de novembro, mais 26 pessoas seriam mortas a tiro numa igreja batista de Sutherland Springs, Texas.
A eterna questão sobre o que leva os EUA a manterem leis tão permissivas de porte de arma, mesmo perante essas atrocidades frequentes, fica em boa parte respondida pelo telefonema daquele pai em pânico e pela resposta distópica de LaPierre. O medo do homem e o alarmismo de LaPierre estão intimamente ligados. E essa ligação vai além das armas e das leis que as possam controlar.
Um mitos mais enraizados no país
Quando a história de um país é feita de conquista, domínio, força e poder, o apego atávico às armas consegue ter mais força do que os argumentos racionais.
Numa sociedade que supervaloriza a autossuficiência, a arma apela ao individualismo mais puro. Cada pessoa deve ser responsável por se salvar. Numa cultura política que privilegia os órgãos executivos locais, a arma torna-se no contraponto de um Estado lento e ineficaz: defende-te a ti mesmo, senão quando a polícia chegar já estarás morto.
A arma reforça um certo sentimento de virilidade e propriedade: homem que se preze deve ser capaz de proteger a família e a casa. Enquanto as autoridades lhe dizem para sentar-se e esperar, a NRA lhe diz para se levantar e lutar.
Estes apelos às armas são um contrassenso. A maioria das pessoas mortas a tiro alvejou-se a si própria. Pessoas com uma arma em casa têm muito mais probabilidade de acabar, elas próprias, mortas a tiro. Se as armas nos tornassem efetivamente mais seguros, os EUA seriam um dos lugares mais pacíficos do mundo. Mas, em média, sete crianças ou adolescentes são mortos a tiros por dia. E uma vez por semana uma criança com menos de dois anos fere alguém com uma bala.
O lobby que bloqueia as reformas
Seria fácil responsabilizar a NRA por tudo isso. O lobby das armas tem assumido um papel central no bloqueio de reformas, até das mais sensatas. Com uma capacidade sem precedentes para influenciar e financiar políticos a nível local e nacional. É devido a essa influência que as pessoas proibidas judicialmente de viajar ainda conseguem comprar armas e que não existe qualquer financiamento do Governo para investigação sobre como prevenir mortes por armas de fogo.
Contudo, embora a NRA não deva ser subestimada, o seu papel também não deve ser supervalorizado. Apesar de conseguir ganhar (ou bloquear) votos no Congresso uma maioria clara de norte-americanos inquiridos este ano acredita que as leis das armas deveriam ser mais restritas; que é demasiado fácil comprar uma arma; e que se mais pessoas tiverem armas os EUA serão ainda menos seguros. Há também um apoio quase unânime (94%) aos chamados “controles de antecedentes” de todos os que queiram comprar uma arma. A NRA tem muito mais poder na esfera política do que fora dela.
No entanto, esta associação tem sido capaz de explorar muitos temas centrais da narrativa sobre a fundação dos EUA, de uma forma que os defensores do controle de armas ainda não conseguiram. O que não é inevitável. Quando um homem armado matou crianças em Dunblane, em 1996, a Grã-Bretanha reforçou as leis das armas; e quando um atirador semeou o caos em Port Arthur, no mesmo ano, a Austrália fez o mesmo. É assim que procedem democracias maduras e responsáveis.
Nos EUA os apelos à liberdade, virilidade, redução do papel do Estado e individualismo, mesmo quando ilegítimos, têm mais adeptos do que os argumentos a favor dos “controles de antecedentes” e da interdição de armas, mesmo quando é aqui que está a razão.
Esta questão ascende ao topo da cadeia de poder. Com a maior estrutura militar do mundo, o poderio tático já era um eixo central da política externa norte-americana antes de Donald Trump ter prometido lançar “fogo e fúria” sobre Kim Jong-un, o líder da Coreia do Norte. Quando acusado de abdicar do papel dos EUA no plano internacional, o ex-Presidente Barack Obama (que tinha uma “lista de alvos a abater” cujo nome oficial era Disposition Matrix) respondeu ao jeito de um padrinho da máfia: “Bem, Muammar Kadhafi provavelmente não concorda com essa análise. Ou melhor, se ainda cá estivesse, não iria concordar…”
Internamente, “a arma é invocada como um pilar da história da fundação dos EUA e uma salvaguarda contra a tirania. Uma questão de independência e liberdade”, explicou-me David Britt, proprietário de uma arma, na convenção da NRA em 2012. E ele completou: “Quando temos um sistema democrático e um povo honrado podemos confiar nos nossos cidadãos… na Europa cedem os direitos e liberdades aos governos, mas para nós é o Governo que deve subordinar-se à vontade dos cidadãos.”
Estes mitos são redutores. Numa nação que conseguiu erguer-se através de genocídios e da escravatura, as armas foram fundamentais para se defender uma certa ideia de poder racial. Se aqueles que defendem as armas estivessem preocupados com a tirania do Estado então teriam participado nas manifestações do movimento “Black Lives Matter” [As Vidas dos Negros Importam] em protesto contra os excessos policiais; e teriam pedido o armamento dos bairros negros empobrecidos. Obviamente, não é a esse tipo de tirania que se opõem.
Mas os mitos são também poderosos. O que falta ao lobby das armas em matéria de apoio social sobra-lhe em dedicação. Em 2013, após o tiroteio na Escola Primária Sandy Hook, em Newtown, Connecticut, os defensores das armas estiveram muito mais ativos, doando dinheiro a grupos que defendem a causa e/ou contatando responsáveis políticos, do que os defensores do controle das armas.
Estes pedem, na maioria, alterações à legislação. Enquanto o grupo pró-armas acredita que está a preservar “verdades essenciais” da nação. E tem se revelado mais determinado, porque quando a tragédia de Las Vegas for uma recordação distante, esses mitos permanecerão vivos.
Os norte-americanos precisam de novas leis das armas. Mas para isso têm de contar uma nova história sobre a fundação do pais, o que é, o que tem sido e o que quer ser. As suas vidas dependem disso.
(*) Correspondente do jornal online Guardian nos Estados Unidos durante doze anos, Gary Younge é autor de várias obras, entre as quais Another Day in the Death of America, publicada em 2016. O livro reconstitui a vida de dez jovens norte-americanos mortos num dia escolhido ao acaso: 23 de novembro de 2013. Nesse dia, dez crianças e adolescentes com idades entre 9 e 19 anos foram mortos a tiros: sete negros, sete hispânicos, um branco.
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