O FIM DA ERA DOURADA DO CARRO PRÓPRIO
Outrora símbolo de liberdade, o carro próprio tornou-se sinônimo de restrições e de incômodos. Em todo o mundo, os automóveis começam a ficar sob pressão. As novas gerações já não os encaram como um símbolo de autonomia e de liberdade.
31 DE AGOSTO DE 2018 ÀS 10:45 // INSCREVA-SE NA TV 247
Por: Cotten Seiler. Fonte: Jornal The Guardian, Londres
Nas grandes cidades, os veículos privados são um problema cada vez maior, a exigir soluções inovadoras para se combater a poluição e para melhorar a qualidade de vida dos cidadãos. As limitações ao diesel passaram a ser frequentes nas cidades europeias, e até em Detroit, a capital norte-americana do automóvel, se procuram alternativas menos poluentes. O anúncio de uma moderna geração de veículos, de condução autônoma, de propriedade partilhada e menos poluente, anuncia um novo futuro. O automóvel tornou-se sinônimo de restrições e de incômodos. Mas seremos capazes de nos separarmos deles? A acreditar em algumas opiniões, o nosso longo e idílico romance com os carros está chegando ao fim. No ano passado, em Los Angeles, a cidade com os maiores engarrafamentos em todo mundo, cada automobilista ficou preso no trânsito durante 102 horas (em hora de ponta). Em Londres, os condutores perderam o equivalente a três dias de trabalho nos engarrafamentos.
Nos Estados Unidos da América, a taxa de motorização (porcentagem de agregados familiares com pelo menos um carro) e o número de quilômetros percorridos anualmente de carro estabilizaram nos últimos 15 anos e não devem aumentar.
Jovens se desinteressam
Os jovens, para quem antes o carro era sinônimo de independência, de aventura, de afirmação e de relacionamentos (muitas vezes sexuais), optaram por outro instrumento libertador: o smartphone. Em 1984, cerca de 92% dos jovens norte –americanos tinham carta de motorista; desde então, esse número caiu 15 pontos. Também no Reino Unido o número de condutores jovens diminuiu drasticamente.
Os jovens não são os únicos afetados por esse desinteresse. Nas últimas duas décadas, os analistas ambientais, variando o tom entre a ansiedade e a catástrofe, têm descrito a crise planetária provocada pela nossa paixão pelos motores a combustão. Esses motores debitam quase um quarto das emissões globais de CO2 e provocam 1,3 milhões de mortes por ano.
Ambientalistas e progressistas anunciam a morte dos carros, enquanto no seio dos grandes construtores de automóveis de Detroit, Tóquio e Wolfsburg reina a ansiedade.
Em finais de fevereiro, uma das mais altas instâncias jurídicas da Alemanha decidiu que os carros a diesel, particularmente poluentes, poderiam ser impedidos de entrar no centro das cidades de Stuttgart e de Dusseldorf. Estas cidades estão longe de ser as únicas a tentarem limitar a circulação, bem como a poluição atmosférica gerada por esses motores. Seria, porém, errado culpar apenas os carros, presentes em todos os aspetos da vida quotidiana em muitos países. Nos Estados Unidos, o carro representa um certo estilo de vida desde que começou a sair das linhas de montagem.
Carro onipresente no habitat humano
Se a ascensão do automóvel começou cedo na Alemanha, na Grã-Bretanha, na França e no Japão, as paisagens a perder de vista, as insuficientes infraestruturas dos transportes públicos e o espírito individualista dos norte-americanos fizeram dos EUA o império do carro. A construção da rede de autoestradas interestaduais, na década de 1950, funcionou como um gigantesco estaleiro, destinado a subvencionar os setores do petróleo, do automóvel, da borracha, do asfalto e das seguradoras.
Os jovens, para quem antes o carro era sinônimo de independência, de aventura, de afirmação e de relacionamentos (muitas vezes sexuais), optaram por outro instrumento libertador: o smartphone
Durante os quase 40 anos que foram necessários para se construir a referida rede, o carro tornou-se cada vez mais onipresente no habitat humano, acabando por condicionar e ditar os hábitos de trabalho e de lazer.
Para os que tentaram explicar o fenômeno, este seria resultado de uma paixão popular pela útil invenção de Henry Ford, que construiu o acessível Ford T. O neto de Ford, Henry Ford II, defendeu uma política de transportes voltada aos automóveis, que, segundo ele, seria “a expressão da vontade geral”. No entanto, tal afirmação destinava-se apenas a esconder, por um lado, a influência exercida pelo lobby do automóvel sobre o poder político – como quando vários diretores, conhecidos pelo nome “Gangue da Estrada”, foram conselheiros do Presidente Dwight D. Eisenhower na década de 1950 – e, por outro, a forma como o automóvel foi promovido enquanto modelo de condicionamento ideológico. Ontem como hoje, as paisagens e as práticas da condução são coerentes com os valores do capitalismo: individualismo, competição, obediência. Autonomia, maestria e o conforto que podemos sentir durante a condução estão intimamente ligados à forma como o capitalismo quer que nos imaginemos: simples mercadorias para oferecer ao mercado de trabalho.
Da América para a China
A “automobilização” em excesso da vida norte-americana, financiada pelo Estado, concretizada com a Guerra Fria em pano de fundo, ocorreu numa altura em que as autoridades norte-americanas exaltavam o modo de vida dos cidadãos do “mundo livre”. Imagens de condutores, desfilando nas grandes estradas com as suas “máquinas de liberdade”, sem irem para um lugar específico, como cantava Chuck Berry (na canção No Particular Place to Go), alimentavam a propaganda. Em comparação, a imobilidade física dos cidadãos nos países comunistas mostrava a infâmia dos regimes como o soviético.
Hoje, a China quer “automobilizar” a sua paisagem a um ritmo e a uma escala que relembram os Estados Unidos da América da segunda metade do século 20.
Também aqui, na Inglaterra, o carro ainda promove o espírito capitalista entre os cidadãos. Os meios de comunicação e da propaganda ocidentais dão voz a muitos motoristas, que expõem o sentimento de liberdade que o carro lhes oferece. Em contrapartida, com a sua enorme população e os seus problemas ambientais, a China está fortemente encorajada a fazer as melhorias tecnológicas tão necessárias nos carros. Vai ser preciso substituir os condutores humanos pela condução autônoma e substituir o combustível fóssil por uma boa relação custo-eficácia e zero emissões de CO2. Ainda não sabemos com o que se parecerá o automóvel versão 2.0, mas vai seguramente surgir numa China marcadamente capitalista e refletir os seus valores.
O exemplo do ambicioso plano de equipamento automóvel da China leva-nos à segunda razão pela qual a “automobilidade” ainda não está prestes a desaparecer – ou a ser relançada – nos Estados Unidos da América: a esclerose política. Face ao atual clima político nos EUA, não é possível imaginar que o Estado federal inicie um projeto ambicioso como o de uma rede rodoviária interestadual. O Estado nem sequer está disposto a financiar as infraestruturas necessárias a uma futura utilização de viaturas sem condutor há muito anunciadas.
Entretanto, muitos norte-americanos não têm outra opção senão estruturar as suas vidas ao redor dos carros, mesmo sabendo que estes são uma fonte de problemas, de engarrafamentos e de despesas. Já não gostamos dos carros – se é que algum dia realmente gostamos. Ainda estamos casados com eles. Mas à beira do divórcio.
Vídeo: Em Hong Kong, na China, ocorreu um dos maiores engarrafamentos da história. Durante cinco dias centenas de milhares de automobilistas foram obrigados a permanecer parados na estrada.
https://www.brasil247.com/pt/247/revista_oasis/367237/Autom