NO ATACAMA FAZ-SE EXATAMENTE ISSO
No deserto de Atacama, no norte do Chile, uma das regiões mais áridas do planeta, os astros brilham à noite com uma intensidade especial. Os telescópios florescem e procuram-se novos planetas no cosmos.
9 DE JUNHO DE 2016 ÀS 22:39 // 247 NO TELEGRAM // 247 NO YOUTUBE
Por: Toni Pou. Fonte: Jornal A Hora, Madri
Marte. É a primeira palavra que nos vem à cabeça quando, 50 km ao sul de Antofagasta, deixamos a estrada pan-americana para apanhar a via B-70 e mergulhar no deserto de Atacama (norte do Chile). Os olhos esbugalham- se, qualquer fotografia tirada relembra irresistivelmente as imagens do planeta vermelho que recebemos da sonda espacial Curiosity.
A semelhança entre estas duas paisagens extremas não é só visual. Uma equipe de cientistas reproduziu, no deserto de Atacama, experiências efetuadas pelas sondas Viking 1 e Viking 2 para detectar eventual atividade biológica em Marte, e recolheram os mesmos resultados: não existe qualquer sinal de vida...
O deserto de Atacama atravessa a região mais árida do planeta. As estações meteorológicas instaladas há várias décadas perto de Calama nunca viram uma gota de chuva. A umidade ambiente raramente ultrapassa os 10%. Neste clima, assim que saímos do carro, a pele fica seca e irritada, tal como a garganta e o nariz, que facilmente começa a sangrar.
Esta aridez é responsável pela austera harmonia de cores característica daqui: o solo arenoso desdobra-se em tons de laranja sob os últimos raios de sol, as pedras são negras e a abóbada celeste é de puro azul absoluto. Uma cor que só conseguimos definir pela largura de banda de 475 nanômetros. A ausência de umidade confere a esta atmosfera azulada uma limpidez sem paralelo.
Mal o crepúsculo chega, o Atacama se transforma. A aridez parece desvanecer-se e ninguém mais se queixa da secura extrema do ar ou da ausência de vida, porque o céu brilha com tal intensidade que parece palpitar. Nas noites sem lua vemos a silhueta dos objetos recortada pela luz emitida pela legião de estrelas do universo.
Espelhos de 45 toneladas
Esta luz atravessa espaços vazios separados por dezenas de milhares de anos- luz. Face a esta imensidão, é difícil não sentir vertigens. Este excesso de informação deixa-nos a meio caminho entre a insignificância absoluta e a grandeza de espírito: o ser humano é minúsculo no universo, mas é capaz de o compreender...
É o que tentam fazer os astrônomos que há mais de duas horas rolam na estrada B- 70, atravessando as paisagens marcianas de Atacama para chegarem ao cume do Cerro Paranal. Aí, a 2600 metros de altitude, uma verdadeira joia da tecnologia examina todas as noites o universo, através da atmosfera mais pura do planeta. Quatro cúpulas de 35 m abrigam o VLT (Very Large Telescope) do Observatório Europeu do Sul (ESO), um conjunto de quatro espelhos primários de 8,20 m de diâmetro, assentados numa estrutura de 450 toneladas, ligada a quatro telescópios auxiliares. "Durante as observações, estes gigantes rodam na base com uma precisão da ordem de um mícron, explica Juan Osorio, engenheiro responsável pela manutenção dos refletores.
Cada espelho é um disco de vidro cerâmico flexível que pesa 45 toneladas e está coberto por uma película de alumínio de algumas dezenas de nanômetros de espessura. É de tal forma fina que é preciso mais alumínio para fabricar uma lata de refrigerante do que para revestir este espelho.”
50 deformações por segundo
Os espelhos associam resistência e flexibilidade e demoram dois anos para serem construídos. Por muito perfeitos que sejam, os telescópios terrestres têm de se acomodar à presença da atmosfera que filtra e altera a luz emitida pelas estrelas no céu noturno. O Atacama não é exceção, mesmo com uma atmosfera mais pura que qualquer outra. Para compensar este efeito, o VLT está equipado com um dispositivo que analisa em tempo real as perturbações atmosféricas e transmite a informação a um sistema de 150 cilindros, localizados abaixo da superfície do espelho.
Estes cilindros exercem mais ou menos pressão sobre o espelho, deformando-o para que a luz que absorve tenha as mesmas características da ausência de atmosfera. E como a composição do ar está sempre a alterar-se, a ação dos cilindros sobre o espelho é constante. “Cada espelho pode se deformar até 50 vezes por segundo", explica Juan Osorio.
Sentimos algo especial quando percorremos o cume do Paranal e observamos as milhares de toneladas de metal, de plástico e de cerâmica, organizados com uma precisão micrométrica no interior dessas cúpulas fantasmagóricas. O que sentimos pode ser a mistura de medo e de esperança de que falava o historiador de ciências George Dyson quando afirmava que uma máquina parada nos confronta com o que separa a vida da morte. A menos que não nos deixemos afetar pela proeza da decodificação do universo através do raciocínio e de máquinas irrepreensíveis.
"Tudo isto é fascinante, mas a astronomia romântica que praticava na infância com os meus telescópios artesanais no sótão lá de casa já não existe", sublinha Roberto Castillo, engenheiro responsável pelos receptores de infravermelhos acoplados aos espelhos para analisar a luz emitida pelas nuvens de gás onde se formam as estrelas. "Estas nuvens são as salas de parto do universo", acrescenta. Como em todas as observações realizadas pelo VLT, estas nuvens também não podem ser vistas diretamente através da ocular do telescópio.
Resquícios de romantismo
A este nível de complexidade, os telescópios já não têm ocular. Os astrônomos guiam-nos por computador a partir do centro de controle e os dados recolhidos aparecem nas telas e são gravados em discos rígidos. Mas estas telas não mostram nenhuma imagem vagamente reconhecível: no máximo distinguimos diagramas em perfil, manchas de cor pixelizadas e curvas irregulares. A luz das estrelas e das galáxias longínquas é tão fraca que é preciso trata-la para gerar as imagens.
“Mesmo assim, todos os que trabalham aqui ainda são um bocadinho românticos, afirma Castilho. À nossa maneira temos almas de poeta. Há qualquer coisa de poético no fato de virmos ao coração do deserto mais árido do mundo para escrutinar o céu com um instrumento perfeito. Mesmo que não vejamos diretamente esse céu com os olhos, mas através do intelecto."
Castilho é o arquétipo dos astrônomos autodidatas como tantos outros no Chile. Em criança, fascinado pelas "grandes números", devorou os livros de astronomia da biblioteca de Concepción. Como a sua família não tinha muitas posses, começou a fabricar os seus aparelhos, com vidro refrator que polia com areia da praia e alcatrão que, com uma faca, cortava da beira da estrada.
Durante anos construiu mais de uma centena de telescópios rudimentares com os quais conseguia observar as crateras da Lua, os anéis de Saturno e os satélites de Júpiter. “Sinto emoção como se fosse a primeira vez quando encosto o olho à ocular de um telescópio", ele afirma.
O laboratório do Paranal efetua observações para projetos de investigação de âmbito global. Por ano recebe cinco vezes mais pedidos do que a capacidade instalada. Os dados recolhidos em cada noite são transmitidos por ondas de rádio até à sede da ESO em Graching, perto de Munique (Alemanha), que as reenvia para os centros de investigação interessados. O observatório do Cerro Paranal é um dos mais produtivos do mundo e, em média fornece material para uma publicação científica por dia.
Uma das observações mais solicitadas é a detecção de planetas que orbitem ao redor de outras estrelas. Os astrônomos já identificaram mais de dois mil exoplanetas e estima-se que a Via Láctea possa conter até trinta mil. O interesse nestes planetas é evidente. Já que se trata de responder a uma das grandes perguntas da Humanidade: há vida além da Terra? "A questão da existência, ou não, dos "homenzinhos verdes" interessa a Stephane Brillant, um dos cientistas do Paranal. “Mas para nós, astrônomos, é uma peça de um imenso puzzle. O estudo destes planetas dá-nos pistas sobre a formação dos sistemas planetários e permite compreender melhor a gênese do sistema solar."
Especialista em exoplanetas, Brillant ainda fica surpreendido com a atenção mediática que despertou em 2006 a descoberta, em que participou, de um pequeno exoplaneta (cujas características são parecidas com as da Terra). Após a publicação da novidade na revista Nature. vários membros da sua equipe receberam uma avalanche de mensagens que os acusavam de Impostura e de procurarem explicar através de modelizações e observações um fenômeno cuja compreensão os ultrapassava. Mas quando conseguiram estabelecer que a superfície do planeta estava a uma temperatura de 220 graus centígrados negativos, os ânimos se acalmaram...
A manutenção desses equipamentos perfeitos e das infraestruturas que lhes permitem funcionar no meio do deserto mais seco do mundo exige uma logística considerável e mobiliza 350 pessoas em tempo integral.
Paisagem de ficção científica
Astrônomos, engenheiros e especialistas em computadores ficam alojados num estranho edifício parcialmente enterrado na encosta de uma colina: “La Residencia". Chegamos lá através de uma passagem superior e ficamos surpreendidos com o forte cheiro de estufa. No interior, banhado com luz natural que penetra através de uma cúpula transparente, há uma piscina de água quente e um oásis repleto de bananeiras e outras arvores tropicais. Não se trata de um capricho nem de um luxo superficial. As árvores e a água criam um microclima melhor para os seres humanos do que a extrema secura do exterior.
O edifício, cuja arquitetura muito original já mereceu um prêmio, está a serviço da astronomia. A cúpula, como todas as portas e janelas, está equipada com um sistema de blindagens opacas que, à noite, calafetam as aberturas e isolam o interior do exterior, bloqueando a claridade parasita suscetível de alterar a luz captada pelos telescópios. Cada semana o complexo recebe um caminhão cheio de alimentos sólidos e outro de líquidos, dois caminhões de gás liquefeito para produzir eletricidade e duas dezenas de caminhões cisterna com água.
Vista ao longe, “La Residencia” é uma rede homogênea de varandas fechadas com placas pintadas com óxido de ferro. Este aspeto exterior alimenta o sentimento de fantasia que nos assalta no coração do Atacama. O aspecto das varandas lembra uma espécie de colmeia futurista e decadente, a ideia de um futuro longínquo observado através de outro futuro ainda mais longe. Não é surpreendente que Dominic Greene, o bandido do filme perseguido por James Bond (interpretado por Daniel Craig) no filme se tenha escondido neste edifício.
Restaram no local algumas recordações do filme, como enormes rochedos tão leves como cadeiras de plástico e que os residentes levantam para impressionar os jornalistas. No cinema tudo é fingimento. Mas no Cerro do Pantanal, a atividade dos astrônomos não tem nada de irreal. Aqui sonda-se o universo.
https://www.brasil247.com/pt/247/revista_oasis/237395/Ora-direis-ouvir-estrelas-No-Atacama-faz-se-exatamente-isso.htm