AMARTYA SEN
Estudioso das condições de vida dos pobres e Prêmio Nobel de Economia em 1998, o indiano Amartya Sen devolveu à disciplina uma dimensão ética pouco visível no mundo contemporâneo.
13 DE OUTUBRO DE 2015 ÀS 06:30
Por Eduardo Araia
A aridez de números e fórmulas da economia recebeu uma refrescante brisa em 1998, quando o comitê do Prêmio Nobel da categoria elegeu o indiano Amartya Sen por seus estudos sobre a teoria da decisão social e o estado de bem-estar. Criador, junto com Mahbub ul Haq, do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), usado desde 1993 pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento no seu relatório anual, Sen vem trilhando uma rota singular ao desenvolver ideias sobre a superação da pobreza, devolvendo “uma dimensão ética ao debate dos problemas econômicos vitais”, como disse a Real Academia da Suécia ao justificar sua escolha para o Nobel. A carreira acadêmica desse pensador original, com formação em economia e filosofia, levou-o a universidades de renome como Harvard (onde ensina atualmente), Cambridge e Oxford.
Nascido em Shantiniketan (Bengala Ocidental) em 1933, quando a Índia, ainda sob domínio britânico, incorporava os atuais Paquistão e Bangladesh, Sen conviveu, desde cedo, com as imensas contradições daquela parte do mundo. Filho e neto de professores universitários, e educado num ambiente pluralista e de respeito às diferenças, nunca passou privações financeiras ou sociais, mas podia ver rotineiramente pessoas vivendo sob condições de quase completa penúria.
Perigo das identidades étnicas bem definidas
Ainda jovem, o economista testemunhou dois episódios de enorme importância para suas teorias. O primeiro, em Daca (hoje capital de Bangladesh), foi o contato com um muçulmano que pediu ajuda à família Sen após ser esfaqueado por hinduístas radicais. Sem meios de sustentar a família, o homem entrara na área de maioria hinduísta onde moravam os Sen para fazer um pequeno serviço, e isso lhe custaria a vida.
Amartya contou que descobriu ali os perigos, inclusive políticos, embutidos nas identidades étnicas bem definidas – na época, muitos indivíduos preferiam se declarar hinduístas, muçulmanos ou sikhs em vez de indianos –, e também percebeu que a falta de liberdade econômica, determinada pela pobreza extrema, pode fragilizar a pessoa em relação a outros tipos de liberdade.
O outro episódio foi a epidemia de fome que, em 1943, matou 3 milhões de pessoas em Bengala. Na época morando em Calcutá, Sen notou que a tragédia afetava apenas as classes mais baixas, como os agricultores sem terras. Já na universidade, diante do que considerava abordagens distorcidas do fenômeno, tanto à direita como à esquerda, o jovem estudante concluiu que era impossível analisar essas questões sem uma visão pluralista e tolerante – “como, aliás, a própria tradição hinduísta recomenda”, ressalta.
Uma escolha social democrática, tolerante e racional
Foi assim que surgiram as áreas de interesse sobre as quais Sen se concentraria. Na sua visão, a pobreza e a desigualdade econômica que bloqueiam a economia do bem-estar podem ser aliviados pela possibilidade de uma escolha social democrática, tolerante e racional, que inclui o exercício do voto e a proteção da liberdade e dos direitos das minorias.
Sen opõe-se à definição de pobreza como a simples obtenção de uma renda diária inferior a um dado valor. Prefere ressaltar que uma pessoa é pobre quando, com sua renda, não consegue desenvolver funções básicas, considerando-se as circunstâncias que a cercam (geográficas, biológicas e sociais) e as relações entre elas. Os que vivem em pior situação apresentam carência em áreas como educação, saúde, justiça, apoio da família e da comunidade, acesso à terra, a crédito e a oportunidades em geral.
“A análise da pobreza deve se concentrar nas possibilidades que um indivíduo tem de funcionar, mais do que nos resultados obtidos com esse funcionamento”, disse Sen em uma palestra em São Paulo, em 2012 (ano em que visitou também Porto Alegre). Isso explicaria, por exemplo, a existência de bolsões de pobreza em redutos de classe média nos Estados Unidos, nos quais os moradores convivem com baixo nível de educação, ausência de serviços sociais, atendimento de saúde precário e taxas altas de crimes violentos. Tais características fazem essas áreas apresentar índices de mortalidade infantil, longevidade, saúde, educação e segurança comparáveis aos piores países de terceiro mundo – numa das nações mais ricas do planeta.
O estudo sobre a tragédia da fome em massa é outra das marcas de Sen. “Tentei ver os episódios de fome como problemas ‘econômicos’, concentrando em como as pessoas podem comprar comida ou ser autorizadas a recebê-la, em vez de examiná-los em termos indiferenciados de fornecimento de alimento para a economia como um todo”, explica.
Fatores fundamentais da fome
No livro Pobreza e Fome: Um Ensaio sobre Direito e Privação (Editora Terramar), o pesquisador mostrou que, em países pobres, “as grandes fomes têm ocorrido mesmo quando o suprimento de alimentos não era significativamente menor do que nos anos anteriores”. Os fatores fundamentais da fome de 1974 em Bangladesh, por exemplo, foram a forte alta nos preços dos alimentos causada pelas enchentes no país e a redução de oportunidades de trabalho para os camponeses, impedidos pelas águas de plantar.
A justiça, outro tema de obras recentes de Sen, também esteve no centro das palestras no Brasil em 2012. Sua visão se distancia do hipotético “contrato social” de que falavam filósofos como Thomas Hobbes, Immanuel Kant ou John Rawls. Sen segue mais no sentido de buscar os meios de reduzir a injustiça, como propunham Adam Smith, John Stuart Mill e Karl Marx. “Uma teoria da justiça que possa servir como base de um raciocínio prático”, afirma em A Ideia de Justiça (Editora Almedina), “deve incluir formas de julgar como reduzir a injustiça e promover a justiça, em vez de apontá-la apenas como uma caracterização das sociedades perfeitamente justas.”
Injustos e deficientes, para Sen, são os cálculos do Produto Interno Bruto (PIB) que medem “o aumento de objetos inanimados de conveniência”. O Prêmio Nobel não confia no uso da renda como medida de comparação de bem-estar, pois há diferenças no ritmo com que as pessoas, nas várias sociedades, conseguem transformar a renda em benefícios para sua vida. Embora limitado, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) que propôs combinando dados de expectativa de vida ao nascer, educação e PIB per capita, é, para ele, um índice mais confiável, por ser mais centrado em pessoas do que apenas em dados econômicos contábeis.
Obrigação moral dos líderes em relação à pobreza
A melhoria em todos esses aspectos da existência é fundamental para o desenvolvimento sustentável, diz o economista indiano, sem esquecer o lado ambiental. Ele vê a sustentabilidade como uma questão de “equidade distribucional” em larga medida, ou seja, de partilhar a capacidade de atingir o bem-estar entre as pessoas do presente e as do futuro de um modo aceitável, que nem nós, nem nossos descendentes possamos rejeitar de imediato.
Sen frisa que há uma obrigação moral em lidar com a pobreza para minorá-la. Aliviar a pobreza já era um dos instrumentos propostos para proteger o meio ambiente da degradação, num relatório de 1992 do Banco Mundial. E o crescimento acelerado de países como Índia, Brasil e China, que acelera as mudanças climáticas, pode ser visto como um tiro no pé: “Se as ilhas Maldivas e parte da Holanda afundarem, se Bangladesh for acometida por desastres naturais, o crescimento, em vez de ajudar, expande a pobreza e a privação”, afirma.
Questionado sobre a crise econômica e moral contemporânea, Sen lamentou o comportamento europeu ante o problema. Para ele, a crise de 2008 teve sua origem no desleixo com que os países ricos vigiaram o funcionamento do sistema financeiro. Os problemas atuais na União Europeia serão ainda mais complicados, segundo ele, por uma política de austeridade severa que bloqueia as chances de crescimento, um aspecto fundamental para a recuperação do quadro geral.
Otimista, apesar de tudo, o pensador indiano Sen elogia a democracia como o sistema de governo mais próximo da justiça. Há nela várias formas institucionais, todas passíveis de sucesso, afirma o economista, desde que incorpore e pratique uma premissa essencial: o debate aberto sobre valores e princípios. Para Sen, essa é a tendência global irreversível, mesmo que o prazo para sua concretização seja longo. “A busca da justiça pode ser difícil de erradicar na sociedade humana”, ressalta.
http://www.brasil247.com/pt/247/revista_oasis/200261/Amartya-Sen-A-moral-da-economia.htm