Editorial
Paulo Freire (19.9.1921/2.5.1997)
Escrever algumas palavras sobre Paulo Freire, numa revista cujos leitores têm pleno conhecimento sobre a importância de sua práxis e de seu pensamento pedagógico na história da educação brasileira, é uma tarefa bastante difícil. Entretanto, neste momento, em que ainda nos ressentimos do choque causado por sua morte, forçoso é tentarmos contornar essa dificuldade, alinhavando algumas considerações sobre sua valiosa contribuição à educação brasileira.
A partir das primeiras formulações que fez no final da década de 1950, seu pensamento foi evoluindo, com sua produção cultural ganhando, já ao longo da década de 1960, uma posição de real destaque pela repercussão social que tiveram, em nosso país, suas idéias e pela influência que passam elas a ter, desde então, no pensamento pedagógico brasileiro.
Sua morte, ocorrida no dia 2 de maio, em São Paulo, teve grande repercussão no Brasil e no exterior e privou-nos da presença de uma figura humana especial – que foi um grande mestre e um intelectual merecedor do maior respeito –, que, aos 75 anos, demonstrava, ainda, grande vitalidade, tendo produzido, bem recentemente, o livro Pedagogia da autonomia (Editora Paz e Terra), e estava escrevendo, quando foi colhido pela morte, um novo livro que deveria ser intitulado Cartas pedagógicas.
Deixou-nos Paulo Freire um legado valioso, composto dos frutos de sua militância política e da significativa obra educacional que produziu como professor, acadêmico e intelectual. Seu método de educação de adultos – que aparece como sua obra de maior destaque e cuja aplicação se disseminou mundo afora – deu a ele uma grande projeção nacional e internacionalmente.
Recife foi, até 1963, o palco dos principais eventos relacionados à sua formação e à sua trajetória intelectual e pessoal. Lá ele nasceu, a 19 de setembro de 1921, lá realizou toda sua trajetória escolar até tornar-se, em 1947, bacharel em Direito pela Universidade do Recife (atualmente Universidade Federal de Pernambuco). No Recife iniciou, também, suas atividades profissionais como professor e, além disso, exerceu, entre 1947 e 1958, funções importantes no Serviço Social da Indústria, entidade na qual, segundo ele mesmo indicou, pôde realizar "as primeiras experiências que o levaram ao método" e onde teve contato com a educação de adultos.
Dentre as atividades que desenvolveu no Recife como docente, merece destaque o trabalho que realizou no ensino superior, como professor de História e Filosofia da Educação, na Universidade Federal de Pernambuco, de onde foi aposentado compulsoriamente em 1964.
Sua cidade natal serviu também de cenário para o início do desenvolvimento de seu trabalho teórico-prático, participando, desde 1961, do movimento de Cultura Popular do Recife, do qual foi um dos fundadores, e, também, lá atuou como o primeiro diretor do Departamento de Extensão Cultural da Universidade do Recife (entre 1961 e 1964), assim como teve participação política nos governos de Miguel Arraes, quando este foi prefeito da cidade e depois governador do estado de Pernambuco.
Foi ainda no Recife, que, como homem de seu tempo, realizou suas primeiras experiências na defesa da democratização do acesso à educação escolar, ao lado de integrantes de outras correntes, que, no início dos anos 60, envidavam esforços na mesma direção para combater a realidade educacional dominante naquela época, considerada "tenebrosa", tanto no nível do município quanto do estado.
Participou, também, do trabalho, que lá ocorreu, de expansão da rede escolar, através da implementação de políticas de construção de escolas municipais e estaduais.
Foi também lá que escreveu seus primeiros trabalhos intelectuais, dentre os quais destacamos sua tese de concurso público para a cátedra de História e Filosofia da Educação, da Escola de Belas Artes, da então Universidade do Recife, que recebeu o título "Educação e Atualidade Brasileira" (1959).
A importância de Paulo Freire, ao lado de outros diferentes movimentos e campanhas contra o analfabetismo e a educação popular que existiram no Nordeste e em outros estados do Brasil no início dos anos 60, foi a de ter contribuído de maneira peculiar, para dar nova amplitude ao debate sobre o tema da democratização da educação no país, chamando a atenção para os limites das políticas educacionais públicas, se as mesmas não procurassem atingir os adultos, excluídos do sistema escolar.
Também lá, realizou as pesquisas iniciais que resultariam, mais tarde, no seu método.
Foi, todavia, em Angicos, cidade do interior do Rio Grande do Norte, que Paulo Freire, em 1963, juntamente com estudantes católicos de esquerda, fez a experiência de aplicação de seu método de alfabetização de adultos, visando ensinar trabalhadores rurais a ler, a escrever e a se politizar em 40 horas.
A partir dessa experiência, seu método e suas idéias ganharam maior expressão social, repercutindo seu trabalho e o dos estudantes em níveis nacional e internacional.
O encerramento das atividades desenvolvidas em Angicos contou com a presença do governador do estado, Aluísio Alves, e do presidente João Goulart.
As idéias de Paulo Freire passaram a ter uma maior divulgação, em nível nacional, quando o mesmo, no governo Goulart, tornou-se presidente da Comissão Nacional de Cultura Popular, do MEC, em 1963, e, principalmente, quando, também no governo Goulart, assumiu a coordenação do Plano Nacional de Alfabetização de Adultos.
Com o golpe militar de 1964, foi preso e exilado.
Na prisão e no exílio deu continuidade à sua militância e produção cultural.
Refugiou-se no Chile, entre novembro de 1964 e março de 1969.
Nesse país, foi assessor no campo de alfabetização de adultos e de educação popular em geral, em muitas instituições relevantes, nas quais coordenou seminários em 1967 (Flacso e Ilpes), o que também fez em instituições do México e em importantes universidades norte-americanas.
No Chile, foi professor da Universidade de Santiago e do Instituto latino-americano de Estudos Sociais.
Em 1969, foi morar nos Estados Unidos, tendo sido professor visitante na Universidade de Haward (entre abril de 1969 e fevereiro de 1970).
Mudou-se para a Suíça, tendo sido, no período de 1970/1980, em Genebra, consultor especial do Conselho Mundial de Igrejas – Departamento de Educação, tendo, ainda, sido, no período de 1972/1974, professor da Universidade de Genebra.
Naquele país viveu até 1980, ano de seu regresso ao Brasil, aproveitando a Lei da Anistia (1979), depois de quase 16 anos de exílio.
Passou, então, a morar na cidade de São Paulo, onde, desde 1980, foi professor da PUC-São Paulo. Em paralelo, foi, também, professor da Unicamp.
Em termos políticos, depois de seu retorno ao Brasil, participou da fundação do Partido dos Trabalhadores, pelo qual foi secretário da Educação do município de São Paulo, entre janeiro de 1989 e maio de 1991, no governo da prefeita Luiza Erundina.
Foi ele, também, fundador do Vereda – Centro de Estudos em Educação, do qual foi diretor.
Como reconhecimento da expressão social de suas idéias, ele, entre 1965 e 1984, "percorreu o mundo", ministrando cursos e seminários em inúmeras universidades latino-americanas, européias e asiáticas.
Tornou-se doutor honoris causa por 28 universidades e, além disso, 26 centros de pesquisa recebem seu nome, em países como: Itália, Chile, Bélgica, Estados Unidos e Brasil.
Estas considerações, sobre um intelectual que dispensa apresentações no campo educacional, foram feitas no sentido de expressar o reconhecimento da Revista Educação & Sociedade, sobre a importância de sua contribuição teórica e militância com relação à educação brasileira em geral, à pedagogia brasileira, assim como aos estudos da educação de adultos e da educação popular.
Acreditamos, no entanto, que a melhor homenagem que se poderia prestar a Paulo Freire seria o estudo de sua obra, de sua trajetória intelectual e pessoal e de sua militância.
Existe, atualmente, uma significativa bibliografia editada sobre a obra de Paulo Freire.
Apesar da importância desses trabalhos para o estudo do pensamento do intelectual, acreditamos ser importante a emergência de novas pesquisas sobre seu método e sobre suas idéias educacionais em geral, veiculadas no conjunto de sua obra e militância, procurando, com esse trabalho, contribuir, ainda mais, para o estudo do tipo de saber que propôs, procurando interpretar suas idéias e como, no desenvolvimento de sua trajetória, sua biografia se justificou historicamente, sendo possível pensar "Paulo Freire na história e a história em Paulo Freire".
Consideramos importante o aprofundamento em termos de estudo de suas proposições e das bases do pensamento que formulou, no qual acreditou, tendo-o defendido como verdadeiro, uma vez que, ao elaborá-lo, tinha convicção de estar no seu tempo e na sua época, contribuindo para a construção de novas liberdades humanas, voltando-se para os de baixo, solidarizando-se com os oprimidos.
Pensar o pensamento de Paulo Freire (inclusive do ponto de vista filosófico, social, político e ideológico) é uma possibilidade sempre aberta.
Estudar a estrutura teórica de sua proposta pedagógica, seus pressupostos, seus supostos antropológicos, gnoseológicos, metodológicos e pedagógicos, sua lógica interna na sua relação com a situação histórica na qual seu pensamento foi formulado, a evolução de seu pensamento, procurando verificar se ele retifica ou ratifica posições teóricas anteriores, as contradições de sua proposta, são questões que já vêm sendo pesquisadas, mas, talvez, não o suficiente, merecendo, portanto, ainda maiores estudos.
Do pensamento pedagógico de Paulo Freire lembraríamos, apenas no sentido de fazer algumas considerações, a temática da vinculação entre teoria e prática, a reflexão e o questionamento sobre a vinculação entre saber e poder, o tema da dominação, o tema da educação e da dominação na relação pedagógica, a educação como opção libertadora, a educação brasileira e o autoritarismo, a educação e a política, a educação para a participação e a cidadania, a alfabetização como conscientização, a não-neutralidade do ato de educar, sua opção pelos oprimidos.
O estudo do pensamento e da militância de Paulo Freire, poderá, pois, nos abrir caminhos para o estudo de temas que ele enunciou, mas que não pôde desenvolver.
Elizabete S.P. Camargo e Comitê de Redação
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73301997000300001
CAMARGO, Elizabete S.P.. Editorial. Educ. Soc., Campinas , v. 18, n. 60, p. 07-11, Dec. 1997 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73301997000300001&lng=en&nrm=iso>. access on 06 June 2017. http://dx.doi.org/10.1590/S0101-73301997000300001.