https://pt.wikipedia.org/wiki/Johann_Sebastian_Bach
Música de câmara[editar | editar código-fonte]
No domínio da música de câmara se encontram algumas das mais importantes obras de Bach. A maioria data dos períodos de Weimar e Köthen, quando ele teve a oportunidade de aperfeiçoar sua técnica e estilo para pequenos grupos instrumentais. Sobrevive um bom número de peças para várias formações. Embora tenha deixado várias na forma da sonata para instrumento solo e baixo contínuo, o principal modelo de câmara praticado em seu tempo, seu interesse recaiu antes sobre o tipo da trio-sonata, que lhe abria mais possibilidades de experimentação. De qualquer maneira, as que escreveu para a primeira forma não são obras desprezíveis, mas possuem grandes belezas. São exemplos as sonatas para violino e contínuo BWV 1021 e 1023, e as para flauta e contínuo BWV 1034 e 1035.[63]
Sua veia experimental levou-o a tomar o modelo da trio-sonata e introduzir-lhe uma modificação simples, mas fundamental, atribuindo ao teclado uma das duas vozes solistas, confiada à mão direita, enquanto a esquerda realizava todo o baixo contínuo, prescindindo de um instrumento melódico adicional para reforço da linha do baixo, tais como os costumeiramente usados, o violoncelo, gamba ou fagote. Com isso adaptou uma forma originalmente concebida para pelo menos quatro instrumentos - dois solistas melódicos, um teclado para recheio harmônico e um baixo melódico - para uma formação enxuta de apenas dois executantes. Não foi ele, na verdade, o inventor dessa nova fórmula, mas a levou a um grau de perfeição sem precedentes. Além disso, introduziu nesta trio-sonata modificada elementos do concerto e expandiu a sua textura adicionando outras vozes, sem requisitar instrumentos adicionais. Pertencem a este gênero, por exemplo, as sonatas para violino e teclado BWV 1014-1019, as sonatas para flauta e teclado BWV 1030 e 1032, e a Sonata para viola da gamba e cravo obbligato BWV 1027.[64]
Suas obras de câmara mais importantes são duas coleções de seus anos finais. A primeira é a Oferenda Musical BWV 1079. O conjunto nasceu em sua visita ao rei Frederico II da Prússia, em 1747, quando o rei deu ao compositor um sujeito de fuga para que improvisasse em torno. Bach tocou então, diante da augusta presença, em um pianoforte, o que veio a ser conhecido como o Ricercare a 3 da coleção, prometendo mandá-lo imprimir. De volta à sua casa em Leipzig, escreveu não somente a obra prometida mas uma série de peças: dezcânones, dois ricercares e uma trio-sonata nos moldes tradicionais, todas a partir do mesmo tema régio. A partitura que foi finalmente publicada e oferecida ao rei, porém, mostra sinais evidentes de ter sido elaborada às pressas, e contém somente parte do conjunto atualmente conhecido. O restante foi impresso como suplemento mais tarde. O original manuscrito não sobreviveu, salvo uma versão antiga do Ricercare a 6. Disso, e dos erros da versão impressa, deriva a grande confusão que até hoje reina entre os estudiosos, principalmente a respeito da ordem das peças e da instrumentação que Bach pretendia para o conjunto. O primeiro aspecto é o mais problemático e já deu origem a uma considerável bibliografia especulativa. Sobre o segundo há menos dúvidas, pois para a trio-sonata ele deixou indicação explícita - flauta, violino e baixo contínuo - e para um dos ricercares também - dois violinos - o que autoriza a suposição de que todo o conjunto pode ser executado por um grupo de flauta, dois violinos e contínuo integrado por cravo e gamba. A Oferenda Musical é em síntese uma coletânea de variações sobre o tema régio, de incomum força expressiva, trabalhado de várias maneiras contrapontísticas eruditas, tais como movimento retrógrado, aumento, cantus firmus e outras, incluindo dois "cânones enigmáticos", em que Bach não deu indicações de entrada das vozes sucessivas, ficando a decisão a cargo do intérprete. A peça central da coleção é a trio-sonata, que segue o modelo da sonata de igreja, com quatro movimentos e ricas texturas contrapontísticas.[65] [66]
A outra é A Arte da Fuga BWV 1080, a última grande obra do mestre, escrita em 1749 e publicada após sua morte de modo negligente. Contém cerca de vinte fugas e cânones, chamados contrapuncti, todos derivados de um mesmo tema, onde as mais variadas formas de contraponto erudito são aplicadas. O número exato de peças varia conforme a edição, algumas vezes duas ou mais peças são agrupadas sob uma mesma entrada. Antigamente A Arte da Fuga era considerada principalmente um manual de contraponto avançado, mas hoje é vista como uma das mais importantes criações da música do ocidente, a suma da técnica contrapontística aliada a uma substância do mais alto valor. A edição original é desorganizada e deu origem a uma continuada controvérsia sobre a ordem dos números e sua instrumentação, além de o conteúdo musical servir de pretexto a um sem-número de elaborações hipotéticas sobre seu significado, sem que se chegasse a uma conclusão definitiva. A última peça, uma gigantesca fuga tripla, foi deixada inconclusa; o tema que unifica o restante do conjunto não aparece, mas já foi demonstrado que os três temas presentes - um deles usando as notas B-A-C-H (nanotação alemã, si bemol, lá, dó e si) - podem ser combinados com o tema ausente. Um testemunho de Mizler confirma a ideia de que a peça deveria ser uma fuga quádrupla, e segundo ele Bach pretendia compor uma outra fuga quádrupla que poderia ser invertida. A instrumentação se apresenta como outro problema; possivelmente, de acordo com Geiringer, foi concebida como música para teclado solo, mas a execução com um grupo de câmara parece ser mais efetiva. Isso é suportado pelo fato de que as duas fugas-espelho têm uma tessitura além do alcance de um tecladista.[67] [68]
Segundo movimento da Sonata para flauta e cravo em lá maior BWV 1032 | |
Interpretado por Alex Murray (flauta) e Martha Goldstein (cravo) |
Contrapunctus I de A Arte da Fuga BWV 1080 | |
Versão midi do Mutopia Project |
Música orquestral[editar | editar código-fonte]
Para a orquestra Bach compôs diversas obras-primas, apesar de que só pôde dispor de conjuntos pequenos, que hoje seriam chamados de grupos de câmara, e a maior parte dos quais de baixa qualidade. Como consequência, relativamente poucas obras para esta formação são conhecidas, mas pode-se supor que algumas outras se perderam. De todas, somente suas quatro Aberturas BWV 1066-1069 não pertencem ao gênero doconcerto. Apesar do nome, são de fato suítes de danças, que contam com uma abertura francesa em seu início. Não parecem ter sido concebidas como um ciclo, e têm diferentes formações instrumentais. A mais notável é a quarta, cuja fuga é um verdadeiro monumento à escrita instrumental virtuosística,[69] mas a mais célebre é a terceira, que contém a popular Ária na corda de sol.[70]
Trecho da Ária na corda de sol, da Abertura nº 3 BWV 1068 | |
Interpretado pela Capella Istropolitana, regida por Oliver Dohnanyi |
Entre seus dezessete concertos para solo de instrumentos e orquestra, poucos em sua forma definitiva são obras originais, tratando-se de arranjos de composições anteriores. Bach iniciou a série provavelmente em Köthen com os concertos para violino BWV 1041-1042 e o para dois violinos BWV 1043, influenciado pela onda de música italiana que dominava a Europa de então. De acordo com Buelow eles são decalcados no modelo de concerto estabelecido por Vivaldi, com um primeiro movimento rápido e vigoroso dentro de uma estrutura de ritornello, um movimento central lento, lírico e expressivo, e um final também rápido, no espírito de uma dança estilizada. Mas a semelhança é apenas superficial, pois Bach sem dúvida adaptou para sua própria linguagem a influência estrangeira.[71]
Primeiro movimento do Concerto para dois violinos e orquestra BWV 1043 | |
Interpretado pela Advent Chamber Orchestra, solistas David Parry e Roxana Pavel Goldstein |
Os concertos para cravo e orquestra foram uma novidade no tempo de Bach, jamais o teclado havia assumido o primeiro plano em uma composição orquestral, antes servia apenas como instrumento de recheio harmônico como reforço do baixo contínuo. Todas as suas várias obras no gênero são arranjos de concertos para outros instrumentos, incluindo seus próprios concertos para violino. Também escreveu concertos para dois, três e um para quatro cravos (adaptando uma obra de Vivaldi), combinações de todo inusitadas que parecem ter atendido ao seu gosto por experimentação de novas texturas e sonoridades.[72]
De todos os seus concertos, porém, os mais afamados, e que atualmente estão entre suas obras mais populares, são o ciclo dos seis Concertos de Brandenburgo BVW 1046-1051, compostos antes de 1721 para o marquês de Brandemburgo. Têm sido considerados a suma do gênero do concerto grosso, uma espécie concertante em que um pequeno grupo de solistas dialoga com a orquestra. Todos são altamente individualizados, exploram uma vasta variedade de efeitos orquestrais e mostram alguma influência da música de Vivaldi.[73] Nas palavras de Albert Schweitzer,
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- "Os Concertos de Brandenburgo são os mais puros produtos do estilo polifônico de Bach. Nem no órgão nem no cravo ele teria desenvolvido a arquitetura de um movimento com tanta vitalidade; somente a orquestra lhe permite completa liberdade na condução e agrupamento das vozes ... Já não é uma questão meramente de alternância entre tutti e concertino; os vários grupos se interpenetram e reagem uns aos outros, separam-se uns dos outros, se unem novamente, e tudo com um senso de inevitabilidade artística que ultrapassa a compreensão".[74]
Segundo movimento do Concerto de Brandenburgo n.º 5 BWV 1050 | |
Interpretado por Roxana Pavel Goldstein (violino), Constance Schoepflin (flauta) e Matthew Ganong (cravo) |
Terceiro movimento do Concerto de Brandenburgo n.º 6 BWV 1051 | |
Interpretado pela Advent Chamber Orchestra, com os solistas Elias Goldstein & Elizabeth Choi (violas) e Anna Steinhoff (cello) |
Música vocal[editar | editar código-fonte]
Cantatas[editar | editar código-fonte]
As cantatas constituem o grosso da produção de Bach, mas apenas nas últimas décadas sua importância vem sendo reconhecida. Esquecidas quase por completo no século XIX, até meados do século XX somente um pequeno número delas havia sido estudado em detalhe, situação que vem mudando diante do rápido crescimento dos estudos bachianos.[75] A maior parte delas é sacra, compostas em Weimar e principalmente Leipzig, mas ele cultivou o gênero ao longo de quase toda a sua carreira. Muitas foram perdidas por descuido de Wilhelm;[76] de acordo com o obituário de Carl Philipp ele compôs cinco ciclos completos para o ano eclesiástico, fora as cantatas profanas, o que representaria mais de 350 obras,[77] mas ainda sobrevivem 194 composições neste gênero, somando um total de mais de 1.200 movimentos individuais.[75] As de sua fase inicial são compostas segundo o modelo alemão do século XVII, sem recitativos ou árias da capo, elementos de origem operística italiana que só aparecem em suas obras maduras.[75] Mais tarde se consolidou um formato italianizado, com uma abertura mais elaborada com coro, seguida de uma alternância de cinco ou seis árias da capo e recitativos para voz solo, encerrando com uma harmonização coral simples homofônica a quatro vozes,[78] quando a congregação possivelmente se unia ao coro, mas mesmo aqui são encontradas muitas outras soluções técnicas e formais, incluindo fugas, cânones, variações sobre um ostinato, formas concertantes, influência da abertura francesa e do antigo moteto, além de se valerem de uma ampla gama de forças instrumentais.[79] Nas palavras de Buelow,
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- "Nada é mais difícil de definir ou explicar que o estilo vocal de Bach. É claro, contudo, que o cerne de seu estilo reside no seu compromisso de ilustrar expressivamente os textos, as palavras individuais desses textos, e os afetos que veiculam. Suas linhas vocais raramente são apenas líricas, e não guardam a menor semelhança com o estilo cantabile dos italianos. Quase sempre são altamente dramáticas e amiúde cheias de complexos motivos rítmicos, com um desenho anguloso de saltos amplos. Passagens melismáticas, algumas de enorme extensão, ocorrem às vezes para emprestar mais ênfase retórica ou para simbolizar determinada palavra, mas noutras ocasiões são parte integral do desenvolvimento melódico".[79]
As cantatas sacras são peças de ocasião, e por regra eram ouvidas apenas uma única vez. Obras muito elaboradas artisticamente, o que o ouvinte não conseguia entender em termos estéticos, como disse Chafe, era compensado por seu conhecimento de uma rede de intenções que ligavam a experiência religiosa de cada um ao seu contexto cultural e religioso maior. A principal dentre essas intenções era apresentar o caráter dinâmico da experiência religiosa num programa didático sequencial de afetos e formas com que o ouvinte comum pudesse se identificar, criando uma ponte entre as Escrituras e a fé, à luz, naturalmente, da tradição hermenêuticafundada por Lutero. Para conseguir esse objetivo, além do conteúdo explícito dos textos, Bach recorria a um rico repertório de elementos puramente musicais para ilustrar e enfatizar o texto, elementos que por sua vez estavam associados a uma série de convençõessimbólicas e alegóricas então de domínio público, um procedimento típico do Barroco em geral, no caso aplicado aos propósitos do Protestantismo.[80]
Uma das cantatas mais conhecidas é também uma de suas primeiras, a intitulada Christ lag in Todesbanden BWV 4, que emprega o recurso da variação sobre um cantus firmusencontrado nas obras de Pachelbel e Buxtehude. Tem uma estrutura simétrica que, por outro lado, se tornou comum também em sua produção posterior, e que se presume carregar um significado próprio, indicando a cruz de Cristo, e cada movimento apresenta o hino a partir do qual foi composta em um contexto diferente. Também é famosa, e permanece como uma de suas mais importantes, a chamada Actus Tragicus(Gottes Zeit ist die allerbeste Zeit, BWV 106), composta possivelmente como uma peça fúnebre.[81] Outras que merecem nota são Wie schön leuchtet der Morgenstern BWV 1, combinando o arranjo coral com a forma concertante; O Ewigkeit, du Donnerwort BWV 20, um expressivo diálogo entre o medo e a esperança; Wachet! Betet! BWV 70, que associa melodias de hinos em seus recitativos e tem uma brilhante passagem para trompetes ilustrando o Juízo Final; Jesu, der du meine Seele BWV 78, com uma abertura onde se unem magistralmente o hino luterano e um ostinato; Ein feste Burg ist unser Gott, BWV 80, de intrincada abertura polifônica; Herr Jesu Christ, wahr' Mensch und Gott BWV 127, cuja abertura impressionou a geração seguinte;[82] Wachet auf, ruft uns die Stimme, BWV 140, que contém um diálogo entre Jesus e a Alma,[83] e Herz und Mund und Tat und Leben, BWV 147a, cujo coro final incorpora a célebre melodia Jesus, a alegria dos homens.[84] O seu importante Oratório de Natal é de fato um ciclo de seis cantatas sacras a serem apresentadas entre o Natal e a Epifania (25 de dezembro a 6 de janeiro), que habilmente rearranjam composições anteriores, incluindo profanas.[85]
Abertura da Cantata Wachet auf, ruft uns die Stimme BWV 140 | |
Interpretado pelo MIT Concert Choir |
Primeiro recitativo da Cantata Wachet auf, ruft uns die Stimme BWV 140 | |
Interpretado pelo MIT Concert Choir |
Primeiro dueto da Cantata Wachet auf, ruft uns die Stimme BWV 140 | |
Interpretado pelo MIT Concert Choir |
Coro de encerramento da Cantata Wachet auf, ruft uns die Stimme BWV 140 | |
Interpretado pelo MIT Concert Choir |
As suas paixões podem ser descritas como cantatas sacras expandidas ou oratório, que narram a Paixão de Cristo segundo osevangelistas. Nas obras de Bach o texto bíblico é frequentemente interpolado com versos modernos que fazem meditações sobre cada cena. Registram-se cinco obras neste gênero, mas só sobreviveram duas, a Paixão segundo São João e a Paixão segundo São Mateus.[86]Ambas são obras-primas de grande envergadura e possuem vários aspectos em comum, mas a última delas, de grande impacto dramático, é a sua obra vocal mais complexa e tem sido louvada por muitos como a sua criação mais sublime, e de qualquer forma surge como a culminância da tradição de paixões luteranas. É difícil destacar algum de seus movimentos, mas serve de exemplo a peça de abertura, uma vasta fantasia-coral para coro duplo, cada parte vocal dobrada por seu próprio naipe de instrumentos, que canta o verso Vinde, oh filhas, fazei coro ao meu lamento, formando um denso tecido contrapontístico sobre o qual paira, após o 30º compasso, uma linha para sopranos infantis cantando o hino Oh, Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo, com grande efeito.[87]
As cantatas profanas seguem em linhas gerais o modelo formal das sacras, sendo a maior diferença seu texto secular. A sua maioria é de obras festivas, para celebrar, por exemplo, o aniversário de um governante, como a cantata Tönet, ihr Pauken! Erschallet, Trompeten! BWV 214, dedicada ao natalício de Maria Josepha, Eleitora da Saxônia e Rainha consorte da República das Duas Nações, mas se encontram também lamentos fúnebres, como a Trauerode BWV 198, em honra de Christiane, a defunta rainha da Polônia, peças de "defesa de uma tese", como a cantata Geschwinde, ihr wirbelnden Winde BWV 201, que narra a competição musical entre Apolo e Pã como um pretexto para comparar a música de erudição com as desajeitadas tentativas dos músicos pouco hábeis, e até peças inteiramente humorísticas, como a Cantata do Café BWV 211, que satiriza a moda então recente de beber café.[88]
Missas e motetos[editar | editar código-fonte]
Apesar de ser protestante, Bach compôs um pequeno número de missas latinas, em sua maioria fragmentárias ou na forma da missa breve, apenas com as seções do Kyrie e doGloria. Sua obra magna neste gênero, contudo, é a monumental Missa em si menor, musicando o texto completo do ordinário católico, uma mas mais importantes obras deste tipo jamais compostas.[89] [90] O motivo de ele ter enveredado nesta seara é obscuro, mas finalmente a grande missa foi oferecida ao rei da Polônia, que se convertera ao Catolicismo. A obra tem estrutura simétrica e é cheia de simbolismos musicais, e seus movimentos formam um vasto compêndio de formas e estilos. A maior parte da missa foi elaborada retomando trechos de cantatas anteriores, mas o resultado é um todo coerente, graças à sua habilidade na adaptação de material antigo ao novo contexto. Algumas seções não tiveram sua origem identificada, mas podem ser excertos de cantatas perdidas. A missa, por suas enormes proporções, não se destina a ser interpretada dentro do culto católico, pelo menos não em sua inteireza.[90] [91]
Bach também compôs alguns motetos para coro a cappella sobre textos bíblicos e/ou modernos. Tem sido objeto de muito debate se essas obras devem ser acompanhadas ou não por instrumentos. Na prática de seu tempo o termo a cappella significava pelo menos um acompanhamento ao órgão, e para alguns deles efetivamente sobrevivem partes instrumentais e um baixo contínuo. Desta forma, é bem possível que Bach pretendesse dobrar o coro com instrumentos ou órgão quando possível, e quando não, executá-los desacompanhados. Cada peça tem uma estrutura diferente e seu estilo mais ou menos acompanha a concepção de moteto do século XVIII, quando era entendido como uma composição em essência contrapontística mas de arcabouço tonal. Mas eles mostram muitas referências mais antigas, como o uso de recursos mais estritamente fugais e de contraponto imitativo, ou passagens homofônicas de caráter altamente declamatório, comuns no século anterior.[92] [93]
A posteridade de Bach[editar | editar código-fonte]
Mitos, primeiros estudos críticos e resgate da obra[editar | editar código-fonte]
Parte do folclore criado em torno de Bach afirma que ele foi um organista celebrado, mas como compositor foi incompreendido em seu tempo. Isso se deve principalmente aos conhecidos atritos que ele manteve continuamente com as autoridades de Leipzig, mas não há evidência documental de que seus superiores desaprovassem também sua música. É fato que Bach jamais foi um compositor verdadeiramente popular, pelo menos num sentido superficial, mas os poucos relatos que se conhece atestam a alta estima de que ele desfrutava, e mais de uma vez afirmou-se que ele era um dos mais importantes compositores de sua geração, sendo colocado pelos conhecedores ao lado de Händel,Telemann, Hasse e Graun, cuja fama se espalhava por toda a Europa. O grande número de alunos que o buscaram como instrutor também corrobora seu prestígio. Como exemplo dos elogios que recebeu, Birnbaum louvou sua "estranha perfeição";Schubart o chamou de "gênio original";[94] mesmo Scheibe, que atacou duramente seu estilo em 1737, não pôde se furtar a admitir a grandeza de seu gênio, e em sua edição da Institutio Oratoria de Marco Fábio Quintiliano, Gesner, reitor da Thomasschule, fez uma longa e vívida louvação de suas habilidades como compositor, maestro, cantor e organista, que merece ser transcrita:
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- "Todas essas notáveis realizações, meu Fábio, considerarias deveras triviais se pusesses erguer-te dos mortos e ver nosso Bach... como ele, com ambas as mãos e usando todos os dedos, toca um cravo que parece consistir em numerosas cítaras, ou corre sobre as teclas do instrumento dos instrumentos (o órgão)...; e como ele, usando por um lado as mãos, e por outro, com extrema rapidez, os pés, faz surgir por encanto, e sem a ajuda de ninguém, sucessivas revoadas de sons harmoniosos; eu digo, se pudesses vê-lo, como ele consegue o que muitos citaristas e seiscentos executantes de instrumentos de sopro jamais poderiam conseguir, não meramente entoando e tocando ao mesmo tempo suas próprias partes mas dirigindo trinta ou quarenta músicos, todos ao mesmo tempo, controlando este com um aceno de cabeça, aquele outro com um batida do pé, um terceiro com um dedo de advertência, mantendo o tempo e a afinação, dando uma nota aguda a um, uma grave a outro, e notas intermédias a alguns. Este homem, sozinho, de pé em meio ao harmônico turbilhão de sons, tendo a mais árdua de todas as tarefas, pode discernir a todo momento se um executante ameaça extraviar-se, e manter todos os músicos em ordem, recuperar qualquer vacilação, incutir-lhes segurança e impedi-los que cometam erros. O ritmo está em todos os seus membros, ele absorve todas as harmonias em seu ouvido sutil e profere todas as diferentes vozes por intermédio de sua própria boca. Grande admirador como sou da Antiguidade em outros aspectos, considero que este meu Bach engloba em si numerosos Orfeus e vinte Anfiãos".[95]
Outro mito é de que a obra de Bach havia caído no olvido imediatamente após sua morte, e assim permanecera até ser ressuscitada no início do século XIX por alguns entusiastas alemães. A pesquisa recente, porém, afirma que essa visão não é inteiramente correta. Realmente a maior parte de sua produção desapareceu de vista junto com o compositor, mas de diversos modos sua memória permaneceu e pôde ser transmitida à posteridade imediata.[96] Vários de seus filhos se tornaram compositores reputados, e embora em sua maioria tivessem adotado outras estéticas, mantiveram o nome Bach em evidência; Carl Philipp regeu apresentações de algumas peças vocais do pai a partir de 1768, incluindo o Credo da Missa em si menor, e Wilhelm Friedemann fez o mesmo, com ainda maior assiduidade, ambos encontrando boa resposta do público.[97] Pouco depois Fasch começou uma tradição de interpretações de seus motetos, e em seguida se tornaram acessíveis edições de O Cravo Bem Temperado, deA Arte da Fuga e de algumas cantatas. Seus muitos alunos também contribuíram legando às gerações seguintes sua metodologia de ensino e com ela suas peças didáticas para teclado, como o Cravo, as Invenções e outras. Críticos respeitados comoMarpurg, Gerber e Forkel publicaram notas favoráveis, e colecionadores e amadores de "música antiga", como Van Swieten, Poelchau e Neefe, buscaram seus manuscritos, dispersos entre seus filhos e alunos, e os divulgaram entre um seleto grupo de conhecedores, onde estavam incluídos Haydn, Mozart e Beethoven, que manifestaram sua admiração pelo velho mestre e foram por ele influenciados. Graças principalmente à intermediação de Poelchau, um grande número de partituras manuscritas pôde ser preservado da destruição, acabando por encontrar abrigo na biblioteca da Singakademie e na Biblioteca Real de Berlim (atualmente depositadas na Biblioteca Estatal de Berlim, que até hoje é o maior repositório de fontes originais da música bachiana). Mesmo assim, o número daqueles que conheciam algo da obra bachiana no fim do século XVIII era reduzido, e não dispunha de meios para disseminá-la em larga escala.[97] [98] [99]
Com o progressivo acúmulo de apreciações críticas e invocações públicas à sua memória que apareceram até o fim do século a situação começou a mudar, embora sua música continuasse longe dos ouvidos do grande público e mesmo de grande parte dos conhecedores. Nos últimos anos do século XVIII Bach passou a ser considerado um grande músico e uma honra para a Alemanha, sendo chamado por Rochlitzem 1798 de "o patriarca da música germânica" e "a fonte de toda a verdadeira sabedoria musical". Em 1802 apareceu a primeira biografia aprofundada sobre o compositor, de autoria de Forkel, que usou muito material manuscrito e informações obtidas em primeira mão de seus filhos, constituindo o primeiro marco crítico importante na completa ressurreição de Bach, embora ele o apresentasse num viés claramente patriótico. Forkel também desenvolveu decisiva atuação em prol de Bach incentivando a publicação de obras para teclado e divulgando-as no exterior. Ao mesmo tempo, outros escritores como Thibaut e Reichert teciam críticas ao estilo "antiquado" de Bach, ainda que reconhecessem sua grande inventividade, e à biografia excessivamente nacionalista de Forkel, alegando que ela não acrescentava nada de novo ao que já se conhecia sobre ele. Por outro lado, em torno de 1807 o organista Samuel Wesley iniciou naInglaterra um movimento bachiano,[100] enquanto que suas obras começavam a ser ouvidas nos Estados Unidos.[101]
Carl Friedrich Zelter, diretor da Singakademie de Berlim, foi o responsável pelos passos seguintes. Grande conhecedor da obra vocal de Bach, tinha acesso à rica coleção de partituras que havia pertencido a Kirnberger e Agricola, alunos de Bach. Sendo professor deMendelssohn, recomendou-lhe um estudo da coleção, suscitando seu entusiasmo. Em 1829 Mendelssohn regeu em Berlim a primeira audição completa da Paixão segundo São Mateus desde sua estreia um século antes. A recepção da obra foi extremamente favorável, coincidindo com a expectativa da comemoração do tricentenário da Confissão de Augsburgo, um marco do Luteranismo, a ser celebrada no ano seguinte. Como resultado imediato, ambas as paixões e a grande missa foram reimpressas e o evento colocou Bach definitivamente de volta nas salas de concerto. Com o ativo apoio deRobert Schumann, em 1850 foi fundada a Bach Gesellschaft (Sociedade Bach), que se impôs a ambiciosa tarefa de providenciar a edição completa da obra bachiana com comentários críticos, terminada cerca de cinquenta anos depois e dando a público 46 volumes de música.[102] [103]
Entrementes, surgiam outras alentadas biografias. Em 1865 Carl Heinrich Bitter publicou uma análise detalhada e compreensiva de sua vida e obra, colocando na sombra o trabalho de Forkel. Era, contudo, um ensaio de diletante, e foi por sua vez obscurecido pela contribuição fundamental de Philipp Spitta, publicada entre 1873 e 1880, o primeiro estudo de perfil acadêmico, que permanece até hoje como uma referência, apesar de em muitos pontos estar ultrapassado e idolatrar Bach como o modelo de tudo o que a música deveria ser. Mas foi o primeiro a introduzir em seu estudo as abordagens filológica, histórica, estética, teológica e intelectual, tentando, até aonde a mentalidaderomântica de seu tempo permitiu, colocar a obra bachiana no seu correto contexto histórico. Em contrapartida, alimentou o mito de Bach como o músico supremo, transcendente e quintessencial.[104]
Outras forças em ação durante o século XIX contribuíram para a difusão e o enraizamento desses mitos. O Romantismo, entre outras coisas, estimulou uma redescoberta da música de séculos passados no contexto da formação do nacionalismo germânico, atribuindo a Bach uma função política, tanto quanto cultural. Além disso, uma ressurgência do Pietismo protestante também cobrou do músico, visto como ummístico, uma participação, e os vários compositores que foram influenciados por sua obra fizeram leituras dela antes de tudo pessoais e subjetivas, bem de acordo com a tendência romântica do culto ao gênio e ao individualismo e independentemente do avanço dos estudos críticos, e deram nova circulação e interpretação a declarações muitas vezes não documentadas do próprio compositor sobre seu trabalho e suas intenções, com o resultado de proliferar o folclore em seu redor. Expressões extremadas se tornaram comuns quando falando a seu respeito. Beethoven disse que seu nome não deveria ser Bach, que em alemão significa "riacho", mas sim Meer, que significa "mar"; Wagner imaginava que Bach era a expressão do mais íntimo espírito germânico e associou sua música a uma esfinge, às esferas celestes e a um mundo anterior ao nascimento da humanidade; Brahms disse que se toda outra música do mundo se perdesse ele ficaria triste, mas se se perdesse a música de Bach ele ficaria inconsolável,[105] e o crítico William Apthorp declarou que não podia abrir um volume de música bachiana sem sentir um arrepio de terror supersticioso, pois ela aniquilava a obra de todos os outros compositores.[106] As apreciações podiam ser extravagantes ao ponto de ler a obra de Bach como um exemplo de Classicismo. No final do século Bach se tornara um gigante aos olhos do mundo musical não apenas germânico, e suas peças para teclado, o fundamento de toda a arte pianística.[107] [108] Sua influência sobre outros compositores se tornou, com isso, tão onipresente que nenhum outro músico podia ombrear com ele, sendo comparado a outros nomes imortais da arte ocidental como Shakespeare e Dante.[109]
Com o encerramento da edição crítica da Bach Gesellschaft, em 1900 foi fundada a Neue Bach Gesellschaft (Nova Sociedade Bach), com o objetivo de iniciar a publicação de uma edição prática. A sociedade também inaugurou a tradição dos Festivais Bach e iniciou a publicação de um anuário bachiano, o Bach Jahrbuch, responsável pela divulgação de uma enorme quantidade de ensaios críticos particularizados. Durante mais de trinta anos o anuário foi editado por Arnold Schering, grande estudioso de Bach, que deu contribuições pessoais importantes ao tema.[103] Entre as biografias, em 1905 surgiu a de Albert Schweitzer, que introduziu uma nova abordagem, enfocando principalmente aspectos estéticos, simbólicos e a associação entre a música bachiana e imagens pictóricas e poéticas, bem como analisando o conteúdo expressivo dos textos de suas cantatas e sua tradução musical e a inter-relação entre as várias artes daquele tempo. Esta biografia, cujo título, J. S. Bach, Le Musicien-Poète (J. S. Bach, o músico-poeta), é indicativo de suas intenções, marcou época e assinalou uma reorientação nas pesquisas, que passaram a estudar os princípios da teoria barroca daretórica musical a fim de melhor compreender as suas obras, o que constituiu uma conquista importante. O livro também tomou uma posição na polêmica que então corria entre os advogados da dita "música absoluta", desvinculada de programas extra-musicais, e a música poética e expressiva, inclinando-se a favor da última proposição, mas alertando que tal dicotomia era prejudicial à apreciação da música barroca.[110] [111]Schweitzer também foi importante por ter sido o campeão do Orgelbewegung, um movimento que pretendeu resgatar a antiga tradição barroca de construção de órgãos, influenciando a moderna tendência de interpretações historicamente corretas.[112] A esta altura diversos grupos e sociedades já se dedicavam ao estudo e execução da música bachiana em vários pontos da Europa,[113] e em 1928 Charles Terry reexaminou toda a documentação biográfica disponível e publicou um colorido relato sobre a vida de Bach.[114]
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