investigação realizada pelo Pr. Psi. Jor Jônatas David Brandão Mota
O EVANGELHO CONTRA O CAPITAL: COMO A REFORMA PROTESTANTE INSPIROU UMA REVOLTA SOCIALISTA EM NOME DOS POBRES
HOMENAGENS
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Leonardo Sakamoto, O Capitalismo da Fé, 2019, publicada no blog do autor no portal UOL Notícias.
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Eliane Brum, A Religião do Lucro, 2018, publicada na revista Época.
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Gilberto Nascimento, O Reino: Os bastidores do poder evangélico no Brasil, 2022, publicado pela editora Companhia das Letras.
A Reforma Protestante é frequentemente celebrada como um marco de liberdade religiosa e renovação espiritual. Pouco se fala, contudo, de seu lado revolucionário, quando camponeses inspirados nos ensinamentos de Jesus sobre amor, justiça e cuidado com os pobres, se insurgiram contra senhores feudais e autoridades religiosas na maior revolta social da Alemanha do século XVI. Liderados por Tomás Müntzer, esses homens e mulheres vislumbraram uma sociedade mais justa, sem senhores nem servos, onde a partilha fosse a regra e a fé não servisse à opressão. Esta reportagem recupera as raízes cristãs desse movimento, mostrando como o evangelho foi usado como fundamento para um projeto radicalmente anticapitalista. Analisamos ainda como, nos séculos seguintes, o protestantismo se transformou em base ética para a expansão do capitalismo e da desigualdade. Por meio de documentos históricos, obras teológicas e análises de pensadores modernos, revelamos as contradições e apagamentos dessa história. A reportagem também resgata as tentativas contemporâneas de reviver aquele cristianismo libertador, hoje sufocado pelo “evangelho da prosperidade”. O objetivo é trazer à luz a força subversiva que uma fé inspirada na partilha pode exercer no enfrentamento das injustiças do mundo atual.
CONTEÚDOS
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A palavra e a terra: um novo cristianismo para os pobres
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O evangelho da partilha: Jesus como inspiração socialista
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Do evangelho à burguesia: a conversão do protestantismo ao capital
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Müntzer e Lutero: a Bíblia como campo de batalha político
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Heranças silenciadas: o outro protestantismo na história
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Da cruz ao lucro: a traição contemporânea da esperança
1. A PALAVRA E A TERRA: UM NOVO CRISTIANISMO PARA OS POBRES
No início do século XVI, a Europa vivia sob a tensão entre senhores feudais, uma Igreja Católica aliada aos poderes dominantes e um povo camponês miserável. Nesse contexto, a Reforma Protestante surgiu como uma reinterpretação radical da fé cristã. Para muitos camponeses e intelectuais do período, a pregação de Martinho Lutero contra a venda de indulgências e a corrupção da Igreja era, também, um convite à libertação social. Tomás Müntzer, um ex-seguidor de Lutero, foi além: afirmava que o Evangelho deveria transformar a sociedade em uma comunidade sem senhores nem servos, com base na partilha e na justiça. A Revolta dos Camponeses (1524–1525), liderada em parte por esse teólogo radical, reivindicava que “todos sejam livres e irmãos”. Segundo o historiador Peter Blickle, essa revolução foi a primeira tentativa socialista de base cristã na história da Europa.
A PALAVRA E A TERRA: UM NOVO CRISTIANISMO PARA OS POBRES
No início do século XVI, camponeses alemães encontravam-se esmagados por tributos feudais, restrições econômicas e uma Igreja que legitimava essas estruturas em nome da ordem divina. Nesse cenário, a Reforma Protestante se apresentou como uma fagulha de transformação. A contestação de Martinho Lutero às indulgências papais abriu espaço para uma releitura radical do cristianismo. Tomás Müntzer, teólogo e pregador que rompeu com Lutero, defendia que a verdadeira fé levava à emancipação dos pobres. Segundo Peter Blickle, professor da Universidade de Bern e autor de “A Revolta dos Camponeses na Alemanha” (1981), o movimento liderado por Müntzer foi a primeira revolução europeia com fundamentos teológicos voltados para a igualdade social, desafiando tanto os poderes civis quanto eclesiásticos. Müntzer insistia que “os príncipes ímpios devem ser derrubados” e conclamava os fiéis a instaurar o Reino de Deus na Terra.
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O EVANGELHO DA PARTILHA
O discurso de Müntzer baseava-se em uma leitura social dos Evangelhos, especialmente nas passagens em que Jesus defende os pobres, critica os ricos e exige partilha. O texto bíblico de Atos dos Apóstolos, capítulo 2, em que “ninguém considerava suas posses como exclusivas” e “tudo era colocado em comum”, era citado por Müntzer como modelo de sociedade cristã. O teólogo Ernst Bloch, em “Thomas Müntzer, Teólogo da Revolução” (1921), descreve a teologia de Müntzer como “um comunismo messiânico” que se opunha tanto à hierarquia clerical quanto à ordem senhorial. Bloch afirma que Müntzer via Jesus como um redentor político, comprometido com os marginalizados, e não apenas com a salvação espiritual. Essa leitura rompe com a tradição patrística dominante, que naturalizava a pobreza como destino ou provação.
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A REBELIÃO COMO EXPRESSÃO DE FÉ
A Revolta dos Camponeses, ocorrida entre 1524 e 1525, foi um levante de escala inédita: mais de 300 mil camponeses se organizaram em grupos armados com base nos chamados “Doze Artigos”, documento que reivindicava a escolha popular de pastores, o fim dos tributos abusivos e o direito de usar terras comunais. O documento foi redigido por representantes camponeses, com orientação de teólogos próximos de Müntzer. De acordo com o historiador alemão Heinz Schilling, em artigo publicado no Journal of Early Modern History (2001), a Revolta combinava demandas espirituais e socioeconômicas, formando uma teologia prática da libertação. Müntzer via a violência como meio legítimo de instaurar justiça, o que o afastou de Lutero, que condenou os camponeses em sua obra “Contra as Hordas Assassinas e Ladrões de Camponeses”, legitimando a repressão do levante pelas forças principescas.
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A RUPTURA ENTRE LUTERO E MÜNTZER
Martinho Lutero, embora tenha iniciado a Reforma com críticas duras à Igreja, não apoiou o uso da fé como ferramenta de subversão social. Para Lutero, a salvação era pela fé e não pela transformação das estruturas econômicas. Sua aliança com os príncipes do Sacro Império Romano-Germânico garantiu proteção à nova doutrina, mas também institucionalizou um protestantismo conservador. Müntzer, por outro lado, acusava Lutero de trair os pobres. A divergência marcou o destino de ambos: Lutero tornou-se o símbolo de uma reforma institucional; Müntzer foi preso, torturado e decapitado. Segundo Friedrich Engels, no livro “A Guerra dos Camponeses na Alemanha” (1850), o fracasso de Müntzer representou a derrota de uma revolução comunal que ameaçava o surgente espírito burguês da modernidade.
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A EVOLUÇÃO DO PROTESTANTISMO E A ASCENSÃO DO CAPITAL
Com o tempo, o protestantismo se alinhou com o espírito capitalista emergente. Max Weber, em “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” (1905), argumenta que a moral calvinista do trabalho, da frugalidade e da acumulação silenciosa de riqueza legitimou o acúmulo de capital como sinal de predestinação divina. Essa transformação distanciou o protestantismo de suas origens igualitárias. O protestantismo liberal do século XIX e o neopentecostalismo do século XXI reforçaram esse percurso, promovendo a teologia da prosperidade e um cristianismo voltado à individualidade financeira. O historiador inglês Christopher Hill, em “O Mundo de Ponta-Cabeça” (1972), afirma que, ao tornar-se estatal, o protestantismo abandonou a promessa de justiça terrena.
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LEGADOS SILENCIADOS
A teologia de Müntzer, embora derrotada politicamente, não desapareceu. Movimentos anabatistas e posteriormente comunas camponesas na Suíça, nos Países Baixos e até mesmo as comunidades morávias, preservaram práticas de vida em comum inspiradas nos primeiros cristãos. No século XX, a Teologia da Libertação na América Latina retomou essas raízes. Leonardo Boff, em entrevista à revista Cult (2012), afirmou que Müntzer foi um “precursor da libertação latino-americana” ao unir fé e justiça social. Apesar disso, o nome de Müntzer foi excluído da maioria dos relatos oficiais da Reforma. Apenas recentemente sua memória tem sido resgatada por teólogos críticos e movimentos populares. Sua proposta de uma fé aliada aos oprimidos segue como desafio à tradição religiosa dominante.
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UM CRISTIANISMO SUFOCADO PELO MERCADO
O deslocamento do cristianismo protestante para o centro do sistema capitalista consolidou uma nova interpretação das escrituras. O evangelho passou a ser usado como justificativa para o mérito individual, o sucesso empresarial e a caridade seletiva. Nos Estados Unidos, essa tendência culminou no evangelicalismo empresarial; no Brasil, no crescimento das megachurches e pastores que acumulam fortunas. Segundo o sociólogo Ricardo Mariano, em artigo para a revista Tempo Social (2001), o neopentecostalismo brasileiro adotou uma retórica que exalta o consumo e despolitiza a pobreza. Essa mutação teológica elimina a memória dos movimentos radicais como o de Müntzer, substituindo o Reino de Deus por uma promessa de riqueza pessoal. A mensagem de que “todos sejam livres e irmãos” torna-se, assim, uma nota de rodapé.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Ernst Bloch, Thomas Müntzer, Teólogo da Revolução, 1921
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Friedrich Engels, A Guerra dos Camponeses na Alemanha, 1850
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Max Weber, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, 1905
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2. O EVANGELHO DA PARTILHA: JESUS COMO INSPIRAÇÃO SOCIALISTA
As ideias de Müntzer estavam fortemente apoiadas nos ensinamentos de Jesus. Em suas pregações, ele citava passagens como Lucas 4:18 — “Ele me ungiu para anunciar boas novas aos pobres” — e Atos 4:32, que descreve os primeiros cristãos como possuindo tudo em comum. Müntzer acreditava que o “reino de Deus” deveria ser instaurado não apenas no espírito, mas nas estruturas materiais da vida. O teólogo Jürgen Moltmann argumenta que o cristianismo primitivo, antes de ser institucionalizado, era “profundamente contrário às hierarquias e ao acúmulo de riquezas”. Essa visão radical da Reforma foi sufocada após a derrota da revolta, quando mais de 100 mil camponeses foram mortos. Lutero, temendo o caos, apoiou os príncipes alemães, marcando uma ruptura entre fé e luta social.
A MENSAGEM DE JESUS ENTRE OS POBRES
A figura de Jesus tem sido interpretada de múltiplas formas ao longo da história. No entanto, estudiosos como o biblista John Dominic Crossan apontam que o núcleo de sua mensagem envolvia um projeto de renovação social centrado na dignidade dos marginalizados. A leitura de textos como Lucas 6:20 — “Bem-aventurados os pobres” — reforça a compreensão de que Jesus falava diretamente a uma população oprimida pelo poder romano e pelas elites sacerdotais judaicas. Segundo Crossan, Jesus propunha um modelo de convivência baseado na partilha, no perdão das dívidas e na eliminação das divisões sociais impostas pelo sistema imperial.
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A COMUNIDADE DE JERUSALÉM COMO MODELO
O livro de Atos dos Apóstolos apresenta uma imagem dos primeiros cristãos vivendo em comunidade, “sem que ninguém considerasse sua alguma coisa que possuísse” (At 4:32-35). De acordo com o historiador francês Gérard Delille, esse estilo de vida foi uma experiência histórica concreta de comunismo cristão, ainda que limitado geograficamente. Essa prática, que durou pelo menos até a perseguição sob Herodes Agripa, influenciou posteriormente movimentos radicais da Reforma. O teólogo brasileiro Carlos Mesters observa que o modelo de Jerusalém inspirou diversas tentativas de organizar sociedades alternativas, pautadas pelo uso comum dos bens e pela ajuda mútua.
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A RELEITURA DE MÜNTZER
Tomás Müntzer, influenciado pelas passagens de Atos e pelos profetas do Antigo Testamento, como Amós e Isaías, construiu uma teologia da libertação que afirmava o direito dos pobres de se revoltarem. Segundo Peter Blickle, autor da obra A Revolução dos Camponeses, Müntzer via na Bíblia um chamado divino à justiça social imediata. Suas pregações na Alemanha do século XVI inflamaram milhares de camponeses que viviam em condições de extrema miséria e opressão. O movimento pedia o fim dos tributos abusivos, a liberdade das aldeias e o uso coletivo das terras.
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A REPRESSÃO E O FIM DO SONHO
A resposta das elites ao levante camponês foi brutal. Entre 1524 e 1525, estima-se que mais de 100 mil pessoas tenham sido assassinadas por tropas comandadas pelos príncipes germânicos, com apoio explícito de Martinho Lutero. Lutero, que inicialmente criticara os abusos da Igreja, rompeu com Müntzer por considerar suas ideias perigosas à ordem social. Para o sociólogo alemão Max Weber, esse momento marca a transformação do protestantismo em uma força estabilizadora da sociedade burguesa nascente, afastando-se de suas possibilidades revolucionárias iniciais.
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A QUESTÃO DA HIERARQUIA RELIGIOSA
Jürgen Moltmann, teólogo reformado e referência da Teologia da Esperança, argumenta que o cristianismo primitivo não apenas desafiava o poder político, mas também se opunha às estruturas hierárquicas religiosas. Para ele, a mensagem original de Jesus confrontava diretamente o acúmulo de poder e de riqueza dentro das instituições. A instauração de uma igreja aliada aos impérios, como ocorreria mais tarde com o catolicismo medieval, é vista por Moltmann como uma traição à proposta original. Esse conflito de interpretações é fundamental para entender os embates teológicos e políticos do século XVI.
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ECOS NA AMÉRICA LATINA
Na América Latina, a releitura da figura de Jesus como líder popular e defensor dos pobres encontrou eco na Teologia da Libertação, nascida nos anos 1960. Teólogos como Leonardo Boff e Gustavo Gutiérrez retomaram a tradição de Müntzer ao afirmarem que “Deus prefere os pobres”. Segundo estudo do sociólogo Michael Löwy, essa corrente teológica une o cristianismo primitivo à crítica social moderna, enxergando no Evangelho um projeto de transformação da realidade concreta. Essa abordagem ainda hoje inspira movimentos sociais, como o MST e pastorais populares ligadas à Igreja Católica.
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A CONTINUIDADE DO DEBATE
O debate sobre a compatibilidade entre cristianismo e socialismo permanece vivo. O papa Francisco, em discursos e encíclicas como Fratelli Tutti (2020), tem insistido na crítica ao “dogma neoliberal” e na defesa de uma economia baseada na solidariedade. Segundo a professora de teologia Ivone Gebara, isso demonstra a atualidade do conflito entre um cristianismo institucional aliado ao poder e um cristianismo das bases populares. A memória de Müntzer e de seus companheiros mortos continua a provocar novas reflexões sobre o papel das religiões nas lutas por justiça social.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Peter Blickle, A Revolução dos Camponeses (1981)
Jürgen Moltmann, O Deus Crucificado (1972)
Michael Löwy, A Guerra dos Deuses: Religião e Política na América Latina (1999)
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3. DO EVANGELHO À BURGUESIA: A CONVERSÃO DO PROTESTANTISMO AO CAPITAL
A partir do século XVII, o protestantismo passou a trilhar outro caminho. A ética calvinista, particularmente em Genebra e depois na Holanda e Inglaterra, transformou o cristianismo reformado em instrumento de racionalização do trabalho e da acumulação de capital. Max Weber, em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (1905), demonstra como a busca por sucesso econômico passou a ser vista como um sinal de eleição divina. O protestantismo burguês rompeu com o espírito comunitário das origens cristãs e adotou uma leitura moralizante da pobreza, considerando os pobres como falhos espiritualmente. O teólogo Walter Benjamin alertava que “o capitalismo tornou-se uma religião com culto diário, sem piedade, sem descanso e sem esperança de redenção”.
A ASCENSÃO DA ÉTICA CALVINISTA
Com a consolidação da Reforma, especialmente sob influência de João Calvino em Genebra, o protestantismo ganhou uma feição cada vez mais voltada à disciplina, à austeridade e ao trabalho incessante. A teologia calvinista pregava a predestinação, ou seja, a ideia de que alguns já estavam escolhidos por Deus para a salvação. Essa doutrina, segundo o sociólogo Max Weber, gerava uma angústia espiritual que levou os fiéis a buscar sinais de sua eleição através da vida econômica produtiva. O sucesso financeiro, portanto, passou a ser interpretado como um possível indício da graça divina.
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PROTESTANTISMO E RACIONALIZAÇÃO DO TRABALHO
No século XVII, essa ética religiosa encontrou solo fértil na Holanda, Inglaterra e posteriormente nos Estados Unidos. Nesses contextos, o protestantismo reformado favoreceu uma organização mais racional da economia e da vida social, com ênfase na pontualidade, no planejamento e na eliminação do desperdício. O historiador Fernand Braudel destaca que os calvinistas contribuíram diretamente para o surgimento do capitalismo moderno ao valorizarem a atividade mercantil e a reinversão de lucros. O protestantismo burguês emergente transformou virtudes religiosas em ferramentas de expansão dos negócios.
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A RUPTURA COM A HERANÇA COMUNITÁRIA
Esse novo modelo se afastava radicalmente da experiência comunitária descrita nos primeiros capítulos dos Atos dos Apóstolos, onde os bens eram partilhados e ninguém passava necessidade. A tradição protestante, ao institucionalizar-se e alinhar-se com as burguesias urbanas emergentes, passou a valorizar a meritocracia e a responsabilização individual. Para o teólogo francês Jacques Ellul, essa inflexão desfigurou o núcleo da mensagem cristã, transformando a fé em um meio de legitimar estruturas econômicas excludentes e aprofundar desigualdades sociais.
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MORALIZAÇÃO DA POBREZA
O novo protestantismo burguês desenvolveu uma ética que julgava os pobres como moralmente inferiores. A pobreza passou a ser vista como sinal de preguiça, vício ou desordem espiritual. Segundo a historiadora Cristina Rocha, essa lógica influenciou decisivamente a formação das sociedades capitalistas ocidentais, em que os programas de assistência social foram tratados como exceções e não como direitos. Essa moralização dificultou o surgimento de políticas redistributivas e consolidou a visão de que a salvação se daria no esforço individual, e não na solidariedade coletiva.
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A ECONOMIA COMO RELIGIÃO
O filósofo Walter Benjamin afirmou, em um fragmento publicado postumamente, que “o capitalismo deve ser entendido como uma religião”. Para Benjamin, o culto ao dinheiro e à produtividade substituiu os antigos rituais religiosos, criando um sistema sem pausa, sem penitência e sem redenção. Essa crítica ecoa em autores contemporâneos como Slavoj Žižek, que apontam o mercado financeiro global como o novo altar de adoração. A conexão entre fé protestante e lógica capitalista foi se consolidando como eixo dominante da modernidade ocidental.
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IMPLICAÇÕES PARA A MODERNIDADE
O pensamento de Weber influenciou profundamente os estudos sobre modernidade, ao sugerir que a secularização do mundo não eliminou a religiosidade, mas a transformou em práticas econômicas e políticas. A racionalidade instrumental, típica do capitalismo moderno, manteve o espírito de disciplina e vigilância moral oriundo da tradição protestante. Para o filósofo Charles Taylor, o protestantismo contribuiu para a construção de um “eu disciplinado”, voltado à produtividade e ao controle dos desejos, em detrimento de formas mais coletivas de espiritualidade.
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CONTESTAÇÕES NO SÉCULO XX
Apesar da hegemonia protestante nos países anglófonos, movimentos teológicos e sociais surgiram para questionar essa aliança com o capital. A Teologia da Libertação, na América Latina, e as igrejas negras nos EUA propuseram leituras alternativas, focadas na justiça social e na crítica ao imperialismo econômico. Segundo o teólogo James Cone, o cristianismo não pode ser cúmplice da opressão. Esse retorno ao evangelho da partilha representa uma tentativa de resgatar a dimensão ética e transformadora do cristianismo, perdida nas engrenagens do capital.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Max Weber, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (1905)
Jacques Ellul, A Subversão do Cristianismo (1984)
Walter Benjamin, O Capitalismo como Religião (1985)
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4. MÜNTZER E LUTERO: A BÍBLIA COMO CAMPO DE BATALHA POLÍTICO
A disputa entre Lutero e Müntzer foi mais que teológica; foi a disputa por duas interpretações políticas da Bíblia. Enquanto Lutero dizia que o cristão devia obedecer às autoridades, mesmo que injustas, pois “o poder vem de Deus” (Romanos 13), Müntzer invocava o Apocalipse e os profetas do Antigo Testamento como anúncio de justiça revolucionária. Para ele, os governantes deviam ser depostos se não cumprissem o mandamento do amor ao próximo. O filósofo Ernst Bloch, em Thomas Müntzer, Teólogo da Revolução, escreveu que Müntzer foi um dos primeiros a unir fé e luta revolucionária contra as estruturas de dominação. A repressão brutal a seus seguidores, que incluíam mulheres e crianças, selou a tentativa de um cristianismo revolucionário nos moldes de Jesus.
DUAS INTERPRETAÇÕES DA PALAVRA
No início do século XVI, a Reforma Protestante abriu brechas não apenas teológicas, mas políticas e sociais. Lutero e Müntzer, embora ambos reformadores, representaram projetos antagônicos de leitura bíblica. Lutero defendia que o fiel deveria submeter-se às autoridades constituídas, com base em Romanos 13, onde Paulo afirma que “não há autoridade que não venha de Deus”. Já Thomas Müntzer via na Bíblia, especialmente nos textos apocalípticos e proféticos, uma convocação à derrubada de tiranias. Para ele, a justiça divina se realizaria através da ação revolucionária dos pobres.
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A BÍBLIA COMO ESPADA DOS OPRIMIDOS
Müntzer utilizava passagens como o Magnificat (Lucas 1:52–53) e as denúncias dos profetas como Jeremias e Amós para justificar a insurreição camponesa. Segundo o filósofo alemão Ernst Bloch, Müntzer interpretava a Escritura como “chave para a ação histórica dos oprimidos”. Bloch aponta que o teólogo viu no Apocalipse uma revelação política da necessidade de destruir os poderes injustos da Terra. A Bíblia, para Müntzer, era mais que um livro sagrado: era um manual de combate. Ele rejeitava a fé passiva e pregava uma espiritualidade combativa, que envolvia transformar o mundo em nome do Reino de Deus.
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LUTERO E A ORDEM SOCIAL
Lutero, por outro lado, temia as consequências do radicalismo social. Após inicialmente apoiar algumas reivindicações dos camponeses, rompeu com eles durante a Guerra dos Camponeses (1524–1525), condenando sua revolta no panfleto “Contra as Hordas Assassinas e Ladrões de Camponeses”. O reformador alemão declarou que os camponeses deviam ser reprimidos com dureza, defendendo o uso da espada pelos príncipes. Sua aliança com os nobres garantiu proteção à Reforma, mas também marcou um afastamento da base popular. A Bíblia, para Lutero, era instrumento de renovação da fé individual, não de revolução social.
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A GUERRA DOS CAMPONESES
O confronto entre essas visões culminou na chamada Guerra dos Camponeses, o maior levante popular da Europa antes da Revolução Francesa. Mais de 100 mil camponeses foram mortos pelas tropas dos príncipes alemães. Müntzer, que liderou parte da revolta, foi capturado, torturado e executado em 1525. Historiadores como Peter Blickle afirmam que os camponeses não lutavam apenas por condições materiais, mas por um novo mundo inspirado na Bíblia. O programa de doze artigos do movimento, elaborado em 1525, pedia o direito de eleger pastores, o fim de tributos injustos e o acesso comum à terra.
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UMA TEOLOGIA REVOLUCIONÁRIA
Para o teólogo alemão Gerd Theißen, Müntzer foi precursor de uma teologia da libertação avant la lettre. Ele entendia que a fé cristã deveria transformar as relações sociais e denunciar as estruturas de dominação. Ao contrário de Lutero, que mantinha a separação entre Igreja e política, Müntzer afirmava que o Evangelho exigia a construção de um mundo justo. Sua teologia incorporava práticas místicas e apocalípticas, mas sempre com uma dimensão prática: o enfrentamento da opressão concreta.
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AS MULHERES E AS CRIANÇAS NA REVOLTA
Relatos históricos apontam que muitas mulheres e crianças participaram da revolta inspirada por Müntzer. Cronistas da época, como Sebastian Franck, descrevem aldeias inteiras sendo dizimadas pelas tropas imperiais. A repressão foi não apenas militar, mas também teológica: a tentativa de um cristianismo revolucionário foi classificada como heresia e apagada da história oficial da Reforma. Müntzer e seus seguidores foram retratados como fanáticos, embora seu projeto político-social estivesse enraizado na tradição profética da própria Bíblia.
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O LEGADO APAGADO
Thomas Müntzer foi marginalizado na história do protestantismo oficial, mas resgatado por pensadores críticos do século XX. Ernst Bloch, em sua obra sobre Müntzer, destaca que o teólogo encarnava “o lado quente da Reforma”, aquele que buscava, por meio da fé, mudar o mundo. Seu pensamento influenciou movimentos posteriores, como a Teologia da Libertação e setores progressistas das igrejas. A disputa entre Lutero e Müntzer revelou que a Bíblia pode ser tanto instrumento de conservação quanto de transformação, dependendo da leitura e do contexto.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Ernst Bloch, Thomas Müntzer, Teólogo da Revolução (1962)
Peter Blickle, A Revolta dos Camponeses (1975)
Gerd Theißen, A Religião dos Primeiros Cristãos (1997)
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5. HERANÇAS SILENCIADAS: O OUTRO PROTESTANTISMO NA HISTÓRIA
Embora marginalizado, o protestantismo de Müntzer e de outros grupos radicais, como os anabatistas, seguiu influenciando movimentos sociais nos séculos seguintes. As comunidades huteritas, por exemplo, mantêm até hoje um modo de vida comunal, inspirado em Atos dos Apóstolos. Já nos séculos XIX e XX, pensadores como Karl Barth e Dorothee Sölle propuseram um retorno ao Evangelho como denúncia do capitalismo e solidariedade com os pobres. A Teologia da Libertação protestante na América Latina também recupera essa herança. Como afirma o pastor e sociólogo Rubem Alves, “a utopia do Reino de Deus é incompatível com um sistema que faz da desigualdade um princípio”. Entretanto, essa corrente permanece abafada pelas igrejas evangélicas conservadoras que hoje legitimam o neoliberalismo em nome da “prosperidade”.
A TRADIÇÃO RADICAL DA REFORMA
Ao lado da Reforma de Lutero, uma vertente menos institucionalizada buscava reconfigurar radicalmente a fé cristã e a ordem social. Os chamados reformadores radicais, entre eles Thomas Müntzer, os anabatistas e grupos como os huteritas, defendiam o batismo de adultos, a não violência e o compartilhamento de bens. Segundo o historiador Carter Lindberg, esses movimentos colocavam em prática uma leitura comunitária do Novo Testamento, sobretudo inspirada no livro de Atos, onde os primeiros cristãos viviam “tudo em comum”. Por sua proposta igualitária, foram duramente reprimidos tanto por católicos quanto por protestantes.
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HUTERITAS: O CRISTIANISMO COMUNITÁRIO
Os huteritas, seguidores de Jakob Hutter no século XVI, continuam existindo hoje, principalmente nos Estados Unidos e no Canadá, em comunidades fechadas que rejeitam o individualismo moderno. Vivem sem propriedade privada, praticam a agricultura coletiva e tomam decisões por consenso. Segundo o pesquisador John Hostetler, essas comunidades representam uma resistência silenciosa ao capitalismo, inspiradas diretamente nos ensinamentos de Jesus e na prática da igreja primitiva. Apesar da perseguição histórica, sua longevidade revela a persistência de um cristianismo alternativo, centrado na partilha e na simplicidade.
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A TEOLOGIA DO JUÍZO E DA ESPERANÇA
No século XX, o teólogo suíço Karl Barth retomou a crítica ao sistema vigente a partir de uma leitura radical da Bíblia. Escrevendo em meio à ascensão do nazismo, Barth denunciava a aliança entre a igreja oficial e o poder opressor, e chamava os cristãos a resistirem em nome do Reino de Deus. Em sua obra Dogmática Eclesiástica, Barth afirma que “a graça de Deus é incompatível com qualquer dominação que se pretenda absoluta”. Essa posição influenciou diversas correntes teológicas posteriores que viam o Evangelho como anúncio de libertação, não de acomodação.
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A VOZ PROFÉTICA DE DOROTHEE SÖLLE
Dorothee Sölle, teóloga alemã nascida em 1929, aprofundou a crítica teológica ao capitalismo em obras como “Teologia do Socialismo”. Marcada pela experiência da Segunda Guerra Mundial e pela ditadura militar no Chile, Sölle argumentava que a fé cristã exigia uma ação concreta em favor dos pobres. Para ela, Deus está do lado das vítimas da história, e a espiritualidade deve estar unida à prática política. Sölle cunhou o termo “mística da resistência” para descrever um cristianismo engajado, em oposição à teologia conservadora que via na riqueza um sinal de bênção.
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A TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO PROTESTANTE
Na América Latina, a partir da década de 1970, surgiu uma vertente protestante da Teologia da Libertação, especialmente entre igrejas luteranas e metodistas. Um dos principais nomes foi o pastor e educador Rubem Alves, que propôs uma releitura do Evangelho centrada na utopia e na esperança. Para Alves, “a religião deve ser uma força de transformação e não de conformismo”. Essa corrente dialogava com os movimentos sociais, o marxismo e a pedagogia de Paulo Freire. Embora menos divulgada que a vertente católica, teve papel importante na luta por justiça social e direitos humanos.
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O EVANGELHO CONTRA O NEOLIBERALISMO
Pesquisadores como Franz Hinkelammert e Nancy Cardoso apontam que muitas igrejas evangélicas na América Latina abandonaram essa tradição profética. A chamada teologia da prosperidade, popularizada nos anos 1990, transformou a fé cristã em uma legitimação do sucesso econômico individual. Essa doutrina, influenciada pelo modelo norte-americano, ganhou força em igrejas pentecostais e neopentecostais, muitas vezes apoiando políticas neoliberais. Em contraste, a teologia radical denuncia que a desigualdade não é vontade divina, mas estrutura de pecado coletivo.
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UM LEGADO RESISTENTE
Apesar da marginalização institucional, o protestantismo alternativo continua vivo em comunidades, movimentos e redes de fé engajada. Coletivos como o “Cristianismo e Justiça” na Espanha, as igrejas do Sínodo Evangélico na Colômbia e grupos ecumênicos no Brasil mantêm viva a tradição de um Evangelho comprometido com os pobres. Em 2017, por ocasião dos 500 anos da Reforma, várias iniciativas buscaram resgatar essa memória silenciada. Para historiadores como Leonardo Boff, trata-se de redescobrir um cristianismo que não apenas interpreta o mundo, mas quer transformá-lo.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Dorothee Sölle, Mística e Resistência (1991)
Carter Lindberg, A Reforma Protestante (1996)
Rubem Alves, A Teologia como Política (1981)
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Nos dias atuais, o protestantismo — especialmente na América Latina e nos Estados Unidos — é amplamente identificado com políticas conservadoras, apoio a projetos neoliberais e a defesa da propriedade privada como direito sagrado. O “evangelho da prosperidade”, pregado por muitos pastores midiáticos, transforma a fé em mercadoria e a pobreza em maldição. Para estudiosos como Nancy Fraser e Boaventura de Sousa Santos, essa fusão entre religião e capitalismo representa uma captura dos símbolos cristãos pela lógica do mercado. A memória de Müntzer, das comunidades camponesas, de um cristianismo anticapitalista baseado na partilha, no cuidado e na justiça, continua viva apenas em poucos círculos acadêmicos e religiosos. Retomar essa história é, como disse Leonardo Boff, “fazer da fé uma força de libertação, não de dominação”.
O EVANGELHO COMO PRODUTO
A expansão do chamado “evangelho da prosperidade” nas últimas décadas transformou radicalmente a paisagem religiosa protestante, especialmente nas Américas. Pregadores televisivos e líderes de megatemplos passaram a associar a fé cristã ao sucesso financeiro, vendendo bênçãos e promessas de ascensão econômica em troca de dízimos e ofertas generosas. Segundo a pesquisadora brasileira Magali do Nascimento Cunha, essa teologia interpreta a fé como um investimento, onde a obediência e a generosidade do fiel resultariam em retorno material. A pobreza, nesse contexto, torna-se sinal de fracasso espiritual, rompendo com a tradição bíblica de solidariedade e compaixão pelos marginalizados.
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FUSÃO ENTRE DEUS E MERCADO
Para a filósofa norte-americana Nancy Fraser, esse processo faz parte de uma captura ideológica dos símbolos religiosos pela racionalidade neoliberal. Em textos como “O Velho é Novo de Novo”, Fraser argumenta que a religião deixa de ser um espaço de resistência e torna-se ferramenta de legitimação de políticas econômicas excludentes. A fé, domesticada pelo mercado, passa a reforçar estruturas de poder ao invés de questioná-las. Esse fenômeno tem especial impacto na América Latina, onde o discurso religioso é mobilizado para sustentar reformas trabalhistas, cortes sociais e privatizações.
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NEOLIBERALISMO E TEOLOGIA DA PROSPERIDADE
Estudos do sociólogo Ricardo Mariano mostram que o crescimento das igrejas neopentecostais no Brasil está intimamente ligado à ascensão do ideário neoliberal nos anos 1990. Durante os governos de Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso, essas igrejas cresceram rapidamente, oferecendo aos fiéis uma mensagem de superação individual que coincidia com os valores do mercado. O discurso da meritocracia e da autosuficiência ganhou destaque nos púlpitos, em contraste com a tradição bíblica de justiça coletiva. Pesquisas recentes apontam que o apoio evangélico a candidaturas conservadoras está diretamente associado a esse ethos econômico.
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A MEMÓRIA SILENCIADA DE MÜNTZER
Enquanto isso, heranças religiosas que uniam fé e luta social seguem sendo marginalizadas. A figura de Thomas Müntzer, teólogo e líder camponês do século XVI, quase desapareceu da narrativa oficial da Reforma. Em “Thomas Müntzer, Teólogo da Revolução”, Ernst Bloch destaca que Müntzer via o cristianismo como uma convocação à transformação radical do mundo, e não à submissão. Suas ideias influenciaram movimentos anticapitalistas nos séculos seguintes, mas hoje são quase desconhecidas fora de círculos acadêmicos. A memória de suas propostas, baseadas em partilha, igualdade e resistência, contrasta com o atual discurso dominante entre evangélicos midiáticos.
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UM DEUS DE DIREITA?
Nos Estados Unidos, o alinhamento de grandes setores protestantes com a direita política consolidou-se ao longo do século XX. A chamada “Direita Cristã” ganhou força a partir da década de 1970, com figuras como Jerry Falwell e Pat Robertson, que viam o liberalismo moral e o Estado de bem-estar social como ameaças à fé. Essa agenda foi exportada para a América Latina, onde muitas igrejas adotaram posições ultraconservadoras em temas como gênero, sexualidade e economia. O teólogo Philip Gorski, da Universidade Yale, afirma que a religiosidade cristã foi, em muitos casos, “reconfigurada para servir ao nacionalismo branco e ao capitalismo selvagem”.
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RESISTÊNCIAS ECUMÊNICAS
Apesar do domínio do discurso neoliberal nas igrejas evangélicas, há iniciativas que tentam recuperar a dimensão libertadora do cristianismo. No Brasil, projetos como o “Evangelho e Justiça” e a “Rede Cristã de Fé e Política” articulam lideranças evangélicas comprometidas com os direitos humanos, a justiça social e o combate à desigualdade. Em entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos, o teólogo Ronilso Pacheco defende que “o Jesus da Bíblia jamais caberia nas estruturas do mercado ou do racismo estrutural”. Essas vozes minoritárias mantêm viva a possibilidade de uma fé crítica, que confronte os poderes estabelecidos.
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A ESPERANÇA COMO RESISTÊNCIA
Para o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, a luta contra o neoliberalismo passa também por recuperar epistemologias e espiritualidades alternativas. Em “A Cruel Pedagogia do Vírus”, ele afirma que a crise contemporânea é também uma crise espiritual, e que tradições como a do cristianismo anticapitalista podem oferecer caminhos de reconstrução social. Já Leonardo Boff, em obras como “Tempo de Transcendência”, insiste que a espiritualidade libertadora não é um luxo, mas uma necessidade histórica. Recontar a história de Müntzer e dos camponeses da Reforma é resgatar o fio de uma fé que, longe de vender promessas, anunciava a possibilidade concreta de um mundo justo.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Ernst Bloch, Thomas Müntzer, Teólogo da Revolução (1962)
Nancy Fraser, O Velho é Novo de Novo: Capitalismo e Crise de Legitimação (2011)
Leonardo Boff, Tempo de Transcendência: O Novo Espiritualismo (2000)
CONCLUSÃO
A memória de Tomás Müntzer e dos milhares de camponeses que tombaram em nome de um cristianismo comunitário permanece como um espectro incômodo para o modelo religioso hegemônico atual. Ao insistir em que o evangelho não pode ser cúmplice do acúmulo de riquezas, nem se calar diante da fome e da injustiça, Müntzer ressoa como uma das vozes mais autênticas de Jesus no curso da história. Sua derrota política e teológica pavimentou o caminho para um protestantismo adaptado às exigências do capital, mas não apagou a força do ideal que representava: um mundo em que os pobres herdam a terra não apenas como metáfora, mas como realidade concreta.
Enquanto o “evangelho da prosperidade” avança com suas promessas de sucesso pessoal, carros de luxo e contas bancárias gordas como sinônimo de fé verdadeira, ignora-se que a mensagem original de Jesus subverte as lógicas de mercado. O Novo Testamento é repleto de críticas à riqueza, à exploração e ao desprezo pelos necessitados. Retomar a leitura de um cristianismo libertador não é apenas um ato de resgate histórico, mas de compromisso político com os marginalizados. Esse cristianismo não é apenas compatível com o socialismo: ele é, em sua origem, uma forma de vida comunitária que se choca com o individualismo econômico.
Em tempos de avanço do autoritarismo religioso e da mercantilização da fé, recordar os camponeses da Reforma é uma forma de resistência. Seu grito ainda ecoa para quem deseja romper com a aliança entre altar e trono, púlpito e mercado. O protestantismo não precisa ser o berço do neoliberalismo. Ele pode, e já foi, chão fértil para uma revolução moral, espiritual e econômica — enraizada no amor ao próximo, na justiça social e na recusa ao poder opressor. Recuperar esse legado pode ser a chave para reconstruir um cristianismo que realmente siga Jesus.
BIBLIOGRAFIA
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A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo – Max Weber, 1905
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Obra seminal que analisa como a ética do trabalho, promovida pelo protestantismo calvinista, influenciou o desenvolvimento do capitalismo moderno. Weber mostra como a ideia de “vocação” e “predestinação” levou à busca de sinais materiais de salvação, transformando o lucro em virtude.
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Thomas Müntzer, Teólogo da Revolução – Ernst Bloch, 1921
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Bloch retrata Müntzer como uma figura messiânica que tentou instaurar na Terra o Reino de Deus através da revolução social. O livro conecta a fé cristã com as bases do socialismo utópico.
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O Princípio Esperança – Ernst Bloch, 1954
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Nesta obra filosófica monumental, Bloch aprofunda a ideia de utopia como motor da história e mostra como o cristianismo original carregava sementes de um mundo mais justo.
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Teologia da Esperança – Jürgen Moltmann, 1964
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O Reino de Deus é de Todos – Leonardo Boff, 1986
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Cristianismo e Luta de Classes – José Comblin, 1981
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A Religião do Mercado – Harvey Cox, 1999
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Teologia da Libertação e Neoliberalismo – Hugo Assmann, 1992
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Evangelho e Revolução – Rubem Alves, 1984
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Deus na Revolução – Frei Betto, 1998
OS CALENDÁRIOS QUE ORGANIZARAM CIVILIZAÇÕES, RELIGIÕES E IMPÉRIOS AO LONGO DOS MILÊNIOS
Leandro Karnal, A invenção do tempo, 2009, publicada no jornal O Estado de S. Paulo.
Clóvis Rossi, O tempo dos homens e o tempo de Deus, 2013, publicada na Folha de S.Paulo.
Eliane Brum, Quando o tempo nos revela, 2018, publicada na revista Época.
Desde os primeiros passos da civilização, contar o tempo foi uma necessidade que ultrapassou o campo da astronomia e tornou-se fundamento para a organização social, religiosa e política dos povos. Calendários não são apenas instrumentos para marcar datas; são reflexos da maneira como diferentes culturas entendem o mundo, o cosmos e a vida em sociedade. Esta reportagem investiga os dez calendários mais marcantes da história da humanidade, com destaque para seus aspectos científicos, simbólicos e curiosos. Da complexidade do sistema maia à precisão do modelo gregoriano, passando pelo uso religioso do calendário hebraico e pela tradição viva do calendário chinês, percorremos milênios de evolução. Aprofundamos o papel civilizatório de cada um, revelando como o tempo foi moldado de formas distintas e estratégicas, revelando valores, medos e esperanças. Especialistas, historiadores e astrônomos ajudam a construir um retrato denso e fascinante dessa jornada. Ao estudar os calendários, compreendemos não só o passado, mas o modo como diferentes civilizações projetaram seu futuro. Afinal, controlar o tempo sempre foi uma forma de poder.
CONTEÚDOS
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O primeiro ritmo do tempo
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O calendário romano e a herança juliana
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O gregoriano, dominante mundial
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Calendários vivos: hebraico, islâmico e chinês
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Maias, hindus e calendários de outros mundos
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O tempo como construção humana
1. O PRIMEIRO RITMO DO TEMPO
A história dos calendários começa muito antes da escrita, com povos da pré-história observando o ciclo lunar para marcar o tempo. No entanto, o primeiro calendário formalmente estruturado conhecido foi o egípcio, baseado no ciclo solar e na observação da estrela Sírius, cujo surgimento anual coincidia com a cheia do Nilo. A cada 365 dias, o ciclo recomeçava, ainda sem o acréscimo de um dia bissexto. A partir dele, os babilônios, por volta de 2000 a.C., desenvolveram um calendário lunissolar com meses de 29 ou 30 dias e intercalando meses extras para alinhar-se ao ano solar. Segundo Anthony Aveni, historiador da astronomia, “o calendário é um reflexo da cultura que o constrói, e os babilônios tinham uma sociedade agrícola que exigia previsibilidade”.
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A HISTÓRIA MARCADA PELA LUA
Antes da invenção da escrita, povos da pré-história já observavam o céu em busca de padrões que ajudassem a organizar a vida cotidiana. As fases da Lua — cheia, nova, crescente e minguante — tornaram-se o primeiro marcador regular do tempo. Pinturas em cavernas e entalhes em ossos e pedras sugerem que sociedades de caçadores-coletores acompanhavam os ciclos lunares para rastrear a passagem dos dias. Um exemplo é o osso de Ishango, encontrado próximo ao Lago Eduardo, entre Uganda e República Democrática do Congo, com cerca de 20 mil anos, contendo entalhes que alguns arqueólogos interpretam como um possível calendário lunar rudimentar. A regularidade dos 29,5 dias entre luas novas permitiu a essas culturas medir períodos e talvez até prever comportamentos naturais como marés ou ciclos menstruais.
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A CIÊNCIA DOS EGÍPCIOS
Foi no Egito antigo que surgiu o primeiro calendário solar estruturado. Com base em observações astronômicas, os egípcios notaram que o surgimento heliacal da estrela Sírius, no horizonte leste pouco antes do nascer do sol, coincidia com a cheia do rio Nilo — evento crucial para a agricultura da região. Isso levou à formulação de um calendário civil com 365 dias, divididos em 12 meses de 30 dias, mais 5 dias epagômenos (dias fora dos meses). Embora esse calendário não incluísse anos bissextos, sua adoção foi essencial para a administração pública e a regulação dos ciclos agrícolas. Segundo o egiptólogo Richard A. Parker, a precisão e regularidade do calendário solar egípcio influenciaram civilizações posteriores, incluindo gregos e romanos.
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O LEGADO DOS BABILÔNIOS
Na Mesopotâmia, por volta de 2000 a.C., os babilônios desenvolveram um sistema lunissolar que combinava o ciclo lunar com ajustes para acompanhar o ano solar. Cada mês começava com a primeira aparição da Lua crescente, e os meses tinham 29 ou 30 dias. Para evitar o descompasso com as estações, intercalavam um mês extra, prática conhecida como intercalação. A regularidade era vital para as atividades agrícolas, religiosas e administrativas. O historiador Anthony Aveni destaca que “o calendário é um reflexo da cultura que o constrói”, apontando que a necessidade de previsibilidade numa sociedade agrícola motivava tal esforço de sincronização.
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OBSERVAÇÃO CELESTE E PODER
A construção de calendários exigia intensa observação astronômica, frequentemente associada ao poder religioso e político. Sacerdotes astrônomos detinham o conhecimento necessário para prever eclipses, mudanças sazonais e datas de rituais. Nos zigurates da Babilônia e nos templos egípcios, registrava-se o comportamento dos corpos celestes. Segundo o antropólogo Jack Goody, o controle do tempo por meio de calendários era uma forma de exercer domínio simbólico e material sobre a sociedade, pois permitia ordenar o trabalho coletivo e estabelecer datas sagradas.
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DA ASTRONOMIA AO RITUAL
Os calendários não serviam apenas para a agricultura ou para os tributos. Eles organizavam a vida religiosa, marcando datas de festivais, sacrifícios e celebrações. O calendário babilônico, por exemplo, previa festas religiosas ligadas aos ciclos lunares e safras, como o Akitu, festival de ano novo associado à renovação do poder do rei. A relação entre calendário e ritual evidencia como a percepção do tempo era inseparável da cosmologia e da ordem social. O historiador Mircea Eliade aponta que os calendários antigos não apenas marcavam o tempo, mas o “sacralizavam”, transformando a passagem dos dias em uma narrativa sagrada.
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O CALENDÁRIO COMO TECNOLOGIA SOCIAL
A construção de calendários pode ser considerada uma tecnologia social — uma forma de organizar coletivamente a experiência humana no tempo. Conforme destaca o arqueoastrônomo Clive Ruggles, os sistemas calendáricos representam “formas sofisticadas de conhecimento empírico acumulado”, refletindo as necessidades e os valores de diferentes culturas. A previsibilidade dos ciclos, essencial para o plantio e colheita, também regulava a cobrança de impostos, o recrutamento militar e até as atividades judiciais. A partir do Egito e da Babilônia, essa lógica se espalhou por impérios que precisavam coordenar vastos territórios.
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O IMPACTO DURADOURO
A influência desses calendários antigos chega até os dias de hoje. O calendário juliano, introduzido por Júlio César em 45 a.C., baseou-se em parte no modelo egípcio e deu origem ao calendário gregoriano, ainda em uso. A contagem dos meses, a divisão do ano e até algumas festividades têm raízes em tradições babilônicas e egípcias. Pesquisas em história da ciência, como as de Francesca Rochberg, revelam que o legado mesopotâmico em astronomia e cronologia ultrapassou milênios e moldou os modos como sociedades modernas organizam o tempo.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Aveni, Anthony (2001) Imperadores do Tempo: Calendário, Cosmos e Cultura
Goody, Jack (2006) O Poder da Escrita e a Organização do Conhecimento
Rochberg, Francesca (2004) O Céu e o Tempo: Astronomia na Antiga Mesopotâmia
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O calendário romano, predecessor direto do nosso, foi inicialmente lunisolar, com 10 meses e 304 dias, excluindo o inverno. Reformado por Numa Pompílio (715 a.C.) e depois por Júlio César em 46 a.C., o calendário juliano instituiu o ano solar de 365,25 dias, com um dia extra a cada quatro anos (o bissexto). Foi um avanço, mas ainda havia um erro de cálculo de 11 minutos por ano, o que resultou em um desvio de cerca de 10 dias até o século XVI. Essa discrepância motivaria a criação do calendário gregoriano. A influência do modelo romano permanece evidente nos nomes dos meses — como julho e agosto, homenagem aos imperadores — e na divisão do ano em doze meses.
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ORIGENS ESTRUTURAIS DO CALENDÁRIO ROMANO
O calendário original de Roma era profundamente ligado ao ciclo lunar. Segundo registros de autores como Plutarco e Tito Lívio, o primeiro calendário romano tinha 10 meses e apenas 304 dias, iniciando-se em março (Martius) e encerrando-se em dezembro (December). Os dois meses do inverno, período considerado improdutivo, não eram nomeados nem contabilizados. Esse sistema apresentava desafios para a administração pública e religiosa, sendo pouco confiável para eventos agrícolas e cívicos. A instabilidade do calendário refletia a ausência de uma base astronômica sólida e de um sistema regular de intercalação, essencial para alinhar o calendário com as estações do ano.
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A REFORMA DE NUMA POMPÍLIO
Por volta de 715 a.C., o rei Numa Pompílio introduziu reformas que buscavam maior alinhamento com os ciclos naturais. Acrescentaram-se os meses de janeiro (Ianuarius) e fevereiro (Februarius), completando o ciclo de 12 meses. Ainda assim, o ano mantinha apenas 355 dias, exigindo a intercalação de um mês adicional (o Mercedonius) em determinados anos, a critério dos pontífices. O historiador clássico Michael Grant destaca que essa instabilidade permitia manipulação política, pois os pontífices controlavam a inclusão do mês extra, podendo estender ou encurtar mandatos conforme interesses do Senado romano. A ausência de padronização tornou o sistema cada vez mais caótico com o tempo.
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O CALENDÁRIO JULIANO E SUA IMPLEMENTAÇÃO
Diante da crescente desordem, Júlio César, aconselhado pelo astrônomo alexandrino Sosígenes, instituiu em 46 a.C. uma reforma profunda que deu origem ao calendário juliano. Abandonou-se o modelo lunissolar em favor de um ano solar de 365 dias, com a adição de um dia extra a cada quatro anos — o ano bissexto. Para corrigir o descompasso acumulado, o ano de 46 a.C. teve 445 dias, conhecido como "o último ano da confusão". A adoção desse novo sistema foi um marco para a uniformização temporal no vasto território romano. O historiador David Ewing Duncan observa que a decisão de César teve efeitos não apenas administrativos, mas também simbólicos, fortalecendo o poder central por meio do controle do tempo.
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OS NOMES DOS MESES E O LEGADO IMPERIAL
Com a consolidação do calendário juliano, os nomes dos meses ganharam estabilidade, e alguns foram alterados por razões políticas. O mês Quintilis foi renomeado como Julius (julho), em homenagem a Júlio César, e Sextilis transformou-se em Augustus (agosto), em tributo a Augusto, seu sucessor. Ambos os meses receberam ajustes na quantidade de dias, estabelecendo 31 dias para preservar o prestígio das figuras homenageadas. O professor de filologia Werner Keller ressalta que essa denominação perpetuou a memória dos imperadores romanos e contribuiu para naturalizar a autoridade imperial no cotidiano das populações do império.
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O ERRO ACUMULADO E O DESVIO TEMPORAL
Apesar de revolucionário para a época, o calendário juliano continha um pequeno erro de cálculo: o ano solar tem cerca de 365,2422 dias, e não exatamente 365,25 como estimado por Sosígenes. Esse descompasso de 11 minutos por ano gerou um acúmulo de aproximadamente 10 dias até o século XVI. A principal consequência prática foi o deslocamento das datas religiosas, em especial a Páscoa, que depende do equinócio da primavera. O historiador da ciência John North aponta que esse erro só foi identificado com precisão a partir do desenvolvimento da astronomia moderna e da crescente preocupação da Igreja com a precisão litúrgica.
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DA HERANÇA JULIANA AO CALENDÁRIO GREGORIANO
Para corrigir o desvio acumulado, o papa Gregório XIII instituiu o calendário gregoriano em 1582. O novo sistema suprimiu 10 dias do calendário — passando do dia 4 de outubro diretamente para 15 de outubro — e ajustou a regra dos anos bissextos, excluindo-os nos anos múltiplos de 100, exceto os divisíveis por 400. Apesar da adoção inicial nos países católicos, sua disseminação pelo mundo foi gradual. A reforma gregoriana manteve a estrutura de 12 meses e os nomes herdados de Roma, preservando, assim, a base cultural e administrativa do calendário juliano.
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A ESTRUTURA MODERNA E SEUS ECOS ANTIGOS
O calendário em vigor atualmente carrega, em sua estrutura, os resquícios do sistema romano e da reforma juliana. A ordem dos meses, a quantidade de dias e a própria lógica de organização anual são fruto da sucessão de reformas iniciadas por Numa e culminadas por Júlio César. Mesmo em sociedades modernas e seculares, a presença de nomes como março (em homenagem a Marte) e janeiro (dedicado a Janus) evidencia como mitologia, política e ciência moldaram o modo como a humanidade mede o tempo. A cronologia ocidental, embora racionalizada, continua ancorada em construções simbólicas herdadas da Roma Antiga.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Grant, Michael (2001) O Mundo Clássico: A Vida e a Cultura na Grécia e Roma Antigas
Duncan, David Ewing (1998) O Calendário: A História da Nossa Longa Obsessão com o Tempo
North, John (2008) Cosmos: Uma História da Astronomia de Ptolomeu a Newton
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3. O GREGORIANO, DOMINANTE MUNDIAL
Promulgado em 1582 pelo papa Gregório XIII, o calendário gregoriano ajustou o erro do juliano ao eliminar 10 dias e redefinir os anos bissextos (suprimindo os múltiplos de 100, exceto os divisíveis por 400). Essa precisão fez com que fosse adotado gradualmente pelo mundo cristão e, mais tarde, por outras nações por conveniência comercial e diplomática. Hoje, é o calendário oficial da maioria dos países. Para o astrônomo britânico Derek Howse, esse modelo “foi menos uma inovação astronômica e mais uma reforma religiosa que moldou o calendário ocidental com eficiência surpreendente”. Curiosamente, países como a Rússia só o adotaram no século XX, e a Etiópia ainda segue um calendário próprio.
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A CRISE DO CALENDÁRIO JULIANO
Ao final da Idade Média, o desvio acumulado no calendário juliano em relação ao ano solar já ultrapassava dez dias, afetando diretamente o calendário litúrgico, sobretudo a data da Páscoa, fixada em relação ao equinócio da primavera. A Igreja Católica, percebendo o impacto sobre a precisão religiosa e astronômica, iniciou um processo de reforma liderado por estudiosos como Luigi Lilio e Christopher Clavius. O projeto visava alinhar o calendário civil ao ciclo solar real, baseando-se em novos cálculos astronômicos produzidos durante o Renascimento. A iniciativa resultaria em uma das mais significativas intervenções temporais da história.
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A REFORMA DO PAPA GREGÓRIO XIII
Em 1582, o papa Gregório XIII promulgou a bula Inter gravissimas, instituindo oficialmente o calendário gregoriano. O novo sistema eliminou 10 dias do calendário — passando de 4 para 15 de outubro — e introduziu uma nova regra para os anos bissextos: os múltiplos de 100 deixaram de ser bissextos, salvo os divisíveis por 400. A proposta corrigia o erro de 11 minutos anuais do calendário juliano, reduzindo a discrepância a menos de um dia a cada 3.000 anos. Para o astrônomo Derek Howse, autor de Greenwich Time and the Longitude, o gregoriano foi “uma reforma religiosa com eficácia astronômica surpreendente”.
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RESISTÊNCIA E ADOÇÃO NO MUNDO CRISTÃO
A adoção do novo calendário não foi imediata nem uniforme. Países católicos como Espanha, Portugal e Itália implementaram a reforma logo em 1582, enquanto nações protestantes, como Inglaterra e Suécia, resistiram, vendo nela uma imposição papal. A Inglaterra só adotaria o calendário em 1752, momento em que já era necessário eliminar 11 dias. O historiador E.G. Richards ressalta que, na Grã-Bretanha, a mudança gerou revolta popular, com protestos registrados sob o slogan “Devolvam-nos nossos onze dias”. A transição teve implicações diretas em registros históricos, contratos e celebrações religiosas.
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IMPLICAÇÕES CIENTÍFICAS E POLÍTICAS
A padronização do calendário gregoriano contribuiu para o avanço das ciências naturais e para a unificação administrativa entre as nações. A adoção de um sistema comum de contagem dos dias permitiu maior confiabilidade nos registros astronômicos, meteorológicos e históricos. No campo político, a convergência temporal facilitou as relações diplomáticas e comerciais. Como observa o cientista francês Jacques Le Goff, “o controle do tempo é também uma forma de poder”, e o calendário gregoriano consolidou a centralidade europeia nas práticas temporais globais durante a expansão colonial.
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RESISTÊNCIAS SECULARES E IDENTITÁRIAS
Apesar da difusão global, algumas culturas mantiveram sistemas próprios. A Rússia só adotou o calendário gregoriano em 1918, após a Revolução Bolchevique, substituindo o juliano por razões práticas e ideológicas. A Grécia aderiu em 1923. Já a Etiópia, que utiliza um calendário derivado do copta, ainda conserva um ano com 13 meses, sete a oito anos atrás do calendário ocidental. Para o antropólogo Emmanuel Todd, esses sistemas paralelos revelam como o tempo também serve como elemento de identidade cultural e resistência simbólica à hegemonia ocidental.
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O CALENDÁRIO COMO CONVENÇÃO GLOBAL
No século XX, o gregoriano tornou-se o padrão temporal internacional, adotado pela maioria dos países como calendário civil oficial. Sua presença é dominante em registros legais, transações comerciais, sistemas escolares e planejamentos públicos. Embora outras tradições coexistam — como o calendário islâmico, o hebraico e o chinês, ainda utilizados em contextos religiosos ou cerimoniais —, o gregoriano é a base dos sistemas organizacionais modernos. A Organização das Nações Unidas e instituições multilaterais também o utilizam como referência oficial em suas atividades.
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CONTINUIDADE E QUESTIONAMENTOS
Mesmo consolidado, o calendário gregoriano não está isento de críticas e propostas de revisão. Projetos como o Calendário Mundial e o Calendário Permanente Internacional sugerem reorganizações mais racionais, com semanas e meses simétricos, mas enfrentam resistência pela força da tradição. O astrônomo Cesare Emiliani propôs, ainda no século XX, o uso da escala de Tempo Holoceno, adicionando 10 mil anos à cronologia atual, para refletir melhor a presença humana na Terra. Nenhuma dessas alternativas, no entanto, superou a inércia institucional e cultural do sistema gregoriano.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Richards, E.G. (2001) Mapeando o Tempo: A História do Calendário e sua Influência nas Civilizações
Howse, Derek (1997) Tempo de Greenwich e a Longitude
Le Goff, Jacques (1990) O Nascimento do Purgatório
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4. CALENDÁRIOS VIVOS: HEBRAICO, ISLÂMICO E CHINÊS
O calendário hebraico, usado por judeus para fins religiosos, é lunissolar e combina ciclos lunares com ajustes solares, com anos comuns de 12 meses e anos embolísmicos de 13 meses. A contagem parte da suposta criação do mundo, em 3761 a.C. O islâmico, por sua vez, é totalmente lunar, com anos de 354 dias e meses que se movem pelas estações — o que explica o Ramadã ocorrer em épocas diferentes a cada ano solar. Já o chinês, também lunissolar, é marcado por ciclos de 60 anos e pelos famosos signos do zodíaco. Ele orienta datas de casamentos, negócios e festividades, como o Ano Novo Chinês. Esses calendários continuam vivos e praticados por bilhões, mostrando que o tempo também é identidade cultural.
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O TEMPO JUDAICO E A CRIAÇÃO DO MUNDO
O calendário hebraico é um sistema lunissolar utilizado majoritariamente em contextos religiosos e culturais por comunidades judaicas ao redor do mundo. Sua contagem de anos tem como marco a criação do mundo segundo a tradição bíblica, datada em 3761 a.C., e seu ano novo, o Rosh Hashaná, ocorre geralmente em setembro. O calendário alterna entre anos comuns de 12 meses e anos embolísmicos de 13 meses, com a inserção do mês de Adar II em sete dos 19 anos do ciclo metônico. Essa complexidade busca manter as festividades judaicas em harmonia com as estações do ano. Segundo o historiador Sacha Stern, da Universidade de Londres, essa adaptação “representa uma engenharia temporal sofisticada com raízes na Antiguidade”.
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A LUNARIDADE DO MUNDO ISLÂMICO
O calendário islâmico, também conhecido como Hijri, segue estritamente os ciclos da Lua. Com 12 meses lunares de 29 ou 30 dias, ele resulta em um ano de 354 ou 355 dias — cerca de 11 dias a menos que o calendário solar. Não há correções sazonais, o que faz com que os meses islâmicos deslizem por todas as estações ao longo de um ciclo de aproximadamente 33 anos solares. A contagem começa no ano da Hégira (622 d.C.), quando o profeta Maomé migrou de Meca para Medina. A determinação das datas religiosas, como o Ramadã e o Eid al-Fitr, é feita por observações lunares locais. O islamólogo Reza Aslan observa que “o calendário islâmico reflete a primazia da revelação e da observação direta da natureza sobre sistemas matemáticos”.
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O SISTEMA CHINÊS DE CICLOS E SIGNOS
O calendário chinês, em uso há mais de 2.000 anos, é lunissolar e estruturado em ciclos sexagenários — combinação de dez troncos celestiais e doze ramos terrestres, que incluem os doze animais do zodíaco. Cada mês começa com a lua nova e o ano novo varia entre o fim de janeiro e meados de fevereiro. A cada dois ou três anos, um mês lunar adicional é inserido para compensar a defasagem com o ano solar. Esse calendário é usado para definir datas auspiciosas de casamento, negócios, funerais e celebrações, como o Festival da Primavera. O antropólogo Laurence Ma, da Universidade de Hong Kong, destaca que “mais que medição do tempo, o calendário chinês é uma linguagem simbólica da harmonia entre o céu, a terra e os seres humanos”.
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SOBREVIVÊNCIA EM CONTEXTOS SECULARES
Mesmo com a hegemonia do calendário gregoriano em instituições governamentais e comerciais, os calendários hebraico, islâmico e chinês mantêm vitalidade em contextos religiosos, culturais e comunitários. Em Israel, o calendário hebraico coexiste oficialmente com o gregoriano, sendo usado em documentos legais e feriados públicos. Em países de maioria islâmica, como Arábia Saudita e Irã, o calendário islâmico é referência para eventos oficiais. Já na China, o calendário tradicional influencia amplamente o cotidiano, apesar da adoção formal do calendário ocidental desde 1912. Essa coexistência evidencia a pluralidade temporal presente nas sociedades contemporâneas.
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CONEXÃO COM RITMOS NATURAIS
Os três calendários vivos partilham uma conexão direta com os ritmos da natureza, especialmente os ciclos lunares. Essa característica confere a eles uma sensibilidade ecológica ausente em calendários solares puros. No caso do calendário hebraico, por exemplo, o mês de Nissan, que marca a Páscoa judaica, está vinculado à primavera no hemisfério norte. No mundo islâmico, o jejum do Ramadã acompanha as fases lunares, reforçando a dimensão espiritual da observação do céu. E no calendário chinês, as estações e os elementos naturais são parte essencial da escolha de datas para eventos pessoais e sociais.
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UMA DIMENSÃO IDENTITÁRIA DO TEMPO
Além de sua função cronológica, esses calendários funcionam como marcadores de identidade cultural e religiosa. Eles estruturam narrativas coletivas, memórias e modos de vida que se distinguem dos paradigmas ocidentais. O historiador israelense Yuval Noah Harari aponta que “controlar o tempo é uma forma de contar a história — e quem escolhe o calendário escolhe o começo do mundo”. O uso contínuo desses sistemas reforça um pertencimento ancestral, expressando cosmovisões próprias. Em comunidades da diáspora judaica, muçulmana e chinesa, as festividades guiadas por seus calendários reforçam vínculos de continuidade cultural entre gerações.
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TEMPOS PARALELOS EM UM MUNDO GLOBAL
Em um mundo marcado por globalização, esses calendários vivos demonstram que a organização do tempo não é universal, mas produto de construções históricas e culturais diversas. A coexistência de múltiplos sistemas calendáricos revela que o tempo é também um campo de disputa simbólica. Enquanto o gregoriano se consolidou como padrão global, os calendários hebraico, islâmico e chinês seguem operando como alternativas legítimas e enraizadas. Para a historiadora Lynn Hunt, “os calendários alternativos não são vestígios do passado, mas expressões vibrantes de diferentes formas de estar no mundo”.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Stern, Sacha (2001) Calendário e Comunidade: Um Estudo do Tempo Judaico
Aslan, Reza (2005) Não Há Deus Além de Deus: A Origem, Evolução e Futuro do Islã
Hunt, Lynn (2007) A Invenção do Tempo Moderno: O Século XVIII e a Criação da História
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5. MAIAS, HINDUS E CALENDÁRIOS DE OUTROS MUNDOS
Os maias criaram um dos calendários mais sofisticados da história antiga, o Tzolk’in, de 260 dias, e o Haab’, de 365 dias, interligados no chamado Ciclo de Calendário Redondo, além da Contagem Longa, que permite datar eventos em milhares de anos. Eles tinham um entendimento astronômico refinado, segundo Michael Coe, arqueólogo e especialista em Mesoamérica. Já os hindus utilizam vários calendários regionais baseados no movimento lunar e solar, como o Vikram Samvat e o Shaka Samvat, ambos usados na Índia contemporânea para fins religiosos e administrativos. A diversidade revela que cada civilização moldou seu modo de entender o tempo segundo o céu que observava.
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A ENGENHARIA TEMPORAL MAIA
Os maias desenvolveram um dos sistemas calendáricos mais complexos da Antiguidade, combinando observações astronômicas rigorosas com cálculos matemáticos avançados. Três calendários se destacam: o Tzolk’in, de 260 dias, usado para fins rituais; o Haab’, de 365 dias, que regulava o ciclo solar agrícola; e a Contagem Longa, que permitia datar eventos em períodos superiores a 5 mil anos. Essa estrutura possibilitava calcular não apenas datas passadas, mas projeções futuras. O arqueólogo Michael D. Coe, em suas pesquisas na região de Copán, destacou que “os maias tinham um conceito cíclico do tempo, onde cada evento cósmico era parte de uma engrenagem divina”.
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TZOLK’IN E HAAB’: CALENDÁRIOS CRUZADOS
O Tzolk’in, com seus 20 nomes de dias combinados a 13 números, produzia um ciclo de 260 dias sem equivalente exato no calendário solar. Já o Haab’, com 18 meses de 20 dias mais um período de 5 dias chamados de Uayeb — considerado de má sorte — formava um ano solar aproximado. A interseção dos dois gerava o Ciclo de Calendário Redondo, de 52 anos, fundamental para os cerimoniais religiosos. A cada fim de ciclo, realizavam-se rituais de renovação para evitar o fim do mundo conhecido. A mesoamericanista Linda Schele ressaltou que “a precisão dos cálculos dos maias rivalizava com a dos astrônomos modernos, mesmo sem telescópios”.
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A CONTAGEM LONGA E O TEMPO CÓSMICO
A Contagem Longa é um sistema posicional vigesimal, onde cada posição representa multiplicações sucessivas de 20 (exceto a terceira, multiplicada por 18, para alinhar com o ano solar). Esse sistema permitia aos maias registrar datas em longos períodos históricos. A chamada data zero corresponde ao ano 3114 a.C., segundo a correlação mais aceita entre calendários. O fim de um grande ciclo em 21 de dezembro de 2012 causou comoção mundial, erroneamente interpretado como previsão de apocalipse. Arqueólogos como David Stuart, da Universidade do Texas, reiteraram que o evento era “apenas o reinício de um ciclo, como virar o odômetro de um carro”.
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CALENDÁRIOS HINDUS: DIVERSIDADE E CONTINUIDADE
Na Índia, o tempo é regulado por diversos calendários tradicionais, alguns solares, outros lunares ou lunissolares. Entre os principais estão o Vikram Samvat, criado no século I a.C., e o Shaka Samvat, adotado oficialmente pelo governo indiano desde 1957. O Vikram Samvat é usado principalmente no norte da Índia e Nepal, enquanto o Shaka Samvat predomina no sul e em contextos administrativos. Ambos seguem complexas regras de inserção de meses intercalados (adhik maas) para sincronizar com o ano solar. Segundo o sociólogo Arvind Sharma, “os calendários hindus são expressões regionais de uma cosmovisão sagrada do tempo”.
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RITUAIS, FESTAS E O TEMPO SAGRADO
Os calendários hindus não são apenas instrumentos de marcação do tempo, mas guias para festivais religiosos, jejuns, casamentos e peregrinações. Datas como Diwali, Holi ou o Kumbh Mela são fixadas segundo os alinhamentos astronômicos indicados pelos panchangams — almanaques religiosos baseados em observações solares e lunares. Os sacerdotes hindus utilizam esses sistemas para orientar decisões importantes na vida dos fiéis. A astrônoma Radhika Ramachandran, do Instituto Indiano de Astrofísica, explica que “o tempo, nos calendários hindus, é antes de tudo uma manifestação do dharma — a ordem cósmica e moral do universo”.
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RAÍZES ANTIGAS, USOS ATUAIS
Apesar da adoção do calendário gregoriano em instâncias oficiais, os sistemas hindus e maias continuam vivos. No sul do México e na Guatemala, comunidades maias seguem usando o Tzolk’in para determinar datas de batismos, casamentos e plantio. Na Índia, milhões de pessoas organizam seu cotidiano segundo os calendários tradicionais, coexistindo com o calendário ocidental. O uso dessas estruturas revela não apenas continuidade cultural, mas também resistência simbólica diante da padronização temporal global. O antropólogo Claude Lévi-Strauss apontava que “os calendários antigos são menos um registro do tempo e mais uma maneira de habitá-lo”.
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ASTRONOMIA E MATEMÁTICA PARALELAS
Tanto maias quanto hindus desenvolveram cálculos astronômicos sofisticados sem os aparatos modernos da ciência ocidental. As observações lunares, eclipses e posições planetárias foram integradas em calendários que serviam tanto à agricultura quanto à religião. Textos como o Surya Siddhanta, do século IV, detalham equações precisas sobre o movimento solar. Já os códices maias, como o de Dresden, preveem eclipses com impressionante acurácia. Pesquisadores como Anthony Aveni consideram que esses sistemas revelam “civilizações que não apenas contavam o tempo, mas compreendiam sua mecânica celeste”.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Coe, Michael D. (1999) Os Maias
Aveni, Anthony (2001) Astronomia Antiga: O Céu e os Povos do Mundo
Sharma, Arvind (2005) Tempo e Tradição na Índia Antiga
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6. O TEMPO COMO CONSTRUÇÃO HUMANA
Cada calendário reflete mais do que uma técnica de contagem de dias: ele revela cosmovisões, valores religiosos, políticas de poder e prioridades sociais. O historiador David Christian, em Maps of Time (2005), argumenta que “a unificação do tempo com o calendário gregoriano serviu à globalização, mas também apagou muitas formas locais de marcar o tempo”. O estudo comparado dos calendários — egípcio, babilônico, romano, gregoriano, hebraico, islâmico, chinês, maia, hindu e etíope — nos mostra que o tempo é também linguagem, memória e símbolo de humanidade. Conhecê-los é, portanto, uma forma de viajar entre as civilizações que nos precederam e ainda nos inspiram.
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TEMPO COMO LINGUAGEM CULTURAL
O tempo, em suas múltiplas formas de medição, sempre foi mais do que um sistema de marcação: trata-se de uma linguagem simbólica enraizada em crenças, ciclos naturais e necessidades sociais. Segundo o antropólogo Jack Goody, o calendário é uma “tecnologia da organização da vida”, cuja função vai além da contagem — ele estrutura o cotidiano, ritualiza os momentos marcantes e molda as relações sociais. Cada cultura construiu sua maneira de ler o céu e traduzir em datas suas práticas e mitos, o que confere aos calendários um papel de espelho das civilizações.
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OS CALENDÁRIOS DA ANTIGUIDADE
Na Antiguidade, egípcios usavam um calendário solar de 365 dias, antecipando o modelo ocidental. Babilônios adotaram um sistema lunissolar com meses ajustados por ciclos intercalados, influenciando gregos e romanos. O calendário romano, reformado por Júlio César em 46 a.C., deu origem ao calendário juliano, que por sua vez foi corrigido por Gregório XIII em 1582, originando o atual calendário gregoriano. Cada transição reflete um esforço de poder político e domínio sobre a organização do tempo. O historiador Paul Boyer aponta que “controlar o calendário é também controlar a narrativa da história”.
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CALENDÁRIO GREGORIANO E GLOBALIZAÇÃO
O calendário gregoriano tornou-se o padrão global por razões econômicas, diplomáticas e religiosas. Sua adoção facilitou o comércio internacional e os acordos políticos entre nações cristãs da Europa. Países como Japão, China e Turquia só o adotaram oficialmente no século XX. O historiador David Christian, em Maps of Time, argumenta que “a unificação temporal serviu à expansão colonial e comercial, apagando tempos locais e impondo uma cronologia eurocêntrica”. A globalização, nesse sentido, implicou não só um modelo econômico, mas também um padrão de temporalidade ocidentalizado.
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COSMOVISÕES RELIGIOSAS DO TEMPO
Os calendários religiosos mantêm sistemas alternativos ao gregoriano. O calendário hebraico, por exemplo, data a criação do mundo em 3761 a.C. e regula rituais como o Yom Kippur e o Pessach. O islâmico inicia sua contagem com a Hégira (622 d.C.) e estrutura eventos como o Ramadã. O calendário hindu ajusta práticas religiosas a posições lunares e solares. O etíope, ainda em uso oficial na Etiópia, segue sete anos atrás do calendário ocidental. Cada um reflete uma forma distinta de viver o tempo, vinculando cronologia a identidade espiritual e memória coletiva.
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CALENDÁRIOS E POLÍTICA DO TEMPO
Além da religião, calendários serviram como instrumentos políticos. A Revolução Francesa, por exemplo, tentou implantar um calendário revolucionário baseado na razão, com semanas de dez dias e novos nomes para os meses. Já os soviéticos experimentaram o calendário revolucionário soviético entre 1929 e 1940. Essas tentativas mostram como a concepção do tempo pode ser usada para romper com tradições e estabelecer novas formas de poder. O sociólogo Norbert Elias destaca que “o controle social do tempo é tão fundamental quanto o controle dos corpos”.
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RESISTÊNCIA TEMPORAL E CALENDÁRIOS VIVOS
Apesar da padronização gregoriana, diversas culturas continuam mantendo seus calendários paralelos. O Ano Novo Chinês é celebrado com base no calendário lunissolar chinês; comunidades judaicas e islâmicas seguem marcando festas sagradas por seus próprios sistemas. Na Guatemala, o calendário maia Tzolk’in ainda orienta cerimônias entre grupos indígenas. Essas práticas representam formas de resistência simbólica, afirmando modos próprios de compreender a realidade. Para a historiadora Silvia Federici, “o tempo do capital não substitui completamente os tempos do corpo, da terra e da memória ancestral”.
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TEMPO COMO PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE
O estudo comparado dos calendários revela uma pluralidade de modos de existência no tempo. Para além de uma sequência linear de dias, os calendários são construções sociais, cosmovisões encarnadas em tabelas e cerimônias. Entendê-los como patrimônio imaterial da humanidade permite valorizar a diversidade de experiências temporais e refletir sobre os limites da cronologia dominante. O antropólogo Alfred Gell observou que “o tempo é uma arte cultural, não um dado universal da natureza”. Viajar por esses calendários é, portanto, visitar formas distintas de estar no mundo.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Christian, David (2005) Mapas do Tempo
Goody, Jack (2006) A Domesticação do Pensamento Selvagem
Elias, Norbert (1988) Sobre o Tempo
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CONCLUSÃO
O estudo dos calendários revela que o tempo não é uma constante absoluta, mas uma convenção profundamente enraizada nas culturas que o organizam. Se o calendário gregoriano triunfou no mundo moderno por sua precisão e utilidade política, outros sistemas sobreviveram justamente por expressarem a identidade de seus povos. O calendário judaico marca o ciclo das festas religiosas com exatidão; o islâmico sustenta o ritmo das orações e jejuns em toda a umma; o chinês rege não apenas feriados, mas decisões pessoais e comunitárias. São práticas temporais que resistem à padronização, mantendo vivo um patrimônio imaterial essencial.
Em um planeta globalizado, onde o relógio dita ritmos industriais e financeiros, a diversidade dos calendários desafia o monopólio ocidental sobre a organização do tempo. Cada calendário que persiste é um grito de autonomia cultural. Além disso, eles nos ensinam que tempo é mais do que produção: é memória, mito, ciclo e cuidado. Aprender com os calendários antigos é resgatar sabedorias enterradas sob o concreto da cronologia moderna.
Por isso, compreender os calendários da humanidade não é apenas uma incursão pela história científica ou pela astronomia antiga — é um convite a refletir sobre as formas como vivemos e nos orientamos no tempo. A busca por sentido nas datas, nas estações e nas festividades demonstra o quanto o tempo foi e ainda é um elo entre o humano e o sagrado. O que cada civilização fez com o tempo, diz muito sobre o que ela esperava do futuro.
BIBLIOGRAFIA
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Mapas do Tempo: Uma Introdução à Grande História – David Christian, 2005
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O autor traça uma narrativa ampla da história do universo, incluindo a invenção dos calendários como uma das formas humanas de dar sentido ao tempo e conectar eventos em escalas astronômicas e sociais.
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Impérios do Tempo: Calendários, Relógios e Culturas – Anthony Aveni, 2002
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Explora como diferentes civilizações desenvolveram métodos únicos de medir o tempo, analisando as implicações culturais e espirituais de seus calendários.
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O Tempo e os Calendários – Eviatar Zerubavel, 1982
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Um estudo sociológico sobre como os calendários moldam a experiência coletiva do tempo nas sociedades humanas.
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O Tempo Sagrado: Calendários Religiosos e as Estruturas do Tempo – Michael North, 1997
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História do Tempo – Stephen Hawking, 1988
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Calendários Antigos do Mundo – Sasha Newborn, 2010
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Tempo e Cultura – Norbert Elias, 1992
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Medindo o Tempo com os Maias – Prudence M. Rice, 2007
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O Relógio Cósmico – Paul Davies, 1996
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O Calendário e a Consciência – Mircea Eliade, 1974
Aveni, Anthony. Empires of Time: Calendars, Clocks, and Cultures. Tauris Parke, 2002.
Coe, Michael D. The Maya. Thames & Hudson, 2015.
Howse, Derek. Greenwich Time and the Discovery of the Longitude. Oxford University Press, 1997.
Christian, David. Maps of Time: An Introduction to Big History. University of California Press, 2005.
O CRISTIANISMO MANTÉM VIVO O ESPÍRITO DA INQUISIÇÃO SOB A ROUPAGEM DA DEMOCRACIA
HOMENAGENS
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Eliane Brum, “O Brasil e a fé que mata: a religião como instrumento de violência”, 2021, publicada na revista El País Brasil.
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Felipe Betim, “A cruz e a espada: como a fé virou arma política no Brasil”, 2022, publicada na Piauí.
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Patrícia Campos Mello, “Evangelismo e autoritarismo: a nova cruzada política brasileira”, 2020, publicada na Folha de S.Paulo.
A reportagem investiga como o cristianismo contemporâneo — especialmente na vertente protestante brasileira — vem repetindo, em nova forma, os métodos e propósitos da Inquisição histórica. Com o uso de redes sociais, influência política e discursos de autoridade moral, certos grupos religiosos têm promovido perseguição simbólica, censura cultural e vigilância comportamental, sob o pretexto de proteger a fé e a Bíblia. A reportagem analisa como essa atuação revive o espírito inquisitorial, apesar das barreiras legais e democráticas, e discute o papel contraditório do protestantismo, que nasceu como crítica à opressão católica, mas que, agora, reproduz práticas similares. O texto apresenta ainda reflexões de especialistas, casos reais no Brasil recente e o risco de ruptura com os princípios do Estado laico. O fenômeno é lido como ameaça à pluralidade e à liberdade de expressão, alertando para os efeitos de uma religião que pretende dominar os espaços públicos e subjetivos da sociedade. Uma nova cruzada se ergue, desta vez sem fogueiras — mas com algoritmos, microfones e gabinetes parlamentares.
CONTEÚDOS
Uma experiência que muitos vivem
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A repetição de um passado queimado
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O protestantismo e sua contradição histórica
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Quando a lei freia o fanatismo
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Bíblia como escudo e arma
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A nova inquisição digital
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Um alerta para a democracia
PERSEGUIDO POR PARTICIPAR DE ENCONTRO POLÍTICO
O pastor Sérgio Dusilek, teólogo, professor e articulador de importantes redes eclesiásticas no Brasil, revelou em entrevista à revista Protestantismo em Revista que sofreu intensas perseguições por parte da liderança da denominação batista à qual era vinculado. O motivo: sua presença em um encontro político com o então candidato à presidência Luiz Inácio Lula da Silva. A entrevista, conduzida por Nataniel dos Santos Gomes, detalha o processo de hostilidade enfrentado por Dusilek, que culminou em exclusão institucional, apagamento público e assédio psicológico.
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VIOLÊNCIA RELIGIOSA DENTRO DA PRÓPRIA CASA
Dusilek narra que, após sua participação no evento político, líderes batistas passaram a adotar contra ele medidas de represália explícita, incluindo ataques nas redes sociais, difamação e o esvaziamento de seus espaços de atuação. Segundo ele, tratou-se de uma “violência religiosa institucional”, disfarçada de zelo doutrinário, mas que escondia motivações ideológicas e partidárias. A perseguição atingiu não apenas sua figura como teólogo, mas também sua identidade e atuação pastoral.
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O PREÇO DE UM COMPROMISSO ÉTICO
Para Dusilek, o episódio revelou o quanto setores religiosos no Brasil estão reféns de uma lógica de poder autoritária e alinhada com projetos políticos conservadores. A escolha de apoiar um candidato identificado com causas populares foi lida como traição por lideranças que esperam submissão ideológica. Em suas palavras, o espaço da igreja foi sequestrado por um fundamentalismo que instrumentaliza o evangelho em nome de interesses eleitorais.
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EXCLUSÃO, AMEAÇAS E SILENCIAMENTO
Além de ser afastado de espaços ministeriais e acadêmicos que antes ocupava com prestígio, Dusilek conta que passou a receber ameaças, teve seus vínculos rompidos e foi silenciado institucionalmente. O impacto foi profundo: sua família sofreu, seu sustento foi comprometido e sua imagem foi publicamente atacada por lideranças que, segundo ele, agiam como se estivessem defendendo a “pureza da fé”, mas na verdade promoviam uma caça ideológica.
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A RESPOSTA DO EVANGELHO À VIOLÊNCIA
Apesar das dores sofridas, Dusilek afirma que sua fé foi reafirmada na resistência. Para ele, o evangelho é incompatível com a lógica da perseguição. A denúncia que faz é também um chamado à integridade: ele insiste que ser discípulo de Jesus é comprometer-se com a justiça, mesmo que isso custe a reputação ou o lugar dentro de estruturas eclesiásticas. “Minha fé não cabe dentro de um projeto de dominação política”, disse o pastor.
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RELIGIÃO, POLÍTICA E DEMOCRACIA
A entrevista de Dusilek reacende o debate sobre o papel das igrejas na política brasileira. Para ele, não se trata de afastar a fé da vida pública, mas de rejeitar o uso da fé como instrumento de opressão e exclusão. A democracia, afirma, depende de uma espiritualidade que valorize o diálogo, o dissenso e a justiça social. A perseguição que sofreu é, segundo ele, sintoma de uma crise mais ampla que atravessa o campo evangélico brasileiro.
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UM TESTEMUNHO DE RESISTÊNCIA
Ao final da entrevista, Dusilek reafirma seu compromisso com o evangelho da paz, da dignidade humana e da justiça. Sua trajetória, marcada por coragem e sofrimento, torna-se símbolo de resistência diante da intolerância religiosa dentro do próprio campo cristão. Sua voz ecoa como um apelo a pastores, igrejas e fiéis: que a fé não seja cúmplice do autoritarismo, mas instrumento de libertação e esperança.
A inquisição, historicamente marcada pela violência, censura e perseguição a divergentes, parece hoje revivida em formas adaptadas à contemporaneidade. Especialmente em setores do cristianismo atual, observa-se uma nostalgia por um tempo em que a fé religiosa tinha o poder de moldar comportamentos pela força. O discurso atual não traz mais fogueiras ou torturas públicas, mas insiste em restringir direitos, censurar expressões artísticas, atacar a ciência e marginalizar dissidentes, sob o argumento de “defesa da fé”. Essa postura ecoa o espírito inquisitorial, ainda que sem os instrumentos brutais de séculos atrás. A socióloga Renata Menezes (UFRJ) destaca que “a religiosidade institucionalizada, quando se vê ameaçada pela pluralidade de ideias, tende a reativar estruturas simbólicas de controle”.
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A REPETIÇÃO DE UM PASSADO QUEIMADO
A inquisição, marcada entre os séculos XIII e XIX por perseguições religiosas, torturas e execuções em nome da ortodoxia cristã, tem sido invocada por pesquisadores para descrever práticas simbólicas e institucionais atuais. Embora as fogueiras tenham desaparecido, permanecem mecanismos de exclusão e punição a vozes dissidentes dentro de algumas estruturas religiosas contemporâneas. O historiador Henry Kamen aponta que, mais do que um tribunal religioso, a inquisição foi um instrumento de poder político-cultural, que moldava sociedades inteiras a partir de um controle rígido da fé (Kamen, 1997). O fenômeno atual, embora mais sutil, resgata essa lógica ao transformar discordância teológica ou posicionamento político em ameaça à identidade religiosa.
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RESTAURAÇÃO MORALISTA E O DISCURSO DE GUERRA
Nas últimas décadas, diversas lideranças cristãs evangélicas, sobretudo no Brasil e nos Estados Unidos, adotaram um discurso moralizante que se articula com o campo político. Termos como "guerra cultural", "inimigos da fé" e "perseguição aos cristãos" passaram a fazer parte do vocabulário público de segmentos religiosos que se opõem a pautas como o direito ao aborto, os direitos LGBTQIA+ e a liberdade artística. Para a antropóloga Christina Vital (UFF), “existe uma tentativa de restaurar um modelo de autoridade religiosa hegemônica, travestida de defesa de valores, mas que opera pela exclusão e silenciamento de outras formas de viver” (Vital, 2021).
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CIÊNCIA SOB SUSPEITA
Durante a pandemia de Covid-19, o conflito entre ciência e setores religiosos se intensificou, especialmente no Brasil. Líderes religiosos influentes chegaram a desestimular o uso de vacinas, a recomendar tratamentos sem eficácia comprovada e a desacreditar instituições científicas. O Centro de Pesquisa em Direito e Religião da Universidade Federal de Uberlândia aponta que essa resistência não é apenas ideológica, mas tem raízes em uma tradição histórica de desconfiança da racionalidade científica quando esta confronta interpretações religiosas conservadoras. A rejeição à ciência, nesse contexto, funciona como reafirmação identitária e estratégia de mobilização política.
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EXPRESSÕES ARTÍSTICAS COMO ALVO
Nos últimos anos, peças teatrais, filmes, exposições e performances foram censuradas ou alvos de protestos liderados por movimentos religiosos. A exposição “Queermuseu”, cancelada em 2017 após pressão de grupos cristãos conservadores, é um exemplo emblemático. O sociólogo Ronaldo de Almeida (Unicamp) aponta que a censura artística ressurge como uma forma de “restabelecer um imaginário cristão uniforme, onde a arte que questiona dogmas ou visões morais é lida como afronta direta à fé”. Para ele, há uma “recriação de fronteiras sagradas” que busca controlar o simbólico e o sensível no espaço público.
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ESCOLA COMO TERRITÓRIO DE DISPUTA
O projeto "Escola Sem Partido", defendido por políticos ligados a lideranças religiosas, propõe restringir professores de expressarem opiniões sobre gênero, sexualidade, política e religião em sala de aula. A proposta, embora apresentada como neutralidade, foi criticada por organizações educacionais e de direitos humanos por violar a liberdade de cátedra e promover autocensura. Segundo pesquisa do Instituto de Estudos da Religião (ISER), 72% dos professores entrevistados em escolas públicas afirmaram sentir-se vigiados por pais e gestores escolares em relação ao conteúdo lecionado, especialmente em temas que confrontam discursos religiosos hegemônicos.
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ESTRUTURAS SIMBÓLICAS DE CONTROLE
A socióloga Renata Menezes (UFRJ) destaca que a religiosidade institucionalizada, ao se sentir ameaçada pela pluralidade, “reativa estruturas simbólicas de controle, ainda que não mais associadas a instrumentos físicos de repressão”. Isso se manifesta em pressões sobre membros dissidentes, rompimentos de vínculos comunitários, exclusões informais e campanhas de difamação. Tais práticas são identificadas como formas modernas de inquisição simbólica, segundo Menezes, que alerta para o impacto psicológico e social desses mecanismos, especialmente em contextos onde as instituições religiosas exercem forte influência nas comunidades.
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FUNDAMENTALISMO E PODER
Pesquisadores como Leonardo Boff e Marcio Goldman têm apontado que o fundamentalismo contemporâneo — fenômeno global — opera como resistência à modernidade pluralista. Em seu lugar, propõe uma uniformização religiosa, política e moral que centraliza o poder em figuras carismáticas e estruturas hierárquicas rígidas. Goldman, em estudos etnográficos, observa que a adesão a tais projetos se dá muitas vezes por medo da dissolução de identidades em um mundo plural. O retorno simbólico à inquisição, nesse sentido, representa uma resposta a esse medo, em nome da ordem, da verdade e da autoridade religiosa.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Henry Kamen, A Inquisição Espanhola (1997)
Leonardo Boff, Fundamentalismo e Ética Global (2009)
Christina Vital, Religião e Política: Medos Sociais, Extremismo Religioso e as Eleições 2018 (2021)
3. O PROTESTANTISMO E SUA CONTRADIÇÃO HISTÓRICA
Durante a Reforma, os protestantes condenaram a Inquisição católica com veemência, denunciando a intolerância da Igreja de Roma e propondo uma leitura mais direta e pessoal das Escrituras. No entanto, com o tempo, muitos setores do protestantismo passaram a reproduzir os mesmos mecanismos de controle ideológico e moral. A historiadora Elaine Pagels, da Universidade de Princeton, mostra em suas obras que, após conquistarem poder político, certos grupos protestantes perseguiram heresias, censuraram ideias e impuseram padrões morais rígidos. No Brasil, líderes evangélicos com forte influência política promovem agendas que lembram tribunais da fé — como no caso da tentativa de criminalização de artistas que representam símbolos religiosos fora do padrão tradicional.
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REFORMADORES SOB O PESO DO PODER
Apesar do discurso inicial de liberdade espiritual, líderes protestantes históricos impuseram normas estritas sobre suas comunidades. Calvino, em Genebra, criou um regime teocrático com tribunais que puniam blasfêmia, adultério, danças e vestimentas consideradas indevidas. A execução de Miguel Servet, em 1553, por negação da Trindade, ilustra essa contradição. O historiador Diarmaid MacCulloch afirma que “o protestantismo, quando institucionalizado, nem sempre se mostrou mais tolerante que a Igreja que criticava”. A estrutura de poder se rearticulou em nome da ortodoxia reformada, com punições exemplares e repressão à dissidência teológica.
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PROTESTANTISMO E CENSURA CULTURAL
No Brasil contemporâneo, o crescimento do poder político de lideranças evangélicas tem sido acompanhado por episódios de censura cultural. Em 2020, parlamentares ligados à chamada “bancada evangélica” criticaram e tentaram proibir exposições de arte com temas religiosos interpretados de forma não literal ou considerados ofensivos à fé cristã. O Instituto de Estudos da Religião (ISER) registrou um aumento de projetos legislativos com base em “ofensa religiosa”, muitos deles voltados contra artistas e educadores. Para o cientista político Juliano Spyer, esses projetos refletem “uma tentativa de legislar a moralidade a partir de uma leitura única da Bíblia”.
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A LUTA CONTRA AS HERESIAS MODERNAS
Grupos protestantes conservadores têm se mobilizado contra o que consideram “heresias modernas”: teorias de gênero, pluralismo religioso e liberdade artística. Organizações como a Frente Parlamentar Evangélica atuam para barrar pautas progressistas, em nome da defesa da “família tradicional”. Segundo o antropólogo Eduardo Dullo (USP), “há uma reprodução simbólica de tribunais da fé, onde o debate é substituído por julgamentos morais e excomunhões públicas de figuras vistas como desviantes”. Essas práticas têm levado a processos formais e informais de ostracismo de fiéis e lideranças dissidentes dentro das próprias igrejas.
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O CASO DAS ESCULTURAS E O JULGAMENTO PÚBLICO
Em 2023, a instalação artística “Maria Mãe Trans”, apresentada em uma exposição independente em São Paulo, gerou protestos e ameaças por parte de grupos evangélicos organizados. A artista, alvo de inquérito no Congresso por “crime contra o sentimento religioso”, teve apoio de setores do campo artístico e acadêmico, que denunciaram a tentativa de censura. A situação foi comparada por juristas ao uso de leis de blasfêmia em países teocráticos. O advogado Marcelo Andrade, especialista em direito constitucional, observou que “a liberdade de expressão artística está sendo colocada em xeque por um discurso religioso moralizante e autoritário”.
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LIDERANÇAS E A CONSTRUÇÃO DO INIMIGO INTERNO
A retórica de certos pastores midiáticos, que afirmam estar em “batalha espiritual” contra inimigos infiltrados na cultura, na política e na educação, tem gerado um ambiente de polarização e medo. Segundo a professora Magali Cunha (Intercom), “o protestantismo conservador construiu figuras de inimigos simbólicos — como artistas, professores e ativistas — que ocupam hoje o papel que as bruxas ou hereges ocupavam nos tempos medievais”. Esse processo é sustentado por redes sociais, púlpitos e programas televisivos que mobilizam fiéis em torno de campanhas de boicote, denúncias e orações contra supostos “agentes do mal”.
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A HERANÇA DA REFORMA EM DISPUTA
Estudiosos apontam que há múltiplos protestantismos em disputa no Brasil: um progressista, que busca coerência com os ideais libertários da Reforma, e outro conservador, que reproduz mecanismos históricos de controle e exclusão. O teólogo Ronilso Pacheco defende que “o verdadeiro legado da Reforma é a autonomia da consciência, não a imposição de dogmas”. No entanto, esse debate permanece marginalizado em muitos espaços eclesiásticos. A contradição entre a origem crítica do protestantismo e suas práticas autoritárias atuais evidencia uma tensão histórica ainda não resolvida entre fé e poder.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Elaine Pagels, Origens do Cristianismo e as Heresias Antigas (2003)
Diarmaid MacCulloch, História do Cristianismo (2010)
Ronilso Pacheco, Ocupar, Resistir, Subverter (2016)
4. QUANDO A LEI FREIA O FANATISMO
O Estado laico, construído com base em princípios iluministas e democráticos, tem sido um dos maiores impedimentos para a repetição literal dos horrores inquisitoriais. No entanto, há uma luta constante por parte de certos grupos religiosos para enfraquecer a separação entre Igreja e Estado. Em 2020, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal precisou intervir contra decretos municipais que permitiam cultos presenciais em plena pandemia, em nome da vida e da ciência. O teólogo Leonardo Boff alerta: “se o cristianismo não for contido por uma ética dos direitos humanos, ele corre o risco de voltar a ser instrumento de opressão”.
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O ESTADO LAICO COMO GARANTIA DEMOCRÁTICA
A consolidação do Estado laico no Brasil remonta à Constituição de 1891, que rompeu com o modelo do Império, onde Igreja e Estado estavam formalmente unidos. Inspirado pelos ideais iluministas e pela laicidade francesa, o novo ordenamento jurídico estabeleceu a separação entre as esferas religiosa e civil como base da convivência democrática. Esse princípio foi reafirmado na Constituição de 1988, que garante liberdade religiosa e impede a imposição de valores religiosos nas leis e políticas públicas. Para a jurista Debora Diniz, a laicidade “é a fronteira que protege tanto o direito à fé quanto o direito de não ter fé”.
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O CONFLITO PANDÊMICO DE 2020
Durante a pandemia da Covid-19, o princípio da laicidade foi testado em várias frentes. Um dos momentos mais tensos ocorreu em 2020, quando lideranças religiosas pressionaram prefeitos e governadores a manter igrejas abertas, mesmo com o agravamento da crise sanitária. O Supremo Tribunal Federal (STF) interveio em decisões como a do município de Belo Horizonte, proibindo cultos presenciais em nome da proteção da saúde pública. O então ministro Gilmar Mendes argumentou que “a ciência deve prevalecer sobre convicções particulares, por mais respeitáveis que sejam”. A decisão gerou reações de líderes evangélicos, que acusaram o STF de perseguição religiosa.
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O AVANÇO DO FUNDAMENTALISMO NA POLÍTICA
Nos últimos anos, a presença de representantes religiosos nas casas legislativas aumentou substancialmente. A Frente Parlamentar Evangélica, formada por cerca de 200 deputados federais, tem apresentado projetos de lei que, segundo analistas, tensionam o princípio da laicidade. Um levantamento do Instituto de Estudos da Religião (ISER) mostra que muitos desses projetos têm motivação moral ou doutrinária, como a tentativa de incluir ensino religioso confessional nas escolas públicas. A pesquisadora Cecília Mariz, da UERJ, aponta que “o discurso religioso, quando se transforma em norma legal, pode ameaçar direitos de minorias e a neutralidade do Estado”.
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BOFF E A ÉTICA DOS DIREITOS HUMANOS
O teólogo Leonardo Boff, um dos expoentes da Teologia da Libertação, tem alertado para os riscos do uso político da religião. Em entrevistas e livros, Boff defende que o cristianismo deve ser permanentemente confrontado com os princípios dos direitos humanos. Segundo ele, “o fanatismo religioso se alimenta da certeza absoluta e do desejo de controle”. Em contextos de crise, como pandemias ou polarização política, cresce a tentação de buscar respostas unificadoras, e a religião pode ser mobilizada para justificar autoritarismos. Para Boff, o equilíbrio está em uma “espiritualidade aberta ao diálogo e ao cuidado com a vida”.
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A REAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL
Diversas entidades da sociedade civil têm se mobilizado para reafirmar os limites entre religião e poder público. A Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) tem promovido campanhas e publicações que defendem a laicidade como cláusula pétrea da Constituição. Em 2021, a organização entrou com ações judiciais contra decretos estaduais que priorizavam instituições religiosas no acesso a verbas públicas e isenções fiscais. Segundo a advogada Patrícia Oliveira, da ABJD, “a neutralidade do Estado é essencial para que nenhum grupo imponha sua visão do mundo como se fosse lei universal”.
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O USO POLÍTICO DAS IGREJAS
A instrumentalização das igrejas para fins eleitorais também tem sido tema de debate. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tem recebido denúncias de uso indevido de templos e cultos religiosos para propaganda de candidatos. A legislação eleitoral brasileira proíbe esse tipo de prática, mas sua fiscalização tem sido ineficaz, segundo especialistas. O cientista político Pablo Ortellado observa que “a religião se tornou uma plataforma de mobilização política poderosa, mas que, sem os freios constitucionais, pode se transformar em veículo de intolerância e exclusão”. Ortellado defende maior fiscalização e responsabilização dos abusos de poder religioso nas campanhas.
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A TENSÃO PERMANENTE ENTRE FÉ E DIREITO
A laicidade não significa hostilidade à religião, mas sim a garantia de que nenhuma crença dominará o espaço público. Essa tensão entre fé e direito, presente desde a formação do Estado moderno, permanece viva em sociedades democráticas. No Brasil, a convivência entre múltiplas religiões — e com a não religiosidade — depende da manutenção clara dessa separação. A filósofa Marilena Chauí ressalta que “um Estado laico é a única forma de garantir que a liberdade religiosa não se transforme em imposição religiosa”. Essa vigilância constante é essencial para impedir que o fanatismo, ainda que sem fogueiras, volte a ameaçar a pluralidade e os direitos civis.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Leonardo Boff, Cristianismo: O Mínimo do Mínimo (2008)
Debora Diniz, Zika: Do Sertão Nordestino à Ameaça Global (2016)
Marilena Chauí, Convite à Filosofia (2000)
5. BÍBLIA COMO ESCUDO E ARMA
Muitos que promovem essa nova forma de “inquisição” justificam suas ações com base na defesa da Bíblia. Porém, esse uso da Bíblia como escudo para práticas antidemocráticas ignora o contexto histórico e literário dos textos. A pesquisadora Karen Armstrong, em A Bíblia: Uma Biografia, demonstra como os textos bíblicos foram usados historicamente para justificar tanto a paz quanto a guerra, tanto a compaixão quanto a violência. O problema, portanto, não é a Bíblia em si, mas a forma como é lida e usada. No Brasil contemporâneo, a apropriação bíblica por figuras públicas alimenta o preconceito contra minorias, sugerindo que a “fé verdadeira” tem o direito de se sobrepor às liberdades individuais.
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INTERPRETAÇÕES EM DISPUTA
Ao longo da história, a Bíblia foi utilizada tanto para justificar atos de amor e justiça quanto para legitimar guerras, escravidão e intolerância. A leitura literalista, que desconsidera o contexto histórico, cultural e linguístico dos textos, tem sido alvo de críticas por parte de teólogos e historiadores. A pesquisadora Karen Armstrong, em sua obra A Bíblia: Uma Biografia, explica que “os textos bíblicos foram escritos em contextos muito diferentes do nosso, e cada geração os interpretou à sua maneira”. Na Idade Média, por exemplo, a Bíblia foi usada para legitimar cruzadas e perseguições, mas também inspirou movimentos de reforma e solidariedade.
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A LEITURA COMO ARMA POLÍTICA
Nos tempos atuais, certos líderes políticos e religiosos brasileiros recorrem à Bíblia para sustentar agendas conservadoras, especialmente em temas ligados a costumes, sexualidade e direitos das minorias. Essa instrumentalização dos textos sagrados é criticada por estudiosos como o biblista Carlos Mesters, que defende a leitura comunitária e libertadora das Escrituras. Para ele, “a Bíblia foi escrita para gerar vida, e não opressão”. Mesters aponta que a seletividade na escolha dos trechos usados em discursos públicos revela mais sobre os interesses políticos do que sobre a fé cristã.
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APROPRIAÇÃO MIDIÁTICA DA FÉ
A presença da Bíblia em campanhas políticas, discursos públicos e até em peças de marketing institucional revela seu uso como símbolo de autoridade moral. Um levantamento do Instituto de Estudos da Religião (ISER) mostrou que, entre 2018 e 2022, cresceu o número de parlamentares que citam trechos bíblicos em sessões legislativas. Em muitos casos, essas citações não são acompanhadas de qualquer contextualização. A antropóloga Juliana Farias, da UFRJ, alerta que “a Bíblia está sendo transformada em um totem, usado para legitimar discursos que vão contra os princípios constitucionais de igualdade e liberdade”.
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VIOLAÇÕES DOS DIREITOS DAS MINORIAS
Essa apropriação religiosa tem impactado negativamente os direitos de grupos historicamente marginalizados. Projetos de lei que restringem a abordagem de gênero nas escolas ou tentam proibir manifestações artísticas que envolvam símbolos religiosos são frequentemente justificados com base em “valores cristãos”. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos já alertou o Brasil sobre retrocessos legislativos motivados por argumentos religiosos. Em parecer de 2021, a entidade recomendou que os Estados-membros da OEA assegurem que a liberdade religiosa não seja utilizada como pretexto para discriminar populações vulneráveis.
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HERMENÊUTICA E RESPONSABILIDADE
Especialistas em teologia bíblica têm insistido na necessidade de desenvolver uma hermenêutica responsável, que leve em conta os gêneros literários e o contexto sociopolítico das passagens. A teóloga Ivone Gebara defende uma leitura crítica e ética da Bíblia. Segundo ela, “o problema não está no texto, mas nas lentes de quem o lê”. Para Gebara, a literalidade tem servido como escudo para resistências à modernidade e à pluralidade de direitos. A leitura fundamentalista, ao isolar versículos do todo bíblico, favorece interpretações que reforçam desigualdades e exclusões.
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BÍBLIA COMO PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE
A UNESCO reconheceu, em diferentes ocasiões, a Bíblia como patrimônio cultural da humanidade, por sua influência na literatura, nas artes e na filosofia. No entanto, isso não significa que sua interpretação deva ser monopolizada por instituições religiosas ou figuras públicas. A pluralidade de leituras faz parte da riqueza desse texto milenar. Universidades e centros de pesquisa ao redor do mundo estudam a Bíblia como documento histórico e literário, o que contrasta com o uso dogmático e político que ela recebe em certos círculos contemporâneos. Segundo o historiador João Marcos Lopes, “a Bíblia pode ser instrumento de diálogo ou de confronto, a depender de como é usada”.
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UMA TENSÃO PERMANENTE NO ESPAÇO PÚBLICO
No Brasil contemporâneo, a fronteira entre fé e política se tornou palco de disputa ideológica. A presença constante da Bíblia em debates públicos não é em si um problema, mas torna-se crítica quando serve para violar direitos fundamentais ou justificar políticas discriminatórias. A liberdade de crença, garantida pela Constituição, inclui também a liberdade de não crer — e o Estado deve assegurar esse equilíbrio. A defesa da laicidade, nesse cenário, aparece como uma salvaguarda contra a imposição de visões religiosas particulares como norma coletiva.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Karen Armstrong, A Bíblia: Uma Biografia (2008)
Ivone Gebara, Rompendo o Silêncio: Uma Fenomenologia Feminista do Mal (2000)
Carlos Mesters, Por Trás das Palavras: Um Estudo Sobre a Leitura Popular da Bíblia (2002)
6. A NOVA INQUISIÇÃO DIGITAL
Diferentemente da Idade Média, a atual perseguição aos que pensam diferente acontece sobretudo nas redes sociais e nos púlpitos digitalizados. Influenciadores religiosos com milhões de seguidores expõem pessoas, ridicularizam práticas de outras religiões e propõem boicotes a empresas e obras culturais consideradas “pecaminosas”. O pesquisador André Lemos, da UFBA, chama isso de “panóptico digital da fé”: um sistema de vigilância e punição moral em tempo real, onde a comunidade religiosa atua como juíza e algoz. Esse ambiente produz medo, culpa e exclusão — exatamente os mesmos efeitos pretendidos pelos inquisidores da Igreja no passado.
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RELIGIÃO E TECNOLOGIA DE CONTROLE
A propagação de discursos religiosos nas redes sociais assumiu uma nova configuração no século XXI. O pesquisador André Lemos, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), propôs o conceito de “panóptico digital da fé” para descrever como lideranças religiosas e seus seguidores vigiam comportamentos, opiniões e escolhas de indivíduos em tempo real. Inspirado no conceito de Jeremy Bentham e na releitura de Michel Foucault, esse panóptico não exige mais muros ou prisões: ele atua por meio da hiperexposição nas plataformas digitais, onde qualquer desvio da norma moral imposta pode ser punido por linchamentos virtuais ou exclusão comunitária.
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A VIGILÂNCIA COMO INSTRUMENTO DE PODER
O fenômeno da moral religiosa digital se manifesta em diferentes formas: de denúncias públicas a campanhas de boicote a produtos culturais e comerciais. Influenciadores com milhões de seguidores denunciam artistas, obras e posicionamentos considerados “anticristãos”, promovendo hashtags e movimentações coordenadas. Um levantamento feito pela pesquisadora Magali Cunha, do Coletivo Bereia, mostra como perfis religiosos no Brasil atuam de forma semelhante a tribunais morais, interferindo inclusive em campanhas eleitorais e decisões de consumo. Essa vigilância coletiva transforma o espaço público digital em território de controle doutrinário.
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HERANÇAS DA INQUISIÇÃO
Apesar do contexto digital, muitos dos mecanismos de exclusão atuais lembram estratégias empregadas pela Inquisição da Igreja Católica na Idade Média. A exposição pública do “herege”, a denúncia por condutas desviantes e a exigência de confissão e arrependimento continuam presentes, agora adaptadas às plataformas sociais. Segundo o historiador Carlos Zeron, da Unicamp, “a Inquisição não acabou: ela apenas se transformou”. Na Idade Média, a fogueira era o destino dos que contrariavam o dogma. Hoje, o cancelamento e a destruição da reputação digital cumprem esse papel simbólico.
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FÉ, LUCRO E ENGAJAMENTO
Essa nova cruzada digital é potencializada pela lógica algorítmica das redes sociais, que premia o engajamento. Conteúdos polêmicos e moralizantes, mesmo que excludentes, alcançam maior visibilidade e geram receitas publicitárias para seus produtores. Estudos conduzidos pelo NetLab, da UFRJ, apontam que páginas religiosas figuram entre as que mais movimentam interações no Facebook brasileiro. A pesquisadora Marie Santini observa que “há um ciclo vicioso entre indignação moral, viralização e monetização”. Assim, a fé se transforma em espetáculo, e o julgamento em show público com audiência massiva.
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IMPACTOS PSICOSSOCIAIS
As vítimas desse novo moralismo digital frequentemente relatam sintomas de ansiedade, depressão e isolamento. Denúncias públicas feitas por pastores e líderes digitais podem levar ao rompimento de laços familiares, perda de empregos e afastamento de comunidades religiosas. O psicólogo Danilo Siqueira, especialista em saúde mental e religião, afirma que “o pânico moral instaurado por certos discursos religiosos online gera culpa paralisante e medo de punição”. As consequências subjetivas dessa nova forma de perseguição se assemelham, em muitos aspectos, ao terror psicológico promovido pelos tribunais inquisitoriais históricos.
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FUNDAMENTALISMO EM REDE
O fundamentalismo religioso encontra nas redes sociais um ambiente fértil para crescer, em especial entre os mais jovens. Vídeos curtos, mensagens impactantes e promessas de salvação em meio ao caos produzem identificação e adesão rápida. A pesquisadora Lívia Reis, da PUC-Rio, destaca que “a estética da internet favorece discursos absolutos e punitivos, especialmente quando travestidos de autoridade espiritual”. A ausência de mediação institucional permite que qualquer indivíduo se coloque como intérprete legítimo da vontade divina, favorecendo discursos sectários e intolerantes.
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RESPOSTAS E RESISTÊNCIAS
Apesar do crescimento dessa nova inquisição digital, há movimentos organizados que propõem uma religiosidade mais inclusiva e dialógica nas redes. Pastoras, padres, rabinos e representantes de religiões afro-brasileiras têm ocupado o espaço digital com leituras críticas e respeitosas da fé. Iniciativas como o projeto Reconstruindo a Fé, o canal Fé no Clima e o perfil Evangélicos pelo Estado de Direito têm promovido debates sobre justiça social, pluralismo e liberdade religiosa. Essas ações mostram que a tecnologia também pode ser usada para fortalecer a democracia e os direitos humanos no campo religioso.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Karen Armstrong, Em Nome de Deus: O Fundamentalismo no Judaísmo, no Cristianismo e no Islã (2001)
André Lemos, Cibercultura: Tecnologia e Vida Social na Cultura Contemporânea (2002)
Magali Cunha, Religião e Política nas Redes: Evangélicos e Fake News nas Eleições de 2018 (2020)
7. UM ALERTA PARA A DEMOCRACIA
O crescimento do cristianismo político e sua tentativa de controlar comportamentos sociais em nome da fé exige atenção das instituições democráticas. Quando a religião se transforma em política de Estado ou em poder normativo acima das leis, os direitos civis correm perigo. Como advertiu o filósofo Michel Foucault, “onde há poder, há resistência” — e é preciso fortalecer os espaços de resistência para que a fé, seja ela qual for, não se transforme novamente em instrumento de opressão. O risco não está em acreditar em Deus, mas em acreditar que apenas uma forma de fé pode conduzir a sociedade, silenciando todas as outras. E nisso, a história mostra: o preço da liberdade é a vigilância eterna.
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CRISTIANISMO POLÍTICO EM ASCENSÃO
O avanço do cristianismo político no Brasil e em outras democracias tem sido objeto de análise de pesquisadores das ciências sociais e do direito. Em sua obra sobre governamentalidade, Michel Foucault aponta como o poder moderno se exerce por meio de normas internalizadas e discursos hegemônicos. No campo religioso, esse poder se manifesta na tentativa de impor valores morais a toda a sociedade, sob a justificativa de proteger os “princípios cristãos”. A conversão da fé em política de Estado desafia o princípio da laicidade e compromete a diversidade democrática.
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HISTÓRICO DE CONFLITOS ENTRE FÉ E ESTADO
A história da humanidade apresenta inúmeros exemplos de embates entre liberdade civil e imposição religiosa. Durante a Reforma Protestante, no século XVI, tanto católicos quanto reformadores usaram o poder político para impor suas crenças, promovendo guerras e perseguições. No século XX, o regime franquista na Espanha consolidou a Igreja Católica como poder estatal, limitando liberdades individuais e impondo censura. Esses casos demonstram que quando o Estado se alia a uma doutrina religiosa, a pluralidade tende a desaparecer, abrindo espaço para o autoritarismo moral.
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BRASIL: UM ESTADO LAICO SOB PRESSÃO
No Brasil, a Constituição de 1988 estabelece o princípio da laicidade, garantindo que o Estado não adote nenhuma religião oficial. No entanto, discursos políticos com forte conteúdo religioso têm ganhado força no Congresso Nacional. Parlamentares da chamada Bancada Evangélica defendem projetos de lei que refletem princípios teológicos, como a criminalização do aborto, a censura a manifestações culturais e o ensino religioso confessional. A jurista Eloísa Machado, da FGV-SP, aponta que “a atuação desses parlamentares coloca em risco o equilíbrio entre liberdade religiosa e laicidade estatal”.
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O PERIGO DA NORMA ÚNICA
O domínio de uma única moral religiosa sobre a esfera pública restringe os direitos de minorias. Grupos LGBTQIA+, adeptos de religiões de matriz africana, ateus e até cristãos progressistas têm sido alvos de discriminação institucionalizada. A antropóloga Débora Diniz destaca que “a ideia de uma verdade única, legitimada por Deus, transforma divergência em pecado e cidadãos em inimigos”. O pluralismo democrático exige que diferentes formas de viver e crer tenham espaço, e não sejam subordinadas a uma visão teológica dominante.
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RESISTÊNCIA CIVIL ORGANIZADA
Em resposta ao avanço do cristianismo político, diversos movimentos têm emergido para defender a democracia plural. Organizações como o Instituto de Estudos da Religião (ISER) e o coletivo Evangélicas pela Igualdade de Gênero atuam na construção de um discurso religioso comprometido com os direitos humanos. Esses grupos não rejeitam a fé, mas questionam seu uso político autoritário. Em audiência pública no STF, representantes de várias religiões defenderam que a liberdade de crença não pode se converter em liberdade para discriminar.
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A RELIGIÃO NO DISCURSO POPULISTA
O uso da fé como instrumento de mobilização política também é comum em regimes populistas. Pesquisadores da Universidade de Oxford analisaram, em 2022, o discurso de líderes populistas em 12 países, incluindo o Brasil, e identificaram a apropriação de símbolos religiosos como estratégia para construir uma imagem messiânica. Ao se apresentarem como ungidos por Deus, líderes políticos eliminam a distinção entre crítica política e blasfêmia. Essa sobreposição torna o debate democrático inviável e reforça a autoridade pessoal acima das instituições.
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O DESAFIO DA VIGILÂNCIA DEMOCRÁTICA
O alerta de Foucault sobre o poder e a necessidade de resistência encontra eco na atual conjuntura brasileira. Juristas, acadêmicos e movimentos civis têm insistido que a vigilância cidadã é essencial para garantir que o Estado laico se mantenha como protetor das liberdades individuais. A professora Silvia Viana, da USP, afirma que “a democracia não é um dado: é uma conquista cotidiana”. A sociedade civil organizada e a imprensa livre desempenham papel central na denúncia de tentativas de imposição moral em nome da fé.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Michel Foucault, Microfísica do Poder (1979)
Débora Diniz, Zika: Do Sertão Nordestino à Ameaça Global (2016)
Eloísa Machado, Direitos Fundamentais e Liberdade Religiosa (2020)
CONCLUSÃO
O espírito da Inquisição nunca desapareceu — apenas se adaptou. Hoje, ele habita discursos inflamados, plataformas digitais, gabinetes religiosos e decisões judiciais enviesadas. A justificativa de proteger a fé e a Bíblia tem sido usada para impor visões únicas sobre o mundo, restringindo o debate público e as liberdades individuais. Essa apropriação do espaço democrático por interesses religiosos não representa apenas um retrocesso teológico, mas um risco civilizacional.
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A herança da Reforma Protestante, que denunciava a tirania da fé institucionalizada, agora parece esquecida por muitos de seus herdeiros. O poder religioso, quando deixa de se submeter ao limite ético da convivência democrática, transforma-se em instrumento de perseguição. A censura a artistas, a criminalização de comportamentos e o controle sobre os corpos e as mentes são formas atuais de uma ortodoxia que se recusa a dialogar com a diversidade. Em vez de libertar, como proclamava Lutero, muitos líderes preferem o julgo autoritário de uma fé sem compaixão.
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O desafio contemporâneo está em garantir que o espaço da fé seja vivenciado com liberdade, mas sem se sobrepor ao bem comum e à razão pública. A democracia não pode se curvar ao dogmatismo — ela existe para proteger justamente os diferentes, os dissidentes, os frágeis. Só assim evitaremos que se repita, sob novos nomes e novas armas, o que tanto custou para a humanidade superar: a inquisição dos corpos, das consciências e dos sonhos.
BIBLIOGRAFIA
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A Bíblia: Uma Biografia – Karen Armstrong, 2007
Obra que traça a história do livro mais influente do Ocidente, mostrando como ele foi usado ao longo dos séculos para justificar tanto práticas humanitárias quanto políticas de opressão. Armstrong alerta para os riscos das leituras literais e manipuladas do texto sagrado.
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O Cristianismo e a Violência – Gilbert Durand, 1993
Durand explora a relação entre símbolos religiosos, arquétipos culturais e comportamentos violentos, revelando como a estrutura simbólica do cristianismo ocidental pode servir à repressão e à guerra.
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História da Inquisição – Henry Kamen, 1997
Um dos maiores estudiosos da Inquisição Espanhola, Kamen analisa os aspectos políticos, sociais e religiosos que motivaram e sustentaram esse sistema de repressão durante séculos.
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Cristianismo e Totalitarismo, J.B. Metz, 1992
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A Cruz e a Espada: Religião e Política no Brasil, Maria das Dores Campos Machado, 2014
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Do Céu ao Cárcere: Religião e Prisões no Brasil, Juliana Farias, 2020
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Deus no Congresso: Religião e Política no Brasil Contemporâneo, Magali Cunha, 2021
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O Império da Fé: Como as Religiões Conquistaram o Mundo, Tom Holland, 2019
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O Poder da Fé: Como a Religião Molda as Nações, Reza Aslan, 2016
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Entre a Cruz e a Constituição: Religião e Democracia no Brasil, Silas Guerriero, 2018
TEIXEIRA DE FREITAS ESCONDE TESOUROS QUE PODEM GERAR TURISMO, RENDA E AUTOESTIMA: VALORIZAR O FOLCLORE É INVESTIR NO FUTURO
Adriana Carranca – Folclore, identidade e turismo: as narrativas que sustentam comunidades – 2011 – Publicada no jornal O Estado de S. Paulo
José Hamilton Ribeiro – A alma do Brasil está nos causos do povo – 2006 – Reportagem na revista Globo Rural
Eliane Brum – O Brasil que se conta por dentro: mitos populares, sobrevivência e pertencimento – 2015 – Publicada na revista Época
Durante quase trinta anos atuando como pastor em Teixeira de Freitas, um município jovem, mas profundamente enraizado na oralidade popular, o autor da obra Folclore da Minha Cidade dedicou-se a colher com paciência e sensibilidade os relatos mais emblemáticos do imaginário local. Transformou histórias sussurradas em bancos de praças e cozinhas em crônicas literárias que resgatam não apenas personagens folclóricos, mas uma alma coletiva. Esta reportagem explora como esse gesto de escuta se tornou também um manifesto cultural e uma proposta concreta de desenvolvimento. O folclore, tradicionalmente visto como curiosidade ou superstição, pode e deve ser reconhecido como força econômica legítima. Eventos folclóricos bem estruturados movimentam o turismo, geram empregos, fortalecem a autoestima de comunidades e colocam cidades no mapa nacional e internacional. Mais do que um gesto de preservação, valorizar o folclore é criar pontes entre passado e futuro. Esta é uma reportagem que mostra como as crendices de um povo podem, quando cultivadas com respeito e planejamento, transformar-se em instrumentos poderosos de transformação social, educacional e econômica.
CONTEÚDOS
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Raízes de uma voz coletiva
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O folclore como expressão viva da identidade
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Economia do encantamento
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O papel das políticas públicas e do povo
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Folclore, educação e turismo de base comunitária
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Do encantamento à ação
1) RAÍZES DE UMA VOZ COLETIVA
Cheguei a Teixeira de Freitas nos anos 1990, ainda jovem pastor em uma cidade recém-emancipada, e me deparei com um povoado vibrante em memória e imaginação. Entre visitas pastorais, conselhos e rodas de conversa, fui colhendo histórias que iam muito além do cotidiano: eram lendas, assombrações, milagres e personagens que habitavam as noites, os becos, os rádios e as cozinhas da cidade. Ao longo de quase três décadas, anotei cada relato com a reverência de quem percebe o valor imensurável dessas vozes. O resultado foi o livro Folclore da Minha Cidade, que registra não apenas causos, mas um modo de viver, sentir e lembrar – uma alma coletiva que molda a identidade local.
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CIDADE, MEMÓRIA E IDENTIDADE
Teixeira de Freitas, no extremo sul da Bahia, foi emancipada politicamente em 1985, quando ainda era um centro urbano em crescimento, resultado de ciclos migratórios, sobretudo a partir das décadas de 1960 e 1970, com a abertura da BR-101 e o avanço da fronteira agrícola no sul da Bahia. Ao longo dos anos 1990, o município consolidava uma identidade própria, sustentada não apenas em sua função econômica, mas em uma cultura popular viva e profundamente marcada pelas narrativas orais. Como aponta o antropólogo José Carlos Sebe Bom Meihy, a oralidade é um dos pilares fundamentais da construção da memória coletiva, especialmente em contextos de urbanização recente.
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FOLCLORE COMO RESISTÊNCIA CULTURAL
O termo folclore, popularizado por William Thoms em 1846, remete a um conjunto de práticas, histórias, saberes e crenças transmitidos de geração em geração, muitas vezes à margem da cultura letrada. Em Teixeira de Freitas, a força dessas expressões se manifesta em relatos de “corpo-seco”, “lobisomem” e “padres milagrosos”, que circulam entre moradores mais antigos e se adaptam à nova paisagem urbana. De acordo com Câmara Cascudo, folclore é também uma forma de resistência simbólica: “é o inconsciente coletivo de um povo, funcionando como proteção contra o desaparecimento cultural” (Cascudo, 1952). Nesse sentido, as narrativas locais funcionam como arquivos vivos da história não oficial.
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A VOZ DO POVO NOS BECOS E NAS COZINHAS
Na pesquisa de campo realizada por um pastor nos anos 1990, e posteriormente publicada no livro Folclore da Minha Cidade, observa-se o papel fundamental das cozinhas, dos becos e dos rádios como espaços de transmissão oral. O historiador Paul Thompson defende, em sua obra sobre história oral, que esses ambientes são mais do que físicos: são plataformas de diálogo, onde o saber popular circula e se renova. Muitas das histórias registradas não se limitam ao entretenimento; elas contêm valores morais, alertas de convivência e formas sutis de interpretar o mundo, especialmente diante das ausências do Estado e das religiões formais.
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INFÂNCIA E FABRICAÇÃO DA IMAGINAÇÃO
A infância teixeirense, sobretudo nas décadas anteriores à digitalização da comunicação, foi marcada pelo encantamento das histórias contadas ao pé do fogão. Segundo a psicóloga e folclorista Nelly Novaes Coelho, o contato com as narrativas orais estimula a formação da imaginação simbólica e reforça vínculos com o território. Em Teixeira de Freitas, o mito e o real frequentemente se entrelaçam em vivências cotidianas, formando um tecido simbólico no qual o medo, o sagrado e o fantástico convivem com a realidade dos bairros periféricos, das igrejas evangélicas e das feiras-livres.
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O LIVRO COMO ARQUIVO DA ALMA COLETIVA
A obra Folclore da Minha Cidade, fruto da escuta atenta de mais de trinta anos, cumpre um papel fundamental de registro e valorização de vozes que, muitas vezes, não encontram espaço nas bibliotecas acadêmicas. Com a sistematização desses relatos, a cidade ganha um espelho simbólico de sua própria trajetória cultural. O sociólogo Maurice Halbwachs, precursor dos estudos sobre memória coletiva, argumenta que a lembrança é sempre compartilhada e que o grupo social a organiza para preservar sua coesão e sua identidade. O livro, portanto, cumpre uma função de memória coletiva viva e acessível.
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ESPECIALISTAS E POLÍTICAS DE PRESERVAÇÃO
Apesar da relevância das manifestações orais para a identidade cultural de Teixeira de Freitas, especialistas alertam para a fragilidade da preservação dessas memórias diante do avanço da urbanização e da padronização cultural midiática. A professora Rita de Cássia Barbosa, da Universidade Federal do Sul da Bahia, em entrevista à Rádio UFSB, destaca que “sem políticas públicas de registro, incentivo e difusão, corremos o risco de perder a riqueza das culturas locais.” Projetos como o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC), do Iphan, poderiam incluir tais relatos, fortalecendo sua presença no debate nacional sobre patrimônio imaterial.
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EDUCAÇÃO, MEMÓRIA E FUTURO
Iniciativas educativas voltadas para o ensino da história local têm se mostrado fundamentais para a valorização do folclore como bem cultural. Experiências em escolas públicas de Teixeira de Freitas, como o projeto “Meu Bairro, Minha História”, vêm incorporando relatos orais ao currículo escolar, com o apoio de educadores, historiadores e artistas locais. A memória, nesse caso, deixa de ser apenas uma lembrança do passado para se tornar uma ferramenta de construção de identidade, pertencimento e cidadania. É o folclore, reinventado na escuta das novas gerações, que garante a continuidade da alma coletiva da cidade.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Maurice Halbwachs – A memória coletiva (1950)
Luís da Câmara Cascudo – Dicionário do folclore brasileiro (1952)
Paul Thompson – A voz do passado: história oral (1978)
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2) O FOLCLORE COMO EXPRESSÃO VIVA DA IDENTIDADE
As histórias que ouvi — como a do Velho Tapuruçu, do Menino do Km 880 ou do Fantasma da Bahia Sul — revelam muito mais que superstição ou curiosidade popular. Elas são expressões da espiritualidade, da resistência e da criatividade de um povo em formação. Em diálogo com pensadores como Câmara Cascudo, que definia o folclore como "a cultura espontânea do povo", percebi que aquelas narrativas revelavam medos, esperanças, críticas sociais e um senso profundo de pertencimento. Em uma cidade nascida da confluência de baianos, mineiros, capixabas e outros tantos migrantes, o folclore tornou-se o elo invisível que une identidades diversas em uma cultura singular.
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ESPIRITUALIDADE E IMAGINAÇÃO POPULAR
Em Teixeira de Freitas, personagens como o Velho Tapuruçu, o Menino do Km 880 e o Fantasma da Bahia Sul circulam entre gerações, revelando não apenas o sobrenatural, mas camadas profundas da espiritualidade popular. Essas histórias não são isoladas nem aleatórias. Segundo a pesquisadora Lúcia Helena Vianna, da Universidade Federal da Bahia, “o sobrenatural nas narrativas folclóricas é uma forma de expressão simbólica dos conflitos sociais e das inquietações humanas diante da morte, da desigualdade e do abandono institucional”. A religiosidade informal e o misticismo cotidiano servem, assim, como estruturas para interpretar a realidade à margem das tradições religiosas formais.
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MIGRAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL
Teixeira de Freitas foi constituída por ondas migratórias, especialmente nas décadas de 1970 e 1980, com a chegada de baianos do sertão, mineiros e capixabas em busca de terras, trabalho e oportunidades. Essa confluência de culturas contribuiu para o surgimento de um folclore híbrido, onde os mitos e causos refletem traços das origens dos migrantes, mas também elementos novos, criados no processo de adaptação ao território. A socióloga Ecléa Bosi ressalta que “a memória é também um laboratório de invenção social”, e, nesse sentido, o folclore local funciona como dispositivo de integração simbólica entre grupos diversos.
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FOLCLORE COMO CRÍTICA SOCIAL
Muitos dos relatos orais recolhidos ao longo dos anos revelam críticas implícitas à realidade social. O Fantasma da Bahia Sul, por exemplo, é associado por moradores a episódios de violência urbana, corrupção e impunidade. O Velho Tapuruçu, com sua figura sombria que aparece nos descampados, é visto por alguns como uma metáfora da presença ausente do Estado em regiões periféricas. De acordo com Michel de Certeau, o saber popular utiliza “artes do fazer” para narrar o mundo, e o folclore seria uma dessas práticas: narrar de forma disfarçada os problemas concretos da existência.
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A CRIANÇA COMO GUARDIÃ DA MEMÓRIA
As crianças desempenham papel crucial na preservação das narrativas folclóricas, pois são ao mesmo tempo ouvintes e recontadoras. Nas escolas públicas de Teixeira de Freitas, professores de história e literatura vêm incorporando essas histórias nos projetos pedagógicos, com o objetivo de valorizar a cultura local. A educadora Eliane Ramos, da Universidade Estadual de Santa Cruz, afirma que “a escuta e o recontar de histórias são práticas que desenvolvem empatia, pertencimento e consciência histórica”. A infância, nesse contexto, torna-se agente de continuidade da memória coletiva.
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A VOZ COLETIVA COMO PATRIMÔNIO
O conceito de “voz coletiva” se refere à soma das memórias, vivências e imaginários de uma comunidade. Em um território marcado pela juventude institucional e pela fluidez cultural, como Teixeira de Freitas, a oralidade folclórica funciona como uma âncora de pertencimento. O antropólogo Néstor García Canclini defende que “o patrimônio cultural não está apenas nas coisas, mas nas práticas, nas narrativas e nas formas de relação com o tempo”. Assim, os causos ouvidos em becos, cozinhas e bancos de praça devem ser reconhecidos como parte legítima do patrimônio cultural imaterial do município.
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REGISTRO E PRESERVAÇÃO DAS NARRATIVAS
Projetos de registro das histórias populares vêm ganhando força na cidade, como o livro Folclore da Minha Cidade, resultado de mais de trinta anos de coleta oral. Essa prática de documentação segue a linha dos estudos desenvolvidos por Paulo Freire, que via na escuta ativa e no respeito à fala do outro um exercício de reconstrução da memória popular. A ausência de políticas públicas específicas para preservação de tradições orais, no entanto, ainda é um desafio. O Iphan reconhece a importância do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC), mas sua aplicação depende de iniciativas locais organizadas e apoio institucional contínuo.
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A CULTURA COMO ESTRATÉGIA DE INTEGRAÇÃO
O folclore tem desempenhado papel relevante na construção de uma identidade cultural própria em Teixeira de Freitas, sobretudo diante da diversidade de seus habitantes. Mais do que entretenimento, ele se configura como um mecanismo de mediação simbólica, espiritual e social. A integração entre diferentes matrizes culturais — indígenas, sertanejas, mineiras e capixabas — passa pelo compartilhamento de histórias que, ao serem contadas e escutadas, ajudam a construir um “nós” coletivo. Como observa o historiador Jacques Le Goff, “a memória é, antes de tudo, uma reconstrução social do passado feita no presente para projetar um futuro”.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Cascudo, Luís da Câmara – Dicionário do folclore brasileiro (1952)
Le Goff, Jacques – História e memória (1988)
Certeau, Michel de – A invenção do cotidiano (1980)
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3) ECONOMIA DO ENCANTAMENTO
Durante o processo de escrita do livro, percebi algo que ultrapassava o valor cultural: o potencial econômico latente dessas histórias. Quando bem trabalhado, o folclore pode se tornar uma fonte legítima de desenvolvimento, especialmente para cidades como Teixeira de Freitas. Eventos temáticos, festivais de narrativas orais, roteiros turísticos baseados em lendas locais e roteiros escolares podem movimentar a economia criativa, gerar renda e atrair visitantes. Exemplo disso é o impacto do Festival de Parintins, no Amazonas, que movimenta mais de R$ 100 milhões por edição (Carvalho, 2018). O que lá é o boi-bumbá, aqui pode ser Sinhá Emancipa ou o Samurai do Mamão.
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POTENCIAL CULTURAL E ECONÔMICO
A cidade de Teixeira de Freitas, no extremo sul da Bahia, abriga um vasto repertório de lendas, personagens e narrativas populares que, além de compor sua identidade simbólica, representam um ativo econômico ainda pouco explorado. De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), a economia criativa corresponde a cerca de 3% do PIB global e emprega mais de 30 milhões de pessoas no mundo. O folclore, inserido nesse setor, se torna uma estratégia de desenvolvimento sustentável para regiões que desejam articular cultura e geração de renda, conforme destaca o Relatório da Economia Criativa da Unctad (2013).
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EXEMPLOS NACIONAIS DE SUCESSO
O Festival Folclórico de Parintins, no Amazonas, é um dos exemplos mais emblemáticos da transformação de narrativas culturais em força econômica. Movimentando mais de R$ 100 milhões a cada edição, o evento atrai turistas nacionais e internacionais, estimula a cadeia produtiva local e fortalece a autoestima coletiva. O economista e pesquisador Carlos Carvalho (2018) analisa que “o boi-bumbá deixou de ser um simples espetáculo para se tornar o eixo de uma economia cultural que integra artistas, comerciantes, costureiras, guias turísticos e produtores audiovisuais”. Esse modelo serve como inspiração para outras regiões com forte tradição oral, como Teixeira de Freitas.
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A IDENTIDADE COMO ATRATIVO TURÍSTICO
As figuras do Velho Tapuruçu, da Sinhá Emancipa ou do Samurai do Mamão podem compor roteiros turísticos com foco na experiência cultural, incluindo visitas guiadas a bairros históricos, oficinas temáticas, apresentações performáticas e exposições comunitárias. De acordo com o Ministério do Turismo, o segmento de turismo cultural representa 17% da demanda nacional e é um dos que mais cresce no país. Em entrevista ao jornal Valor Econômico, a antropóloga Regina Abreu afirma que “o turista contemporâneo busca não apenas destinos, mas experiências que o conectem com a história e com a alma do lugar”.
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EDUCAÇÃO E ECONOMIA CRIATIVA
A integração entre educação e economia criativa pode ser fortalecida com a inclusão das narrativas locais no currículo escolar, por meio de feiras culturais, concursos de contação de histórias, ilustrações feitas por estudantes e jogos baseados no folclore regional. Além de fomentar o aprendizado significativo, essas atividades podem gerar produtos culturais vendáveis — livros ilustrados, podcasts, vídeos e souvenirs — com o apoio de cooperativas ou startups locais. A pesquisadora Ana Carla Fonseca, especialista em cidades criativas, defende que “a educação é um dos pilares da economia criativa porque forma novos consumidores, criadores e mediadores culturais”.
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INFRAESTRUTURA E POLÍTICAS PÚBLICAS
Para que a cultura local seja alavanca de desenvolvimento econômico, é necessário investimento em infraestrutura, capacitação e políticas públicas permanentes. Municípios como São Luiz do Paraitinga (SP) e Laranjeiras (SE) conseguiram consolidar eventos folclóricos no calendário nacional a partir de leis de incentivo, criação de conselhos culturais e articulação com o setor privado. Em Teixeira de Freitas, a ausência de um plano municipal de cultura e a descontinuidade de projetos comprometem a consolidação de iniciativas que transformem o potencial simbólico em capital econômico. A aprovação da Lei Paulo Gustavo e a aplicação correta dos recursos pode ser uma oportunidade nesse sentido.
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COMUNIDADES COMO PROTAGONISTAS
A sustentabilidade da economia do encantamento depende da participação direta das comunidades na concepção, gestão e distribuição dos benefícios gerados pelas ações culturais. O conceito de “protagonismo cultural comunitário”, defendido pelo antropólogo Antonio Albino Canelas Rubim, enfatiza que as práticas culturais não devem ser apenas vitrines para turistas, mas espaços de afirmação das subjetividades locais. Assim, os festivais e eventos baseados no folclore teixeirense devem preservar a integridade das narrativas e garantir que os lucros não sejam capturados por agentes externos sem vínculo com a cidade.
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PERSPECTIVAS PARA TEIXEIRA DE FREITAS
Com uma população estimada em mais de 160 mil habitantes, Teixeira de Freitas possui um mercado interno que pode se beneficiar da valorização do seu próprio imaginário. As narrativas que permeiam a cidade — quando sistematizadas, respeitadas e articuladas a projetos criativos — podem gerar uma nova dinâmica econômica, com impacto no turismo, no comércio, na educação e na autoestima social. As experiências de outros municípios sugerem que a transformação simbólica em recurso produtivo exige tempo, articulação intersetorial e reconhecimento institucional, mas oferece caminhos para o desenvolvimento com identidade.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Fonseca, Ana Carla – Economia criativa como estratégia de desenvolvimento (2008)
Canelas Rubim, Antonio Albino – Políticas culturais no Brasil: balanços e perspectivas (2011)
Carvalho, Carlos – Cultura, identidade e desenvolvimento regional (2018)
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4) O PAPEL DAS POLÍTICAS PÚBLICAS E DO POVO
A valorização do folclore, contudo, não pode depender apenas da iniciativa individual. É necessário o envolvimento de políticas públicas, investimentos em infraestrutura turística e programas culturais que abracem essas narrativas como elementos centrais da identidade municipal. Meu trabalho, feito entre orações, visitas e cadernos amarelados, poderia ser apenas um livro de memórias. Mas se bem integrado às estratégias educacionais e econômicas, ele pode se tornar uma ferramenta viva de transformação. Projetos como o "Mapeamento de Patrimônios Imateriais" da UNESCO (2003) mostram que registrar e valorizar saberes populares é um passo essencial para o desenvolvimento sustentável de comunidades.
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PLANEJAMENTO CULTURAL E DESENVOLVIMENTO
A valorização do folclore como ativo simbólico e econômico exige mais do que esforços individuais: requer planejamento estatal, integração intersetorial e participação cidadã. De acordo com a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial da Unesco (2003), políticas públicas voltadas à cultura devem promover o reconhecimento, a proteção e a transmissão de expressões culturais locais como parte do desenvolvimento sustentável. Em Teixeira de Freitas, esse princípio ainda enfrenta desafios, como a ausência de um Sistema Municipal de Cultura plenamente implementado, o que dificulta a articulação entre ações educativas, turísticas e patrimoniais.
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MAPEAMENTO COMO PRIMEIRO PASSO
O mapeamento dos patrimônios imateriais — como práticas orais, rituais e personagens folclóricos — é uma das etapas mais relevantes para a criação de políticas públicas eficazes. O programa “Mapeamento dos Saberes e Fazeres Populares”, promovido em diversos municípios brasileiros com apoio do IPHAN, tem como objetivo identificar, documentar e valorizar esses bens culturais. Em municípios como Lençóis (BA) e Laranjeiras (SE), o mapeamento permitiu o surgimento de projetos educativos, rotas turísticas temáticas e editais públicos para mestres da tradição. O pesquisador Hermano Vianna destaca que “não se preserva aquilo que não se conhece nem se reconhece”.
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EDUCAÇÃO COMO EIXO ESTRATÉGICO
A incorporação do folclore no currículo escolar vai além do conteúdo festivo: trata-se de uma ferramenta pedagógica de valorização da cultura local, de combate à homogeneização cultural e de estímulo à identidade comunitária. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) reconhece a importância da cultura regional nos componentes de história, artes e língua portuguesa. Iniciativas como o projeto “Educar com Memória”, desenvolvido na rede pública de Vitória da Conquista (BA), utilizam lendas, músicas e causos como base para práticas interdisciplinares. O educador Miguel Arroyo argumenta que a escola “deve deixar de ser um reprodutor de conteúdos externos e tornar-se um espaço de escuta do território”.
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TERRITÓRIO, ECONOMIA E INFRAESTRUTURA
Para que o folclore se traduza em vetor de desenvolvimento, é fundamental pensar a infraestrutura urbana e turística de forma articulada com o território simbólico. A ausência de espaços culturais adequados, centros de memória e sinalização patrimonial compromete a circulação dos saberes locais. Municípios que avançaram nesse campo, como Piranhas (AL) e São Cristóvão (SE), aliaram incentivos à economia criativa com melhorias urbanas que favoreceram a fruição cultural. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), o investimento em espaços culturais regionais é um dos instrumentos mais eficazes para o fortalecimento da identidade local.
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PARTICIPAÇÃO POPULAR E GESTÃO COMPARTILHADA
A consolidação de políticas públicas voltadas ao folclore depende da escuta ativa e do protagonismo das comunidades locais. Conselhos municipais de cultura, fóruns regionais e editais participativos são mecanismos fundamentais para garantir que as decisões respeitem as prioridades da população. A pesquisadora Maria Cecília Londres Fonseca afirma que “a política cultural só é democrática quando é formulada com a participação direta dos agentes culturais do território”. Em Teixeira de Freitas, a criação de um plano de cultura baseado nas narrativas populares pode representar um marco no processo de construção coletiva de políticas públicas.
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DOCUMENTAÇÃO E TECNOLOGIA
O uso de tecnologias digitais para registrar e difundir o folclore local tem se mostrado uma ferramenta eficaz em diversas cidades brasileiras. Plataformas como o Acervo Digital dos Saberes Populares, vinculado à UFMG, mostram como vídeos, podcasts, mapas interativos e arquivos sonoros podem transformar memórias orais em patrimônios acessíveis. Essa estratégia exige não apenas recursos tecnológicos, mas capacitação comunitária e apoio institucional. Em Teixeira de Freitas, iniciativas como blogs comunitários, documentários escolares e rádios livres podem contribuir para a documentação e valorização das expressões culturais locais.
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A MEMÓRIA COMO POLÍTICA PÚBLICA
A transição do livro de memórias para uma política pública de memória é um processo que depende do reconhecimento do folclore como parte essencial da cidadania cultural. Como aponta o sociólogo francês Pierre Nora, “a memória se torna história quando é institucionalizada e protegida como bem coletivo”. Documentos como o Plano Nacional de Cultura (PNC) e a Agenda 21 da Cultura propõem que cada município desenvolva mecanismos próprios para registrar, proteger e fomentar seus bens culturais. O trabalho desenvolvido por agentes locais, como o autor do livro Folclore da Minha Cidade, pode se tornar referência se integrado às estratégias educacionais, turísticas e patrimoniais de longo prazo.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Fonseca, Maria Cecília Londres – Gestão cultural: profissionalização e participação (2005)
Vianna, Hermano – O mundo funk carioca (1988)
Arroyo, Miguel – Ofício de mestre: imagens e autoimagens (2003)
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5) FOLCLORE, EDUCAÇÃO E TURISMO DE BASE COMUNITÁRIA
A experiência de colher histórias com olhos e ouvidos atentos também revelou a necessidade de envolvimento das escolas, das igrejas, dos bairros e das famílias na preservação da memória oral. O folclore deve ser contado e recontado nas salas de aula, dramatizado nos teatros locais, pintado nas paredes, resgatado em feiras culturais. O turismo de base comunitária, que cresce em várias partes do Brasil, pode encontrar aqui um solo fértil. Uma cidade que ama seus mistérios passa a encantar seus visitantes. E, com isso, o que era apenas "causo de assombração" vira patrimônio, vira economia, vira legado.
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MEMÓRIA ORAL E ESCOLA
A transmissão do folclore local por meio da educação formal é uma estratégia eficaz para a preservação da memória oral e para o fortalecimento da identidade comunitária. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) orienta que o ensino de história e cultura local deve ser incentivado como forma de valorização da diversidade cultural brasileira. Em Teixeira de Freitas, projetos pedagógicos que trabalham com a escuta e a reinterpretação de causos populares — como o do Menino do Km 880 ou da Sinhá Emancipa — podem estimular a criatividade dos alunos e conectá-los à sua herança cultural. O educador Paulo Freire já apontava a importância do diálogo com a cultura do lugar como condição para uma educação significativa.
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ARTE E LUGAR DE PERTENCIMENTO
A dramatização de narrativas populares em teatros comunitários, murais escolares e festivais de bairro representa um caminho concreto para a revitalização cultural. De acordo com a pesquisadora Ana Mae Barbosa, a arte-educação é um instrumento de leitura do mundo e de expressão de subjetividades. Em várias cidades do Nordeste, como Juazeiro do Norte e Caruaru, experiências artísticas baseadas no imaginário popular geraram espaços permanentes de exibição cultural. A visualidade das lendas, quando incorporada ao cotidiano urbano, transforma o espaço público em uma galeria viva de memória coletiva.
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O TURISMO DE BASE COMUNITÁRIA NO BRASIL
O turismo de base comunitária (TBC) vem se consolidando como alternativa sustentável de geração de renda e fortalecimento cultural. Trata-se de um modelo no qual os próprios moradores organizam a recepção de visitantes, oferecendo hospedagem, alimentação, roteiros temáticos e vivências culturais. Segundo o Ministério do Turismo, mais de 300 iniciativas de TBC estão mapeadas no país, com destaque para os quilombos de Alcântara (MA), a Ilha de Boipeba (BA) e os assentamentos do sul do Pará. A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha defende que “o turismo, quando protagonizado por comunidades, pode ser uma alavanca para a valorização de saberes locais e o fortalecimento da autonomia cultural”.
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FOLCLORE COMO ROTEIRO VIVO
Em Teixeira de Freitas, o repertório de personagens e histórias pode ser transformado em roteiros culturais que envolvam visitas a pontos simbólicos da cidade, apresentações ao vivo e oficinas temáticas. Os “roteiros do encantamento”, como são conhecidos em cidades como São Luiz do Paraitinga (SP), combinam caminhada histórica com narração oral, oferecendo ao visitante uma imersão sensorial na cultura local. O Instituto Brasileiro de Turismo (Embratur) aponta que o turismo cultural é responsável por 40% do fluxo turístico internacional e que o patrimônio imaterial tem ganhado centralidade nas estratégias de promoção territorial.
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FAMÍLIAS E IGREJAS COMO GUARDIÃS
A tradição oral sobrevive graças à transmissão familiar e aos espaços de convivência comunitária. As igrejas, sobretudo nos bairros periféricos, funcionam como importantes pontos de encontro onde histórias, causos e saberes são compartilhados entre gerações. A socióloga Silvia Helena Simões Borelli observa que “a oralidade religiosa, sobretudo no protestantismo popular, é um meio de atualização da experiência histórica do grupo”. Incorporar as comunidades de fé e as famílias em projetos de mapeamento cultural e turismo pode ampliar a legitimidade das ações e reforçar o enraizamento das memórias.
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FEIRAS CULTURAIS E ECONOMIA CRIATIVA
As feiras culturais que reúnem gastronomia, artesanato e apresentações artísticas são ambientes férteis para a ativação econômica do folclore. Em cidades como Porto Seguro e Ilhéus, a valorização do patrimônio oral nas feiras resultou na criação de produtos turísticos com identidade local, como cordéis, camisetas ilustradas e pratos típicos inspirados em lendas. A pesquisadora Lia Calabre, da Fundação Casa de Rui Barbosa, afirma que “a economia criativa de base comunitária é uma forma de distribuir renda, estimular a criação e preservar valores simbólicos”. Em Teixeira de Freitas, as feiras podem funcionar como vitrines da memória local.
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LEGADO E CONTINUIDADE
Transformar o folclore em patrimônio vivo é um desafio que exige continuidade, articulação e apoio institucional. A cidade que valoriza seus mistérios passa a narrar-se a si mesma de maneira positiva, atraindo visitantes e fortalecendo sua autoestima. A memória, quando cultivada coletivamente, deixa de ser apenas lembrança e passa a ser política pública, educação crítica e economia cultural. O legado das histórias ouvidas e escritas entre orações e cadernos pode ser o início de um novo capítulo para Teixeira de Freitas: aquele em que a imaginação popular se torna alicerce de desenvolvimento e cidadania.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Freire, Paulo – Pedagogia do oprimido (1968)
Cunha, Manuela Carneiro da – Cultura com aspas e outros ensaios (2009)
Calabre, Lia – Políticas culturais no Brasil: tramas, trajetórias e tensões (2016)
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6) DO ENCANTAMENTO À AÇÃO
Com Folclore da Minha Cidade, quis mais do que registrar histórias: quis fazer um gesto de gratidão à terra que me acolheu, e ao povo que me confiou seus segredos. Mas também lancei uma semente. Quando um povo acredita no valor de suas próprias narrativas, ele começa a contar sua história com mais coragem — e a escrever seu futuro com mais consciência. A valorização do folclore é, sim, um ato cultural, mas também político, econômico e pedagógico. Que Teixeira — e tantas outras cidades — possam colher os frutos dessa memória encantada, promovendo turismo, identidade e desenvolvimento por meio do que têm de mais genuíno: sua própria voz.
NARRAR PARA EXISTIR
A valorização das narrativas populares representa mais do que a preservação de tradições: é um exercício de reconhecimento coletivo. Em contextos de urbanização acelerada e apagamento simbólico, como o de Teixeira de Freitas, o folclore se torna um meio para o povo afirmar sua existência cultural e histórica. O sociólogo Ecléa Bosi ressalta que a memória oral é o território simbólico onde as comunidades constroem sentidos para sua experiência cotidiana. Ao registrar os “causos” de sua cidade, o autor de Folclore da Minha Cidade mobilizou um processo que extrapola a literatura: trata-se de ativar o direito à memória como ferramenta de cidadania.
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VOZES LOCAIS COMO POLÍTICA PÚBLICA
O fortalecimento das vozes locais implica sua institucionalização nas políticas culturais e educacionais. Iniciativas como os Pontos de Cultura, lançados pelo Ministério da Cultura em 2004, mostraram que o incentivo às expressões comunitárias pode gerar impactos concretos em autoestima, renda e coesão social. A pesquisadora Albino Rubim observa que “a política cultural deve ser entendida como política de Estado, voltada à garantia de direitos culturais e à ampliação da democracia simbólica”. Em Teixeira de Freitas, a criação de um plano de cultura que incorpore o patrimônio oral pode fortalecer a identidade coletiva e estimular a produção cultural autônoma.
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CULTURA E ECONOMIA TERRITORIAL
A ativação da economia simbólica local passa pela valorização de seus ativos intangíveis, entre eles as lendas, ritos e personagens que habitam o imaginário popular. O economista Celso Furtado já destacava que a cultura é o núcleo estruturador do desenvolvimento, especialmente em territórios periféricos. A transformação dessas narrativas em produtos e serviços culturais — como festivais, roteiros turísticos, livros, espetáculos e mídias digitais — pode estimular cadeias produtivas locais e promover inclusão social. Para isso, é necessário planejamento, qualificação profissional e articulação entre sociedade civil, poder público e iniciativa privada.
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IDENTIDADE COMO BASE DO DESENVOLVIMENTO
O desenvolvimento sustentável de uma cidade envolve, além de indicadores econômicos, a construção simbólica de pertencimento e identidade. O antropólogo Stuart Hall afirma que “a identidade cultural é uma construção contínua e estratégica que articula passado e presente na invenção do futuro”. Quando uma cidade assume sua voz — e não apenas importa modelos externos —, ela potencializa suas capacidades locais. Em Teixeira de Freitas, o ato de recontar histórias ancestrais pode ser o ponto de partida para políticas urbanas, educacionais e turísticas fundamentadas na escuta ativa e no respeito às suas raízes.
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A EDUCAÇÃO COMO ESPAÇO DE ESCUTA
A escola é um dos espaços mais estratégicos para articular a memória popular com a formação cidadã. Iniciativas como o projeto “Escola Viva a Memória”, realizado em municípios do interior do Ceará, demonstram que a oralidade, o teatro e a contação de histórias, quando incluídos no currículo, geram maior engajamento dos alunos e estabelecem vínculos afetivos com o território. O educador Moacir Gadotti defende que “uma educação comprometida com a realidade deve partir da cultura do lugar, da história do povo e de seus modos de vida”. O folclore, nesse sentido, não é apenas conteúdo, mas linguagem educativa.
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DO LIVRO À CIDADE
Folclore da Minha Cidade não é apenas um compêndio de lendas; é um gesto político de escuta e devolução simbólica. Sua possível transformação em política pública, em guia turístico ou material pedagógico depende da decisão coletiva de ver no folclore não um resquício do passado, mas um eixo estruturador de futuro. Como observam os estudos do Observatório da Diversidade Cultural (UFMG), a gestão da cultura deve considerar os bens imateriais como instrumentos de planejamento urbano e social. O livro, ao ser apropriado pela cidade, pode se tornar ferramenta de ação pública, fortalecendo os laços entre memória e projeto.
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UMA CIDADE QUE CONTA SUA HISTÓRIA
O reconhecimento do valor das narrativas locais leva a uma nova forma de relação entre povo, território e futuro. Quando os moradores se veem representados em suas lendas e causos, ativam um sentimento de pertencimento que transforma o espaço em comunidade. Em Teixeira de Freitas, o encantamento das histórias pode dar lugar à ação: à construção de políticas, à geração de renda, à formação de cidadãos conscientes. Nesse processo, o que era segredo sussurrado entre vizinhos se torna símbolo compartilhado, e o que era silêncio se converte em voz pública.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Hall, Stuart – A identidade cultural na pós-modernidade (1997)
Furtado, Celso – Cultura e desenvolvimento em tempos de crise (2008)
Bosi, Ecléa – Memória e sociedade: lembranças de velhos (1979)
CONCLUSÃO
O que começou como uma prática pastoral de escuta e acolhimento revelou-se, com o tempo, um repositório vasto de sabedoria popular, que muitos esquecem de reconhecer como patrimônio. As lendas de Teixeira de Freitas não são meras invenções: são códigos simbólicos de uma cidade que se narra para sobreviver, para se fortalecer, para pertencer. Registrar essas histórias é mais do que um exercício de memória — é um ato de cidadania cultural.
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A valorização do folclore, nesse contexto, torna-se um projeto de desenvolvimento pleno. Em um Brasil tão desigual, onde o interior é muitas vezes negligenciado, dar valor ao que o povo conta é também afirmar que o povo importa. Que suas formas de ver o mundo, de lidar com o sagrado e com o medo, são legítimas. E que disso pode nascer um movimento que articule cultura, turismo, renda e dignidade, como já demonstram diversas cidades que fizeram de suas narrativas populares um atrativo turístico e educacional.
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Para que isso aconteça, é essencial o envolvimento do poder público, da educação, das lideranças comunitárias e da iniciativa privada. O livro Folclore da Minha Cidade é um convite — e um exemplo concreto — para que outras cidades façam o mesmo: documentem suas memórias, encenem seus causos, criem espaços de fruição simbólica. Porque uma cidade que acredita em suas histórias tem força para criar novos capítulos — e prosperar com eles.
BIBLIOGRAFIA
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Dicionário do Folclore Brasileiro – Câmara Cascudo – 1962
Obra clássica que compila crenças, costumes, lendas e personagens do folclore brasileiro. Fundamenta-se em décadas de pesquisa etnográfica e é indispensável para compreender o universo simbólico e cultural dos povos do Brasil. -
Folclore e Desenvolvimento Cultural – Maria Isaura Pereira de Queiroz – 1995
Analisa o folclore não apenas como herança cultural, mas como fator ativo de desenvolvimento sociocultural e político. A autora defende o papel estratégico da cultura popular na formação de identidades comunitárias. -
O povo sabe o que diz: memória e tradição oral no Brasil – Regina Abreu – 2003
Trata da oralidade como forma de transmissão de saberes e de construção da história coletiva, especialmente em contextos não letrados ou de baixa escolaridade. Um estudo fundamental sobre a escuta como método. -
Cultura Popular e Identidade – José Jorge de Carvalho – 2001
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A Tradição e o Presente: Estudos de Cultura Popular – Luís da Câmara Cascudo – 1971
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O que é Cultura Popular – Walnice Nogueira Galvão – 1983
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Turismo e Cultura: Caminhos da Sustentabilidade – Maria Cristina Castilho Costa – 2011
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A Invenção das Tradições – Eric Hobsbawm e Terence Ranger – 1983
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Os Donos da Memória: A história da antropologia e do folclore no Brasil – Lilia Moritz Schwarcz – 2000
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Patrimônio Imaterial e Identidade Cultural – Antonio Augusto Arantes – 2005
QUEM DECIDIU O QUE DEUS DISSE? A HISTÓRIA, OS CRITÉRIOS E OS CONFLITOS QUE DEFINIRAM O ANTIGO TESTAMENTO
Marcos Simas, A Formação do Cânon Bíblico, 2001, publicada na revista Ultimato (Minas Gerais, Brasil).
Leonardo Boff, A Bíblia: livro dos homens e de Deus, 1990, publicada pela editora Vozes, Petrópolis, RJ.
Carlos Caldas, O Cânon do Antigo Testamento e a Teologia da Revelação, 2009, publicada no periódico Teologia Hoje, Faculdade de Teologia da Universidade Metodista de São Paulo.
O que levou algumas escrituras judaicas a serem reconhecidas como "a Palavra de Deus", enquanto outras foram esquecidas, marginalizadas ou simplesmente rejeitadas? Esta reportagem investiga, com profundidade científica e historiográfica, o processo complexo e, por vezes, conflituoso de formação do cânon do Antigo Testamento. A partir da multiplicidade de textos do judaísmo antigo, explora-se como determinados livros foram canonizados por critérios que mesclavam autoridade religiosa, aceitação comunitária, coerência teológica e influência política. Em meio a disputas entre seitas judaicas e contextos históricos turbulentos, surgiram interpretações e justificativas que tentaram conciliar passagens obscuras com a fé num Deus único. A matéria também apresenta um ponto-chave: a Revelação autêntica de Deus, para além dos cânones impostos, só se reconhece plenamente na coerência com Jesus Cristo — a encarnação do amor divino. A seleção dos textos sagrados não foi apenas um ato religioso, mas também político, histórico e humano. Esta reportagem, ancorada em obras clássicas e estudos contemporâneos, propõe uma leitura crítica e profunda das Escrituras hebraicas, apontando para uma verdade maior: o amor como critério último da inspiração.
CONTEÚDOS
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Os muitos textos escritos no judaísmo e a seleção dos inspirados
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Objetivos e critérios do cânon
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Estabelecimento do cânon e circunstâncias históricas
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Fatores definitivos na escolha do cânon
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Argumentos e interpretações em textos controvertidos
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Critério único: coerência com Jesus e o amor divino
OS MUITOS TEXTOS ESCRITOS NO JUDAÍSMO E A SELEÇÃO DOS INSPIRADOS
No judaísmo antigo, houve uma proliferação de textos religiosos, muitos dos quais não foram incluídos na Bíblia hebraica. A seleção dos textos considerados "inspirados" para compor o Antigo Testamento envolveu uma cuidadosa avaliação da autenticidade histórica, coesão teológica e impacto espiritual. Os escritos escolhidos foram vistos como transmitindo a voz de Jeová (Deus, conforme entendido por Moisés) para exortar e guiar seu povo, conforme acreditavam seus autores.
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OS MUITOS TEXTOS ESCRITOS NO JUDAÍSMO E A SELEÇÃO DOS INSPIRADOS
TRADIÇÃO ORAL E O PAPEL DOS ESCRIBAS
Desde os primórdios da religião israelita, grande parte da tradição religiosa era transmitida oralmente, sendo os escribas os responsáveis por registrar e preservar os ensinamentos e histórias dos patriarcas, profetas e líderes. Esses registros começaram a ser organizados principalmente após o exílio babilônico (século VI a.C.), quando a necessidade de manter a identidade religiosa e cultural dos judeus ganhou urgência. Conforme destaca James Kugel, professor da Universidade Bar-Ilan, o processo de escrita e preservação passou a ser visto como um instrumento sagrado de ligação entre o povo e a revelação de Deus.
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A PLURALIDADE DE ESCRITOS RELIGIOSOS
Durante o Segundo Templo (516 a.C. a 70 d.C.), multiplicaram-se os escritos religiosos em hebraico, aramaico e, mais tarde, grego. Entre esses, estavam os Salmos de Salomão, os Livros de Enoque, os Testamentos dos Doze Patriarcas, Jubileus e outros documentos que hoje compõem o que se convencionou chamar de literatura intertestamentária ou apócrifa. De acordo com a pesquisa de Geza Vermes, da Universidade de Oxford, esses textos eram lidos, discutidos e considerados significativos por diversas seitas e comunidades judaicas, como os essênios de Qumran.
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OS CRITÉRIOS DE INSPIRAÇÃO
A definição de quais textos seriam considerados inspirados, isto é, portadores da revelação divina, não seguiu um processo formal e unificado, mas envolveu múltiplos fatores: linguagem usada (hebraico ou aramaico), autoria tradicional atribuída a figuras reconhecidas (Moisés, Isaías, Davi), coerência com a Torá e uso litúrgico nas sinagogas. O historiador Emanuel Tov, envolvido na edição dos Manuscritos do Mar Morto, explica que textos aceitos como canônicos circulavam amplamente em cópias padronizadas, enquanto os demais apresentavam variações significativas e não alcançaram consenso entre os diferentes grupos religiosos.
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A CENTRALIDADE DA TORÁ
Entre todos os textos, a Torá (os cinco primeiros livros atribuídos a Moisés) sempre ocupou lugar central no judaísmo. Sua autoridade era amplamente reconhecida desde os períodos mais antigos. Os profetas e os escritos poéticos e sapienciais foram sendo agregados posteriormente, em etapas. A divisão tripartida do Tanakh — Torá, Nevi’im (Profetas) e Ketuvim (Escritos) — reflete um processo gradual de canonização. O estudioso Lawrence Schiffman aponta que, até o século I d.C., o status de alguns livros (como Eclesiastes e Cântico dos Cânticos) ainda era debatido entre os rabinos.
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A INFLUÊNCIA DOS MANUSCRITOS DO MAR MORTO
Descobertos entre 1947 e 1956, os Manuscritos do Mar Morto trouxeram à tona a diversidade de textos religiosos que circulavam entre os judeus no período do Segundo Templo. Mais de 900 documentos foram encontrados nas cavernas de Qumran, incluindo cópias de quase todos os livros do que viria a ser a Bíblia Hebraica, além de escritos apócrifos e sectários. Os manuscritos revelam que comunidades como a dos essênios possuíam um cânon mais amplo, o que demonstra que a noção de “inspiração” não era uniforme.
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A DEFINIÇÃO FINAL DO CÂNON
A consolidação do cânon hebraico ocorreu em etapas, com influências históricas e teológicas decisivas. Após a destruição do Templo em 70 d.C., os rabinos fariseus passaram a desempenhar um papel central na reconstrução do judaísmo. No final do século I d.C., em contextos como o Concílio de Jâmnia (cuja existência ainda é debatida entre historiadores), houve uma tendência de consolidação textual, com ênfase nos 24 livros que hoje compõem o Tanakh. Textos como os deuterocanônicos, posteriormente adotados por cristãos, foram excluídos por não cumprirem critérios como antiguidade, coerência com a Torá e uso nas comunidades judaicas da Palestina.
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A TRANSMISSÃO DA VOZ DE JEOVÁ
Para os compiladores da Bíblia hebraica, os livros escolhidos deveriam carregar a autoridade espiritual reconhecida nas tradições proféticas e nos ensinamentos de Moisés. A ideia de que esses textos transmitiam a voz de Jeová, como revelada na história e na ética da aliança com Israel, guiou o processo de seleção. A inspiração não era entendida como ditado divino literal, mas como ação de Deus na história e na palavra dos profetas. Por isso, os textos selecionados deveriam instruir, consolar, advertir e edificar o povo, conforme o papel dos profetas e sacerdotes na história judaica.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
KUGEL, James L. A Bíblia como Ela É (2007)
VERMES, Geza. Os Manuscritos do Mar Morto em Inglês (2011)
TOV, Emanuel. Textos Bíblicos dos Manuscritos do Mar Morto (2014)
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OBJETIVOS E CRITÉRIOS DO CÂNON
Os critérios para determinar quais textos deveriam compor o cânon do Antigo Testamento variaram ao longo do tempo e entre as tradições judaicas. Geralmente, incluíam fatores como origem divina percebida, aceitação comunitária, coesão doutrinária e influência espiritual contínua. O objetivo principal era preservar os ensinamentos religiosos fundamentais e a história do povo judaico de maneira autoritativa e inspiradora.
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OBJETIVOS RELIGIOSOS
A formação do cânon do Antigo Testamento atendeu, em primeiro plano, à necessidade de fixar um corpo textual que representasse a tradição religiosa de Israel. Com o exílio babilônico (século VI a.C.), surgiu uma crise de identidade entre os judeus. A reconstrução de sua história e da aliança com Deus passou a ser realizada por meio da consolidação escrita das tradições orais. Textos como a Torá (os cinco primeiros livros atribuídos a Moisés) tornaram-se o centro dessa reconstrução. O objetivo, conforme aponta Jon Levenson (Harvard), era preservar os fundamentos religiosos e éticos que sustentavam a fé e a existência nacional dos hebreus.
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COESÃO DOUTRINÁRIA
Um critério fundamental para a canonização era a coerência doutrinária do texto com os princípios centrais da fé judaica. Os escritos considerados para o cânon precisavam sustentar as ideias monoteístas, a eleição de Israel como povo de Deus, a centralidade da Lei, e a fidelidade à aliança. Segundo o estudioso James Sanders, especialista em literatura intertestamentária, os textos que contrariavam ou relativizavam esses pilares não foram acolhidos. Livros com conteúdos filosóficos divergentes, como alguns textos sapienciais helenizados, foram lidos, mas não canonizados, especialmente nas escolas rabínicas da Palestina.
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ACEITAÇÃO COMUNITÁRIA
A recepção do texto pelas comunidades de fé também teve um papel determinante. Textos amplamente utilizados nas sinagogas, nos rituais e na catequese foram considerados dignos de confiança. A prática litúrgica e a tradição oral foram fundamentais para a inclusão dos Salmos, por exemplo. Os registros de Fílon de Alexandria e Flávio Josefo, ambos do século I d.C., indicam que os judeus helenistas no Egito aceitavam um conjunto mais amplo de escritos, o que mostra como a aceitação variava geograficamente. Na Judeia, o cânon era mais restrito, refletindo um esforço de uniformização doutrinária frente à diversidade cultural.
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INFLUÊNCIA ESPIRITUAL
Outro aspecto recorrente nos critérios era o impacto espiritual contínuo dos textos. A inspiração, embora difícil de ser mensurada objetivamente, era reconhecida através do testemunho coletivo dos sábios e fiéis. Textos que eram constantemente retomados para a vida ética, espiritual e jurídica da comunidade ganhavam autoridade especial. Como observa Brevard Childs, teólogo da Universidade de Yale, “a autoridade de um texto era confirmada por sua capacidade de moldar a vida religiosa do povo ao longo do tempo.” O livro de Isaías, por exemplo, foi valorizado por seu conteúdo profético e por sua aplicação contínua no imaginário messiânico.
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AUTORIDADE ATRIBUÍDA
A autoria também foi um critério relevante, embora não exclusivo. Textos atribuídos a figuras centrais da tradição — como Moisés, Davi, Salomão e os grandes profetas — tinham maior chance de serem aceitos. A pseudonímia (atribuição intencional de uma obra a uma figura antiga) era prática comum, mas só era aceita quando o conteúdo sustentava a autoridade esperada da tradição. O livro de Daniel, escrito no século II a.C., mas ambientado no século VI a.C., foi incluído no cânon devido à sua ressonância com os tempos de perseguição e à sua linguagem apocalíptica alinhada à esperança messiânica.
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EXCLUSÃO DE LIVROS
Diversos textos não foram incluídos no cânon hebraico, embora tenham circulado amplamente entre grupos judaicos. O Livro de Enoque e o Livro dos Jubileus são exemplos. Eles foram considerados por seitas como os essênios (descobertos entre os Manuscritos do Mar Morto), mas rejeitados pelas autoridades rabínicas por apresentarem doutrinas angelológicas e calendários distintos. Com o Concílio de Jâmnia (fim do século I d.C., segundo algumas tradições), a exclusão desses textos se consolidou, marcando um movimento de contenção da diversidade teológica para garantir unidade e estabilidade religiosa.
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VARIAÇÕES ENTRE CÂNONES
A definição dos livros canônicos variou entre as tradições judaicas e, posteriormente, entre os cristãos. A Septuaginta, tradução grega feita no Egito no século III a.C., incluía livros que não constavam no cânon hebraico tradicional. Esses textos, chamados deuterocanônicos, foram aceitos por igrejas cristãs do Oriente e pelo catolicismo, mas rejeitados pela Reforma Protestante. Tal diversidade canônica indica que o processo não foi universal nem imediato. Como sintetiza Lee Martin McDonald, historiador do cânon bíblico, “o cânon foi mais uma construção histórica gradual do que um evento fechado”.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Raymond E. Brown, 2010
F. F. Bruce, 2009
Lee Martin McDonald, 2007
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ESTABELECIMENTO DO CÂNON E CIRCUNSTÂNCIAS HISTÓRICAS
Os cânones do Antigo Testamento foram estabelecidos ao longo de vários períodos históricos. Por exemplo, o cânon hebraico foi formalizado entre os séculos II e I a.C., durante um período de reafirmação da identidade judaica após crises políticas e religiosas. Posteriormente, diferentes tradições cristãs adotaram seus próprios cânones, influenciados por debates teológicos e contextos culturais específicos.
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PROCESSO DE FIXAÇÃO
O processo de estabelecimento do cânon do Antigo Testamento não ocorreu de forma instantânea, mas gradualmente, ao longo de séculos. A tradição oral, predominante nas primeiras fases da religião israelita, começou a ser registrada por volta do século VIII a.C. Os primeiros textos a ganharem status de sagrados foram os do Pentateuco, atribuídos a Moisés. Com o tempo, outras coleções — como os Profetas e os Escritos — passaram a ser reconhecidas, especialmente após o exílio babilônico. A crise nacional intensificou a necessidade de fixar por escrito a identidade religiosa e moral do povo judeu.
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CRISES POLÍTICAS E IDENTITÁRIAS
A destruição do Templo de Jerusalém em 586 a.C. pelos babilônios, seguida do cativeiro, foi um ponto de inflexão na história de Israel. A elite judaica deportada para a Babilônia começou a sistematizar textos antigos e produzir novos escritos que reafirmassem a aliança com Deus. Segundo o historiador John Barton, a canonização inicial foi uma resposta à necessidade de manter a coesão nacional diante da diáspora. No retorno a Jerusalém, no período persa (século V a.C.), Esdras e Neemias reforçaram a centralidade da Torá como referência normativa.
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A LEI COMO FUNDO DA IDENTIDADE
Durante o período persa e helenista, os livros da Lei (Torá) foram aceitos amplamente como textos sagrados e fundamentais. O surgimento de seitas judaicas, como os fariseus, saduceus e essênios, refletiu disputas sobre a interpretação desses textos e sobre quais outros livros deveriam ser considerados inspirados. O estudioso Frank Moore Cross aponta que, apesar das divergências, a Lei foi o primeiro conjunto textual com status de “cânon fechado”. Ela funcionava como base normativa que não deveria ser alterada, o que influenciou os critérios para os demais escritos.
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SELOS DO CÂNON HEBRAICO
Embora não exista consenso entre os estudiosos sobre uma “data oficial” para o fechamento do cânon hebraico, a maioria das evidências aponta para os séculos II e I a.C. como período de consolidação. A crescente helenização do mundo judaico, sobretudo no Egito, intensificou a necessidade de distinguir os textos autenticamente judaicos de outras produções religiosas e filosóficas. Nesse contexto, os livros reconhecidos como sagrados passaram a ser copiados, ensinados e defendidos por escolas rabínicas. A referência mais antiga a um cânon de 24 livros aparece em Flávio Josefo, no século I d.C.
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O CÍRCULO DE JÂMNIA
Tradicionalmente, muitos estudiosos acreditaram que o cânon hebraico foi selado no Concílio de Jâmnia (Yavneh), por volta do ano 90 d.C. No entanto, pesquisas mais recentes, como as de Lee Martin McDonald, sugerem que Jâmnia não foi um concílio formal, mas um centro de debates rabínicos. O que se discutia ali era a autoridade de certos livros — como Eclesiastes, Ester e Cântico dos Cânticos — e não a definição completa de um cânon. Ainda assim, esse período é relevante como símbolo do fim do processo canônico para o judaísmo rabínico pós-Templo.
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A SEPTUAGINTA E OS LIVROS GREGOS
Enquanto o cânon hebraico era consolidado na Palestina, no Egito se produzia a versão grega da Bíblia hebraica, conhecida como Septuaginta. Esta incluía livros não reconhecidos pelo judaísmo palestino, como Sabedoria, Eclesiástico, 1 e 2 Macabeus, entre outros. A Septuaginta foi amplamente adotada pelas comunidades judaicas da diáspora, e mais tarde, pelas primeiras igrejas cristãs. Esse descompasso gerou, posteriormente, a divergência entre o cânon hebraico e o cânon cristão, especialmente entre católicos, ortodoxos e protestantes.
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DIFERENTES CÂNONES CRISTÃOS
A canonização cristã do Antigo Testamento variou conforme a tradição teológica. A Igreja Católica seguiu a Septuaginta, mantendo os deuterocanônicos, confirmados no Concílio de Trento (1546). A Igreja Ortodoxa incluiu ainda mais textos. Já os reformadores protestantes, como Lutero, preferiram o cânon hebraico, relegando os deuterocanônicos a um status secundário. Essa diversidade canônica persiste até hoje. Para o historiador F. F. Bruce, a história do cânon é também a história das interpretações sobre o que é “Escritura” em diferentes comunidades de fé.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
F. F. Bruce, 2009
John Barton, 2001
Lee Martin McDonald, 2007
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FATORES DEFINITIVOS NA ESCOLHA DO CÂNON
Diversos fatores influenciaram as decisões sobre quais livros seriam incluídos no cânon do Antigo Testamento. Entre eles estavam a antiguidade dos textos, a atribuição a autores reconhecidos, a coerência com tradições religiosas estabelecidas e a consistência doutrinária. A autoridade dos líderes religiosos e a aceitação popular também desempenharam papéis significativos na formação dos cânones.
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ANTIGUIDADE E AUTORIDADE
Um dos fatores mais valorizados na formação do cânon do Antigo Testamento foi a antiguidade dos textos. Escritos mais antigos, principalmente atribuídos à era mosaica ou aos profetas clássicos, eram considerados mais autênticos e confiáveis. Segundo Frank Moore Cross, professor emérito de Harvard, o critério da antiguidade buscava preservar os registros mais próximos das origens da fé israelita. A tradição atribuía os cinco primeiros livros da Bíblia a Moisés, conferindo-lhes autoridade fundacional. Os textos datados de períodos posteriores, como o período helenista, eram vistos com maior suspeita pelas escolas rabínicas.
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AUTORIA ATRIBUÍDA
A associação dos livros a autores reconhecidos também influenciou decisivamente as escolhas canônicas. Escritos atribuídos a figuras históricas de relevância, como Moisés, Isaías, Jeremias, Davi ou Salomão, tinham maior legitimidade. A pseudonímia, prática comum na Antiguidade, não era automaticamente rejeitada, mas apenas quando a doutrina expressa no texto corroborava a tradição atribuída ao autor. O livro de Provérbios, por exemplo, foi tradicionalmente vinculado a Salomão, o que lhe garantiu prestígio canônico, apesar da autoria coletiva e posterior. Essa tendência refletia a busca por continuidade histórica e validação espiritual.
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COERÊNCIA COM A TRADIÇÃO
A compatibilidade de um texto com as tradições religiosas estabelecidas era outro filtro importante. Textos que contradiziam a Lei mosaica, que relativizavam a unicidade de Deus ou promoviam cultos sincréticos não foram canonizados. A rejeição de obras como o Livro de Enoque, por parte do judaísmo rabínico, deveu-se em parte à sua cosmologia complexa e aos elementos apocalípticos não alinhados com a teologia oficial. De acordo com James Sanders, estudioso da Universidade de Claremont, a inclusão ou exclusão de textos visava manter uma narrativa doutrinária coerente com a história de Israel e com a centralidade da Torá.
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CONSISTÊNCIA DOUTRINÁRIA
Além da tradição, a consistência interna dos ensinamentos teológicos dos textos era avaliada. Um livro que apresentasse contradições marcantes em relação à teologia dominante do judaísmo era descartado. Escritos que exaltavam a justiça, a fidelidade à aliança e a santidade de Deus, mesmo que de épocas tardias, podiam ser aceitos se estivessem em harmonia com os princípios da fé. A consistência doutrinária era vista como sinal de inspiração e confiabilidade. Textos como Eclesiastes e Cântico dos Cânticos enfrentaram questionamentos, mas foram mantidos após interpretações alegóricas que os alinharam à ortodoxia.
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ACEITAÇÃO POPULAR
A recepção comunitária de determinados textos teve peso na decisão final sobre sua inclusão no cânon. Livros que eram amplamente lidos, memorizados e usados em celebrações litúrgicas tinham mais chances de serem reconhecidos como sagrados. Os Salmos, por exemplo, eram elementos centrais da espiritualidade judaica e, por isso, jamais foram questionados como parte da Bíblia. A influência da prática religiosa coletiva ajudou a fixar um senso de autoridade informal antes mesmo da oficialização canônica. Esse fator, citado por John Barton, revela a importância da vivência religiosa na definição do sagrado.
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INFLUÊNCIA DOS LÍDERES
A autoridade dos rabinos, sacerdotes e escribas também foi decisiva no processo. Após a destruição do Templo no ano 70 d.C., o judaísmo passou a se organizar em torno da tradição escrita e da liderança dos sábios. Esses líderes desempenharam papel fundamental na seleção final dos textos, estabelecendo critérios baseados tanto em tradição quanto em pragmatismo político-religioso. A sobrevivência do judaísmo dependia da consolidação de uma identidade textual clara, o que levou ao fechamento do cânon hebraico com 24 livros. Lee Martin McDonald observa que o consenso rabínico moldou a Bíblia como resposta às divisões internas e ameaças externas.
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DISPUTAS E AJUSTES
Apesar do esforço por consenso, houve debates intensos em torno de certos livros. Ester, Eclesiastes e o próprio Cântico dos Cânticos estiveram entre os mais controversos. Esses textos foram objeto de discussão em academias rabínicas como as de Javne e posteriormente na tradição massorética. Interpretações simbólicas, morais ou teológicas foram criadas para justificar sua permanência no cânon. A evolução desses debates demonstra que os fatores definitivos na escolha canônica envolveram não apenas critérios objetivos, mas também negociações e ajustes dentro das comunidades religiosas.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
James Sanders, 1992
John Barton, 2001
Lee Martin McDonald, 2007
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ARGUMENTOS E INTERPRETAÇÕES EM TEXTOS CONTROVERTIDOS
A inclusão de certos textos no cânon levou a debates acadêmicos e teológicos persistentes. Argumentos foram desenvolvidos para reconciliar dificuldades interpretativas e controvérsias nos textos, muitas vezes defendendo sua inspiração divina e relevância contínua. Esses debates refletem esforços para afirmar que todos os escritos do cânon refletem a vontade e a revelação de Jeová.
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TEXTOS QUESTIONADOS
A canonização do Antigo Testamento não foi um processo homogêneo. Vários livros, hoje considerados parte da Bíblia hebraica, enfrentaram resistência antes de serem aceitos. Entre os mais debatidos estão Ester, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos e Ezequiel. Cada um desses textos apresentou elementos que causaram desconforto em círculos rabínicos por questões de conteúdo, linguagem ou teologia. Por exemplo, o Livro de Ester não menciona o nome de Deus, e Ezequiel apresenta práticas sacerdotais diferentes das registradas na Torá. O estudo de Brevard Childs (Yale) documenta os desafios enfrentados por esses livros até sua aceitação definitiva.
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JUSTIFICATIVAS HERMENÊUTICAS
A principal ferramenta utilizada para validar textos controversos foi a interpretação alegórica ou simbólica. No caso do Cântico dos Cânticos, um poema de amor humano explícito, rabinos passaram a ler o texto como uma alegoria da relação entre Deus e Israel. Essa abordagem permitiu contornar a ausência de linguagem litúrgica tradicional. Eclesiastes, com seu ceticismo existencial, foi reinterpretado à luz de sua conclusão, que afirma a importância de temer a Deus. Esses procedimentos interpretativos foram fundamentais para sustentar a autoridade espiritual dos livros diante das críticas.
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AUTORIDADE DA TRADIÇÃO
Apesar das dificuldades de conteúdo, a tradição judaica frequentemente optava por preservar textos antigos com base em sua aceitação histórica. A longa utilização litúrgica e o reconhecimento por autoridades rabínicas anteriores serviam como argumento para manter livros sob suspeita. Flávio Josefo, em sua obra Contra Apion, lista 22 livros sagrados (equivalentes aos 24 do cânon hebraico atual), o que indica que mesmo os textos debatidos já gozavam de certo reconhecimento no século I d.C. A repetição e a citação desses textos em outros livros bíblicos também reforçavam sua legitimidade.
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PADRÕES NORMATIVOS
Para manter a unidade do cânon, rabinos e escribas buscaram harmonizar passagens conflitantes por meio de regras de interpretação. A escola rabínica de Hilel, por exemplo, desenvolveu princípios hermenêuticos que ajudavam a resolver contradições. Em Ezequiel, cujas leis cultuais divergiam da Torá, rabinos afirmaram que o profeta havia recebido revelações específicas para tempos futuros, e não em oposição à Lei de Moisés. Essas estratégias buscavam preservar a integridade da coleção sagrada sem descartar textos que haviam sido amplamente usados.
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PAPEL DOS TARGUMINS
As traduções e paráfrases aramaicas da Bíblia hebraica, conhecidas como Targumins, também tiveram papel relevante na mediação de textos controversos. Ao adaptarem os textos para a linguagem e compreensão popular, os tradutores inseriam explicações que atenuavam passagens difíceis. No Targum de Ester, por exemplo, há diversas adições que fazem referências explícitas a Deus, ausente no texto original. Essas inserções evidenciam uma tentativa de reforçar a espiritualidade do livro para justificar sua presença no cânon, conforme analisado por Michael Fishbane (Universidade de Chicago).
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USO CRISTÃO DOS TEXTOS
Com a apropriação das Escrituras judaicas pelos cristãos, novos sentidos foram atribuídos aos textos discutidos. A patrística leu o Cântico dos Cânticos como metáfora da relação entre Cristo e a Igreja. Os Pais da Igreja também desenvolveram exegeses morais e tipológicas para os livros mais difíceis. A aceitação desses textos pelos cristãos reforçou sua importância no imaginário religioso ocidental. De acordo com F. F. Bruce, essa recepção contribuiu para consolidar a autoridade dos textos em tradições que, embora derivadas do judaísmo, seguiram caminhos interpretativos distintos.
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RESISTÊNCIA E CONSENSO
Mesmo com todos os mecanismos de conciliação, nem todos os grupos judaicos aceitaram os mesmos textos. Os saduceus, por exemplo, restringiam-se à Torá, rejeitando os livros proféticos e sapienciais. Já os essênios, como mostram os Manuscritos do Mar Morto, valorizavam livros rejeitados pelo cânon rabínico oficial. No entanto, com o tempo, o judaísmo rabínico tornou-se dominante, e o cânon de 24 livros consolidou-se. Os argumentos e interpretações construídos para os textos controversos tornaram-se parte integrante da tradição hermenêutica, preservando-os como revelações válidas da vontade de Deus.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Brevard Childs, 1979
Michael Fishbane, 1985
F. F. Bruce, 2009
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CRITÉRIO ÚNICO: COERÊNCIA COM JESUS E O AMOR DIVINO
Para muitos estudiosos e teólogos, o critério definitivo para discernir a revelação de Deus no Antigo Testamento é sua coerência com os ensinamentos e a vida de Jesus Cristo. Jesus é visto como a encarnação do amor divino e da vontade de Deus, unindo todas as escrituras sob o princípio do amor que gera unidade e convergência espiritual.
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CRISTO COMO CHAVE HERMENÊUTICA
A leitura cristã do Antigo Testamento tem como eixo interpretativo a figura de Jesus de Nazaré. Desde os primeiros séculos, teólogos argumentaram que os textos veterotestamentários só podiam ser plenamente compreendidos à luz da vida, morte e ressurreição de Cristo. A patrística, especialmente com Orígenes e Agostinho, desenvolveu a ideia de que Jesus é a chave hermenêutica que desbloqueia o sentido profundo das Escrituras hebraicas. Essa abordagem defende que toda revelação genuína deve refletir a natureza e os ensinamentos de Cristo, considerados expressão máxima da vontade divina.
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UNIDADE ENTRE AS ALIANÇAS
A teologia cristã propôs a continuidade entre a chamada “Antiga Aliança” e a “Nova Aliança”, ambas centradas no amor de Deus. O Novo Testamento cita o Antigo em centenas de passagens, muitas vezes reinterpretando eventos, leis e profecias à luz da encarnação de Jesus. Segundo o estudioso francês Jean Daniélou, os primeiros cristãos não viam contradição entre os dois testamentos, mas uma progressiva revelação que culminava em Cristo. Essa leitura supunha que qualquer passagem que promovesse ódio, vingança ou exclusivismo precisava ser reavaliada à luz do amor cristão.
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CRÍTICAS À VIOLÊNCIA TEXTUAL
Diversos estudiosos modernos questionaram passagens do Antigo Testamento que parecem contradizer o princípio do amor incondicional. Textos que legitimam guerras santas, massacres ou punições severas são alvos recorrentes de releitura. O teólogo alemão Jürgen Moltmann defende que a revelação deve ser julgada pela cruz, símbolo máximo do amor divino e da não-violência. Segundo ele, “qualquer teologia bíblica precisa submeter os textos antigos ao critério ético-teológico do Cristo crucificado.” Essa perspectiva ganhou força em círculos ecumênicos e na teologia da libertação.
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AMOR COMO PRINCÍPIO FILTRANTE
A ideia de que o amor deve ser o filtro para reconhecer a inspiração divina encontra respaldo na própria afirmação de Jesus: “Toda a Lei e os Profetas dependem destes dois mandamentos: amar a Deus... e amar o próximo” (Mateus 22:37-40). Para estudiosos como Richard Hays (Duke University), esse ensinamento sintetiza a hermenêutica cristã das Escrituras. Textos que contrariam esse espírito não seriam “inspirados” no mesmo sentido pleno, ainda que tenham valor histórico ou cultural. A coerência com o amor é, portanto, um critério não apenas teológico, mas também moral e espiritual.
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IMPLICAÇÕES NA FORMAÇÃO DO CÂNON CRISTÃO
Essa perspectiva influenciou a seleção de livros para o cânon cristão. Os Evangelhos, as cartas paulinas e textos como a Primeira Carta de João — que afirma “Deus é amor” — ganharam centralidade. No Antigo Testamento, os Salmos e os Profetas maiores foram valorizados por sua espiritualidade e denúncia social. Ao longo da história, reformadores e estudiosos como Martinho Lutero questionaram certos livros do cânon veterotestamentário exatamente por considerarem que eles não apontavam suficientemente para Cristo e sua mensagem de amor e graça.
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HERMENÊUTICA CONTEMPORÂNEA
A teologia contemporânea continua a tensionar o cânon à luz de Jesus. Leituras pós-coloniais e feministas, por exemplo, têm argumentado que muitas estruturas opressoras encontradas em textos antigos não refletem a ética de Cristo. Elaine Pagels e outros pesquisadores destacam que o Novo Testamento também deve ser lido criticamente, mas que o modelo de amor sacrificial de Jesus permanece como norma interpretativa. Isso reforça a proposta de que a coerência com o amor encarnado deve guiar a leitura e a aceitação dos textos como revelação.
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CONVERGÊNCIA ESPIRITUAL
A adoção de Jesus como critério interpretativo promove, para diversos teólogos, uma convergência entre os textos, a experiência religiosa e a ética. Ao priorizar o amor como fundamento da revelação, esse modelo busca superar contradições e fomentar uma leitura unificadora da Bíblia. O padre Raimon Panikkar, estudioso do diálogo inter-religioso, argumentava que Jesus não cancelava a Escritura hebraica, mas a transfigurava. Essa hermenêutica valoriza a experiência espiritual como prova viva de que a Palavra continua ativa quando promove união, justiça e compaixão.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Richard B. Hays, 1996
Jürgen Moltmann, 1985
Jean Daniélou, 1958
CONCLUSÃO
A formação do cânon do Antigo Testamento é um processo que revela, mais do que uma tentativa de delimitar a Palavra de Deus, o esforço humano para preservar aquilo que julgou ser mais autêntico, mais próximo da fé dos pais e mais coerente com a experiência de comunidade e revelação. Ainda que o cânon tenha se estabelecido sob disputas e escolhas humanas, sua existência tornou possível a preservação de ensinamentos centrais que moldaram o judaísmo e, posteriormente, o cristianismo.
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Contudo, nem toda escritura aceita no cânon está isenta de tensões éticas, narrativas contraditórias ou passagens difíceis de conciliar com a imagem de um Deus de amor. Ao longo dos séculos, teólogos e estudiosos esforçaram-se para justificar tais passagens, muitas vezes utilizando métodos interpretativos complexos ou apologéticos. A grande questão permanece: o que realmente revela Deus, de forma direta e viva, a ponto de ser chamado "inspirado"?
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Nesse sentido, a coerência com Jesus Cristo — Deus conosco — emerge como o critério maior e definitivo. Tudo que se distancia da ética do amor, da compaixão, da justiça universal e da misericórdia não pode ser considerado revelação plena de Deus. A reportagem propõe, ao final, que o cânon não seja visto como prisão da verdade, mas como um testemunho histórico em movimento, cujo sentido só se completa quando lido à luz do amor, critério eterno da Revelação divina.
BIBLIOGRAFIA
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Quem Escolheu os Livros da Bíblia? (2014) – Dan Brown & Bruce M. Metzger
– Explora os critérios e os conflitos teológicos e políticos que influenciaram a seleção dos livros bíblicos, com foco especial no processo canônico do Antigo Testamento. Apresenta uma leitura acessível, mas profundamente embasada em fontes históricas e arqueológicas. -
A Bíblia e os Seus Intérpretes (2008) – Richard Simon
– Um estudo clássico que investiga como as Escrituras foram interpretadas e estabelecidas dentro das comunidades judaicas e cristãs, com forte foco no cânon hebraico. O autor foi pioneiro em propor uma abordagem crítica e racional da origem dos textos bíblicos. -
Introdução ao Antigo Testamento (2010) – Raymond E. Brown
– Obra monumental que apresenta o contexto histórico, literário e teológico dos livros do Antigo Testamento, discutindo sua formação, autorias e critérios de inspiração. Um guia fundamental para entender o cânon à luz da fé e da crítica. -
A Formação da Bíblia Hebraica (2007) – Lee Martin McDonald
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Textos Apócrifos do Antigo Testamento (2003) – James H. Charlesworth
-
Cânones e Tradições: A Bíblia e a História (2009) – F. F. Bruce
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A Tradição do Antigo Testamento (1985) – Gerhard Von Rad
-
As Escrituras Sagradas em Debate (2012) – John Barton
-
O Antigo Testamento: Uma Introdução Crítica (1999) – Otto Eissfeldt
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A Bíblia: Mito ou História? (2005) – Israel Finkelstein & Neil Asher Silberman
JUDEU DENUNCIA: SIONISMO NÃO É FÉ, É COLONIALISMO MODERNO APOIADO PELO CRISTIANISMO LATINO-AMERICANO
HOMENAGENS
Nome: Breno Altman
Obra: "Por que os judeus devem defender a Palestina"
Data: 10 de maio de 2021
Onde foi publicada: Opera Mundi
Nome: Talita Bedinelli
Obra: "Como o Brasil virou aliado incondicional de Israel"
Data: 12 de dezembro de 2019
Onde foi publicada: El País Brasil
Nome: Luis Nassif
Obra: "A manipulação da fé cristã pelo lobby sionista"
Data: 5 de agosto de 2022
Onde foi publicada: GGN – Jornal de Todos os Brasis
Nesta reportagem investigativa, analisamos as pesquisas e posicionamentos do jornalista judeu Bruno Altman sobre o sionismo, suas raízes coloniais e as implicações ético-políticas da criação e expansão do Estado de Israel. Altman, em sintonia com diversos historiadores e pensadores judeus, denuncia o uso do sionismo como justificativa para a ocupação e extermínio sistemático do povo palestino desde o século XX, revelando também as relações obscuras entre sionistas e o nazismo nos anos 1930. A reportagem detalha como o cristianismo latino-americano, sobretudo o segmento neopentecostal brasileiro, tem sido cooptado por discursos sionistas travestidos de fé, desviando a espiritualidade cristã para fins geopolíticos. Utilizando fontes acadêmicas e relatos jornalísticos, o texto percorre a trajetória da colonização palestina, o silêncio cúmplice da comunidade internacional e o papel de figuras judaicas progressistas que, como Altman, defendem a justiça e a coexistência. Trata-se de uma abordagem corajosa e profundamente embasada sobre um tema que afeta direitos humanos, liberdade religiosa e soberania dos povos.
CONTEÚDOS
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A IDENTIDADE JUDAICA EM CONFLITO
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O SIONISMO COMO PROJETO COLONIAL
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AS RELAÇÕES PARADOXAIS COM O NAZISMO
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A QUESTÃO PALESTINA COMO HERANÇA DA COLONIZAÇÃO
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ANTISSEMITISMO, ANTISSIONISMO E A CONFUSÃO DELIBERADA
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O DEVER DA VERDADE HISTÓRICA E A LUTA PELA JUSTIÇA
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A INSTRUMENTALIZAÇÃO DO CRISTIANISMO EM FAVOR DO SIONISMO
Bruno Altman é um jornalista, escritor e ativista político brasileiro de origem judaica, conhecido por sua atuação crítica em defesa dos direitos humanos, da autodeterminação dos povos e da liberdade de expressão. Fundador do site Opera Mundi, Altman possui uma trajetória intelectual marcada pelo engajamento em causas progressistas, com forte atuação na denúncia das injustiças sociais e das distorções históricas promovidas pelo poder político e midiático. Judeu de tradição familiar, ele se contrapõe ao sionismo como projeto colonial, diferenciando-o nitidamente do judaísmo como identidade cultural e religiosa. Suas pesquisas se baseiam em fontes acadêmicas internacionais, em especial os chamados “novos historiadores” israelenses, e trazem à tona aspectos ocultados sobre a fundação do Estado de Israel, suas conexões com regimes autoritários e o extermínio contínuo do povo palestino. Altman também tem se dedicado a denunciar a instrumentalização da fé cristã por interesses geopolíticos ligados a Israel, especialmente na América Latina. Sua autoridade como fonte nesta reportagem reside não apenas em sua vivência pessoal como judeu crítico ao sionismo, mas também em seu rigor jornalístico, na fidelidade aos fatos e no compromisso ético com a verdade histórica.
Bruno Altman, jornalista e militante de origem judaica, tem se debruçado sobre uma das mais complexas e sensíveis encruzilhadas do século XX: o sionismo político e sua interseção com os interesses coloniais no Oriente Médio. Diferenciando o judaísmo como religião, cultura e identidade étnica do projeto político do Estado de Israel, Altman expõe a existência de uma cisão interna entre judeus religiosos, judeus progressistas e os defensores do sionismo expansionista. Ele argumenta que o sionismo, ao contrário do que muitos supõem, não representa toda a comunidade judaica mundial e que, historicamente, diversas correntes do judaísmo ortodoxo e reformista se opuseram à criação de um Estado judeu baseado na ocupação territorial.
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IDENTIDADE JUDAICA E O SIONISMO POLÍTICO
A questão da identidade judaica atravessa fronteiras religiosas, culturais e geopolíticas. Para o jornalista e militante Bruno Altman, a construção histórica do sionismo deve ser compreendida à parte do judaísmo enquanto religião ou cultura milenar. Essa distinção, embora fundamental, é com frequência apagada nos debates públicos, o que acirra conflitos e dificulta a construção de pontes entre judeus críticos de Israel e setores mais conservadores do mundo judaico. Altman insere-se numa linhagem de intelectuais judeus que, desde o início do século XX, vêm questionando a legitimidade da colonização da Palestina sob o argumento de que ela trairia os princípios éticos do próprio judaísmo.
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CONFLITOS HISTÓRICOS ENTRE RELIGIÃO E ESTADO
O surgimento do sionismo moderno, liderado por Theodor Herzl a partir de 1896 com a publicação de “O Estado Judeu”, encontrou resistência entre rabinos ortodoxos da Europa Oriental, especialmente em regiões como a Galícia e a Lituânia. Muitos viam o projeto como uma ruptura com a tradição messiânica que previa a volta a Sião apenas após a vinda do Messias. De acordo com o historiador israelense Ilan Pappé, em obras como “A Limpeza Étnica da Palestina”, a fundação de Israel em 1948 foi acompanhada da expulsão forçada de mais de 700 mil palestinos, processo denominado Nakba, e que contribuiu para a atual disputa entre identidade judaica e projeto nacional.
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JUDEUS PROGRESSISTAS CONTRA O EXPANSIONISMO
Diversas vozes judaicas progressistas no século XX, como Hannah Arendt e Noam Chomsky, manifestaram-se contra o sionismo expansionista e o tratamento dispensado aos palestinos. Arendt, em textos publicados ainda na década de 1940, alertava para os riscos de um Estado judaico baseado em princípios etnocráticos e na segregação. Chomsky, por sua vez, identifica no apoio dos Estados Unidos a Israel um vetor geopolítico decisivo na perpetuação do conflito. Organizações como Jewish Voice for Peace e Neturei Karta, embora com diferenças teológicas e políticas, compartilham da rejeição à ideia de que o Estado de Israel representa todos os judeus do mundo.
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A DIÁSPORA E AS MÚLTIPLAS IDENTIDADES JUDAICAS
Com a diáspora judaica espalhada por mais de 80 países, é difícil falar de uma identidade homogênea. Em pesquisa do Pew Research Center de 2020, identificou-se que a maioria dos judeus norte-americanos, por exemplo, se identifica mais com valores liberais e pluralistas do que com o apoio incondicional a Israel. Isso tem gerado tensões com o governo israelense, sobretudo em relação à ocupação da Cisjordânia e ao bloqueio de Gaza. Em entrevista concedida à CartaCapital em 2023, Bruno Altman reiterou que "criticar Israel não é antissemitismo", defendendo o direito à autodeterminação palestina como uma posição ética compatível com valores judaicos de justiça e compaixão.
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ANTISSIONISMO RELIGIOSO: O CASO DOS ULTRAORTODOXOS
Correntes como os Satmar, judeus ultraortodoxos presentes nos Estados Unidos e em Israel, se posicionam abertamente contra o sionismo. Para eles, o Estado de Israel representa uma heresia por antecipar a redenção prometida. Mesmo após o Holocausto, figuras como o rabino Joel Teitelbaum rejeitaram o sionismo como solução para os judeus perseguidos. Em manifestações públicas, esses grupos chegam a queimar bandeiras de Israel e a apoiar o direito palestino à terra. Sua presença desconstrói a ideia de uma comunidade judaica monolítica em torno da política israelense e evidencia as contradições internas dessa identidade.
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COLONIALISMO ESTRATÉGICO NO ORIENTE MÉDIO
Especialistas como Edward Said e Rashid Khalidi defendem que o sionismo, especialmente após a Declaração de Balfour em 1917, foi instrumentalizado como projeto colonial britânico para manter influência sobre o Oriente Médio. A criação do Estado de Israel, nessa leitura, integrou-se a um quadro maior de descolonização e de disputas pelas rotas de petróleo e acesso ao Canal de Suez. Essa perspectiva é compartilhada por uma parte da academia judaica crítica, que vê no apoio irrestrito a Israel uma forma de perpetuar desigualdades regionais e impedir a coexistência entre judeus e árabes, historicamente possíveis em contextos como o de Bagdá, antes da partilha da Palestina.
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A ATUALIZAÇÃO DO DEBATE NA MÍDIA E NA POLÍTICA
No contexto atual, com o acirramento da violência em Gaza e a guinada conservadora em setores do governo israelense, o debate sobre a identidade judaica retorna com força. Movimentos judaicos antissionistas ganham visibilidade em manifestações internacionais e nas redes sociais. No Brasil, figuras como Bruno Altman têm ampliado esse diálogo, promovendo seminários e publicações que visam desmistificar o sionismo como representação universal dos judeus. Ele destaca a importância de ouvir judeus que não se sentem representados pelas políticas israelenses e defende que o combate ao antissemitismo deve caminhar junto à crítica ao colonialismo, como já apontava a filósofa Judith Butler em sua obra “Parting Ways”.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
O Estado Judeu – Theodor Herzl, 1896
A limpeza étnica da Palestina – Ilan Pappé, 2006
Parting Ways: Jewishness and the Critique of Zionism – Judith Butler, 2012
2. O SIONISMO COMO PROJETO COLONIAL
Baseando-se em fontes como Ilan Pappé, Edward Said e os “Novos Historiadores” israelenses, Altman classifica o sionismo como um projeto colonial moderno, alinhado aos interesses do imperialismo britânico no início do século XX. Ele destaca que o movimento sionista, fundado por Theodor Herzl no final do século XIX, foi uma resposta à perseguição antissemita na Europa, mas escolheu uma via nacionalista e excludente para sua solução. Com o apoio da Declaração Balfour (1917) — na qual o governo britânico prometia apoio à criação de um “lar nacional judeu” na Palestina — iniciou-se um processo sistemático de ocupação, expropriação e limpeza étnica contra o povo palestino, especialmente após 1948, quando se concretizou o Estado de Israel.
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O SIONISMO E A LÓGICA DO COLONIALISMO MODERNO
O surgimento do sionismo político no final do século XIX inscreve-se em uma lógica de nacionalismos europeus e projetos coloniais que marcaram a modernidade. Theodor Herzl, ao publicar “O Estado Judeu” em 1896, propôs a criação de um lar nacional para o povo judeu como resposta à intensificação do antissemitismo, especialmente nos pogroms do Leste Europeu e no caso Dreyfus na França. No entanto, segundo o historiador israelense Ilan Pappé, esse projeto rapidamente se alinhou com os interesses das potências coloniais da época, especialmente o Império Britânico, que via no assentamento judeu na Palestina uma estratégia geopolítica para consolidar sua presença no Oriente Médio.
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A DECLARAÇÃO BALFOUR E O IMPÉRIO BRITÂNICO
Em 2 de novembro de 1917, o governo britânico emitiu a Declaração Balfour, comprometendo-se com o estabelecimento de um “lar nacional para o povo judeu” na Palestina, sem consulta prévia à população árabe local. Edward Said, em seu livro “Orientalismo”, interpreta esse gesto como parte de uma política imperial que desconsiderava os direitos dos povos nativos em prol de arranjos estratégicos com elites externas. A Palestina, então sob domínio otomano e posteriormente sob mandato britânico (1920-1948), tornou-se o palco de uma imigração judaica crescente, patrocinada por interesses europeus que enxergavam o sionismo como um instrumento de controle da região.
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NOVOS HISTORIADORES E A NAKBA
A partir da década de 1980, um grupo de intelectuais israelenses conhecido como “Novos Historiadores” — entre eles Benny Morris, Avi Shlaim e Ilan Pappé — acessou documentos militares e governamentais que revelaram a dimensão sistemática da expulsão dos palestinos em 1948. Esse processo, denominado Nakba (“catástrofe” em árabe), resultou na expulsão de aproximadamente 750 mil palestinos e na destruição de mais de 400 vilarejos. Pappé, em “A Limpeza Étnica da Palestina”, sustenta que a remoção da população árabe não foi um efeito colateral da guerra, mas parte de um plano prévio denominado Plano Dalet, formulado pela liderança sionista antes da fundação de Israel.
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COLONIZAÇÃO ESTRUTURAL E EXPROPRIAÇÃO
Desde o início da colonização sionista, as práticas de compra de terras por instituições como o Fundo Nacional Judaico priorizavam a exclusão de trabalhadores árabes e a substituição demográfica. Pesquisas de Rashid Khalidi demonstram que, entre 1920 e 1947, as políticas fundiárias britânicas facilitaram a transferência de propriedade da terra para colonos sionistas, mesmo quando a maioria da população era palestina. Esses mecanismos de expropriação aprofundaram o ressentimento e a resistência local, gerando revoltas como a Grande Revolta Árabe (1936-1939), duramente reprimida pelas autoridades britânicas em colaboração com milícias judaicas.
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DEPOIMENTOS DE SOBREVIVENTES E DOCUMENTOS MILITARES
Diversos relatos de refugiados palestinos, compilados por organizações como o Instituto de Estudos Palestinos e por documentaristas como Elias Sanbar, corroboram os achados dos Novos Historiadores. Os documentos do Haganá (força paramilitar sionista) indicam ordens para evacuar populações inteiras, destruir casas e impedir o retorno dos exilados. Tais ações se alinham ao conceito de limpeza étnica definido pelo direito internacional, embora Israel conteste essa narrativa, argumentando que a saída dos palestinos se deu por causa da guerra iniciada pelos países árabes em resposta à declaração de independência israelense.
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PAPEL DOS ESTADOS UNIDOS E CONTINUIDADE DO COLONIALISMO
Após 1948, os Estados Unidos assumiram o papel de principal apoiador internacional de Israel, promovendo ajuda financeira, militar e diplomática que possibilitou a manutenção e expansão dos assentamentos em territórios ocupados. O apoio norte-americano foi decisivo para consolidar a ocupação da Cisjordânia, de Gaza e de Jerusalém Oriental após a Guerra dos Seis Dias, em 1967. Segundo o historiador Norman Finkelstein, autor de “Image and Reality of the Israel–Palestine Conflict”, essa política consolidou um modelo de colonização permanente, amparado em discursos de segurança e autodefesa, mas que perpetuam a exclusão e a não soberania palestina.
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BRUNO ALTMAN E A CRÍTICA JUDAICA AO SIONISMO
Bruno Altman, jornalista e judeu brasileiro, vem se destacando no debate público por sua crítica sistemática ao sionismo enquanto projeto colonial. Em entrevistas e artigos, como os publicados na CartaCapital, ele enfatiza a dissociação entre judaísmo e sionismo, alertando para os riscos de associar a crítica a Israel ao antissemitismo. Altman se apoia nas leituras de Pappé, Said e dos Novos Historiadores para sustentar que a fundação do Estado de Israel ocorreu em detrimento de um povo nativo, e que a reparação histórica exige o reconhecimento da Nakba e a garantia do direito de retorno dos refugiados palestinos, conforme previsto pela Resolução 194 da ONU.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
A limpeza étnica da Palestina – Ilan Pappé, 2006
Orientalismo – Edward Said, 1978
A questão da Palestina – Rashid Khalidi, 1997
3. AS RELAÇÕES PARADOXAIS COM O NAZISMO
Em suas pesquisas, Bruno Altman também mergulha em episódios obscuros da história pré-Segunda Guerra, como a cooperação inicial entre alguns setores do sionismo e o regime nazista. Referindo-se ao Acordo de Haavara (1933), Altman aponta que líderes sionistas negociaram com o governo de Hitler a transferência de judeus alemães e seus bens para a Palestina, em troca do esvaziamento da presença judaica na Alemanha. Tal colaboração, embora controversa, é documentada por historiadores como Lenni Brenner (“Zionism in the Age of the Dictators”), e revela uma realidade incômoda: o sionismo político, em alguns momentos, priorizou seu projeto territorial mesmo em detrimento da luta contra o nazismo.
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AS NEGOCIAÇÕES ENTRE SIONISTAS E NAZISTAS
A cooperação entre representantes do movimento sionista e o regime nazista alemão nos anos 1930 é um dos capítulos mais controversos da história do século XX. O Acordo de Haavara, assinado em 1933 entre a Federação Sionista da Alemanha e autoridades do Terceiro Reich, permitiu a emigração de cerca de 60 mil judeus alemães para a Palestina, junto com uma parte de seus bens. Segundo o historiador Lenni Brenner, autor de “O Sionismo na Era dos Ditadores”, essa aliança pragmática visava facilitar a transferência econômica e fortalecer a colonização judaica na Palestina, enquanto o regime de Hitler buscava eliminar a presença judaica da Alemanha.
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INTERESSES ESTRATÉGICOS EM JOGO
Para o regime nazista, o acordo representava uma via eficiente de expulsão dos judeus sem recorrer, naquele momento, à violência sistemática que viria nos anos seguintes. Para os líderes sionistas, a Haavara foi uma oportunidade de aumentar a população judaica na Palestina, num período de forte oposição árabe à imigração. Essa negociação, realizada com mediação do Banco Anglo-Palestino e de representantes sionistas como Haim Arlosoroff, foi duramente criticada por setores do judaísmo antissionista e por líderes da diáspora que viam no acordo uma traição à resistência judaica internacional ao nazismo.
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REAÇÕES DA COMUNIDADE JUDAICA INTERNACIONAL
Organizações judaicas internacionais, como o Congresso Judaico Mundial, condenaram o pacto, especialmente nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, onde boicotes a produtos alemães já estavam sendo organizados. Em contraste, a Agência Judaica, dominada por sionistas, defendeu o acordo como um “mal necessário”. O próprio Albert Einstein, embora sionista cultural, recusou-se a apoiar politicamente a cooperação com os nazistas. Bruno Altman, em entrevistas recentes, retoma esse episódio para demonstrar como o sionismo político priorizou seu projeto territorial mesmo diante da escalada antissemita que culminaria no Holocausto.
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A MORTE DE ARLOSOROFF E SUAS IMPLICAÇÕES
Haim Arlosoroff, um dos arquitetos do Acordo de Haavara e então chefe do departamento político da Agência Judaica, foi assassinado em junho de 1933, poucos dias após retornar de negociações com o regime nazista. Seu assassinato permanece envolto em mistério, mas alimentou teorias de conspiração e disputas internas entre diferentes correntes sionistas. Para historiadores como Francis Nicosia, autor de “The Third Reich and the Palestine Question”, o assassinato de Arlosoroff representa a complexidade e os conflitos éticos que marcaram a relação entre o sionismo político e os acontecimentos da Europa nazista.
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AS LIMITAÇÕES DO ACORDO E SEUS RESULTADOS
Embora tenha permitido a emigração de milhares de judeus, o Acordo de Haavara teve impacto limitado no enfrentamento da política genocida nazista. A maioria dos judeus europeus, especialmente da Europa Oriental, permaneceu sem saída segura até o início da guerra. Segundo dados do Instituto Yad Vashem, cerca de seis milhões de judeus foram mortos durante o Holocausto. A cooperação inicial entre sionistas e nazistas, portanto, não impediu o genocídio, e até hoje é usada por críticos do sionismo para argumentar que o projeto político sionista ignorou a solidariedade ampla com os judeus da diáspora em favor da construção do Estado na Palestina.
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IMPLICAÇÕES PARA A HISTORIOGRAFIA CONTEMPORÂNEA
A abordagem crítica de pesquisadores como Lenni Brenner foi alvo de disputas historiográficas, sendo rejeitada por autores mais conservadores e defendida por historiadores revisionistas. Bruno Altman, ao trazer o tema à tona em suas análises, busca romper com o silenciamento sobre esse episódio na narrativa oficial sobre a criação de Israel. Ele destaca que a complexidade dos fatos históricos exige uma leitura que vá além do maniqueísmo, investigando os interesses políticos e pragmáticos que moldaram a aliança temporária entre duas forças ideologicamente opostas: o sionismo e o nazismo.
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A CONTINUIDADE DO DEBATE E A MEMÓRIA HISTÓRICA
Nos dias atuais, o debate sobre a Haavara permanece sensível. Em Israel, ele é frequentemente minimizado ou ignorado em currículos escolares. Já em círculos acadêmicos e movimentos judaicos antissionistas, a discussão é retomada como forma de questionar a legitimidade moral de um projeto que, em seus primórdios, não hesitou em negociar com um regime antissemita. Bruno Altman defende que reconhecer esse episódio é essencial para compreender as ambiguidades do sionismo e para desconstruir a ideia de que todos os judeus apoiaram, ou ainda apoiam, o Estado de Israel como ele foi concebido.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
O sionismo na era dos ditadores – Lenni Brenner, 1983
O Terceiro Reich e a questão da Palestina – Francis R. Nicosia, 1985
Orientalismo – Edward Said, 1978
4. A QUESTÃO PALESTINA COMO HERANÇA DA COLONIZAÇÃO
Altman denuncia que a atual situação dos palestinos é resultado direto das estratégias de colonização sionista, apoiadas por potências ocidentais, com o objetivo de manter uma cabeça de ponte geopolítica no Oriente Médio. Desde 1948, mais de 700 mil palestinos foram expulsos ou forçados a abandonar suas terras, num processo que o historiador israelense Ilan Pappé chama de “limpeza étnica da Palestina”. Altman destaca que o bloqueio a Gaza, os assentamentos ilegais na Cisjordânia, o apartheid institucionalizado dentro de Israel e as sucessivas ofensivas militares são partes de uma engrenagem que visa destruir a viabilidade de um Estado palestino autônomo.
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A NAKBA E A EXPULSÃO EM MASSA
A criação do Estado de Israel em 1948 foi acompanhada pela expulsão de cerca de 750 mil palestinos de suas casas, vilarejos e cidades, episódio conhecido como Nakba, ou “catástrofe”. A partir de documentos oficiais israelenses liberados nas décadas seguintes, o historiador Ilan Pappé sustentou, no livro “A limpeza étnica da Palestina”, que essa expulsão não foi resultado apenas da guerra, mas de uma estratégia deliberada de desocupação territorial para viabilizar um Estado com maioria judaica. Mais de 400 vilarejos palestinos foram destruídos, impedindo o retorno das famílias às suas terras de origem, num processo que ainda hoje impede a resolução definitiva da questão dos refugiados.
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APARTHEID E SEGREGAÇÃO LEGALIZADA
Estudos de instituições de direitos humanos como a Human Rights Watch e a organização israelense B’Tselem classificaram, em relatórios recentes, o regime imposto aos palestinos por Israel como um sistema de apartheid. Dentro das fronteiras oficiais de Israel, leis como a Lei do Estado-Nação (2018) reforçam a primazia do povo judeu como titular da soberania, excluindo os cidadãos árabes-palestinos — que representam cerca de 20% da população — de direitos plenos. A distinção legal entre judeus e não judeus é mantida também por meio de políticas de urbanização, orçamento e acesso à terra, dificultando a integração e reforçando a marginalização histórica dos palestinos.
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O BLOQUEIO DE GAZA COMO INSTRUMENTO DE CONTROLE
Desde 2007, após a vitória do Hamas nas eleições palestinas, a Faixa de Gaza vive sob um bloqueio terrestre, marítimo e aéreo imposto por Israel, com apoio do Egito em suas fronteiras. O bloqueio tem consequências graves: segundo a ONU, mais de 80% da população depende de ajuda humanitária e há escassez crônica de energia elétrica, medicamentos e água potável. O jornalista Bruno Altman e analistas como Sara Roy, pesquisadora da Universidade Harvard, consideram que o bloqueio não visa apenas questões de segurança, mas compõe uma estratégia mais ampla de punição coletiva e inviabilização de qualquer governo palestino minimamente autônomo em Gaza.
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OS ASSENTAMENTOS E A FRAGMENTAÇÃO DA CISJORDÂNIA
Na Cisjordânia, mais de 700 mil colonos judeus vivem em assentamentos considerados ilegais pelo direito internacional, construídos em áreas ocupadas militarmente desde 1967. A expansão desses assentamentos é acompanhada por um sistema de estradas exclusivas, postos de controle e muros de separação que fragmentam o território palestino, inviabilizando a formação de um Estado contíguo. De acordo com a ONG Peace Now, a construção contínua de assentamentos nos últimos 40 anos tem como objetivo consolidar o domínio israelense sobre a região, tornando irreversível a ocupação. Esse cenário leva especialistas a falarem em um “bantustanismo” moderno, em referência ao regime do apartheid sul-africano.
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VIOLAÇÕES DE DIREITOS E OFENSIVAS MILITARES
Ofensivas militares periódicas em Gaza, como as de 2008, 2014 e 2021, resultaram em milhares de mortos, majoritariamente civis, e destruição massiva de infraestrutura. Investigações do Conselho de Direitos Humanos da ONU e de organizações como a Anistia Internacional apontaram para o uso desproporcional da força por parte do Exército israelense, além do bombardeio de escolas, hospitais e residências. Bruno Altman tem denunciado essas ações como parte de uma política de aniquilação da capacidade organizativa e civil da população palestina, o que agrava ainda mais a crise humanitária e mina as possibilidades de paz duradoura na região.
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GEOPOLÍTICA E APOIO DAS POTÊNCIAS OCIDENTAIS
O apoio diplomático, militar e financeiro dos Estados Unidos, e em menor grau da União Europeia, tem sido determinante para a manutenção do atual status quo. Desde 1948, Israel recebeu bilhões de dólares em ajuda norte-americana, sendo o maior beneficiário de auxílio militar dos EUA. Esse apoio é justificado por razões estratégicas, como o controle de rotas comerciais, contenção de movimentos nacionalistas árabes e aliança na Guerra Fria. Segundo Noam Chomsky, Israel funciona como uma “cabeça de ponte” ocidental no Oriente Médio, assegurando interesses geopolíticos que ultrapassam a questão da segurança israelense.
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O IMPASSE E A NÃO VIABILIDADE PALESTINA
Diversas iniciativas diplomáticas, como os Acordos de Oslo (1993) e o chamado “Mapa da Paz” (2003), fracassaram diante da continuidade da colonização e da recusa israelense em discutir temas centrais como o direito de retorno dos refugiados e a retirada dos assentamentos. Analistas políticos como Rashid Khalidi e Edward Said já alertavam que a estratégia israelense visava não apenas ocupar a terra, mas impossibilitar a existência de um Estado palestino autônomo e viável. Altman destaca que essa política de longo prazo configura uma herança direta da lógica colonial europeia, reeditada no contexto contemporâneo sob o discurso de segurança e autodefesa.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
A limpeza étnica da Palestina – Ilan Pappé, 2006
A questão da Palestina – Edward Said, 1979
O pacto de Oslo e o fim da Palestina – Rashid Khalidi, 2013
5. ANTISSEMITISMO, ANTISSIONISMO E A CONFUSÃO DELIBERADA
Um dos pontos centrais abordados por Altman é a manipulação do conceito de antissemitismo. Ele critica o uso político do termo para calar vozes críticas ao Estado de Israel e ao sionismo. Diversos intelectuais judeus e não judeus, como Noam Chomsky, Norman Finkelstein e o próprio Bruno Altman, têm reiterado que criticar as políticas do governo israelense não é o mesmo que odiar judeus. Altman defende que essa confusão deliberada é alimentada por grupos pró-Israel para deslegitimar o debate público sobre os direitos dos palestinos e para consolidar a narrativa de Israel como única vítima no conflito.
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A DISTINÇÃO FUNDAMENTAL ENTRE CONCEITOS
A confusão entre antissemitismo e antissionismo tornou-se uma das questões centrais no debate sobre o conflito israelense-palestino. Bruno Altman, assim como outros intelectuais, argumenta que essa confusão não é meramente semântica, mas parte de uma estratégia política deliberada. Enquanto o antissemitismo é o preconceito ou ódio contra judeus enquanto grupo étnico ou religioso, o antissionismo se refere à oposição ao projeto político do sionismo e às políticas do Estado de Israel. A distinção tem respaldo histórico: setores do judaísmo ortodoxo, inclusive, opõem-se há décadas ao sionismo, sem que isso configure hostilidade a judeus.
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A POLITIZAÇÃO DO ANTISSEMITISMO
Organizações pró-Israel e setores do lobby israelense em diversos países passaram a utilizar a acusação de antissemitismo como ferramenta para deslegitimar críticos das políticas de ocupação e repressão na Palestina. No Reino Unido, o Partido Trabalhista enfrentou, entre 2015 e 2019, uma série de acusações de antissemitismo direcionadas à liderança de Jeremy Corbyn, cujas críticas ao Estado de Israel eram frequentes. A jornalista britânica Naomi Wimborne-Idrissi, do grupo Jewish Voice for Labour, denunciou que a campanha visava silenciar posicionamentos pró-palestinos no espaço político e mediático, especialmente entre judeus progressistas.
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A DEFINIÇÃO POLÊMICA DA IHRA
A Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA) propôs, em 2016, uma definição de antissemitismo que inclui entre seus exemplos a crítica ao Estado de Israel. Essa definição foi adotada por diversos países ocidentais e instituições acadêmicas, mas também recebeu severas críticas. Noam Chomsky classificou a definição como “instrumento de censura”, enquanto o historiador israelense Avi Shlaim afirmou que ela mina o debate democrático sobre a política israelense. Diversas universidades e grupos de direitos humanos se recusaram a adotar o texto, por considerarem que ele transforma o antissionismo em discurso de ódio, o que poderia criminalizar a solidariedade com a causa palestina.
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FINKELSTEIN E A INDÚSTRIA DO HOLOCAUSTO
O cientista político Norman Finkelstein, judeu filho de sobreviventes do Holocausto, foi um dos primeiros a denunciar o que chamou de “indústria do Holocausto”. No livro homônimo publicado em 2000, Finkelstein argumenta que o sofrimento judaico foi instrumentalizado politicamente e financeiramente por organizações que vinculam o antissemitismo à crítica a Israel. Segundo ele, essa manipulação compromete a memória do Holocausto e distorce o debate sobre justiça no Oriente Médio. Finkelstein, por sua posição crítica, foi impedido de lecionar em diversas universidades norte-americanas, tornando-se um símbolo do cerceamento acadêmico relacionado ao tema.
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OS RISCOS DA CENSURA E DO SILENCIAMENTO
Organizações de direitos civis, como a American Civil Liberties Union (ACLU), manifestaram preocupação com legislações que proíbem o boicote a Israel, como as aprovadas em mais de 30 estados norte-americanos. Tais medidas foram criticadas por suprimirem o direito à livre expressão, ao associar automaticamente a crítica a Israel com antissemitismo. No Brasil, Bruno Altman e outros ativistas relataram tentativas de censura em eventos e publicações que abordavam a causa palestina. A estratégia de silenciar por meio da acusação difamatória compromete, segundo analistas, o direito ao dissenso e à crítica política em sociedades democráticas.
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O PAPEL DOS JUDEUS ANTISSIONISTAS
Movimentos compostos por judeus que se opõem ao sionismo têm ganhado espaço em diversas partes do mundo. Organizações como Jewish Voice for Peace, nos Estados Unidos, e a israelense Breaking the Silence reúnem vozes que questionam a ocupação e os abusos cometidos contra palestinos em nome da segurança israelense. Bruno Altman destaca que esses movimentos enfrentam dupla resistência: do antissemitismo clássico e da acusação de traição à identidade judaica. No entanto, para esses ativistas, o antissionismo se apresenta como uma forma legítima e ética de compromisso com os direitos humanos e com a justiça universal.
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NARRATIVAS EM DISPUTA
A estratégia de associar toda crítica a Israel ao antissemitismo tem sido analisada como uma tentativa de controlar as narrativas públicas sobre o conflito. Altman enfatiza que o uso político do antissemitismo desvia o foco da violência contra os palestinos e reforça a imagem de Israel como vítima solitária. Estudos acadêmicos e relatórios de imprensa indicam que esse enquadramento influencia decisões legislativas, políticas educacionais e a cobertura midiática do tema. A dissociação entre crítica política e ódio religioso ou étnico torna-se, assim, uma tarefa urgente para preservar a liberdade de expressão e o rigor analítico nas discussões sobre o Oriente Médio.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
A indústria do Holocausto – Norman Finkelstein, 2000
O conflito Israel–Palestina – Noam Chomsky, 2003
A questão da Palestina – Edward Said, 1979
6. O DEVER DA VERDADE HISTÓRICA E A LUTA PELA JUSTIÇA
Altman conclui que, como judeu, tem o dever ético de se opor ao colonialismo e à opressão exercida em nome da sua identidade. Ele convoca a comunidade internacional e os próprios judeus progressistas a romperem o silêncio diante dos crimes cometidos contra o povo palestino. Seu trabalho não é apenas um exercício histórico, mas um apelo humanista. A luta de Altman se alinha à de figuras como Hannah Arendt, que já alertava sobre os riscos do nacionalismo cego e da instrumentalização da memória do Holocausto. Seu ativismo é um lembrete de que a justiça para os palestinos também é uma luta contra o antissemitismo, o racismo e o autoritarismo em todas as suas formas.
O COMPROMISSO COM A MEMÓRIA E A JUSTIÇA
Bruno Altman fundamenta sua atuação pública na convicção de que há um dever ético de enfrentamento às opressões cometidas em nome da identidade judaica. Em entrevistas e artigos, ele afirma que a memória do Holocausto não pode ser usada como escudo para a negação de direitos fundamentais a outro povo. Para Altman, a herança histórica do povo judeu, marcada por perseguições, diásporas e extermínios, deve conduzir a um posicionamento claro contra todas as formas de colonialismo, especialmente aquele exercido pelo Estado de Israel sobre os palestinos desde 1948.
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A TRAJETÓRIA DO JUDAÍSMO CRÍTICO
A tradição judaica contém em sua própria história uma vertente crítica e antiautoritária. Intelectuais como Hannah Arendt, Martin Buber e Judah Magnes já alertavam, ainda nos anos 1940, para os riscos do nacionalismo sionista e da criação de um Estado baseado na exclusão étnica. Arendt, em especial, via no projeto sionista uma inversão do princípio moral judaico, ao transformar vítimas históricas em agentes de dominação. Bruno Altman retoma essas vozes para lembrar que o judaísmo não é monolítico e que há, dentro dele, uma longa linhagem de luta por justiça social e universalismo.
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JUSTIÇA E UNIVERSALISMO CONTRA O RACISMO
A luta pela justiça na Palestina, segundo Altman, é inseparável da luta global contra o racismo, o autoritarismo e todas as formas de opressão. Ele aponta que a violência estrutural imposta aos palestinos reflete dinâmicas que se repetem em outros contextos coloniais e autoritários, como o apartheid sul-africano e a segregação racial nos Estados Unidos. Autores como Angela Davis e Judith Butler também têm defendido que a solidariedade com o povo palestino deve integrar as agendas progressistas em todo o mundo, pois se trata de uma causa transversal à luta por direitos humanos.
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O PAPEL DOS JUDEUS PROGRESSISTAS
Judeus progressistas em diversas partes do mundo têm se mobilizado em favor da justiça para os palestinos, muitas vezes enfrentando hostilidade dentro da própria comunidade. Grupos como Jewish Voice for Peace, IfNotNow e Breaking the Silence reúnem israelenses e judeus da diáspora que se recusam a aceitar a ocupação como um destino inevitável. Bruno Altman participa desse movimento internacional, destacando que o silêncio diante da opressão é uma forma de cumplicidade. Em seus textos, ele argumenta que a fidelidade aos princípios judaicos exige a denúncia do apartheid e o reconhecimento da Nakba como tragédia fundadora.
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A INSTRUMENTALIZAÇÃO POLÍTICA DO HOLOCAUSTO
O uso político da memória do Holocausto é tema recorrente no trabalho de Altman. Ele retoma críticas de Norman Finkelstein e de Hannah Arendt sobre a manipulação da memória histórica para justificar políticas atuais. O Holocausto, afirma Altman, deve servir como alerta contra todas as formas de desumanização, e não como justificativa para a exclusão de outros povos. Essa abordagem é compartilhada por pesquisadores como Idith Zertal, que em “A Nação e a Morte” discute como Israel transformou a memória da Shoah em ferramenta ideológica de legitimação do Estado e da sua política de segurança.
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O DEBATE NA COMUNIDADE INTERNACIONAL
A causa palestina voltou ao centro do debate público nos últimos anos, com protestos globais, denúncias de organizações internacionais e manifestações de artistas, acadêmicos e ativistas. A Anistia Internacional, a Human Rights Watch e o Conselho de Direitos Humanos da ONU emitiram relatórios apontando violações sistemáticas de direitos humanos. Bruno Altman defende que o papel da comunidade internacional é fundamental para pressionar por um acordo justo e para impedir que Israel continue a agir com impunidade. Ele argumenta que o direito internacional, especialmente a Convenção de Genebra e as resoluções da ONU, deve ser o parâmetro para a resolução do conflito.
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MEMÓRIA, VERDADE E REPARAÇÃO
A proposta de Altman se articula com a ideia de justiça restaurativa: reconhecer os crimes cometidos contra o povo palestino, garantir o direito de retorno dos refugiados e pôr fim à ocupação e ao apartheid. Para ele, sem memória histórica e reconhecimento da verdade, não há possibilidade de reconciliação. Sua atuação combina jornalismo, ativismo e reflexão filosófica, ecoando tradições judaicas que colocam a justiça no centro da existência coletiva. Altman entende que a luta pela Palestina é também uma luta pela integridade moral do judaísmo progressista e pela preservação da dignidade humana.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Eichmann em Jerusalém – Hannah Arendt, 1963
A indústria do Holocausto – Norman Finkelstein, 2000
A nação e a morte – Idith Zertal, 2005
Bruno Altman alerta ainda para um fenômeno especialmente preocupante na América Latina, sobretudo no Brasil: a crescente manipulação do cristianismo — em especial o segmento evangélico neopentecostal — como ferramenta de apoio incondicional ao sionismo político. Líderes religiosos e políticos cristãos têm promovido a ideia de que o Estado de Israel moderno seria o cumprimento literal das profecias bíblicas, ignorando o contexto histórico, geopolítico e os direitos do povo palestino. Tal discurso, amplamente difundido por televangelistas, parlamentares da chamada "bancada evangélica" e organizações como a Embaixada Cristã Internacional de Jerusalém, associa a defesa do Estado de Israel a uma suposta fidelidade a Deus. Altman observa que essa aliança entre sionismo e cristianismo conservador serve a interesses estratégicos dos Estados Unidos e de elites locais, ao mesmo tempo em que desvirtua os ensinamentos originais de Jesus — que pregava o amor aos oprimidos, a paz e a justiça —, substituindo-os por uma teologia do poder, da guerra santa e da exclusão. Essa instrumentalização espiritual neutraliza a crítica política e transforma o cristianismo em uma arma ideológica de dominação e negação de direitos humanos.
A CONSTRUÇÃO DO SIONISMO CRISTÃO
A aliança entre setores do cristianismo conservador e o sionismo político tem raízes nos Estados Unidos, especialmente a partir do século XX, com a ascensão do movimento conhecido como sionismo cristão. Pastores e teólogos evangélicos passaram a interpretar profecias bíblicas do Antigo Testamento como previsões do estabelecimento do Estado de Israel em 1948. Essa interpretação ganhou força com o apoio de figuras como Jerry Falwell e Pat Robertson, televangelistas influentes que integraram a chamada “direita cristã”. No Brasil, esse discurso foi importado e ampliado por líderes neopentecostais que enxergam no apoio irrestrito a Israel um sinal de fidelidade espiritual.
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A ATUAÇÃO POLÍTICA DA “BANCADA EVANGÉLICA”
No Congresso Nacional brasileiro, membros da “bancada evangélica” têm estabelecido uma ligação direta entre sua fé e o apoio político ao Estado de Israel. Parlamentares como Marco Feliciano e Eduardo Bolsonaro participaram de eventos pró-Israel e defenderam publicamente o reconhecimento de Jerusalém como capital exclusiva do Estado israelense, seguindo o exemplo do governo Trump. A aliança também se manifesta por meio de leis, homenagens e cooperação interparlamentar com o governo israelense, o que, segundo críticos como Bruno Altman, revela uma instrumentalização teológica a serviço de interesses geopolíticos e econômicos transnacionais.
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AS ORGANIZAÇÕES EVANGÉLICAS PRÓ-ISRAEL
Organizações como a Embaixada Cristã Internacional de Jerusalém e a Associação de Pastores Amigos de Israel atuam diretamente na América Latina promovendo peregrinações, conferências e campanhas de apoio a Israel. Essas entidades difundem uma teologia dispensacionalista, segundo a qual o “retorno dos judeus à Terra Santa” é um passo necessário para o cumprimento das profecias apocalípticas. Esse tipo de crença mobiliza milhões de fiéis, principalmente em países do Sul Global, reforçando uma narrativa messiânica que exclui a causa palestina e a reduz a uma oposição ao plano divino. Altman afirma que essa teologia anula a análise crítica sobre os conflitos reais no Oriente Médio.
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JESUS, OS OPRIMIDOS E A DISTORÇÃO DO EVANGELHO
Bruno Altman ressalta que a leitura bíblica promovida por setores do sionismo cristão desconsidera os ensinamentos originais de Jesus. O Jesus histórico, segundo teólogos como José Comblin e Leonardo Boff, era um defensor dos pobres, um crítico das autoridades religiosas de sua época e pregador da paz e do amor ao próximo, inclusive ao inimigo. Ao transformar o cristianismo em ferramenta de apoio à guerra, à ocupação e ao apartheid, os grupos sionistas cristãos — segundo Altman — distorcem o núcleo ético do Evangelho. Essa teologia de guerra espiritual e domínio político substitui a compaixão por uma doutrina de aliança com o poder e de exclusão dos que sofrem.
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O USO DA FÉ PARA NEUTRALIZAR O DEBATE POLÍTICO
Ao associar a fé cristã ao apoio incondicional ao Estado de Israel, líderes religiosos e políticos impedem que temas como ocupação militar, limpeza étnica e apartheid sejam discutidos sob a perspectiva dos direitos humanos. Críticas às ações do governo israelense passam a ser vistas como heresias, e os defensores da causa palestina são retratados como inimigos da fé. Altman observa que esse processo neutraliza a crítica política e silencia vozes dissonantes dentro das próprias comunidades religiosas. A sacralização do Estado de Israel transforma a política externa brasileira e latino-americana em território de disputa teológica.
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INTERESSES GEOPOLÍTICOS DOS EUA NA REGIÃO
O apoio evangélico ao sionismo não se restringe à fé: ele também serve aos interesses estratégicos dos Estados Unidos e de seus aliados. A aliança entre cristãos conservadores e o lobby pró-Israel fortalece agendas econômicas e militares no Oriente Médio. Segundo pesquisadores como Juan Cole e Jeff Halper, a retórica religiosa permite justificar intervenções, acordos de armas e o apoio a regimes autoritários. No Brasil, essa aliança fortalece setores ultraconservadores e influencia políticas externas voltadas à cooperação militar e tecnológica com Israel. Altman argumenta que a fé é usada como instrumento de legitimação de uma geopolítica de dominação.
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A URGÊNCIA DE UMA TEOLOGIA DA JUSTIÇA
Diante desse cenário, teólogos progressistas e movimentos cristãos de base têm proposto uma releitura das Escrituras a partir da ótica dos direitos humanos. Documentos como o Kairos Palestina (2009), redigido por líderes cristãos palestinos, chamam os cristãos do mundo a se posicionarem contra a ocupação e em favor da justiça. No Brasil, redes como o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC) e a Pastoral da Terra têm manifestado solidariedade ao povo palestino. Altman defende que o cristianismo latino-americano recupere sua tradição libertadora e volte a ser voz profética ao lado dos oprimidos, e não cúmplice dos poderosos.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Jesus e os marginalizados – José Comblin, 1980
A teologia da libertação – Leonardo Boff, 1986
O lobby cristão e Israel – Stephen Spector, 2009
A análise das pesquisas de Bruno Altman revela não apenas uma ruptura entre judaísmo e sionismo, mas um esforço consciente de reapropriar a história a partir das vítimas do processo colonial. Sua voz, assim como a de outros intelectuais judeus críticos, recoloca a questão palestina sob a perspectiva do direito à vida, à terra e à dignidade. É um chamado ao mundo para distinguir entre fé e projeto político, entre identidade e ideologia de dominação....
A instrumentalização do cristianismo na América Latina para servir à geopolítica israelense é uma afronta aos valores mais elementares do Evangelho. Pastores e líderes que substituem a compaixão pelo fanatismo sionista estão não só traindo o Cristo que dizem seguir, mas também se tornando cúmplices da destruição de um povo. Denunciar essa manipulação é um ato de fidelidade tanto à fé quanto à humanidade.
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Este trabalho buscou aprofundar o debate com base em fatos, documentos e vozes divergentes — e, sobretudo, ressaltar que a luta palestina não é contra judeus, mas contra uma política de extermínio legitimada por interesses coloniais. A verdade histórica, ainda que desconfortável, é um dever moral para qualquer sociedade que pretenda se afirmar como justa e democrática.
BIBLIOGRAFIA
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"Sionismo na Era dos Ditadores" – Lenni Brenner (1983)
Obra fundamental para compreender os acordos entre sionistas e o regime nazista, evidenciando que o sionismo priorizou seu projeto nacionalista mesmo em colaboração com inimigos históricos do povo judeu. -
"A Limpeza Étnica da Palestina" – Ilan Pappé (2006)
Baseado em arquivos militares israelenses, o historiador documenta a expulsão sistemática de palestinos em 1948, denunciando o plano deliberado de destruição das vilas árabes, caracterizando como limpeza étnica. -
"A Questão Palestina" – Edward Said (1979)
Um dos primeiros intelectuais a apresentar ao Ocidente a narrativa palestina, descrevendo as implicações humanas e políticas da criação do Estado de Israel e o silêncio da comunidade internacional. -
"O Estado Judeu" – Theodor Herzl (1896)
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"A Invenção do Povo Judeu" – Shlomo Sand (2008)
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"O Muro: A Separação entre Israel e Palestina" – Jean-Paul Chagnollaud (2011)
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"O Lobby Israelense e a Política Externa dos EUA" – John Mearsheimer e Stephen Walt (2007)
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"O Evangelho e o Império" – John Dominic Crossan (2007)
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"Jesus e o Nacionalismo Judaico" – Hyam Maccoby (1986)
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"Cristianismo e Colonialismo: Uma História de Violência e Resistência" – Elsa Tamez (2010)
O QUE FAZ UMA RELIGIÃO SER VERDADEIRA? EXPERIÊNCIAS COM DEUS PRECISAM PARECER COM JESUS
HOMENAGENS
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André Trigueiro, Espiritualidade no Dia a Dia, 2015, reportagem publicada na GloboNews e no portal G1, discute como vivências espirituais moldam comportamentos sustentáveis e éticos na sociedade.
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Eliane Brum, A Fé dos Outros, 2012, reportagem publicada na revista Época, em que a jornalista acompanha comunidades de fé diferentes e reflete sobre a importância de respeitar a experiência religiosa alheia.
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Leandro Beguoci, Religião nas Periferias, 2017, publicada no site da Revista Trip, aborda o sincretismo religioso e o impacto transformador da fé na vida de jovens de favelas paulistanas.
A fé é uma das experiências mais profundas da alma humana. Presente em todas as culturas e contextos históricos, ela se manifesta de formas diversas — orações, rituais, êxtases, silêncios, peregrinações. No entanto, o mundo contemporâneo enfrenta um desafio urgente: como respeitar a experiência religiosa do outro sem relativizar os critérios da verdade? Esta reportagem investiga o ponto de equilíbrio entre liberdade religiosa e discernimento espiritual, propondo um crivo ético baseado em Jesus Cristo como padrão universal de revelação divina. A análise se baseia em experiências bíblicas e atuais, estudos de teólogos, sociólogos e psicólogos da religião, e no diálogo inter-religioso como resposta aos conflitos provocados pelo exclusivismo religioso. O critério, segundo estudiosos, está nos frutos das experiências: promovem paz, amor e justiça? Então devem ser acolhidas. Um olhar maduro e científico sobre o fenômeno religioso exige empatia, mas também profundidade crítica. E a resposta talvez esteja mais perto do que parece — no rosto pacífico de quem se parece com Jesus.
CONTEÚDOS
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A universalidade da experiência religiosa
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Jesus como referência ético-espiritual
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Experiências religiosas bíblicas: dentro e fora do padrão
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O critério da pacificidade e da união
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O desafio do diálogo inter-religioso
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A verdade que se revela no amor
1. A UNIVERSALIDADE DA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
A experiência religiosa é um fenômeno humano amplamente documentado em todas as civilizações e períodos históricos. Desde as cerimônias xamânicas nas tribos indígenas às práticas meditativas do budismo zen, passando pelas peregrinações islâmicas e pelas devoções cristãs, as expressões da espiritualidade revelam uma busca profunda por sentido, transcendência e comunhão com o sagrado. William James, em As Variedades da Experiência Religiosa (1902), analisou centenas de testemunhos místicos, destacando que, apesar das diferenças culturais, há traços comuns entre elas, como a sensação de unidade com o Todo, a paz interior e a transformação moral. Respeitar essas experiências é reconhecer a diversidade da alma humana e os muitos caminhos pelos quais o ser humano tenta acessar o divino.
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A RELIGIOSIDADE DESDE OS PRIMÓRDIOS
A experiência religiosa acompanha a humanidade desde tempos imemoriais. Evidências arqueológicas sugerem que os neandertais já realizavam rituais de sepultamento há mais de 50 mil anos, demonstrando um senso primitivo de espiritualidade. No Egito Antigo, os deuses ocupavam um papel central na organização da sociedade. Já entre povos originários das Américas, como guaranis e yanomamis, os rituais xamânicos eram centrais para a cura e a sabedoria espiritual, indicando que a busca pelo sagrado não está restrita a uma única civilização.
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TRAÇOS COMUNS NA EXPERIÊNCIA MÍSTICA
William James, em As Variedades da Experiência Religiosa (1902), analisou numerosos relatos de conversão, visões e êxtase espiritual. Identificou elementos recorrentes, como a dissolução do ego, a sensação de unidade com o todo e a transformação pessoal. Esses padrões, segundo James, são independentes da cultura ou da doutrina religiosa, o que aponta para características universais da experiência mística humana. Sua obra influenciou áreas como psicologia, filosofia e ciência da religião.
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MITO E RELIGIÃO COMO ESTRUTURAS SIMBÓLICAS
Claude Lévi-Strauss argumentou que os sistemas religiosos, incluindo mitos e rituais, são formas pelas quais a mente humana organiza o mundo. Em sociedades indígenas, africanas e orientais, a religião funciona como uma estrutura simbólica que dá sentido à existência e regula as relações sociais. Mesmo com crenças distintas, tais sistemas cumprem funções similares em culturas diversas: explicar a origem do mundo, oferecer modelos éticos e integrar o indivíduo à coletividade.
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NEUROCIÊNCIA E TRANSCENDÊNCIA
A partir dos anos 1990, pesquisas em neurociência começaram a investigar a base biológica da espiritualidade. Andrew Newberg, da Universidade da Pensilvânia, observou que durante estados meditativos intensos ocorre uma redução na atividade do lobo parietal, região ligada à noção de identidade. Esse fenômeno pode explicar a sensação de “fusão com o universo” presente em experiências místicas. Segundo Newberg, a experiência religiosa pode ter fundamentos neurológicos comuns entre crentes de diferentes tradições.
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ELEMENTOS RITUAIS COMPARTILHADOS
Práticas como jejum, cânticos e peregrinações são comuns em diversas religiões do mundo. O jejum aparece tanto no Ramadã islâmico quanto na Quaresma cristã e no Yom Kipur judaico. Os cantos devocionais estão presentes em mantras hindus, salmos bíblicos e pontos de religiões afro-brasileiras. A repetição de ritos, o uso de símbolos e a criação de narrativas sagradas demonstram que a espiritualidade humana utiliza recursos similares para mediar o contato com o transcendente, mesmo em contextos diferentes.
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A ESPIRITUALIDADE ALÉM DA RELIGIÃO
Estudos recentes mostram que a espiritualidade não está restrita a sistemas religiosos organizados. Segundo o Pew Research Center, há um crescimento global de pessoas que se identificam como “sem religião”, mas que ainda relatam experiências espirituais, como meditação, gratidão ou conexão com a natureza. Esse fenômeno é mais acentuado em países ocidentais e urbanos, onde cresce a valorização da espiritualidade individualizada e desvinculada de instituições religiosas formais.
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DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO E CONVIVÊNCIA
A Unesco, em resoluções aprovadas a partir de 2011, reconheceu o diálogo inter-religioso como ferramenta essencial para a paz mundial. Organizações internacionais e centros acadêmicos promovem encontros entre líderes religiosos para discutir direitos humanos, educação e combate ao extremismo. Compreender a universalidade da experiência espiritual e respeitar sua diversidade é considerado, por pesquisadores e diplomatas, um passo necessário para sociedades mais tolerantes e democráticas.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
As Variedades da Experiência Religiosa – William James (1902)
O Pensamento Selvagem – Claude Lévi-Strauss (1962)
Como Deus Muda o Seu Cérebro – Andrew Newberg e Mark Robert Waldman (2009)
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2. JESUS COMO REFERÊNCIA ÉTICO-ESPIRITUAL
Para muitos teólogos cristãos contemporâneos, Jesus é o critério máximo para avaliar a autenticidade de uma experiência religiosa. Paul Tillich, no século XX, definiu Cristo como a "manifestação suprema do Espírito" e o "ponto de encontro entre o humano e o divino". Dentro dessa perspectiva, experiências religiosas de qualquer tradição que promovam valores como o amor, o perdão, a não-violência e a solidariedade — centrais nos ensinos de Jesus — são vistas como compatíveis com a revelação cristã. O teólogo brasileiro Leonardo Boff afirma: "Onde houver amor e compaixão, ali está o Espírito de Deus". Ou seja, experiências religiosas válidas são aquelas que, mesmo não sendo explicitamente cristãs, carregam o espírito do Cristo.
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A CENTRALIDADE DE JESUS NA ÉTICA CRISTÃ
Para a tradição cristã, Jesus de Nazaré representa não apenas uma figura histórica ou religiosa, mas um paradigma ético e espiritual. Seus ensinamentos, registrados nos Evangelhos, tornaram-se o fundamento de valores como o amor incondicional, o perdão dos inimigos, a solidariedade com os marginalizados e a renúncia ao poder violento. Teólogos do século XX, como Paul Tillich, defendem que Cristo é o símbolo definitivo do encontro entre o humano e o divino. Tillich afirma que, em Jesus, o Espírito se manifesta de modo único, o que torna sua vida e mensagem um critério para avaliar toda experiência espiritual.
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O CRISTO COMO MEDIDA DO ESPÍRITO
A ideia de que experiências religiosas devem ser julgadas à luz de Jesus não é nova. Na teologia cristã, o conceito de "discernimento dos espíritos" aparece desde os primeiros escritos apostólicos, como na Primeira Carta de João. No século XX, teólogos como Karl Rahner e Hans Küng passaram a refletir sobre a presença do Espírito de Deus também fora do cristianismo institucional. Leonardo Boff, em diversas obras, afirma que o critério para identificar o Espírito não é a filiação religiosa, mas a presença do amor, da justiça e da compaixão, características centrais da mensagem de Jesus.
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EXPERIÊNCIAS RELIGIOSAS EM OUTRAS TRADIÇÕES
Pesquisadores do diálogo inter-religioso apontam que tradições como o budismo, o hinduísmo e o islamismo também cultivam práticas espirituais que promovem valores semelhantes aos ensinados por Jesus. A meditação compassiva no budismo tibetano, o princípio hindu da ahimsa (não-violência) e os atos de caridade durante o Ramadã são frequentemente citados como exemplos de espiritualidade que ecoam a ética do Cristo. Teólogos cristãos envolvidos no Conselho Mundial de Igrejas têm defendido que essas manifestações podem ser compreendidas como ações do mesmo Espírito que se revelou em Jesus.
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DOCUMENTOS OFICIAIS E A ABERTURA ECUMÊNICA
No Concílio Vaticano II, a Igreja Católica passou a reconhecer oficialmente que “há sementes de verdade e santidade” em outras religiões. O documento Nostra Aetate (1965) afirma que a Igreja “rejeita nada do que há de verdadeiro e santo” nas demais tradições. A partir desse marco, intensificaram-se os encontros e iniciativas de cooperação entre cristãos e membros de outras fés, sob a premissa de que a ética evangélica pode ser reconhecida onde houver promoção da dignidade humana, da justiça social e da paz entre os povos.
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O JESUS HISTÓRICO E A ÉTICA DA COMPAIXÃO
Estudos do chamado “Jesus histórico”, como os realizados pelo Jesus Seminar nos Estados Unidos, indicam que a figura de Jesus foi marcada por uma prática constante de acolhimento aos excluídos, oposição à hipocrisia religiosa e anúncio de um Reino baseado em justiça e misericórdia. Esses dados reforçam a ideia de que o critério para reconhecer o Espírito é ético, mais do que doutrinário. A compaixão de Jesus pelos doentes, pobres e pecadores tornou-se um modelo de espiritualidade centrada na alteridade.
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O ESPÍRITO COMO SOPRO UNIVERSAL
Teólogos contemporâneos, como Jürgen Moltmann e o próprio Leonardo Boff, abordam o Espírito Santo como uma força criadora e libertadora que age para além dos limites institucionais da Igreja. Essa visão pneumatológica permite afirmar que o Espírito de Deus pode se manifestar em expressões religiosas não cristãs, desde que promovam a vida, a liberdade e o amor ao próximo. Para Boff, “onde houver ternura e justiça, ali está o Espírito de Deus”, mesmo que não se invoque explicitamente o nome de Jesus.
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O CRITÉRIO DO AMOR COMO UNIVERSAL
A noção de que o amor é o critério universal da autenticidade espiritual encontra respaldo em diversas tradições. No cristianismo, ela é resumida na máxima evangélica: “Pelos frutos os conhecereis”. Pesquisas em psicologia da religião, como as desenvolvidas por Harvey Cox e Elaine Pagels, também indicam que experiências religiosas que resultam em transformação moral positiva, altruísmo e empatia tendem a ser vistas como espiritualmente autênticas, independentemente de suas origens culturais ou doutrinárias.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Cristianismo e Sociedade – Leonardo Boff (2006)
A Dinâmica da Fé – Paul Tillich (1957)
O Espírito da Vida – Jürgen Moltmann (1991)
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3. EXPERIÊNCIAS RELIGIOSAS BÍBLICAS: DENTRO E FORA DO PADRÃO
A própria Bíblia relata tanto experiências religiosas alinhadas com o caráter de Deus quanto experiências questionáveis. Profetas como Isaías, Jeremias e Daniel relatam visões e revelações que resultaram em ações de justiça, arrependimento e transformação. Por outro lado, o Antigo Testamento também menciona práticas religiosas como sacrifícios humanos (Juízes 11:30-40) ou cultos sincréticos (1 Reis 12:28-30), que, embora expressões de fé, destoavam do propósito divino. O Novo Testamento condena experiências religiosas que geram orgulho espiritual ou divisão (1 Coríntios 13), sugerindo que o verdadeiro teste da espiritualidade está nos frutos: humildade, paz e comunhão. Assim, a Escritura oferece uma régua ética e espiritual que transcende o simples fervor devocional.
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VISÕES PROFÉTICAS E AÇÃO JUSTA
Ao longo da Bíblia hebraica, diversos profetas relatam experiências religiosas marcadas por visões, sonhos e revelações que resultam em transformações éticas e sociais. Isaías, no capítulo 6 de seu livro, descreve uma visão do trono divino que o leva à confissão de pecados e à disposição para servir. Jeremias, ainda jovem, é chamado por Deus para denunciar injustiças e proclamar a esperança (Jeremias 1). Daniel, por sua vez, tem visões apocalípticas que moldam a esperança messiânica. Segundo especialistas em exegese bíblica, essas experiências são vistas como legítimas porque geram frutos de arrependimento, justiça e fidelidade.
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RELIGIOSIDADE DISTORCIDA NO ANTIGO TESTAMENTO
Nem toda experiência religiosa narrada na Bíblia é aprovada pelo texto sagrado. Em Juízes 11, Jefté faz um voto precipitado a Deus e sacrifica sua filha, numa prática associada a rituais pagãos. Em 1 Reis 12, Jeroboão institui bezerros de ouro como objetos de culto para evitar que o povo voltasse a Jerusalém, misturando elementos da fé israelita com práticas idolátricas. Essas narrativas, embora façam parte do registro bíblico, são acompanhadas por críticas explícitas ou implícitas, indicando que o fervor religioso não basta: a direção e a motivação do culto são igualmente avaliadas.
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O TESTE DOS FRUTOS NO NOVO TESTAMENTO
No cristianismo primitivo, o apóstolo Paulo adverte que nem todas as manifestações espirituais devem ser aceitas sem discernimento. Em 1 Coríntios 13, ele contrasta dons espirituais com o amor, sugerindo que sem amor essas práticas perdem legitimidade. No mesmo espírito, Jesus alerta em Mateus 7:16 que a autenticidade espiritual deve ser medida pelos frutos: “Pelos seus frutos os conhecereis”. Essa perspectiva levou a tradição cristã a avaliar experiências religiosas não apenas pelo seu impacto emocional, mas pela ética que delas resulta.
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ESPIRITUALIDADE E ORTODOXIA
Estudiosos da teologia bíblica apontam que a Bíblia não valoriza apenas a sinceridade religiosa, mas também a conformidade com certos princípios revelados. A ortodoxia, nesse contexto, é menos uma questão de doutrina formal e mais uma adesão à justiça, misericórdia e humildade diante de Deus. O profeta Miquéias resume esse critério ao dizer: “O que o Senhor exige de ti senão que pratiques a justiça, ames a misericórdia e andes humildemente com o teu Deus?” (Miquéias 6:8). Assim, experiências religiosas que promovem arrogância ou exclusão são questionadas, mesmo que exteriormente pareçam devotas.
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EXEMPLOS DE DISCERNIMENTO ESPIRITUAL
A tradição bíblica também inclui critérios para discernir o verdadeiro espírito por trás de uma experiência religiosa. Em 1 João 4:1, os cristãos são exortados a "provar os espíritos" para verificar se procedem de Deus. No livro de Atos dos Apóstolos, os bereanos são elogiados por confrontar as pregações com as Escrituras (Atos 17:11). O discernimento espiritual, segundo teólogos como Gordon Fee e N. T. Wright, não rejeita o místico, mas exige responsabilidade ética e fidelidade aos valores do Reino de Deus.
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SINCRETISMO E CONFLITO RELIGIOSO
Durante os períodos dos reis de Israel e Judá, práticas sincréticas tornaram-se comuns, misturando cultos cananeus com elementos do javismo. Essa fusão resultava, muitas vezes, em rituais considerados deturpados pela narrativa bíblica. O confronto entre o profeta Elias e os profetas de Baal, em 1 Reis 18, simboliza a tensão entre uma fé orientada para a justiça social e a manipulação religiosa voltada para interesses políticos. Pesquisadores da história da religião destacam que esses episódios revelam disputas por autoridade espiritual e controle social por meio da religião.
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O FERVOR SEM TRANSFORMAÇÃO
A crítica bíblica à religiosidade meramente formal é recorrente nos livros proféticos. Isaías, no capítulo 58, denuncia jejuns e orações que não se traduzem em solidariedade com os oprimidos. Jesus também condena práticas religiosas exibicionistas, como as dos fariseus que oram nas praças para serem vistos (Mateus 6). Para os estudiosos da Bíblia, essas passagens indicam que a espiritualidade verdadeira se verifica na transformação do caráter e na promoção do bem comum, e não no espetáculo ou no rito em si.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
O Espírito e a Palavra – John R. W. Stott (1992)
A Mensagem do Novo Testamento – F. F. Bruce (1971)
A História da Fé Cristã – Justo L. González (1984)
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4. O CRITÉRIO DA PACIFICIDADE E DA UNIÃO
Um dos principais indicadores de uma experiência religiosa saudável é seu impacto social. Segundo o psicólogo Carl Jung, toda experiência espiritual verdadeira leva o indivíduo à integração interior e à empatia pelo outro. A Organização Mundial da Saúde (OMS), em seu relatório de 2018 sobre espiritualidade e saúde mental, destaca que práticas religiosas que estimulam a convivência pacífica, o cuidado mútuo e a justiça social têm efeitos terapêuticos comprovados. Inversamente, experiências religiosas que geram fanatismo, exclusivismo e agressividade tendem a ter correlação com distúrbios psicológicos e sociabilidade tóxica. O verdadeiro espiritual é, portanto, aquele que contribui para a união dos diferentes e não para a segmentação do mundo.
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ESPIRITUALIDADE E SAÚDE PSICOSSOCIAL
Estudos conduzidos por organizações de saúde mental têm demonstrado que práticas religiosas podem ter efeitos positivos ou negativos, dependendo de seu conteúdo e direção. A Organização Mundial da Saúde, em relatório publicado em 2018, reconheceu que a espiritualidade, quando promove valores como empatia, tolerância e integração social, contribui para a prevenção de transtornos psíquicos e o fortalecimento do bem-estar emocional. O documento destacou, ainda, que grupos religiosos engajados na promoção da paz e da justiça social apresentam maior índice de coesão comunitária.
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A EXPERIÊNCIA ESPIRITUAL SEGUNDO JUNG
Para o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, fundador da psicologia analítica, a experiência espiritual autêntica leva à integração da psique e ao desenvolvimento de um senso de pertencimento à humanidade. Jung interpretava os símbolos religiosos como expressões do inconsciente coletivo, sendo eficazes quando despertam no indivíduo um sentimento de unidade, tanto interna quanto com o outro. Experiências que geram cisão, intolerância ou despersonalização, segundo Jung, revelam um desequilíbrio psíquico, e não uma espiritualidade saudável.
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O FANATISMO COMO RISCO RELIGIOSO
Especialistas em sociologia da religião apontam que determinadas experiências religiosas, quando desconectadas de uma base ética, podem se transformar em instrumentos de exclusão e violência. O sociólogo Mark Juergensmeyer, em sua obra sobre terrorismo religioso, mostra como a manipulação de símbolos sagrados tem sido utilizada por grupos extremistas para justificar ações agressivas. Entre os exemplos citados estão o fundamentalismo islâmico, o nacionalismo hindu e o extremismo cristão em contextos políticos, como nos Estados Unidos e em partes da África subsaariana.
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A RELIGIÃO COMO AGENTE DE PAZ
Diversas tradições religiosas têm em sua base doutrinária o apelo à paz e à reconciliação. No budismo, o princípio da compaixão é central para o caminho espiritual. No cristianismo, Jesus é apresentado como o “Príncipe da Paz”. O islã, em sua raiz semântica, significa “submissão” e “paz”. Em contextos contemporâneos, organizações como a Comunidade de Santo Egídio, o Conselho Mundial de Igrejas e o Parlamento das Religiões do Mundo têm promovido ações inter-religiosas de mediação de conflitos e apoio humanitário, com base em princípios comuns de união e solidariedade.
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EFEITOS TERAPÊUTICOS DA CONVIVÊNCIA ESPIRITUAL
Pesquisas da Universidade de Harvard e da Universidade de Duke têm demonstrado que práticas religiosas coletivas, como cultos, missas e orações em grupo, promovem sensação de pertencimento e reduzem sintomas de ansiedade e depressão. O estudo “Religion, Spirituality, and Health: The Research and Clinical Implications”, de Harold Koenig, afirma que a religiosidade vivida em contextos inclusivos e acolhedores está associada à longevidade, ao suporte social e à estabilidade emocional, funcionando como fator de proteção à saúde mental.
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A RELIGIÃO COMO ESPAÇO DE ENCONTRO
Historiadores da religião apontam que os espaços sagrados sempre foram locais de reunião e convivência entre diferentes. Templos, mesquitas, igrejas e sinagogas não eram apenas lugares de culto, mas centros comunitários, de partilha e acolhimento. Nas comunidades judaicas da Idade Média, as sinagogas serviam como tribunais e escolas. Entre os muçulmanos, as mesquitas abrigavam peregrinos e viajantes. A história das catedrais cristãs demonstra seu papel na assistência aos pobres e doentes. A tradição religiosa, portanto, contém em sua estrutura a vocação para a comunhão.
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CRITÉRIOS PARA A ESPIRITUALIDADE SAUDÁVEL
Pesquisadores da espiritualidade e saúde, como Kenneth Pargament, propõem critérios objetivos para avaliar quando uma experiência espiritual é benéfica. Tais critérios incluem a promoção da paz interior, o fortalecimento dos vínculos interpessoais, o engajamento ético com o mundo e o respeito à alteridade. Em contraste, experiências marcadas por segregação, culpa paralisante ou agressividade tendem a estar ligadas a desajustes psicológicos ou manipulações ideológicas. A espiritualidade saudável, segundo esses autores, é integradora, compassiva e promotora de diálogo.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
O Homem e seus Símbolos – Carl G. Jung (1964)
Terror em Nome de Deus – Mark Juergensmeyer (2000)
Espiritualidade e Saúde – Harold Koenig (2012)
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5. O DESAFIO DO DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO
Respeitar as experiências religiosas dos outros, mesmo quando não se compartilha da mesma fé, é hoje uma exigência ética global. Em um mundo marcado por conflitos religiosos, como os entre hindus e muçulmanos na Índia ou entre judeus e palestinos em Israel, o diálogo inter-religioso se apresenta como ponte de reconciliação. Iniciativas como o Parlamento das Religiões do Mundo e o Documento sobre a Fraternidade Humana (assinado pelo Papa Francisco e pelo imã Ahmad al-Tayyeb em 2019) defendem que as experiências religiosas não devem ser motivo de exclusão, mas de enriquecimento mútuo. Segundo o sociólogo Peter Berger, a pluralidade de crenças exige humildade epistemológica e abertura ao aprendizado com o outro, sob risco de transformarmos fé em ideologia.
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PLURALISMO COMO DADO DA REALIDADE
O crescimento da globalização e da migração internacional tornou o pluralismo religioso um fenômeno cotidiano em muitas sociedades. Países como Estados Unidos, Índia, Brasil e Reino Unido concentram comunidades de fé variadas convivendo em um mesmo território. Para o sociólogo Peter Berger, essa diversidade exige o que chamou de “humildade epistemológica” — o reconhecimento de que nenhuma tradição religiosa pode reivindicar compreensão absoluta da verdade. O pluralismo, nesse contexto, não é uma ameaça, mas um convite ao diálogo e à convivência pacífica.
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CONFLITOS EM NOME DA FÉ
A história contemporânea é marcada por conflitos com forte componente religioso, como os embates entre hindus e muçulmanos na Índia, as tensões entre judeus e palestinos em Israel e os atentados promovidos por grupos fundamentalistas islâmicos em várias partes do mundo. Relatórios da organização Human Rights Watch destacam como a religião tem sido instrumentalizada por lideranças políticas para alimentar o sectarismo, justificar violência e reforçar fronteiras identitárias. Especialistas alertam que, sem mecanismos de diálogo, as crenças podem ser transformadas em bandeiras de exclusão.
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INICIATIVAS INTERNACIONAIS DE DIÁLOGO
Desde 1893, o Parlamento das Religiões do Mundo atua como fórum global para o encontro entre líderes religiosos de diferentes tradições. Realizado pela primeira vez em Chicago, o evento hoje é reconhecido por promover debates sobre direitos humanos, justiça ambiental e liberdade religiosa. Em 2019, o Papa Francisco e o imã de Al-Azhar, Ahmad al-Tayyeb, assinaram em Abu Dhabi o Documento sobre a Fraternidade Humana, no qual defendem a paz mundial, a cooperação inter-religiosa e a rejeição da violência em nome de Deus.
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A EDUCAÇÃO COMO CAMINHO PARA A TOLERÂNCIA
Pesquisadores da UNESCO e da Universidade de Georgetown apontam que o ensino religioso plural nas escolas pode contribuir para o respeito às diferenças. O modelo adotado em países escandinavos, por exemplo, permite que estudantes aprendam sobre as principais tradições espirituais sem imposição dogmática, promovendo uma compreensão crítica e empática das crenças alheias. Relatórios da ONU indicam que esse tipo de educação está associado a níveis mais baixos de intolerância e de discurso de ódio entre jovens.
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O PAPEL DAS RELIGIÕES NAS SOCIEDADES DEMOCRÁTICAS
Em contextos democráticos, o diálogo entre religiões fortalece o tecido social ao promover o respeito mútuo e o engajamento ético com o bem comum. De acordo com o teólogo Hans Küng, “não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões”. O autor defende que o caminho para sociedades sustentáveis passa pela colaboração inter-religiosa em temas como pobreza, meio ambiente e justiça. Organizações como o Conselho Mundial de Igrejas e a Aliança Inter-religiosa das Nações Unidas atuam nesse sentido.
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DIFICULDADES E RESISTÊNCIAS AO DIÁLOGO
Apesar dos avanços, ainda existem resistências internas nas tradições religiosas ao diálogo com o diferente. Em muitos contextos, o exclusivismo doutrinário é reforçado por lideranças que veem o pluralismo como ameaça à identidade do grupo. Estudiosos como Diana Eck, da Universidade Harvard, afirmam que o diálogo não significa relativismo, mas disposição para escutar, compreender e coexistir. A resistência ao diálogo, segundo Eck, costuma estar relacionada ao medo da perda de controle ou da diluição da autoridade religiosa.
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PONTES DE RECONCILIAÇÃO E JUSTIÇA
Experiências locais demonstram que o diálogo inter-religioso pode gerar frutos concretos de reconciliação. Em Ruanda, após o genocídio de 1994, líderes cristãos e muçulmanos atuaram juntos em projetos de reconstrução e perdão coletivo. No Brasil, iniciativas como a do Fórum Inter-Religioso pela Cultura de Paz, em São Paulo, têm promovido encontros entre representantes de religiões afro-brasileiras, cristãs, judaicas, muçulmanas, indígenas e orientais para discutir direitos civis, combate à intolerância e políticas públicas inclusivas.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
O Encontro das Religiões – Hans Küng (1994)
Pluralismo e Fé – Diana L. Eck (2001)
O Rumor dos Anjos – Peter Berger (1969)
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A conclusão a que muitos estudiosos e espiritualistas chegam é que a verdade religiosa não é monopolizável. Conforme o filósofo Raimon Panikkar, “a verdade não é algo que se possui, mas algo que se compartilha”. Toda experiência espiritual autêntica, em qualquer cultura ou tempo, deve ser julgada por seu fruto: leva o indivíduo a parecer-se mais com Jesus — ou seja, mais amoroso, pacífico e solidário? O critério, portanto, não está na forma externa da religião, mas no impacto ético, social e espiritual da vivência. A experiência religiosa que gera vida, liberdade e comunhão aproxima-se da verdade, independentemente do nome que ela receba. É esse o critério para avaliar e acolher toda experiência religiosa: ela revela o amor de Deus e promove o bem de todos? Se sim, ela é digna de respeito e apoio.
A VERDADE COMO CAMINHO COMPARTILHADO
O filósofo e teólogo Raimon Panikkar propôs uma visão relacional da verdade religiosa, argumentando que ela não pode ser possuída individualmente, mas compartilhada em comunhão. Em sua obra sobre pluralismo e espiritualidade, ele defende que a verdade não está confinada a uma tradição específica, mas se revela no encontro sincero entre as culturas e as fés. A postura de abertura e escuta mútua, segundo Panikkar, permite reconhecer o que há de divino em outras experiências, contanto que estas estejam orientadas pelo amor e pela vida.
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O CRITÉRIO ÉTICO DA TRANSFORMAÇÃO
Pesquisadores da espiritualidade têm defendido que o impacto ético de uma experiência religiosa é mais relevante do que seus símbolos ou doutrinas. Para teólogos como Leonardo Boff e Rubem Alves, a espiritualidade autêntica é aquela que leva à compaixão, à justiça social e ao cuidado com a vida. Em entrevista concedida em 2012, Boff afirmou que “o verdadeiro culto a Deus é cuidar do outro e proteger os frágeis”. Essa abordagem leva ao entendimento de que a veracidade espiritual se mede pelo fruto ético, e não pela ortodoxia teórica.
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EXPERIÊNCIAS MÍSTICAS EM DIFERENTES CULTURAS
Diversas tradições espirituais relataram, ao longo da história, experiências de unidade, amor universal e entrega ao bem comum. No sufismo islâmico, por exemplo, figuras como Rumi descreveram Deus como “amor absoluto”, acessado pelo coração humilde. No hinduísmo, o bhakti yoga propõe a devoção a Deus como relação amorosa, que dissolve o ego e aproxima da verdade. A tradição cristã, especialmente no misticismo de Teresa de Ávila e João da Cruz, também enfatiza que a união com Deus se manifesta no amor concreto ao próximo.
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A VERDADE EM AÇÃO SOCIAL
Movimentos religiosos que promoveram direitos humanos, igualdade racial ou justiça econômica são frequentemente citados como exemplos de espiritualidade transformadora. Nos Estados Unidos, líderes como Martin Luther King Jr., influenciado pela fé cristã, lideraram lutas pacíficas pelos direitos civis. No sul da Ásia, Mahatma Gandhi, embora hindu, inspirou-se nos ensinamentos de Jesus para promover a não violência. Esses casos mostram que quando a fé conduz à defesa da dignidade humana, ela revela uma dimensão verdadeira e universal da espiritualidade.
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A RELIGIÃO COMO EXPERIÊNCIA DE COMUNHÃO
Estudos em sociologia da religião, como os conduzidos por José Casanova e Grace Davie, apontam que experiências religiosas centradas na comunhão entre pessoas de diferentes origens tendem a fortalecer o tecido social. Essas experiências incluem rituais inclusivos, projetos comunitários inter-religiosos e práticas devocionais voltadas para o bem coletivo. Casanova ressalta que a relevância pública da religião, em contextos democráticos, depende de sua capacidade de dialogar e contribuir com valores éticos comuns.
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O AMOR COMO CRITÉRIO DE DISCERNIMENTO
O Novo Testamento apresenta o amor como a medida de toda prática espiritual. Em João 13:35, Jesus afirma: “Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns aos outros”. Essa máxima foi retomada por diversos pensadores contemporâneos como critério universal para discernir a autenticidade de uma experiência religiosa. Segundo o teólogo luterano Paul Tillich, “Deus é o fundamento do ser, e o amor é a manifestação mais elevada desse ser”. Assim, vivências espirituais que geram exclusão, ódio ou indiferença não passam pelo crivo do amor.
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A BUSCA PELA UNIDADE NA DIVERSIDADE
A espiritualidade contemporânea tem se distanciado do exclusivismo religioso e buscado reconhecer a presença do divino em múltiplas formas de fé. Pesquisas do Pew Research Center indicam que o número de pessoas que se identificam como “espirituais, mas não religiosas” tem crescido, especialmente em países ocidentais. Essa tendência reflete uma busca por experiências significativas que promovam paz interior, conexão interpessoal e ação ética, independentemente de rótulos religiosos. O amor e a comunhão tornam-se, nesse cenário, o terreno comum onde diferentes fés se encontram.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
O Silêncio de Deus – Raimon Panikkar (1991)
Espiritualidade: Um Caminho de Transformação – Leonardo Boff (2001)
A Coragem de Ser – Paul Tillich (1952)
CONCLUSÃO
Respeitar a experiência religiosa dos outros não é abrir mão de critérios, mas assumir uma postura madura diante da complexidade espiritual do ser humano. Ao reconhecer que Deus pode se revelar em diferentes contextos e linguagens, o critério cristão nos convida a olhar para os frutos dessas experiências — amor, compaixão, justiça — como reflexo da verdade. Jesus não é apenas o Cristo da Igreja, mas o modelo de humanidade reconciliada com Deus, que pode inspirar o discernimento espiritual em qualquer cultura ou religião.
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As Escrituras sagradas, inclusive a Bíblia, estão repletas de experiências religiosas legítimas e ilegítimas. A diferença não está apenas na forma ou na tradição religiosa, mas na transformação ética que ela provoca. A vivência religiosa que conduz à paz, à superação do ego, ao cuidado com o outro e à busca sincera pela verdade se aproxima do projeto divino revelado por Jesus. O contrário também é verdadeiro: práticas religiosas que geram orgulho, intolerância e violência devem ser questionadas, mesmo que venham em nome da fé.
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A sociedade contemporânea precisa de um novo tipo de espiritualidade: enraizada na empatia, mas guiada por discernimento. A experiência religiosa é um bem da humanidade, um caminho de autoconhecimento e de comunhão. No entanto, ela só será construtiva se nos tornar melhores, mais humanos, mais solidários. O rosto de Deus se reflete na face de quem ama — e todo encontro com o sagrado que nos faz parecer com Jesus é uma verdade que merece ser acolhida.
BIBLIOGRAFIA
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As Variedades da Experiência Religiosa – William James (1902)
→ Um clássico da psicologia da religião, onde James analisa relatos místicos e espirituais de diversas tradições, mostrando que apesar das diferenças culturais, há uma estrutura comum nas experiências de fé. -
O Cristo Eterno – Paul Tillich (1951)
→ O teólogo protestante apresenta Jesus como a manifestação suprema do divino e o critério pelo qual toda religião deve ser julgada, promovendo diálogo e discernimento. -
O Espírito Sopra Onde Quer – Leonardo Boff (1999)
→ Boff propõe que a experiência do Espírito de Deus pode se manifestar em qualquer cultura e religião, desde que gere amor, justiça e paz. -
A Fé dos Outros – Eliane Brum (2012)
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Espiritualidade e Sociedade – Rubem Alves (2003)
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Deus na Universidade – Frei Betto (2007)
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Religião para Ateus – Alain de Botton (2011)
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A Essência do Cristianismo – Ludwig Feuerbach (1841)
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Religiões do Mundo – Huston Smith (1958)
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A Religião nos Limites da Simples Razão – Immanuel Kant (1793)
A DEMOCRACIA BRASILEIRA ESTÁ NAS MÃOS DE UMA FAMÍLIA: GLOBO, CEM ANOS SERVINDO ÀS ELITES E ENGANANDO O POVO
HOMENAGENS
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Luiz Nassif, A história da Rede Globo: A potência e a manipulação, 2002, publicado no site GGN.
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Rodrigo Vianna, O Partido da Imprensa Golpista, 2007, publicado originalmente no Carta Maior.
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Mino Carta, A Ditadura Envergonhada, 2004, publicado pela Editora Fundação Perseu Abramo.
Em 2025, enquanto o Grupo Globo celebra com pompa seu centenário, um setor crescente da sociedade brasileira questiona os verdadeiros méritos dessa trajetória. Longe de representar um marco de liberdade de imprensa ou de diversidade informativa, a Globo se consolida como o símbolo máximo de uma estrutura de mídia que opera em nome dos interesses econômicos da elite brasileira, manipulando a opinião pública, distorcendo a realidade política e impedindo avanços sociais. Essa reportagem investiga como a concentração de poder na comunicação transformou a democracia brasileira numa fachada controlada por oligarquias. Com base em estudos acadêmicos, denúncias históricas e análise de comportamento editorial, o texto demonstra que a pluralidade midiática no Brasil é inexistente, e que a narrativa democrática vigente serve para blindar um sistema que perpetua desigualdades e silencia vozes populares. No lugar de ser um quarto poder fiscalizador, a mídia age como cúmplice das forças econômicas que sabotam o desenvolvimento nacional. A falsa liberdade de expressão é um luxo da elite. Para a maioria, resta apenas o eco do discurso dominante travestido de jornalismo.
CONTEÚDOS
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O centenário da manipulação
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A máscara da representatividade
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Economia como arma de dominação
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Uma história de golpes
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Entre a ficção e a guerra cultural
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Sem saída num sistema fechado
1. O CENTENÁRIO DA MANIPULAÇÃO
Em 2025, o Grupo Globo celebra cem anos de existência. Fundado por Irineu Marinho, o conglomerado midiático se consolidou como o mais poderoso do Brasil, detentor de jornais, revistas, rádios, canais de TV e portais de internet que atingem milhões de brasileiros diariamente. Entretanto, esse poderio não foi construído com neutralidade ou compromisso com a pluralidade democrática. Desde seu nascimento, a Globo serviu aos interesses da elite econômica, atuando como aparato ideológico do capital. Como destaca o jornalista e sociólogo Perseu Abramo, a grande mídia brasileira “não apenas manipula a informação, mas oculta os conflitos fundamentais da sociedade” (ABRAMO, 2003). Esse ocultamento tem sido a principal engrenagem de uma democracia de fachada, onde o povo é convencido a agir contra si mesmo.
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A CONSTRUÇÃO DO IMPÉRIO
Fundado em 1925 por Irineu Marinho, o jornal O Globo iniciou sua trajetória como um veículo impresso de perfil conservador, voltado à elite carioca da época. Após a morte precoce de Irineu, seu filho Roberto Marinho assumiu o comando do jornal e expandiu o império midiático ao longo do século XX. A criação da TV Globo em 1965, durante o regime militar, marcou o início de uma trajetória de crescimento exponencial. Segundo a historiadora Maria Rita Kehl, o grupo consolidou seu monopólio sobre a informação com apoio técnico e financeiro da Time-Life, empresa norte-americana que, à época, firmou contratos considerados inconstitucionais pela legislação brasileira de comunicações.
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A PARCERIA COM A DITADURA
Durante os anos de chumbo (1964–1985), a Globo foi um dos principais sustentáculos do regime militar, omitiu denúncias de tortura e perseguições políticas e apoiou abertamente o golpe que depôs o presidente João Goulart. O jornalista Paulo Henrique Amorim afirmou em entrevistas que a emissora atuava como “porta-voz não oficial” dos militares. O documentário Muito Além do Cidadão Kane (1993), proibido judicialmente no Brasil por anos, evidencia como a rede se beneficiou de concessões, isenções fiscais e acesso privilegiado à publicidade estatal. A TV Globo consolidou-se como a emissora com maior penetração nacional, ao custo da pluralidade e da liberdade de imprensa.
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O MONOPÓLIO DA OPINIÃO
A concentração da propriedade midiática nas mãos do Grupo Globo compromete a diversidade de vozes e narrativas no país. Conforme apontado pelo pesquisador Venício Lima, da Universidade de Brasília, mais de 70% das fontes de informação no Brasil são controladas por poucos conglomerados, com a Globo à frente. Essa concentração favorece a uniformização ideológica, impede o contraditório e restringe o debate público. O projeto de lei para regulação da mídia, proposto pelo governo Lula em 2004, encontrou forte resistência do grupo, que o classificou como uma tentativa de censura, embora vários países democráticos já adotem modelos similares de regulação.
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A TÉCNICA DA MANIPULAÇÃO
O sociólogo Perseu Abramo, em sua obra clássica Padrões de Manipulação na Grande Imprensa, demonstra como a mídia brasileira manipula conteúdos por meio de omissões, ênfases seletivas, descontextualizações e distorções. Segundo ele, a manipulação não está apenas no que se diz, mas principalmente no que se deixa de dizer. Um exemplo emblemático ocorreu nas Diretas Já, quando a Globo minimizou a cobertura das manifestações populares em prol da redemocratização. Em 1984, no comício histórico da Praça da Sé, a emissora tratou o evento como mera “festa de aniversário” de São Paulo, ignorando sua relevância política.
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A INVISIBILIDADE DO CONFLITO SOCIAL
A cobertura jornalística da Globo evita explicitar os conflitos de classe e as desigualdades estruturais da sociedade brasileira. Temas como reforma agrária, trabalho escravo contemporâneo, violência policial contra negros e pobres e criminalização dos movimentos sociais são abordados com viés que preserva a estabilidade das elites. Segundo estudo do Observatório da Imprensa, entre 2000 e 2020, menos de 5% das matérias exibidas no Jornal Nacional tratavam de questões agrárias ou da luta dos sem-terra. Esse silenciamento opera como instrumento ideológico que reforça o status quo e desmobiliza as demandas populares.
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A AGENDA ECONÔMICA
O alinhamento do Grupo Globo com a ortodoxia econômica neoliberal foi marcante desde os anos 1990, especialmente nos governos de Fernando Henrique Cardoso. A emissora apoiou as privatizações, criticou de forma sistemática políticas distributivas e estabeleceu como “verdade incontestável” o tripé macroeconômico (superávit primário, câmbio flutuante e metas de inflação). Durante o segundo governo Dilma Rousseff, a Globo desempenhou papel central na construção de um cenário de crise econômica e instabilidade política, favorecendo o processo de impeachment. Pesquisadores como Luis Felipe Miguel apontam que a cobertura da Operação Lava Jato contribuiu para a desestabilização do sistema democrático e a ascensão do autoritarismo.
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O PARADOXO DEMOCRÁTICO
Apesar de se apresentar como defensora da democracia e da liberdade de expressão, a atuação do Grupo Globo historicamente contraria esses princípios. A ausência de mecanismos de regulação e de estímulo à pluralidade midiática coloca o Brasil em posição vulnerável frente a democracias consolidadas. Organismos como a Relatoria para Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos já alertaram para os riscos da concentração midiática no país. Sem reformas estruturais no sistema de comunicações, o centenário da Globo marca não apenas a longevidade de um império, mas também a persistência de um modelo de mídia que reforça desigualdades e limita a democracia.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Perseu Abramo – Padrões de Manipulação na Grande Imprensa (2003)
Venício A. de Lima – Mídia: Crise Política e Poder no Brasil (2015)
Luis Felipe Miguel – Consenso e Conflito na Mídia Brasileira (2012)
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2. A MÁSCARA DA REPRESENTATIVIDADE
A Rede Globo tem historicamente sido acusada de disseminar estigmas e reforçar estereótipos raciais, sociais e de gênero em suas novelas e programas de entretenimento. Essa prática se manteve sob o véu da “diversidade midiática” — que, na realidade, serve mais à agenda estética do imperialismo cultural do que a qualquer transformação estrutural. Como mostra a pesquisadora Rosane Borges, a representatividade sem transformação do imaginário social é “uma simulação de inclusão que mascara a manutenção da desigualdade” (BORGES, 2019). Com essa estratégia, a emissora afirma um discurso progressista que anestesia e co-opta a crítica social, tornando-se um escudo ideológico das elites.
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A ESTÉTICA DA DIVERSIDADE
Nas últimas décadas, a Rede Globo tem adotado um discurso voltado à diversidade, promovendo a inclusão de personagens negros, LGBTQIA+ e de classes populares em novelas, séries e campanhas institucionais. No entanto, especialistas apontam que essa representatividade é muitas vezes superficial e não confronta as estruturas históricas de exclusão. Segundo a pesquisadora Rosane Borges, a visibilidade midiática não garante a subversão dos estigmas, pois “o problema não é aparecer, mas como aparecer” (Borges, 2019). A chamada “diversidade midiática” operaria, assim, como dispositivo simbólico de controle, mascarando desigualdades persistentes.
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A HISTÓRIA DO APAGAMENTO
Desde os anos 1960, as novelas da Globo se tornaram um dos principais produtos de exportação da cultura brasileira. No entanto, a representação dos personagens sempre seguiu padrões eurocêntricos: protagonistas brancos, de classe média-alta, com sotaques neutros e feições ocidentalizadas. Um estudo conduzido por Vera Sabóia e Joel Zito Araújo identificou que entre 1963 e 1997, apenas 2,6% dos protagonistas das telenovelas da Globo eram negros. A maior parte dos atores negros era relegada a papéis subalternos, como empregados domésticos, motoristas ou criminosos, perpetuando imagens estigmatizadas da população afro-brasileira.
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A NOVA GERAÇÃO DE PERSONAGENS
A partir dos anos 2000, em resposta à pressão de movimentos sociais e a novas exigências de mercado, a Globo passou a incluir mais personagens diversos em seu elenco. No entanto, como mostram estudos de Liv Sovik e Muniz Sodré, essa inclusão geralmente se limita à aparência estética, não à complexidade narrativa. Personagens LGBTQIA+ ou negros são frequentemente construídos com base em estereótipos e não ocupam posições de protagonismo nas tramas centrais. Muitas vezes, esses personagens existem apenas como “muletas simbólicas” para reforçar o capital de imagem da emissora, sem compromisso com a transformação de imaginários sociais consolidados.
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A REPRESENTAÇÃO DO POBRE
Outro aspecto recorrente na crítica à Globo diz respeito à forma como as classes populares são representadas. O sociólogo Jessé Souza observa que a emissora reforça a ideia de que a pobreza é resultado de escolhas individuais, e não de estruturas socioeconômicas injustas. Nas novelas, personagens pobres costumam ser retratados como “guerreiros” que vencem obstáculos com esforço pessoal, minimizando o papel das políticas públicas ou das desigualdades históricas. Esse discurso reforça a ideologia meritocrática, despolitiza a pobreza e inibe a construção de uma consciência crítica entre os espectadores.
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O FEMINISMO DE CONSUMO
A Rede Globo também passou a incorporar discursos feministas em seus programas de entretenimento, sobretudo após a popularização das redes sociais e do ativismo digital. No entanto, autoras como Heloisa Buarque de Hollanda alertam para o risco da “captura mercadológica” das pautas feministas. Nas novelas, personagens femininas “empoderadas” frequentemente seguem padrões de beleza eurocêntricos, têm sucesso profissional e amoroso, mas raramente enfrentam questões como a desigualdade salarial, a maternidade solitária ou a violência doméstica de forma crítica. O feminismo veiculado é, assim, compatível com o consumo e não com a transformação das relações sociais.
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A INDÚSTRIA DO DISCURSO
A simulação de progressismo é, segundo estudiosos da comunicação como Eugênio Bucci, um mecanismo de adaptação à nova sensibilidade pública sem alterar o projeto hegemônico da emissora. A Globo se reposiciona no mercado como defensora da democracia e da diversidade, mas continua operando sob uma lógica empresarial voltada à manutenção da audiência, da publicidade e da centralização do discurso. A adesão à diversidade, nesse contexto, torna-se um ativo simbólico e mercadológico. O risco é que essa estratégia anestesie as críticas e neutralize o potencial de mobilização social que a verdadeira representatividade carrega.
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O PAPEL DA CRÍTICA
A crítica acadêmica e dos movimentos sociais tem sido fundamental para tensionar as estratégias da grande mídia. Pesquisadores como Dennis de Oliveira, da ECA-USP, defendem que a verdadeira democratização da mídia exige não apenas inclusão estética, mas acesso aos meios de produção, pluralismo de vozes e descentralização do poder comunicacional. A luta por uma mídia democrática passa pela desconstrução dos mitos fundacionais da representatividade televisiva e pela criação de narrativas que reflitam a complexidade das experiências sociais brasileiras, para além das molduras da audiência e do consumo.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Rosane Borges – Espelho Infiel: O Negro no Jornalismo Brasileiro (2019)
Jessé Souza – A Elite do Atraso (2017)
Muniz Sodré – A Sociedade Incivil (2002)
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3. ECONOMIA COMO ARMA DE DOMINAÇÃO
O papel do Grupo Globo no debate econômico é nitidamente voltado à promoção do mercado financeiro e da agenda neoliberal. Editorialmente, o conglomerado defende privatizações, cortes de gastos sociais, redução do Estado e políticas monetárias restritivas, sempre sob a justificativa da “responsabilidade fiscal”. Em contrapartida, ignora ou criminaliza movimentos sociais, greves, sindicatos e políticas públicas redistributivas. Como afirmou o economista Ladislau Dowbor, “a grande mídia brasileira age como o departamento de marketing da elite financeira, com raríssimos contrapontos” (DOWBOR, 2016). Essa narrativa consolidada sabota projetos de desenvolvimento nacional e contribui para a perpetuação de um modelo socioeconômico excludente.
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O DISCURSO DA RESPONSABILIDADE
Desde a década de 1990, o Grupo Globo tem desempenhado papel central na difusão de princípios econômicos alinhados ao neoliberalismo. A expressão “responsabilidade fiscal”, constantemente veiculada nos editoriais e telejornais da emissora, é apresentada como requisito técnico e indiscutível para a gestão do Estado. Contudo, estudos como o de Laura Carvalho indicam que esse discurso ignora as alternativas de política econômica e relega ao segundo plano os objetivos de equidade social. A Globo confere ao modelo ortodoxo um caráter técnico e neutro, o que dificulta o debate público e esvazia o caráter político das escolhas econômicas.
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A COBERTURA DAS PRIVATIZAÇÕES
A atuação do grupo durante os processos de privatização nos governos de Fernando Henrique Cardoso é frequentemente citada como exemplo do alinhamento editorial com os interesses do capital financeiro. Reportagens veiculadas pelo Jornal Nacional entre 1996 e 2002 exaltavam os leilões de empresas estatais como avanços rumo à “modernização” e à “eficiência”. Ao mesmo tempo, denúncias sobre subavaliação de ativos, concentração de mercado e demissões em massa eram pouco repercutidas. A pesquisa de César Bolaño sobre a cobertura da mídia na década de 1990 evidencia como a Globo operou como mediadora de consenso em torno da política privatista.
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O SILENCIAMENTO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS
Manifestações populares contra reformas econômicas, como a previdenciária ou trabalhista, são frequentemente retratadas pela emissora sob o viés da desordem ou da ameaça à estabilidade. Greves são apresentadas como transtornos, e sindicatos, como corporativistas. Em contraste, medidas de austeridade são enquadradas como inevitáveis. O economista Ladislau Dowbor argumenta que “a mídia transforma o sofrimento social em ruído” e que o jornalismo econômico praticado pelos grandes meios “funciona como a propaganda de um modelo regressivo” (Dowbor, 2016). A invisibilização das demandas sociais contribui para naturalizar a exclusão e desmobilizar a crítica.
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A IDEOLOGIA DA EFICIÊNCIA
A Globo defende, de forma recorrente, a redução da máquina pública e a meritocracia como princípios de gestão. A ideia de que o Estado é ineficiente e que o setor privado é naturalmente mais produtivo é reforçada em análises econômicas e debates televisivos. Entretanto, estudos como os de Mariana Mazzucato mostram que o Estado tem papel essencial na inovação e na coordenação de investimentos de longo prazo. O modelo de Estado mínimo favorece a financeirização da economia e reduz a capacidade de resposta às crises sociais. Essa ideologia, disseminada pela mídia, opera como mecanismo de legitimação da desigualdade.
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O PROTAGONISMO DOS ANALISTAS DO MERCADO
Os comentaristas econômicos da GloboNews e do portal G1, em sua maioria, são ligados a instituições financeiras, consultorias privadas ou think tanks liberais. Nomes como Miriam Leitão e Carlos Alberto Sardenberg são referências constantes em pautas econômicas, frequentemente adotando o ponto de vista do mercado como parâmetro único de análise. Pesquisadores da UFRJ apontam que o espaço para economistas heterodoxos ou desenvolvimentistas é escasso, o que limita a pluralidade do debate. O predomínio dessas vozes configura uma economia da informação em que o saber técnico está a serviço de interesses financeiros.
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A INFLUÊNCIA NA PERCEPÇÃO COLETIVA
Pesquisas do Instituto Patrícia Galvão indicam que a cobertura econômica da grande mídia influencia diretamente a percepção da população sobre temas como inflação, dívida pública e programas sociais. A ênfase em déficits e em gastos públicos é tratada com tom de alarme, enquanto as desigualdades sociais são tratadas como dados colaterais. Essa assimetria discursiva favorece políticas regressivas, como os tetos de gastos, e contribui para a aceitação de cortes em áreas como saúde e educação. A construção simbólica do “Estado gastador” serve como pano de fundo para a deslegitimação das políticas públicas.
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O BLOQUEIO AO DESENVOLVIMENTO SOBERANO
A defesa sistemática de políticas de ajuste fiscal dificulta o avanço de um projeto de desenvolvimento nacional com inclusão social. Segundo o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, o consenso midiático em torno do ajuste atua como trava à retomada de investimentos públicos e à industrialização. A cobertura da Globo sobre planos de desenvolvimento regional, como o PAC ou o Novo Plano Industrial, tende a dar destaque a supostos riscos fiscais, minimizando seus objetivos estratégicos. Essa postura favorece os interesses do rentismo e esvazia o debate sobre soberania econômica.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Ladislau Dowbor – A Era do Capital Improdutivo (2016)
Laura Carvalho – Valsa Brasileira: Do Boom ao Caos Econômico (2018)
César Bolaño – Indústria Cultural, Informação e Capitalismo (2000)
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4. UMA HISTÓRIA DE GOLPES
Desde a década de 1950, a atuação política do Grupo Globo é marcada pela sabotagem de governos que ousaram tocar nos privilégios das elites. Apoiou o golpe militar de 1964 e apenas décadas depois emitiu um tímido pedido de desculpas. Participou da desestabilização do governo João Goulart, do bombardeio midiático contra as reformas de base, do linchamento público do governo Dilma Rousseff e da sustentação narrativa da Lava Jato, que impediu a eleição de Lula em 2018. Como demonstrado por Venício Lima em Mídia: Crises Políticas e Poder no Brasil, a mídia comercial “não apenas relata os fatos, mas age como um ator político central, com capacidade de moldar cenários e eleger ou destruir reputações” (LIMA, 2011). Isso torna a democracia brasileira uma ilusão: eleições existem, mas o campo está permanentemente inclinado.
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O ATAQUE ÀS REFORMAS DE BASE
Na virada da década de 1950 para os anos 1960, o governo de João Goulart propôs um conjunto de reformas estruturais — agrária, urbana, fiscal e educacional — com o objetivo de reduzir desigualdades históricas no Brasil. Esses projetos enfrentaram forte resistência dos setores conservadores e da grande imprensa. O jornal O Globo, em editoriais da época, denunciava as reformas como “ameaça comunista” e promovia campanhas de desestabilização. Segundo o pesquisador Bernardo Kucinski, a imprensa comercial atuou “como partido de oposição”, criando um ambiente de instabilidade que favoreceu o golpe de 1964.
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A CONSOLIDAÇÃO DO APOIO AO REGIME
Com a tomada do poder pelos militares, a família Marinho ampliou suas relações com o novo regime. A TV Globo foi criada em 1965, com apoio logístico e financeiro da empresa americana Time-Life, o que gerou controvérsias sobre violação da soberania nacional. O sociólogo Venício Lima aponta que a emissora foi peça fundamental na legitimação do autoritarismo, operando como canal privilegiado da propaganda oficial. Durante os anos de chumbo, a Globo evitava cobrir denúncias de tortura e repressão, priorizando a exibição de eventos esportivos e telenovelas como forma de alienação da população.
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O CONTROLE DA MEMÓRIA
Somente em 2013, quase cinco décadas depois do golpe de 1964, o Grupo Globo publicou editorial reconhecendo que “errou ao apoiar a ditadura”. A autocrítica, porém, foi considerada tardia e insuficiente por entidades como a Comissão Nacional da Verdade. Documentos internos revelados pelo jornalista Lira Neto indicam que a emissora manteve relações diretas com o Serviço Nacional de Informações (SNI) e promoveu censura indireta a artistas e jornalistas críticos ao regime. A reescrita da própria trajetória reflete a tentativa da Globo de se reposicionar perante a nova sensibilidade democrática.
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O PAPEL NA QUEDA DE DILMA
Durante o segundo mandato de Dilma Rousseff (2015–2016), a cobertura da crise econômica e política intensificou-se em tom alarmista. O pesquisador Laurindo Leal Filho destaca que o Jornal Nacional aumentou em 67% a quantidade de matérias negativas sobre o governo em comparação ao primeiro mandato. A narrativa de colapso administrativo e moral foi fundamental para legitimar o processo de impeachment, mesmo sem evidências claras de crime de responsabilidade. A emissora conferiu protagonismo à oposição parlamentar e ignorou protestos contrários ao afastamento da presidente.
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A CONSTRUÇÃO DA LAVA JATO
A Operação Lava Jato, iniciada em 2014, foi amplamente coberta pela Globo, que deu espaço privilegiado às denúncias, delações e ações do juiz Sergio Moro e da força-tarefa do Ministério Público Federal. Segundo estudo do Manchetômetro, da UERJ, entre 2015 e 2018, a cobertura da Lava Jato no Jornal Nacional superou mil reportagens, com ênfase em nomes ligados ao PT. A espetacularização da operação e a ausência de pluralidade de fontes contribuíram para a construção da imagem de culpabilidade prévia, enfraquecendo o contraditório e comprometendo garantias legais básicas.
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A INFLUÊNCIA NAS ELEIÇÕES DE 2018
A condenação e prisão de Lula, impedido de concorrer em 2018, foram amplamente cobertas com destaque negativo pela emissora. O Jornal Nacional dedicou mais de 15 horas de cobertura ao caso, de acordo com levantamento da Agência Pública. A ausência de críticas à parcialidade da condução da Lava Jato, somada ao espaço dado à candidatura de Jair Bolsonaro, contribuiu para moldar o cenário eleitoral. Apenas anos depois, com a revelação das mensagens da Vaza Jato pelo The Intercept Brasil, a narrativa construída foi parcialmente contestada. Ainda assim, a Globo não assumiu o protagonismo que teve na legitimação de um processo que comprometeu a lisura democrática.
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UM ATOR POLÍTICO PERMANENTE
A atuação política da mídia, especialmente do Grupo Globo, não se limita à cobertura dos fatos: ela molda os próprios fatos. Venício Lima afirma que a mídia brasileira opera como ator político com capacidade de interferência direta na dinâmica do poder, agindo para preservar os interesses de elites econômicas e evitar reformas estruturais. O controle do fluxo informativo, a escolha das pautas, o enquadramento dos acontecimentos e a produção de consensos são ferramentas de intervenção no processo democrático. Nesse contexto, as eleições se realizam formalmente, mas sob forte assimetria de poder entre os atores políticos e os mediadores da informação.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Venício A. de Lima – Mídia: Crises Políticas e Poder no Brasil (2011)
Bernardo Kucinski – Jornalismo na Era Virtual (2001)
Laurindo Lalo Leal Filho – A Mídia Descontrolada (2012)
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5. ENTRE A FICÇÃO E A GUERRA CULTURAL
O monopólio da Rede Globo na construção da narrativa internacional é igualmente problemático. A emissora historicamente reproduz os interesses geopolíticos dos Estados Unidos, legitimando guerras, sancionando intervenções e criminalizando governos populares no Sul Global. A aliança com o Grupo Time-Life, firmada nos anos 1960 em clara violação da Constituição, é só um dos inúmeros episódios de submissão à ideologia imperialista. Slavoj Žižek já alertava que “o maior perigo da ideologia é quando ela se apresenta como neutra, como bom senso” (ŽIŽEK, 2012). Assim, o noticiário da Globo transforma invasões em “missões humanitárias” e genocídios em “operações de segurança”, manipulando o imaginário nacional.
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AS ORIGENS DO ALINHAMENTO
A parceria entre o Grupo Globo e o conglomerado norte-americano Time-Life, firmada na década de 1960, estabeleceu o padrão de um jornalismo moldado segundo interesses geopolíticos externos. Embora a Constituição da época proibisse a participação de capital estrangeiro em empresas de comunicação, o acordo foi efetivado mediante contratos de “consultoria técnica” que, na prática, permitiram o aporte financeiro e o controle editorial da empresa estadunidense. A Comissão Parlamentar de Inquérito instalada em 1966 para investigar a parceria considerou o acordo inconstitucional, mas nenhuma medida foi aplicada. A criação da TV Globo ocorreu nesse contexto, consolidando um modelo de comunicação subordinado a interesses hegemônicos.
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A COBERTURA DAS INTERVENÇÕES
A atuação da Rede Globo durante intervenções militares dos Estados Unidos em países do Sul Global evidencia a recorrente adesão ao discurso imperialista. Na Guerra do Golfo (1991), a emissora reproduziu a narrativa da “libertação do Kuwait” e da “defesa da democracia”, minimizando os interesses estratégicos em petróleo. A cobertura da invasão do Iraque, em 2003, foi ainda mais marcada pela linguagem eufemística. O termo “armas de destruição em massa” foi repetido exaustivamente, mesmo após a comprovação de que tal arsenal não existia. Segundo o pesquisador Francisco Foot Hardman, a grande mídia brasileira operou como extensão do aparato ideológico norte-americano.
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O TRATAMENTO DE GOVERNOS POPULARES
Governos populares latino-americanos, como os de Hugo Chávez, Evo Morales e Rafael Correa, foram sistematicamente associados a autoritarismo, populismo e instabilidade pela cobertura da Globo. No caso da Venezuela, reportagens do Jornal Nacional apresentaram os protestos contra o governo como “movimentos democráticos”, enquanto ignoravam o papel de potências estrangeiras no financiamento de grupos opositores. O pesquisador Rafael Araújo, da UFF, argumenta que a emissora contribui para a criminalização de projetos soberanos e para a legitimação da política externa dos Estados Unidos. A cobertura seletiva reforça estigmas sobre o Sul Global e constrói um imaginário de inferioridade estrutural.
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O DISCURSO SOBRE A PALESTINA
A cobertura dos conflitos envolvendo Israel e Palestina segue um padrão de assimetria informativa. A Globo tende a retratar ações militares israelenses como “respostas a ataques”, enquanto classifica a resistência palestina como “terrorismo”. Essa construção semântica, segundo a pesquisadora Jamilly Silva, invisibiliza a ocupação prolongada e as violações de direitos humanos cometidas contra civis palestinos. Em momentos de ofensiva militar, como nos bombardeios à Faixa de Gaza em 2014 e 2021, a emissora priorizou as perdas do lado israelense e reproduziu falas de líderes ocidentais sem questionamento. O uso de termos como “conflito” ou “tensão” dilui as relações de dominação e impede a compreensão histórica do colonialismo na região.
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A NORMALIZAÇÃO DAS VIOLAÇÕES
Ao utilizar expressões como “missões humanitárias” ou “operações de paz” para referir-se a ações de caráter bélico, o jornalismo da Globo transforma o extraordinário em rotineiro. Slavoj Žižek afirma que a força da ideologia está em parecer neutra, fazendo com que atos de violência sejam percebidos como medidas de segurança ou civilização (Žižek, 2012). Essa retórica é visível também nas reportagens sobre intervenções militares da ONU em países africanos e latino-americanos, onde a presença armada é raramente questionada. A cobertura evita analisar interesses econômicos ou estratégicos por trás dessas ações, reforçando uma percepção simplista de mundo dividido entre “civilizados” e “ameaças”.
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A GUERRA CULTURAL E A INDÚSTRIA DO ENTRETENIMENTO
Além do noticiário, a ficção televisiva da Globo também reproduz valores alinhados ao ocidente liberal. Telenovelas e séries ambientadas em regiões periféricas do mundo frequentemente perpetuam estereótipos étnicos e culturais, apresentando o estrangeiro não-ocidental como exótico ou atrasado. O uso de personagens árabes como vilões, por exemplo, esteve presente em diversas produções nos anos 2000. Segundo Heloisa Buarque de Hollanda, a narrativa global sobre o “outro” opera dentro de uma lógica colonialista, onde a diferença é representada como ameaça ou caricatura. Essa produção simbólica reforça os valores de consumo, individualismo e meritocracia como universais e desejáveis.
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A INVISIBILIDADE DO SUL GLOBAL
O noticiário internacional da Globo dedica pouco espaço a países do Sul Global, exceto quando há crises humanitárias, golpes de Estado ou disputas militares. África, Ásia e América Latina aparecem quase exclusivamente sob a ótica da tragédia ou da instabilidade. Conforme levantamento do projeto Media Mapping da Universidade de Brasília, entre 2010 e 2020, menos de 12% das matérias internacionais do Jornal Nacional trataram de temas ligados a cooperação regional, inovação tecnológica ou protagonismo diplomático do Sul. Essa invisibilidade contribui para a construção de um imaginário geopolítico desigual, onde os centros do saber e da decisão continuam localizados no Norte Global.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Slavoj Žižek – Vivendo no fim dos tempos (2012)
Francisco Foot Hardman – Nem pátria, nem patrão (2003)
Rafael Araújo – A geopolítica da mídia no século XXI (2016)
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Diante desse panorama, é forçoso concluir que a chamada democracia liberal — quando acoplada a uma mídia monopolizada pelo poder econômico — transforma-se em um simulacro. A pluralidade é aparente, a liberdade de expressão é desigual e o cidadão comum é privado de uma informação crítica, diversa e honesta. Como destaca o pensador Boaventura de Sousa Santos, “sem democratização da mídia, não há democracia real” (SANTOS, 2005). Em um país onde o principal grupo de comunicação pauta o debate político, econômico e cultural com a régua da elite financeira, estamos, literalmente, no mato sem cachorro. E o mais trágico: grande parte das vítimas desse modelo ainda o defende, por não enxergar que a jaula se camufla de janela.
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A ILUSÃO DA PLURALIDADE
O modelo de mídia predominante no Brasil, centralizado em poucos grupos empresariais, compromete diretamente os princípios da democracia liberal. Embora formalmente haja liberdade de imprensa, a concentração da propriedade impede o acesso equitativo à produção e circulação de narrativas. O Grupo Globo, responsável por cerca de 70% da audiência televisiva, é o principal exemplo dessa hegemonia. Segundo pesquisa do Intervozes (2020), mais de 90% das concessões de rádio e TV no país estão nas mãos de menos de dez conglomerados, todos ligados a interesses econômicos dominantes. Isso distorce a ideia de pluralismo, substituindo diversidade real por variações de um mesmo ponto de vista.
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A DESIGUALDADE NA LIBERDADE DE EXPRESSÃO
A liberdade de expressão, embora constitucionalmente garantida, é desigualmente distribuída. Movimentos sociais, coletivos periféricos, indígenas e populações negras têm dificuldade de acesso aos grandes meios e raramente são retratados como sujeitos políticos. A pesquisadora Suzy Santos, da UFRJ, destaca que o jornalismo hegemônico opera com uma lógica de silenciamento seletivo: “não se trata de censura direta, mas de apagamento estrutural de determinadas vozes”. A suposta neutralidade editorial, ao excluir sistematicamente perspectivas críticas ao modelo econômico vigente, transforma a liberdade de expressão em privilégio de poucos.
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A FORMAÇÃO DE CONSENSOS
A atuação dos meios de comunicação na formação de consensos é um dos aspectos centrais do conceito de hegemonia, formulado por Antonio Gramsci. No caso brasileiro, a mídia corporativa cumpre essa função ao apresentar determinadas opções políticas e econômicas como naturais ou inevitáveis. A cobertura favorável à austeridade fiscal, às reformas trabalhistas e à privatização exemplifica como o jornalismo pode reforçar um único modelo de desenvolvimento. O pesquisador Venício Lima argumenta que a mídia não apenas informa, mas organiza o campo das possibilidades do pensamento político, restringindo o debate público.
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O CIDADÃO COMO CONSUMIDOR
A transformação do cidadão em consumidor de informação, ao invés de produtor ou sujeito crítico, é outro efeito da lógica concentradora da mídia. Programas jornalísticos priorizam o entretenimento e a narrativa emocional em detrimento da contextualização histórica ou da explicação estrutural dos problemas. A pesquisadora Esther Hamburger observa que essa estética da leveza e da superficialidade “empobrece a capacidade crítica e individualiza questões coletivas”. O resultado é uma população exposta a versões fragmentadas e enviesadas da realidade, o que fragiliza sua participação efetiva na vida democrática.
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A JANELA QUE É JAULA
A metáfora de Boaventura de Sousa Santos, de que a mídia monopolizada camufla a jaula como se fosse uma janela, reflete a ambiguidade do papel da imprensa em democracias desiguais. Em nome da liberdade de imprensa, defende-se um modelo que concentra poder simbólico, legitima interesses econômicos e desmobiliza a crítica. Segundo o próprio autor, “a mídia hegemônica apresenta-se como porta-voz do interesse público, mas atua em função do interesse privado” (Santos, 2005). Esse mascaramento impede que grande parte da população perceba a assimetria do sistema comunicacional e continue a confiar em estruturas que reforçam sua exclusão.
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A AUSÊNCIA DE POLÍTICAS PÚBLICAS
Diferentemente de países como França, Canadá ou Alemanha, o Brasil não possui um marco regulatório efetivo que promova a democratização da mídia. Propostas como o Conselho de Comunicação Social ou o projeto de regulação econômica da mídia, discutido nos governos do PT, enfrentaram forte resistência do setor empresarial. O argumento da censura foi frequentemente utilizado para deslegitimar qualquer tentativa de controle social sobre os meios. A ausência de políticas públicas nesse setor contribui para a perpetuação do desequilíbrio informacional e inviabiliza a construção de uma esfera pública plural.
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A CRISE DA DEMOCRACIA INFORMACIONAL
A democracia contemporânea depende de uma esfera pública informada e crítica. Sem acesso equitativo à informação, a participação política é comprometida. No Brasil, o desequilíbrio midiático tornou-se um dos pilares da crise democrática. A desinformação, a manipulação seletiva de dados e a naturalização de privilégios midiáticos contribuem para uma cidadania debilitada. Como afirmam pesquisadores do Instituto de Estudos da Mídia da UFRN, vivemos uma “crise da democracia informacional”, onde a forma democrática é mantida, mas o conteúdo deliberativo está esvaziado. Em um sistema fechado, as saídas se tornam ilusórias.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Boaventura de Sousa Santos – A Crítica da Razão Indolente (2005)
Venício A. de Lima – Mídia: Crises Políticas e Poder no Brasil (2011)
Suzy Santos – Mídia e Racismo Estrutural (2020)
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REGULAÇÃO ANTITRUSTE E DESCONCENTRAÇÃO
Diversos países enfrentam o desafio de conter o monopólio midiático e promover a diversidade de vozes. Na Alemanha, por exemplo, a Lei de Concorrência exige a descentralização da propriedade dos meios de comunicação, impedindo que uma única empresa controle grandes fatias do mercado televisivo, radiofônico e impresso. O Conselho Federal de Mídia exerce supervisão rigorosa sobre fusões e aquisições, aplicando multas e exigindo a venda de ativos quando identificada concentração excessiva. Pesquisadores como Christian Fuchs apontam que esse modelo busca garantir pluralidade editorial e evitar a hegemonia de interesses privados sobre o debate público.
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FUNDOS PÚBLICOS DE APOIO À MÍDIA INDEPENDENTE
Países como Canadá e França adotam políticas públicas que financiam veículos de comunicação independentes, sem vínculo com grupos empresariais tradicionais. No Canadá, o Fundo para Projetos de Jornalismo Comunitário (CPJP) destina recursos a iniciativas que cobrem temas locais e oferecem perspectivas alternativas. Esse modelo tem se mostrado eficaz para ampliar o acesso da população a informações relevantes e diversificadas. A pesquisadora Marie-Christine Weidmann observa que o financiamento público, condicionado à transparência e independência editorial, fortalece a democracia e a cidadania.
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ESTATUTOS DE SERVIÇO PÚBLICO
A experiência britânica, com a British Broadcasting Corporation (BBC), é frequentemente citada como modelo de serviço público de mídia. Financiada por uma taxa anual compulsória, a BBC tem o compromisso legal de oferecer programação plural, isenta e voltada ao interesse público. Relatórios anuais e mecanismos de participação cidadã garantem a prestação de contas. O cientista político Peter Golding destaca que a BBC mantém sua autonomia editorial, mesmo em contextos políticos adversos, servindo como contrapeso às mídias comerciais dominantes.
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CONTROLE SOCIAL E PARTICIPAÇÃO
Na Suécia, o modelo de governança dos meios de comunicação inclui conselhos formados por representantes da sociedade civil, que fiscalizam a programação e a gestão dos recursos públicos. Esse mecanismo permite que a população influencie a agenda midiática e denuncie práticas editoriais inadequadas. Estudos da pesquisadora Annika Bergström apontam que a participação social contribui para maior legitimidade e diversidade na mídia, fortalecendo o debate democrático.
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REGULAÇÃO DIGITAL E PLURALISMO
Com o crescimento das plataformas digitais, países como a França estabeleceram regulamentações que buscam evitar a concentração de poder também no ambiente online. A Autoridade de Regulação da Comunicação Eletrônica e das Tecnologias da Informação (ARCEP) impõe regras de neutralidade e promove a concorrência entre provedores de conteúdo e distribuição. A pesquisadora Catherine Middleton salienta que essas iniciativas são essenciais para garantir que a mídia digital não reproduza os mesmos padrões de concentração presentes no sistema tradicional.
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INCENTIVO À PRODUÇÃO LOCAL E DIVERSIDADE CULTURAL
Na Austrália, a legislação obriga as emissoras comerciais a dedicar parte da programação à produção local e a conteúdos que reflitam a diversidade cultural do país. O Conselho Australiano de Comunicações e Mídia (ACMA) supervisiona o cumprimento dessas regras, que visam preservar identidades regionais e estimular o desenvolvimento econômico do setor audiovisual. De acordo com o relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), essa política fortalece o pluralismo e promove o acesso a narrativas plurais.
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TRANSPARÊNCIA NA PROPRIEDADE E FINANCIAMENTO
Em Portugal, a legislação exige que veículos de comunicação divulguem publicamente suas estruturas acionárias e fontes de financiamento. Essa medida combate a opacidade que pode favorecer interesses ocultos e manipulação da opinião pública. Segundo a jornalista Ana Paula Martins, essa transparência é fundamental para que o público compreenda os possíveis vieses e tome decisões informadas sobre o consumo de notícias. A divulgação clara fortalece a responsabilização dos meios perante a sociedade.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Christian Fuchs – Comunicação, Capitalismo e Crise (2017)
Marie-Christine Weidmann – Políticas Públicas e Jornalismo Comunitário (2019)
Peter Golding – Mídia Pública e Democracia (2015)
CONCLUSÃO
A celebração de cem anos do Grupo Globo deveria ser encarada com olhar crítico pela sociedade brasileira. Ao longo de sua existência, a emissora acumulou um histórico de manipulações que deformaram a consciência política do povo, contribuindo diretamente para a manutenção das desigualdades sociais e o fracasso de projetos populares. A suposta neutralidade jornalística foi, na verdade, uma cortina de fumaça que encobriu décadas de interesses privatistas e alianças espúrias com o capital.
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Enquanto houver concentração dos meios de comunicação nas mãos de poucas famílias bilionárias, não haverá democracia real no Brasil. A imprensa comercial, liderada pela Globo, é o maior partido político informal do país — sem votos, mas com poder de veto. Controla a agenda pública, seleciona os temas em debate e molda o que a população entende por verdade. O povo não tem acesso à pluralidade de ideias, mas a versões filtradas da realidade que atendem a uma minoria privilegiada.
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Reverter esse quadro exige coragem institucional e mobilização social. A democratização da mídia, prevista no artigo 220 da Constituição de 1988, permanece ignorada. Para que o Brasil supere essa armadilha ideológica e construa uma democracia genuína, é urgente romper com o monopólio informativo, estimular a mídia pública, comunitária e alternativa, e garantir diversidade de vozes. Caso contrário, permaneceremos no mato sem cachorro: com urna, sem escolha; com voto, sem poder.
BIBLIOGRAFIA
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Padrões de manipulação na grande imprensa – Perseu Abramo (2003)
→ Abramo analisa os mecanismos usados pela grande mídia brasileira para manipular informações. Explica como se constrói uma narrativa aparentemente neutra que, na verdade, distorce os fatos para favorecer os interesses da elite. Mostra o uso de omissões, enquadramentos tendenciosos e foco seletivo. -
A Era do Capital Improdutivo – Ladislau Dowbor (2016)
→ Dowbor denuncia como o sistema financeiro e sua cobertura midiática impedem o desenvolvimento dos países periféricos. Explica como a mídia protege interesses rentistas e sabota políticas públicas, analisando o papel da Globo nesse processo. -
Mídia: Crises Políticas e Poder no Brasil – Venício A. de Lima (2011)
→ O livro estuda o papel ativo da mídia nas crises políticas brasileiras, mostrando como atua como ator político, e não apenas como observadora. A Globo é frequentemente citada como principal articuladora dessas movimentações. -
A Ditadura Envergonhada – Elio Gaspari (2002)
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O Quarto Poder: Uma outra história da Rede Globo – Paulo Henrique Amorim (2001)
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Monopólio da Palavra – Laurindo Lalo Leal Filho (2004)
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A mídia nas eleições presidenciais – Venício A. de Lima (2010)
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A história da Rede Globo: A potência e a manipulação – Luiz Nassif (2002)
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O Partido da Imprensa Golpista – Rodrigo Vianna (2007)
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O sublime objeto da ideologia – Slavoj Žižek (1989 / ed. BR: 2012)
---------------------------------------- ABRAMO, Perseu. Padrões de manipulação na grande imprensa. Fundação Perseu Abramo, 2003.
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BORGES, Rosane. Espelhos, muros e janelas: uma cartografia do racismo na mídia. Summus, 2019.
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DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo. Autonomia Literária, 2016.
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LIMA, Venício A. de. Mídia: Crises Políticas e Poder no Brasil. Editora Fundação Perseu Abramo, 2011.
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ŽIŽEK, Slavoj. O sublime objeto da ideologia. Boitempo, 2012.
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SANTOS, Boaventura de Sousa. A democracia e os direitos humanos na era da globalização. Civilização Brasileira, 2005.
BRASIL DESAFIA A DOMINAÇÃO DOS EUA E LIDERA ALTERNATIVA GLOBAL COM APOIO DO BRICS
HOMENAGENS
Patrícia Campos Mello
Obra: "A Máquina do Ódio – Notas de uma repórter sobre fake news e violência digital"
Data: 2020
Onde foi publicada: Companhia das Letras (livro-reportagem com capítulos sobre pressões internacionais e geopolítica)
Jamil Chade
Obra: “O Lugar Mais Perigoso do Mundo: A guerra do Brasil contra o mundo”
Data: 2021
Onde foi publicada: Editora Planeta (obra jornalística com enfoque em relações internacionais e o papel do Brasil)
Fernando Morais
Obra: “Os Últimos Soldados da Guerra Fria”
Data: 2011
Onde foi publicada: Companhia das Letras (livro-reportagem sobre espionagem e as tensões entre os EUA e países do Sul Global, com contexto geopolítico latino-americano)
O Brasil tem demonstrado, nos últimos anos, uma postura internacional cada vez mais independente, desafiando abertamente a hegemonia política e econômica dos Estados Unidos, que historicamente tem utilizado seu poder militar, diplomático e financeiro para impor seus interesses a países do Sul Global. Com a ascensão do BRICS, grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, novas possibilidades de articulação e cooperação surgiram fora do eixo dominado pelo Ocidente, permitindo que o Brasil atue com mais soberania em temas de desenvolvimento, comércio, segurança e clima. Essa transformação reflete tanto o declínio relativo da influência dos EUA quanto a consolidação de uma política externa brasileira mais assertiva e multipolar. Esta reportagem aprofunda como o Brasil está se posicionando no tabuleiro geopolítico, destacando-se como um dos protagonistas de uma nova ordem internacional. Através de análises históricas, geoeconômicas e diplomáticas, especialistas e documentos revelam os bastidores dessa resistência estratégica, silenciosa, mas potente — e como ela está moldando o futuro das relações internacionais.
CONTEÚDOS
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O poder e a história dos EUA na hegemonia global
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A resistência do Brasil e o surgimento do BRICS
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Impacto do BRICS nas relações internacionais
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Estratégias de resistência do Brasil
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Análise de especialistas e opiniões
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Perspectivas futuras e conclusão
1– O PODER E A HISTÓRIA DOS EUA NA HEGEMONIA GLOBAL
Os Estados Unidos emergiram como uma potência mundial dominante após a Segunda Guerra Mundial, utilizando seu poder militar e econômico para influenciar decisões globais. Desde então, têm frequentemente imposto políticas e acordos que refletem seus interesses estratégicos. Esta postura é exemplificada por demandas políticas e econômicas recentemente destacadas pelo atual presidente, refletindo uma abordagem assertiva e unilateral nas relações internacionais. Desde a Guerra Fria, com sua política de contenção do comunismo, até intervenções diretas em países como Iraque, Afeganistão e Nicarágua, os EUA usaram tanto a força quanto a diplomacia econômica para garantir sua hegemonia. Hoje, a exposição direta dessas exigências sinaliza uma nova fase, talvez mais transparente, mas também mais desesperada.
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PODER GLOBAL E CONSENSO FORJADO
Desde o final da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos consolidaram-se como a principal potência hegemônica do planeta, estruturando a ordem internacional com base em seus próprios interesses. O Plano Marshall, lançado em 1947, não apenas viabilizou a reconstrução da Europa Ocidental, mas também condicionou as economias europeias ao modelo capitalista e à influência norte-americana. Com a fundação de instituições como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, os EUA passaram a exercer influência financeira e política sobre países em desenvolvimento, promovendo uma visão liberal de economia que favorece seus mercados e empresas. A historiadora Mary Nolan (2012) destaca que esse processo garantiu uma forma de dominação que dispensava o colonialismo tradicional, mas mantinha a dependência.
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A HEGEMONIA NA GUERRA FRIA
Durante a Guerra Fria, os EUA protagonizaram uma estratégia de contenção ao comunismo, intervindo direta ou indiretamente em várias regiões do mundo. O golpe militar no Chile em 1973, apoiado pela CIA, e o financiamento de grupos armados contrários a regimes de esquerda, como os Contras na Nicarágua, exemplificam a disposição norte-americana de usar todos os meios disponíveis para garantir sua supremacia ideológica. Segundo Noam Chomsky (1999), essas intervenções foram justificadas pelo discurso da “liberdade”, mas na prática garantiam a estabilidade de governos pró-EUA e o acesso a recursos naturais estratégicos. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos investiam pesadamente em sua indústria bélica, o que alimentava seu complexo militar-industrial e assegurava sua vantagem tecnológica frente à União Soviética.
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GUERRAS MODERNAS E INTERESSES ECONÔMICOS
Após o fim da Guerra Fria, a hegemonia norte-americana se reconfigurou. A guerra no Iraque, iniciada em 2003 sob a justificativa da existência de armas de destruição em massa, mostrou-se posteriormente sem base factual, conforme relatório da Comissão Butler em 2004. Ainda assim, resultou na queda de Saddam Hussein e no controle de setores estratégicos do petróleo. O jornalista Patrick Cockburn argumenta que os interesses energéticos e geopolíticos moldaram toda a atuação americana no Oriente Médio. No Afeganistão, a presença de duas décadas também teve implicações econômicas ligadas à reconstrução e contratos militares, enquanto, simultaneamente, permitia o monitoramento de potências como China, Rússia e Irã.
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INFLUÊNCIA ECONÔMICA E SOFT POWER
O poder dos EUA não se resume ao campo militar. A economia norte-americana, com seu dólar como moeda de referência global, estabelece parâmetros para o comércio e os investimentos internacionais. Além disso, o chamado “soft power” — conceito desenvolvido por Joseph Nye — permite aos EUA exercer influência cultural e ideológica por meio de universidades, mídia e produtos culturais. A globalização, conforme demonstrado por Immanuel Wallerstein (2006), expandiu o alcance do capitalismo norte-americano, ao mesmo tempo que inseriu países periféricos em cadeias produtivas subordinadas. Com isso, Washington molda valores e comportamentos sociais mesmo sem recorrer à força.
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UM UNILATERALISMO REAFIRMADO
No século XXI, a política externa dos EUA oscilou entre tentativas de multilateralismo e reafirmações unilaterais. A saída do Acordo de Paris e do pacto nuclear com o Irã durante o governo Trump indicaram um retorno à doutrina do "America First", que prioriza os interesses domésticos em detrimento de alianças históricas. O governo atual, ainda que mais diplomático, tem reforçado exigências econômicas e comerciais que ampliam sua vantagem competitiva, como mostram os embargos tecnológicos à China e as sanções a países que desafiam sua liderança. Especialistas como Henry Kissinger apontam que a nova disputa por hegemonia com a China exige dos EUA uma postura ainda mais assertiva, embora sem os mesmos recursos ilimitados da Guerra Fria.
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CRISE DA HEGEMONIA E RESPOSTAS GLOBAIS
A exposição direta das exigências norte-americanas nos últimos anos sinaliza não apenas uma maior transparência, mas também o declínio relativo de sua hegemonia incontestável. Com o avanço da multipolaridade e o fortalecimento de blocos alternativos, como o BRICS, a influência norte-americana tem enfrentado resistências. A invasão da Ucrânia pela Rússia e a resposta coordenada do Ocidente, liderada pelos EUA, mostram que ainda há capacidade de articulação, mas também evidenciam os limites desse poder. Segundo Susan Strange (1996), a hegemonia não depende apenas da força, mas da aceitação da liderança. E essa aceitação, cada vez mais, tem sido posta à prova por um mundo em transformação.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Immanuel Wallerstein, O Capitalismo Histórico (2006)
Noam Chomsky, O Lucro ou as Pessoas? (1999)
Mary Nolan, A Europa nos Estados Unidos: A influência americana desde 1945 (2012)
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2– A RESISTÊNCIA DO BRASIL E O SURGIMENTO DO BRICS
Contrariando essa hegemonia, o Brasil desempenhou um papel fundamental na criação do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), um grupo econômico e político que busca uma maior equidade global e diversificação nas relações internacionais. Este bloco tem desafiado o domínio tradicional dos EUA ao promover uma voz coletiva de nações emergentes, buscando alternativas aos sistemas financeiros e políticos estabelecidos pelo Ocidente. A primeira cúpula formal do BRIC (ainda sem a África do Sul) ocorreu em 2009, e desde então o grupo cresceu em influência, articulando pautas comuns contra o sistema financeiro unipolar liderado por Washington.
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O DESAFIO À ORDEM UNIPOLAR
O surgimento do BRICS representa uma das iniciativas mais relevantes das últimas décadas no sentido de contestar a ordem mundial hegemonizada pelos Estados Unidos. Desde a criação do grupo BRIC, em 2006, e sua primeira cúpula formal em 2009, os países membros têm articulado formas de reequilibrar as relações internacionais. As críticas ao sistema financeiro global, dominado pelo dólar e por instituições como o FMI e o Banco Mundial, foram centrais para o fortalecimento desse bloco. O economista José Luís Fiori destaca que o BRICS representa um "contraponto civilizatório" frente à centralização de poder político e financeiro exercida pelas potências ocidentais.
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A INSERÇÃO DO BRASIL COMO ATOR ESTRATÉGICO
A participação do Brasil nesse projeto não se deu por acaso. A diplomacia brasileira, especialmente nos governos Lula da Silva (2003–2010), buscou uma inserção mais ativa e autônoma na arena internacional. O então chanceler Celso Amorim defendeu uma “política externa altiva e ativa”, que passou a dialogar com o Sul Global e a fortalecer coalizões alternativas. O país buscou diversificar seus parceiros comerciais e políticos, aproximando-se da China e da Índia, e participando da formação da UNASUL e da CELAC, como formas de consolidar uma nova geopolítica. O Brasil passou a reivindicar, inclusive, maior protagonismo nas Nações Unidas, questionando a estrutura de poder do Conselho de Segurança.
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A ENTRADA DA ÁFRICA DO SUL E A DIMENSÃO GLOBAL
Em 2010, a África do Sul foi integrada ao grupo, transformando o BRIC em BRICS e ampliando o alcance continental do bloco. A entrada sul-africana consolidou o caráter multirregional do grupo, oferecendo uma representatividade mais plural frente aos fóruns de decisão global. A cooperação Sul-Sul ganhou força, especialmente com o lançamento do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) em 2015, sediado em Xangai, e concebido como alternativa ao FMI e ao Banco Mundial. Segundo a pesquisadora Karin Costa Vazquez, da FGV, essa iniciativa simboliza a busca dos países do BRICS por instituições mais democráticas e menos condicionadas a interesses geopolíticos específicos.
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ECONOMIAS EMERGENTES E INTERDEPENDÊNCIA
Apesar de suas diferenças culturais, políticas e econômicas, os países do BRICS compartilham desafios estruturais semelhantes, como a necessidade de desenvolvimento, redução da pobreza e maior autonomia no comércio internacional. A crescente interdependência econômica entre eles, notadamente entre Brasil e China, fortaleceu o bloco. Em 2022, a China respondeu por cerca de 30% das exportações brasileiras, segundo dados do Ministério da Economia. Essa relação, no entanto, também gerou críticas internas quanto à dependência brasileira de commodities e produtos primários, o que pode limitar a capacidade de inovação e industrialização no longo prazo.
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IMPACTO GEOPOLÍTICO E RESISTÊNCIAS
O fortalecimento do BRICS não passou despercebido por Washington e seus aliados. A busca por uma ordem multipolar é vista, por muitos analistas ocidentais, como um risco à estabilidade liberal internacional. A edição de 2023 da revista Foreign Affairs alertou para o crescimento da influência do BRICS e para a possibilidade de erosão das alianças tradicionais lideradas pelos EUA. Além disso, o grupo tem atraído o interesse de outros países, como Irã, Argentina, Arábia Saudita e Egito, que manifestaram intenção de se integrar ao bloco ou de manter parcerias estratégicas. Isso demonstra o crescente apelo de uma governança global mais representativa.
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DIFICULDADES E CONTRADIÇÕES INTERNAS
Apesar dos avanços, o BRICS também enfrenta tensões internas que desafiam sua coesão. As rivalidades históricas entre China e Índia, os diferentes regimes políticos e os interesses nacionais por vezes divergentes dificultam a construção de uma agenda unificada. O caso da guerra na Ucrânia ilustrou essas diferenças: enquanto a Rússia foi diretamente envolvida no conflito, Brasil e Índia adotaram posturas mais ambíguas. Ainda assim, o grupo tem mantido o compromisso com princípios como a não intervenção, a soberania dos Estados e o multilateralismo. Para o cientista político Oliver Stuenkel, o BRICS não é um bloco homogêneo, mas um fórum flexível com grande potencial estratégico.
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PERSPECTIVAS PARA O FUTURO
O futuro do BRICS dependerá da capacidade dos países membros de fortalecer sua coordenação política e de apresentar propostas concretas para a reforma das instituições internacionais. O avanço da digitalização, a transição energética e as crises climáticas exigem respostas conjuntas, e o BRICS poderá atuar como articulador de soluções alternativas ao modelo liberal tradicional. O Brasil, por sua localização estratégica, seus recursos naturais e sua tradição diplomática, continuará sendo peça-chave nessa articulação. A resistência à hegemonia unipolar está longe de representar um confronto direto, mas sugere um movimento consistente de reconfiguração do poder global.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
José Luís Fiori, O Poder Global e a Nova Geopolítica das Nações (2007)
Oliver Stuenkel, O Mundo Pós-Ocidental: Potências emergentes e a nova ordem global (2016)
Karin Costa Vazquez, O Papel do BRICS na Governança Global (2020)
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3– IMPACTO DO BRICS NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
O BRICS não apenas fortaleceu a cooperação econômica entre seus membros, mas também serviu como um contrapeso às políticas unilaterais dos EUA. Através de iniciativas como o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), o grupo tem financiado projetos de infraestrutura e desenvolvimento em países membros e além, desafiando as instituições financeiras dominadas pelo Ocidente, como o FMI e o Banco Mundial. Com sede em Xangai e presidências rotativas, o NBD já concedeu bilhões em crédito sem as exigências austeras típicas das instituições tradicionais. Isso confere aos países maior autonomia para definir suas prioridades soberanas.
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EXPANSÃO DO BRICS NA ORDEM INTERNACIONAL
A criação do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), em 2014, durante a 6ª cúpula do BRICS em Fortaleza, marcou um avanço significativo na capacidade dos países emergentes de financiar seu próprio desenvolvimento sem depender das condições impostas por instituições ocidentais. Com capital inicial autorizado de 100 bilhões de dólares, o NBD surgiu como uma resposta direta à assimetria de poder no sistema financeiro internacional, historicamente dominado pelo FMI e pelo Banco Mundial. Esses órgãos, com forte influência dos Estados Unidos e da União Europeia, são frequentemente criticados por suas exigências de reformas estruturais que afetam a soberania dos países em desenvolvimento.
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ALTERNATIVA ÀS EXIGÊNCIAS AUSTERAS
Ao contrário das instituições tradicionais, o NBD opera com critérios de financiamento mais flexíveis e com respeito às prioridades nacionais dos países beneficiados. Essa abordagem foi destacada por Amrita Narlikar, presidente do German Institute for Global and Area Studies, que argumenta que o banco representa uma inovação institucional de países do Sul Global. Projetos de infraestrutura em áreas como energia limpa, transporte e conectividade digital têm sido beneficiados por linhas de crédito do NBD, permitindo aos países membros manter maior controle sobre seus programas de desenvolvimento sem a necessidade de adotar políticas de austeridade.
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PRESIDÊNCIA ROTATIVA E GESTÃO COMPARTILHADA
O modelo de governança do NBD é outro diferencial em relação aos bancos tradicionais. Com sede permanente em Xangai, o banco adota uma presidência rotativa entre os países membros, o que garante maior equilíbrio na tomada de decisões. A atual presidente, Dilma Rousseff, ex-presidente do Brasil, assumiu o cargo em 2023 e tem enfatizado a importância de ampliar o alcance do banco a outros países do Sul Global. Essa prática rompe com o modelo do FMI, onde os cargos de direção são historicamente reservados a europeus e norte-americanos. A estrutura compartilhada do NBD reflete o princípio do BRICS de democratização das instituições multilaterais.
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IMPACTOS NAS RELAÇÕES COM OUTROS PAÍSES
Além de beneficiar seus membros, o NBD já estendeu financiamentos a países fora do BRICS, como Bangladesh e Egito, ampliando sua influência geopolítica. Essa estratégia fortalece a diplomacia Sul-Sul e consolida o banco como uma plataforma internacional de desenvolvimento. Segundo relatório do South Centre (2022), o financiamento do NBD oferece uma alternativa menos intrusiva e mais sensível às realidades locais dos países receptores, o que contribui para maior aceitação internacional e diminuição da dependência das potências ocidentais. Esse reposicionamento do financiamento internacional altera as dinâmicas de poder e reduz a centralidade do dólar.
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DESAFIOS E LIMITAÇÕES ESTRUTURAIS
Apesar dos avanços, o NBD enfrenta desafios importantes. O crescimento econômico desigual entre os membros, tensões geopolíticas — como os conflitos envolvendo a Rússia — e limitações orçamentárias afetam sua capacidade de expansão. A necessidade de atrair novos investidores, públicos e privados, é permanente. Além disso, analistas como Kevin Gallagher, da Universidade de Boston, destacam que o banco ainda precisa demonstrar capacidade de competir com instituições consolidadas no financiamento de longo prazo. A entrada de novos membros e parceiros estratégicos será fundamental para ampliar seu impacto na arena internacional.
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REDEFINIÇÃO DO DESENVOLVIMENTO GLOBAL
O NBD também contribui para uma nova narrativa sobre o que constitui desenvolvimento. Em vez de se pautar exclusivamente por metas econômicas tradicionais, o banco apoia projetos que combinam crescimento com inclusão social e sustentabilidade ambiental. Essa mudança de paradigma é refletida em sua política de financiamento de projetos de energias renováveis, educação e urbanização sustentável. A proposta é que o desenvolvimento seja moldado por atores locais e regionais, e não imposto por diretrizes padronizadas de organismos globais. Segundo estudo da Universidade de Pequim, essa visão resgata a capacidade dos países de definirem suas próprias trajetórias soberanas.
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O BRICS COMO EIXO DE TRANSFORMAÇÃO
A atuação do NBD é apenas um dos instrumentos que consolidam o BRICS como um eixo emergente de transformação nas relações internacionais. O banco funciona como peça central na estratégia do grupo de criar instituições próprias e reduzir a dependência do sistema ocidental. A médio e longo prazo, o fortalecimento do NBD poderá contribuir para a reformulação de padrões globais de crédito, governança e desenvolvimento. Para o Brasil, essa participação ativa reforça seu papel de liderança no Sul Global e fortalece sua política externa de promoção do multilateralismo e da equidade internacional.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Amrita Narlikar, Desafiar a Hegemonia: Potências emergentes e novas instituições globais (2020)
José Luís Fiori, Sobre o Poder e o Interesse: A geopolítica do capitalismo (2004)
Kevin Gallagher, O Banco do Sul Global: Financiamento e poder nos tempos do BRICS (2018)
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4– ESTRATÉGIAS DE RESISTÊNCIA DO BRASIL
O Brasil, historicamente um dos líderes do BRICS, tem adotado uma postura mais assertiva e independente em suas políticas externas, resistindo às pressões e exigências diretas dos EUA. A recusa em apoiar certas resoluções em fóruns internacionais, a defesa de uma multipolaridade real, e a ampliação de acordos bilaterais com países do Sul Global são exemplos concretos dessa estratégia. Mesmo com governos de orientações distintas nos últimos anos, o Brasil tem mantido a aposta estratégica na autonomia frente ao império, valorizando sua atuação em blocos como BRICS, CELAC e G77.
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RESISTÊNCIA DIPLOMÁTICA NOS FÓRUNS INTERNACIONAIS
O Brasil tem exercido resistência às pressões dos Estados Unidos principalmente no campo diplomático, adotando posicionamentos independentes em fóruns multilaterais como a ONU, a OMC e o G20. Em diversas ocasiões, o país se absteve ou votou contra resoluções lideradas por Washington, especialmente quando envolviam sanções unilaterais ou intervenções militares. Em 2003, por exemplo, durante a guerra do Iraque, o Brasil se posicionou criticamente contra a invasão liderada pelos EUA. Essa postura de não alinhamento automático foi retomada com mais força nos anos recentes, inclusive em relação à guerra na Ucrânia, com a defesa reiterada do diálogo e da multipolaridade como alternativas ao conflito.
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O PAPEL DOS GOVERNOS NAS ESTRATÉGIAS DE AUTONOMIA
Embora as administrações brasileiras tenham oscilado entre diferentes espectros ideológicos, a diretriz da busca por autonomia estratégica foi mantida. No governo Lula (2003–2010 e 2023–), a política externa priorizou a integração sul-americana, o fortalecimento do Sul Global e o distanciamento de agendas unilaterais. Já durante o governo Dilma Rousseff, o Brasil resistiu às pressões norte-americanas no caso da espionagem da NSA, que monitorava inclusive comunicações da presidência, revelado por Edward Snowden. Mesmo durante o governo Jair Bolsonaro, que teve uma retórica mais próxima dos EUA, o Itamaraty evitou apoiar certas resoluções intervencionistas, mantendo um histórico de pragmatismo institucional.
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BRICS, CELAC E G77 COMO ALTERNATIVAS ESTRATÉGICAS
A atuação brasileira em blocos alternativos à hegemonia ocidental tem sido uma das principais estratégias de resistência. O BRICS representa a principal plataforma econômica e diplomática, mas também se destaca a participação na CELAC (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos) e no G77 + China, grupo que articula interesses de países em desenvolvimento na ONU. Em 2014, a criação do Novo Banco de Desenvolvimento durante a cúpula do BRICS em Fortaleza foi considerada um marco dessa alternativa institucional. Segundo o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, o Brasil busca "um mundo com vários polos de poder, onde as decisões não sejam concentradas em Washington".
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DIVERSIFICAÇÃO DE PARCERIAS INTERNACIONAIS
Outra tática utilizada pelo Brasil tem sido a ampliação de acordos bilaterais e multilaterais com países da África, Ásia e América Latina. A reabertura e criação de embaixadas em países africanos nas últimas décadas, somada ao incentivo ao comércio com países como China, Índia, Irã, Indonésia e África do Sul, refletem essa aposta na diversificação. Em 2022, a China ultrapassou os EUA como maior parceiro comercial do Brasil pelo 14º ano consecutivo. Esse realinhamento comercial fortalece a margem de manobra do país e reduz a dependência dos mercados ocidentais. Segundo relatório do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), esse processo reforça a inserção internacional do Brasil de forma soberana.
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RELAÇÕES COMERCIAIS E TECNOLÓGICAS SOB PRESSÃO
O esforço por autonomia, no entanto, gera reações. Os Estados Unidos frequentemente pressionam o Brasil em áreas estratégicas, como defesa, telecomunicações e energia. A tentativa de impedir a participação da Huawei na infraestrutura de 5G brasileira é um exemplo dessa disputa. Apesar de pressões diplomáticas e ameaças de retaliação comercial, o Brasil adotou uma abordagem técnica e soberana na análise do tema. Além disso, setores como o agronegócio, embora integrados a cadeias globais dominadas por empresas norte-americanas, também têm buscado mercados alternativos, como o oriente médio e o sudeste asiático, mitigando os riscos de retaliações políticas.
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AUTONOMIA MILITAR E COOPERAÇÃO SUL-SUL
A busca por maior autonomia também se expressa no campo da defesa. O Brasil tem investido em projetos como o desenvolvimento de um submarino nuclear e a expansão da indústria aeroespacial, por meio da Embraer e de parcerias com países como França, Suécia e Índia. A cooperação em defesa com países do Sul Global, incluindo exercícios conjuntos e intercâmbios técnicos, faz parte dessa estratégia. O Ministério da Defesa tem priorizado uma política de dissuasão voltada à proteção da soberania e dos recursos estratégicos, como a Amazônia e o pré-sal. Esses movimentos buscam reduzir a dependência tecnológica e militar das grandes potências, especialmente dos EUA.
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UMA POLÍTICA EXTERNA MULTIPOLAR CONSISTENTE
A consistência da política externa brasileira na defesa da multipolaridade é reconhecida por diversos analistas internacionais. Embora com diferentes ênfases e prioridades, os últimos governos mantiveram uma postura de resistência ao alinhamento automático com Washington, defendendo a reforma das instituições multilaterais e maior representatividade para os países em desenvolvimento. O Brasil tem insistido na ampliação do Conselho de Segurança da ONU e no fortalecimento de mecanismos como o BRICS e a CELAC. Para a cientista política Monica Hirst, essa política reafirma a tradição diplomática brasileira de equilíbrio, autonomia e busca de protagonismo global com base no multilateralismo.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Samuel Pinheiro Guimarães, Desafios Brasileiros na Era dos Gigantes (2012)
Monica Hirst, O Brasil na Política Internacional: Os desafios da diplomacia independente (2016)
IPEA, Inserção Internacional do Brasil: Estratégias para o século XXI (2021)
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5– ANÁLISE DE ESPECIALISTAS E OPINIÕES
Especialistas em relações internacionais destacam que o desafio do Brasil ao poder dos EUA através do BRICS é não apenas um movimento estratégico, mas também uma resposta às demandas por uma ordem global mais justa e inclusiva. A professora Esther Dweck, da UFRJ, aponta que “a dependência do Sul Global em relação às potências ocidentais sempre impediu políticas de desenvolvimento autônomas”. Já o pesquisador Oliver Stuenkel, da FGV, sustenta que “o BRICS simboliza um movimento lento, mas constante, de reconfiguração geopolítica”. Ambos destacam que resistir aos EUA não significa confronto direto, mas abertura de espaço para decisões soberanas.
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BRASIL E SUA APOSTA NA AUTONOMIA
O Brasil tem assumido uma postura diplomática voltada à construção de uma ordem internacional mais plural e menos subordinada ao eixo político-financeiro do Ocidente. Especialistas em relações internacionais apontam que essa movimentação não busca antagonizar os Estados Unidos de forma direta, mas garantir maior soberania nas decisões internas e nas articulações externas. A estratégia de inserção internacional baseada no multilateralismo, segundo a professora Esther Dweck, da UFRJ, responde a uma longa história de dependência das economias do Sul Global em relação às instituições comandadas pelas potências do Norte, dificultando políticas próprias de desenvolvimento.
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O BRICS COMO SÍMBOLO DE RESPOSTA GEOPOLÍTICA
O fortalecimento do BRICS nas últimas décadas tem sido interpretado por estudiosos como uma tentativa clara de contestar a hegemonia política e econômica exercida pelas potências ocidentais, sobretudo pelos Estados Unidos. Para o professor Oliver Stuenkel, da Fundação Getulio Vargas, o BRICS representa “um movimento lento, mas constante, de reconfiguração geopolítica”, que desafia o modelo unipolar vigente desde o fim da Guerra Fria. A criação de instituições como o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) e o arranjo contingente de reservas, segundo ele, são passos concretos rumo à autonomia financeira e institucional dos países do Sul Global.
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PESQUISAS SOBRE A DEPENDÊNCIA DO SUL GLOBAL
Diversos estudos acadêmicos apontam que a dependência financeira dos países em desenvolvimento em relação ao Norte Global foi mantida, em parte, por meio das condicionalidades impostas por instituições como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. A professora Esther Dweck observa que essas exigências, muitas vezes ligadas à austeridade fiscal e à abertura de mercados, dificultaram o avanço de estratégias nacionais de combate à pobreza, industrialização e soberania tecnológica. Com o BRICS, há uma tentativa de romper esse ciclo, oferecendo alternativas de financiamento e cooperação técnica mais adaptadas às necessidades locais.
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ESPECIALISTAS DEFENDEM NOVOS ARRANJOS GLOBAIS
Para além da questão econômica, analistas defendem que a atuação brasileira no BRICS e em outros fóruns alternativos também tem um impacto simbólico na política global. A cientista política Fernanda Magnotta, da FAAP, destaca que a resistência ao modelo dominante é também uma afirmação do direito de cada país construir sua própria agenda, respeitando seus processos históricos e culturais. Essa ideia está presente em documentos oficiais do grupo BRICS, como a Declaração de Xiamen (2017), que reforça a importância da soberania nacional e da não intervenção nos assuntos internos dos Estados.
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O DESAFIO DA MULTIPOLARIDADE NA PRÁTICA
Apesar do discurso favorável à multipolaridade, a implementação de uma nova arquitetura global ainda enfrenta obstáculos. O sistema das Nações Unidas, por exemplo, segue concentrado em decisões que refletem o poder dos membros permanentes do Conselho de Segurança. Nesse cenário, o papel do Brasil como articulador de novos arranjos tem sido ressaltado por estudiosos como Paulo Visentini, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que lembra que a defesa de uma reforma da ONU é uma pauta histórica da diplomacia brasileira. A participação ativa em blocos como BRICS e G20 fortalece essa posição.
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RUPTURA COM O ALINHAMENTO AUTOMÁTICO
O distanciamento de uma política externa alinhada automaticamente aos interesses dos Estados Unidos tem sido uma das marcas da diplomacia brasileira em fóruns multilaterais. Esse movimento foi intensificado com os governos que buscaram maior aproximação com o Sul Global e com potências emergentes. Segundo relatório do Instituto de Relações Internacionais da USP, esse reposicionamento estratégico busca criar condições para que o país atue de forma soberana e com maior capacidade de articulação no tabuleiro internacional. O desafio, contudo, permanece em equilibrar essa autonomia com os interesses comerciais e geopolíticos do Ocidente.
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AUTONOMIA NÃO É CONFRONTO
Especialistas ouvidos por veículos como o Le Monde Diplomatique e o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social concordam que a resistência às imposições ocidentais não representa, necessariamente, um movimento de confronto, mas sim de reposicionamento estratégico. A busca por autonomia no campo diplomático, comercial e financeiro não nega as relações com os Estados Unidos e Europa, mas busca reequilibrá-las com novos parceiros. O Brasil, dentro desse processo, tem atuado como mediador em tensões globais, como demonstrado por sua posição nas guerras do Oriente Médio e no conflito Rússia-Ucrânia, reforçando seu papel como defensor da paz e do diálogo.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Esther Dweck, Desenvolvimento e Política Econômica: Ensaios sobre a autonomia do Sul Global (2021)
Oliver Stuenkel, A Nova Política Mundial: O papel dos emergentes na governança global (2018)
Paulo Visentini, A Inserção do Brasil no Mundo: Diplomacia e autonomia na ordem internacional (2016)
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6– PERSPECTIVAS FUTURAS E CONCLUSÃO
À medida que o mundo enfrenta mudanças geopolíticas e econômicas significativas, o papel do BRICS e a resistência do Brasil assumem um papel crucial. A decadência do poder dos EUA, combinada com a ascensão de outras potências, oferece ao Brasil a oportunidade de reorientar sua política externa com foco em solidariedade sul-sul, desenvolvimento sustentável e autonomia política. O enfrentamento do império, hoje, passa mais por construir alternativas viáveis do que por embates frontais. E nisso, o BRICS se revela não como uma simples aliança econômica, mas como uma nova arquitetura internacional — uma onde o Brasil entra de cabeça erguida, e não de chapéu na mão.
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CRISE DA HEGEMONIA E REDESENHO DA ORDEM MUNDIAL
O século XXI tem sido marcado por uma série de transformações geopolíticas que fragilizaram o modelo unipolar estabelecido após a Guerra Fria. A relativa perda de influência dos Estados Unidos, agravada por crises internas, pelo esgotamento do intervencionismo militar e pelo crescimento de potências como China e Índia, tem gerado espaço para uma reorganização da ordem internacional. De acordo com o historiador Vijay Prashad, a hegemonia estadunidense encontra dificuldades para manter sua legitimidade e eficácia global diante da emergência de alternativas institucionais, como o BRICS, que sinalizam o avanço de um modelo mais distribuído de poder.
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O BRICS COMO PLATAFORMA DE TRANSIÇÃO
Nesse cenário de transição, o BRICS se apresenta não apenas como uma coalizão econômica, mas como um espaço de formulação política e institucional alternativa. Segundo estudo publicado pelo Instituto Tricontinental, o grupo representa “um experimento de governança multilateral em desenvolvimento”, especialmente por criar instituições como o Novo Banco de Desenvolvimento e ao fomentar trocas técnicas entre países em desenvolvimento. A arquitetura proposta pelo BRICS busca romper com as assimetrias de Bretton Woods e fortalecer mecanismos de solidariedade econômica e política baseados em cooperação e respeito mútuo.
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BRASIL E SUA AGENDA DE AUTONOMIA
O Brasil tem desempenhado papel estratégico nessa reconfiguração. A postura adotada nos últimos anos demonstra uma orientação firme em direção à autonomia política e econômica. Com base em sua tradição diplomática, o país tem buscado fortalecer relações com parceiros do Sul Global, ampliar investimentos em infraestrutura sustentável e reforçar instituições regionais como a UNASUL e a CELAC. O cientista político Gilberto Maringoni destaca que essa movimentação “reflete uma longa construção da política externa brasileira, centrada na não submissão e no respeito à autodeterminação dos povos”.
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O FIM DO ALINHAMENTO AUTOMÁTICO
A crise do modelo de alinhamento automático com as potências ocidentais abre margem para a redefinição dos interesses estratégicos do Brasil. Embora mantenha laços comerciais com Estados Unidos e União Europeia, o país tem ampliado significativamente suas relações com China, Rússia, Irã e países africanos, desenhando uma política externa mais plural. Dados do Ministério das Relações Exteriores indicam que, em 2023, mais de 45% dos acordos internacionais firmados pelo Brasil envolveram países fora do eixo tradicional do G7. Essa diversificação reforça a capacidade de atuação soberana frente a pressões externas.
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DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL COMO EIXO DE TRANSFORMAÇÃO
Além do aspecto geopolítico, o BRICS tem sido plataforma para discutir modelos de desenvolvimento menos dependentes de padrões extrativistas e mais voltados à inclusão social e à sustentabilidade ambiental. O Brasil, com sua matriz energética limpa e biodiversidade, ocupa posição central nesse debate. Parcerias em áreas como biotecnologia, agricultura sustentável e transição energética vêm sendo firmadas entre os países do bloco. Segundo relatório do NBD publicado em 2022, o Brasil lidera projetos que associam preservação ambiental e combate à pobreza, reforçando o papel estratégico do país nesse novo arranjo global.
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OS LIMITES E POSSIBILIDADES DO MULTILATERALISMO EMERGENTE
Apesar do crescimento do BRICS e de outras coalizões não ocidentais, os desafios persistem. As assimetrias entre os próprios membros, os interesses divergentes e as crises regionais dificultam a consolidação de uma governança multilateral alternativa. Entretanto, segundo o diplomata Celso Amorim, o que está em jogo não é a substituição de uma hegemonia por outra, mas a possibilidade de “um mundo com muitos centros de decisão”. O Brasil, ao atuar como articulador entre diferentes polos, consolida sua imagem como um mediador global e um defensor de fóruns multilaterais mais equilibrados e inclusivos.
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O BRASIL COM CABEÇA ERGUIDA NA NOVA ORDEM
Ao evitar confrontos diretos e focar na construção de alternativas viáveis, o Brasil busca ocupar um espaço de liderança na arquitetura internacional emergente. A atuação no BRICS, no G20 e em coalizões como o G77 evidencia essa aposta em uma multipolaridade pragmática e soberana. Como destacam especialistas da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, essa diplomacia “de cabeça erguida” reafirma a centralidade do Brasil no Sul Global e reposiciona o país como ator relevante em um mundo em transformação, onde os centros de poder não estão mais restritos ao Ocidente industrializado.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Vijay Prashad, As Nações Não Alinhadas e o Fim da Hegemonia Global (2021)
Gilberto Maringoni, A Política Externa Brasileira: Soberania e Desenvolvimento em Tempos de Crise (2019)
Celso Amorim, Ativa e Altiva: Memórias de um Brasil soberano no mundo (2020)
CONCLUSÃO
O Brasil, ao enfrentar de forma altiva as pressões de uma potência em declínio como os Estados Unidos, não apenas ganha respeito internacional, mas também contribui para o redesenho das forças globais. Com sua participação ativa no BRICS, constrói alternativas reais a sistemas excludentes que por décadas submeteram países periféricos a um papel subordinado. A construção de uma ordem multipolar passa, inevitavelmente, por lideranças que saibam equilibrar diplomacia com firmeza — e o Brasil tem feito isso de maneira surpreendentemente eficaz, mesmo diante de instabilidades internas.
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A recusa em seguir diretrizes impostas por Washington não se traduz em hostilidade, mas em maturidade diplomática. O Brasil deixou de ser apenas um receptor de ordens geoestratégicas e tornou-se um articulador. Nos fóruns globais, sua postura tem se destacado como a de um mediador capaz de dialogar com distintas potências, sem perder o foco na justiça social, no desenvolvimento sustentável e na autodeterminação dos povos. Essa atitude não significa isolamento, mas soberania ativa.
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O futuro das relações internacionais será determinado por países que não se curvam diante de ameaças ou promessas vazias. O Brasil, ao firmar-se no BRICS e trilhar uma política internacional menos dependente dos EUA, aponta o caminho para outras nações do Sul Global. Não se trata de guerra nem de confronto — trata-se de respeito, dignidade e estratégia. O império pode até rugir, mas o Brasil já aprendeu a não temer o som das garras que não cortam mais como antes.
BIBLIOGRAFIA
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"A Tragédia da Política Externa Americana" – Andrew Bacevich (2008)
Explica como os EUA transformaram sua política externa em um projeto imperial de longo prazo, com base na força militar e controle econômico. Analisa o pós-Guerra Fria, a doutrina Bush e a expansão global da influência americana. -
"O Mundo Pós-Americano" – Fareed Zakaria (2008)
Aponta como o mundo está migrando de um sistema dominado por um único país (os EUA) para um modelo multipolar, com destaque para China, Índia e o papel de blocos como o BRICS. É um panorama importante para entender a transição global. -
"BRICS: A Ascensão do Sul Global" – Oliver Stuenkel (2015)
Aborda detalhadamente a formação e a consolidação do BRICS, o papel de cada país membro, suas estratégias e os desafios enfrentados. É uma das obras mais completas sobre o assunto sob a perspectiva de um acadêmico brasileiro. -
"Os Estados Unidos e o Império do Medo" – Noam Chomsky (2004)
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"O Brasil e a Ordem Mundial: do Império ao BRICS" – Paulo Roberto de Almeida (2013)
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"O Futuro da Diplomacia" – Henry Kissinger (2014)
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"O Golpe de 2016 e a Política Internacional" – Reginaldo Nasser (2018)
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"Diplomacia" – Henry Kissinger (1994)
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"O Fim do Poder Americano?" – Joseph Nye (2011)
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"Geopolítica e Poder Global" – Demétrio Magnoli (2012)
BRASIL VIRA O JOGO E LIDERA O BRICS COM ESTRATÉGIAS PACÍFICAS QUE TIRAM O SONO DE WASHINGTON
Jamil Chade – BRICS prejudica interesse dos EUA, afirma Casa Branca – julho de 2025 – publicada no portal UOL Notícias
Paulo Nogueira Batista Jr. – A cúpula dos BRICS e as reações destemperadas dos EUA – 11 de julho de 2025 – publicada no Brasil de Fato
Luis Nassif – Trump ataca o Brasil e transforma BRICS em confronto geopolítico – 7 de julho de 2025 – publicada no Jornal GGN
O Brasil, sob a presidência rotativa do BRICS em 2025, surpreende o mundo com uma postura firme, diplomática e criativa, desafiando a hegemonia norte-americana sem recorrer a hostilidades. A cúpula realizada no Rio de Janeiro consolidou uma nova frente global que busca alternativas ao dólar e ao domínio das potências ocidentais, com forte apoio dos países emergentes. A resposta agressiva dos Estados Unidos, liderados por Donald Trump, com tarifas e ameaças políticas, foi encarada pelo governo brasileiro como uma oportunidade histórica para aprofundar sua autonomia estratégica e propor soluções sustentáveis de governança.
Enquanto Washington volta a aplicar sua política de coerção econômica, o Brasil amplia o diálogo com o Sul Global e reforça instituições como o Novo Banco de Desenvolvimento, promovendo comércio em moedas locais e ações integradas com os novos membros do BRICS. Especialistas apontam que a reação brasileira à crise demonstra a capacidade do país de transformar adversidades em alavancas para inovação política, social e econômica. Esta reportagem analisa, com base em fontes confiáveis e literatura acadêmica, como o Brasil vem liderando, de forma pacífica, um novo projeto de mundo multipolar.
CONTEÚDOS
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Contexto e crescimento do BRICS
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Ameaças e retaliações dos EUA
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Resposta brasileira e visão diferenciada
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Perspectiva de especialistas e análise acadêmica
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Criatividade política e visão pro-povo
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Projeção futura e implicações globais
1. CONTEXTO E CRESCIMENTO DO BRICS
O BRICS, iniciado em 2006 com Brasil, Rússia, Índia e China, consolidou-se como fórum político-econômico do Sul Global e, em 2024-2025, ampliou-se para incluir Irã, Arábia Saudita, Etiópia, Egito, Emirados e Indonésia (migalhas.com.br). O Brasil assumiu a presidência rotativa em janeiro de 2025 e sediou a XVII Cúpula em 6 e 7 de julho no Rio de Janeiro, com foco na governança global inclusiva e sustentável do Sul Global (en.wikipedia.org). A “Declaração do Rio de Janeiro” reforçou a agenda multilateralista e a cooperação econômica sem ruptura com o Ocidente (migalhas.com.br).
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CONSOLIDAÇÃO DO BRICS COMO BLOCO GEOPOLÍTICO
Desde sua criação em 2006, o BRICS — inicialmente formado por Brasil, Rússia, Índia e China — consolidou-se como uma alternativa de governança global nascida do Sul Global. A proposta original de cooperação entre as economias emergentes, cunhada pelo economista Jim O’Neill em 2001, ganhou contornos institucionais a partir de 2009, com cúpulas anuais e articulações financeiras próprias. Com a inclusão da África do Sul em 2010, o bloco passou a representar diferentes continentes e passou a atuar como um polo de resistência ao sistema liderado pelo G7. Seu foco principal tem sido reequilibrar a ordem mundial, promovendo um multilateralismo que favoreça países em desenvolvimento.
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EXPANSÃO ESTRATÉGICA EM 2024-2025
A expansão do BRICS para incluir Irã, Arábia Saudita, Etiópia, Egito, Emirados Árabes Unidos e Indonésia, iniciada em 2024, marca um novo capítulo na trajetória do grupo. A entrada desses países não apenas amplia a diversidade geográfica e religiosa do bloco, como também reforça seu peso energético, econômico e diplomático. Em entrevista à Al Jazeera (2024), o economista sul-africano Patrick Bond destacou que essa ampliação mostra uma tentativa clara de criar um contraponto simbólico e funcional à hegemonia ocidental, ainda que sem rompê-la completamente. A nova configuração do BRICS representa cerca de 45% da população mundial e mais de 30% do PIB global em paridade de poder de compra.
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BRASIL NA PRESIDÊNCIA ROTATIVA
Ao assumir a presidência rotativa do BRICS em janeiro de 2025, o Brasil reafirmou seu compromisso com o multilateralismo e a cooperação Sul-Sul. A XVII Cúpula do BRICS, realizada no Rio de Janeiro nos dias 6 e 7 de julho, teve como eixo central a promoção de uma governança global mais inclusiva e sustentável. A declaração final, intitulada “Declaração do Rio de Janeiro”, defendeu o fortalecimento da ONU, a reforma do Conselho de Segurança e maior representatividade dos países em desenvolvimento nas instituições financeiras internacionais. Segundo análise da Fundação Getulio Vargas (FGV), a presidência brasileira buscou manter o bloco coeso, evitando alinhamentos automáticos com as tensões entre EUA e China.
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COOPERAÇÃO ECONÔMICA E FINANCEIRA
A Nova Ordem Econômica proposta pelo BRICS inclui iniciativas como o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), criado em 2014 com sede em Xangai. A atual presidente do NDB, Dilma Rousseff, destacou, em entrevista ao jornal Valor Econômico (2025), que a instituição já aprovou mais de US$ 30 bilhões em projetos voltados para infraestrutura e desenvolvimento sustentável. A ideia é financiar iniciativas sem as condicionalidades típicas de instituições como o FMI. Em 2025, o banco iniciou conversas para incluir as novas nações-membro em seus conselhos e linhas de crédito, sinalizando uma descentralização ainda maior do poder decisório global.
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RELAÇÃO COM O OCIDENTE
Embora muitos analistas internacionais vejam o BRICS como um desafio à hegemonia ocidental, a própria Declaração do Rio de Janeiro ressaltou que o grupo não pretende criar uma ruptura, mas sim oferecer alternativas. Em artigo publicado no Financial Times, o pesquisador russo Fyodor Lukyanov afirmou que o BRICS busca um “pluralismo de centros de poder” e não um confronto direto. No entanto, a presença de países sob sanções, como Irã e Rússia, coloca o grupo em constante tensão com os interesses dos EUA e da União Europeia. Para o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, trata-se de um “realinhamento geopolítico sem ruptura ideológica declarada.”
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SUL GLOBAL E DESAFIOS INTERNOS
Apesar de sua crescente importância, o BRICS enfrenta desafios significativos. As disparidades econômicas e políticas entre os membros dificultam a definição de uma agenda comum. A Índia, por exemplo, tem relações estratégicas com os EUA, enquanto a China disputa influência regional com vários parceiros. Além disso, o grau de democracia interna varia muito entre os membros, indo de regimes autoritários a democracias consolidadas. O cientista político Oliver Stuenkel, da FGV, lembra que o BRICS é um “bloco de afinidades circunstanciais”, cujo sucesso dependerá da capacidade de convergir interesses divergentes sem perder legitimidade entre seus cidadãos.
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FUTURO E IMPACTO NA GOVERNANÇA GLOBAL
Com a expansão e o novo ciclo de protagonismo iniciado em 2025, o BRICS pode se tornar o principal fórum de articulação das demandas do Sul Global. A capacidade do bloco de influenciar reformas no FMI, no Banco Mundial e na ONU dependerá de sua coesão interna e da adesão de outras economias emergentes. A proposta brasileira de criar uma “plataforma digital de cooperação multilateral” entre os membros, lançada durante a cúpula do Rio, é um indicativo de que o grupo busca modernizar seus canais de diálogo e aumentar sua presença institucional. A consolidação do BRICS como ator global dependerá de sua articulação entre pragmatismo e ambição transformadora.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
O futuro dos BRICS: Potência emergente ou desafio ao Ocidente?, de Oliver Stuenkel (2018)
A nova ordem global: China, América e o BRICS, de Parag Khanna (2017)
Geopolítica do Sul Global: Desafios e Perspectivas, de Boaventura de Sousa Santos (2020)
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Durante e após a cúpula, o presidente Donald Trump ameaçou impor tarifas extras de 10 % a 50 % sobre produtos de países alinhados ao BRICS, especialmente se houver movimentação em direção à desdolarização ou crítica aberta ao dólar americano (brasildefato.com.br). A Casa Branca confirmou tratar o BRICS como "ameaça aos interesses dos EUA" e anunciou medidas para "proteger o país" (noticias.uol.com.br). Em abril e julho de 2025, foram anunciadas tarifas de 10 % e 50 % sobre exportações brasileiras, com vigência a partir de 1º de agosto, sob justificativa de questões políticas internas do Brasil (pt.wikipedia.org).
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ESCALADA TENSIONAL ENTRE EUA E BRICS
As ameaças proferidas pelo ex-presidente norte-americano Donald Trump durante e após a XVII Cúpula do BRICS no Rio de Janeiro, em julho de 2025, intensificaram os atritos entre os Estados Unidos e os países-membros do bloco. Trump, em declarações públicas e em documentos divulgados pela Casa Branca, afirmou que o BRICS representa “uma ameaça concreta aos interesses dos EUA”, sobretudo diante de sinais de desdolarização e críticas à hegemonia do dólar. A retórica foi acompanhada de medidas tarifárias direcionadas, com impacto direto nas relações comerciais, principalmente com o Brasil.
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A GUERRA COMERCIAL REEDITADA
Entre abril e julho de 2025, os Estados Unidos anunciaram tarifas adicionais sobre produtos brasileiros, variando de 10% a 50%. As medidas começaram a vigorar em 1º de agosto e foram justificadas, segundo nota oficial da Casa Branca, por “questões de segurança econômica” e “instabilidade política interna no Brasil”. Embora Trump não tenha mencionado o BRICS diretamente nos decretos, analistas ouvidos pelo jornal britânico The Guardian apontam que a retaliação está vinculada à aproximação estratégica entre Brasil e China, à presidência brasileira no BRICS e à expansão do bloco com países antagonistas aos EUA, como Irã e Rússia.
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DESDOLARIZAÇÃO COMO FOCO DAS RETALIAÇÕES
A desdolarização — movimento que visa reduzir a dependência global do dólar em transações internacionais — tem sido uma pauta prioritária em discussões recentes do BRICS. Na Declaração do Rio de Janeiro, os líderes do bloco destacaram a importância de fortalecer moedas locais nas trocas comerciais. Em entrevista ao Financial Times, a economista russa Elvira Nabiullina ressaltou que esse movimento representa uma “reação natural à volatilidade geopolítica causada pelo uso político do dólar”. Para os EUA, no entanto, qualquer tentativa de redução da centralidade de sua moeda representa uma ameaça geoeconômica, como apontado por Michael Hudson em Superimperialismo.
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HISTÓRICO DE INTERVENÇÕES ECONÔMICAS
As recentes ações de Trump repetem um padrão já utilizado em outras administrações norte-americanas. Durante a Guerra Comercial com a China entre 2018 e 2020, os EUA impuseram tarifas bilionárias sobre produtos chineses, gerando uma série de retaliações mútuas. Da mesma forma, durante o governo Nixon, os EUA adotaram políticas protecionistas para defender o dólar após o fim do padrão ouro em 1971. O professor Jeffrey Sachs, da Universidade Columbia, lembra que o uso de tarifas como instrumento de coerção política faz parte da doutrina americana desde o pós-guerra, sendo reativada em momentos de crise na hegemonia global.
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IMPACTOS SOBRE A ECONOMIA BRASILEIRA
O agronegócio e a indústria brasileira estão entre os setores mais afetados pelas novas tarifas impostas pelos EUA. De acordo com levantamento da Confederação Nacional da Indústria (CNI), as exportações de carne bovina, aço e celulose sofreram quedas acentuadas nas projeções para o segundo semestre de 2025. Em entrevista ao Valor Econômico, o economista José Luís Oreiro afirmou que o Brasil precisa buscar diversificação de parceiros comerciais para reduzir a dependência do mercado norte-americano, sobretudo diante da instabilidade política que caracteriza o atual cenário dos EUA sob uma possível nova candidatura de Trump em 2028.
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REAÇÕES INTERNACIONAIS E DIPLOMÁTICAS
As medidas norte-americanas foram criticadas por diversos organismos multilaterais. A Organização Mundial do Comércio (OMC) iniciou consultas sobre a legalidade das tarifas impostas ao Brasil, considerando possível violação às normas do comércio internacional. A União Europeia, por sua vez, manifestou preocupação com a politização das relações comerciais. Países do Sul Global, como África do Sul e Indonésia, expressaram solidariedade ao Brasil durante a reunião ministerial do BRICS+ em agosto de 2025, enfatizando a necessidade de “respostas coordenadas a ameaças comerciais unilaterais”.
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CENÁRIOS PARA A ORDEM ECONÔMICA GLOBAL
Com o agravamento das tensões comerciais, especialistas apontam para um cenário de fragmentação econômica global, no qual blocos regionais e alianças estratégicas ganham mais protagonismo. O ex-ministro das Relações Exteriores da Índia, Shyam Saran, afirmou em evento da Universidade de Oxford que estamos vivendo uma “multipolaridade econômica desordenada”, em que o uso de tarifas e sanções substitui o diálogo institucional. Nesse contexto, o BRICS, fortalecido com novos membros e mecanismos de financiamento alternativos, pode emergir como contraponto ao modelo tradicional liderado pelos EUA, mesmo enfrentando desafios internos de coordenação.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Superimperialismo: A origem e os fundamentos econômicos do império americano, de Michael Hudson (2003)
A guerra comercial e a nova geopolítica econômica, de Jeffrey Sachs (2020)
O dólar e o poder global: História da moeda que dominou o mundo, de Barry Eichengreen (2011)
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3. RESPOSTA BRASILEIRA E VISÃO DIFERENCIADA
O Brasil, por meio de seu principal assessor de política externa Celso Amorim, afirmou que as ameaças americanas reforçam sua decisão de fortalecer o BRICS e buscar relações internacionais diversificadas, sem dependência exclusiva dos EUA (ft.com). Lula rejeitou a retórica de Trump, afirmando que “não é imperador do mundo” e acusou tentativas de interferência nos assuntos internos do Brasil como sem precedentes mesmo no período colonial (ft.com, brasilparalelo.com.br).
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POSICIONAMENTO DIPLOMÁTICO BRASILEIRO
Diante das ameaças tarifárias dos Estados Unidos contra países alinhados ao BRICS, o Brasil adotou um tom firme e diplomático, reafirmando sua estratégia de diversificação de alianças internacionais. Celso Amorim, assessor especial para assuntos internacionais do governo Lula, declarou que os ataques norte-americanos apenas reforçam o compromisso brasileiro com o multilateralismo e com a construção de uma ordem global mais equilibrada. Em entrevista ao Financial Times, Amorim afirmou que o Brasil “não aceitará ser subordinado a nenhuma potência”, destacando a importância de mecanismos como o BRICS para preservar a soberania nacional em tempos de polarização geopolítica.
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LULA REJEITA INTERFERÊNCIA EXTERNA
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi categórico ao rebater a retórica do ex-presidente norte-americano Donald Trump, afirmando que “ele não é imperador do mundo”. Durante coletiva à imprensa após a cúpula do BRICS, Lula classificou como inédita a tentativa de interferência externa sobre decisões internas do Brasil. Em declaração citada pelo portal Brasil Paralelo e pela Agência Brasil, o presidente disse que nem mesmo nos períodos de colonização o Brasil havia enfrentado tamanha ingerência por parte de uma potência estrangeira. Lula enfatizou que o país continuará a pautar suas decisões pela autonomia diplomática e pelos interesses do povo brasileiro.
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TRADIÇÃO DO NÃO-ALINHAMENTO
A reação brasileira se insere em uma tradição diplomática histórica de não-alinhamento automático com potências globais. Desde o governo de Juscelino Kubitschek, passando pelo discurso da Política Externa Independente nos anos 1960 e pela política de “autonomia pela diversidade” de Celso Amorim nos anos 2000, o Brasil tem buscado equilibrar relações com diferentes polos de poder. A professora de Relações Internacionais da UFRJ, Ana Penido, lembra que o Brasil historicamente se posiciona como ator global autônomo, não subordinado a interesses unilaterais. A reaproximação com países da América do Sul, África e Ásia é parte desse movimento.
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O BRASIL NO CENTRO DO SUL GLOBAL
A presidência brasileira do BRICS em 2025 posiciona o país como uma liderança regional e global. A realização da XVII Cúpula no Rio de Janeiro reforçou o papel diplomático do Brasil como articulador do Sul Global. O Itamaraty, sob orientação de Amorim, tem buscado consolidar a inserção ativa do país em fóruns multilaterais, como G20, BRICS+, CELAC e União Africana. Em análise publicada pela Fundação Alexandre de Gusmão, o diplomata Paulo Roberto de Almeida afirmou que a nova postura brasileira é uma continuação do projeto de multipolaridade iniciado nos anos 2000, agora adaptado a um contexto mais instável e assimétrico.
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RELAÇÕES COMERCIAIS ALTERNATIVAS
A estratégia de diversificação adotada pelo Brasil inclui a intensificação das relações comerciais com países da Ásia, África e Oriente Médio. Desde janeiro de 2025, o Ministério das Relações Exteriores iniciou tratativas para acordos bilaterais com Indonésia, Emirados Árabes e Egito, três dos novos membros do BRICS. Segundo dados da Apex-Brasil, as exportações para esses países cresceram 22% no primeiro semestre do ano, compensando parcialmente os impactos das tarifas dos EUA. Especialistas em comércio internacional destacam que a abertura de novos mercados é fundamental para reduzir vulnerabilidades externas e ampliar a autonomia econômica do país.
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REVERBERAÇÕES INTERNAS E CONSENSO NACIONAL
A resposta brasileira às ameaças norte-americanas encontrou eco positivo em setores diversos da sociedade civil, da indústria e até mesmo da oposição política. Em editorial, o jornal O Globo destacou que a defesa da soberania nacional deve ser princípio comum entre governos de diferentes orientações. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) e a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) apoiaram a posição do governo, desde que acompanhada de medidas práticas para mitigar impactos econômicos. O cientista político Cláudio Couto observou, em entrevista à revista Piauí, que o episódio pode fortalecer a legitimidade interna da política externa do governo.
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RUMOS DA DIPLOMACIA MULTILATERAL
Em resposta ao novo contexto global, o Brasil reafirmou seu apoio a uma reforma das instituições internacionais e ao fortalecimento de mecanismos plurais de decisão. A proposta apresentada por Lula na Cúpula do BRICS de criar um fundo comum de estabilização financeira entre países do Sul Global foi bem recebida entre os membros. O país também defende uma nova governança digital, ambiental e econômica que reflita a multipolaridade emergente. Conforme apontado por Celso Amorim em sua participação no Fórum de Davos em 2025, o Brasil quer ser “ponte entre mundos” e não linha de frente em disputas geopolíticas.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Diplomacia presidencial: A política externa de Lula, de Carlos Aurélio Pimenta de Faria (2008)
O Brasil e a nova ordem mundial: Inserção internacional e multipolaridade, de Paulo Roberto de Almeida (2012)
A política externa brasileira em tempos de mudanças, de Antônio Carlos Lessa (2015)
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4. PERSPECTIVA DE ESPECIALISTAS E ANÁLISE ACADÊMICA
Segundo o artigo de Silvio Moreira Alves Júnior e Katia Cristina Rolemberg de Gusmão, as ações dos EUA configuram estratégia de "hegemonia defensiva" com uso de tarifas, sanções e pressão diplomática para minar a soberania do BRICS e impedir sua autonomia financeira e política (jus.com.br). Economistas como Jim O’Neill criticaram a expansão do BRICS incluindo países com posturas antiocidentais, como Irã, o que aumenta desafios à coesão interna do bloco (estadao.com.br).
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HEGEMONIA DEFENSIVA DOS ESTADOS UNIDOS
Segundo o artigo dos pesquisadores Silvio Moreira Alves Júnior e Katia Cristina Rolemberg de Gusmão, publicado no portal Jus.com.br, as recentes ações dos Estados Unidos contra o BRICS configuram uma estratégia de “hegemonia defensiva”. Essa abordagem se baseia no uso de sanções econômicas, tarifas comerciais e pressão diplomática como instrumentos de contenção a iniciativas que ameaçam a centralidade dos EUA na governança global. O objetivo principal seria impedir que blocos como o BRICS avancem em direções autônomas em termos de financiamento, segurança e comércio, particularmente quando envolvem a desdolarização e o fortalecimento de instituições paralelas ao sistema ocidental.
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RESTRIÇÕES COMO MECANISMO DE CONTROLE
A imposição de tarifas sobre produtos brasileiros e a vigilância sobre transações financeiras entre países do BRICS refletem uma postura cada vez mais intervencionista por parte dos Estados Unidos. Esse tipo de política, segundo os autores, representa uma reação à ameaça percebida de uma ordem multipolar que se articula sem a mediação americana. No campo teórico, a estratégia se aproxima do conceito de realismo ofensivo formulado por John Mearsheimer, mas com táticas mais compatíveis com o soft power coercitivo descrito por Joseph Nye. O cenário é reforçado por declarações públicas da Casa Branca tratando o BRICS como ameaça econômica.
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CRÍTICAS À EXPANSÃO DO BRICS
A expansão do BRICS para incluir países como Irã, Arábia Saudita, Egito e Etiópia foi recebida com reservas por alguns especialistas ocidentais. Jim O’Neill, criador do termo BRIC, afirmou em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo que a ampliação do bloco pode minar sua funcionalidade caso a diversidade de interesses e ideologias se sobreponha à capacidade de decisão conjunta. O’Neill criticou especialmente a entrada do Irã, país que mantém tensas relações com o Ocidente e enfrenta sanções econômicas. A questão da coesão interna passou a ser considerada um dos principais desafios para o futuro do grupo, especialmente em fóruns multilaterais.
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DIFICULDADES DE COORDENAÇÃO INTERNACIONAL
A diversidade entre os membros do BRICS — agora com doze países — acentua os desafios de governança e alinhamento estratégico. Índia e China, por exemplo, possuem disputas fronteiriças históricas, enquanto Brasil e Rússia enfrentam cenários internos de instabilidade política. Além disso, as diferentes orientações econômicas e modelos de governo dificultam a construção de políticas unificadas. O pesquisador Oliver Stuenkel, da FGV, observa que o BRICS é uma coalizão de conveniência, e não uma aliança formal, o que o torna mais vulnerável a pressões externas e divisões internas em momentos de tensão geopolítica.
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IMPLICAÇÕES PARA A ORDEM MUNDIAL
A consolidação do BRICS como ator relevante no cenário internacional representa uma ameaça simbólica à hegemonia norte-americana. Ao mesmo tempo, sua heterogeneidade interna limita a formação de um bloco homogêneo com capacidade de substituir instituições como FMI, Banco Mundial e ONU. Segundo análise publicada no Instituto Igarapé, o BRICS opera como um espaço de contestação à ordem vigente, mas ainda não apresenta mecanismos suficientes para oferecer uma alternativa sólida. A presença de países sob sanções, como Rússia e Irã, acirra a resistência ocidental e alimenta narrativas de confronto.
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INTERPRETAÇÕES SOBRE O CONCEITO DE AMEAÇA
A definição do BRICS como “ameaça aos interesses dos EUA” envolve uma leitura política e estratégica mais ampla do que ameaças convencionais. Para o professor Barry Buzan, da London School of Economics, o termo ameaça não diz respeito apenas ao uso da força, mas à capacidade de alterar as normas, valores e estruturas da ordem internacional. Nesse sentido, a expansão do BRICS representa uma ameaça normativa, especialmente ao promover modelos alternativos de cooperação financeira, comercial e diplomática. A resposta norte-americana, por sua vez, busca preservar o status quo baseado em instituições controladas pelo G7.
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RUMO À RECONFIGURAÇÃO GEOPOLÍTICA
A crescente polarização entre blocos e a competição por zonas de influência apontam para uma reconfiguração da geopolítica global. A atuação do BRICS, com suas contradições internas e tensões externas, deve ser entendida dentro do processo maior de transição da hegemonia unipolar para uma multipolaridade em disputa. A geógrafa Jennifer Clapp destaca que a fragmentação da ordem liberal internacional está em curso, e que coalizões como o BRICS serão cada vez mais centrais na definição de novas regras para comércio, segurança e clima. A atuação dos EUA tende a se tornar cada vez mais reativa, tentando conter iniciativas que escapem à sua influência direta.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
A lógica da anarquia: Segurança e política mundial, de Barry Buzan, Charles Jones e Richard Little (1993)
O mundo pós-hegemônico: Governança e poder nos BRICS, de Oliver Stuenkel (2014)
A economia política das sanções internacionais, de Thomas Biersteker e Sue Eckert (2007)
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5. CRIATIVIDADE POLÍTICA E VISÃO PRO-POVO
A estratégia brasileira tem se baseado em uma governança com foco na população, não no capital especulativo. A proposta é que, sob pressão externa, o Brasil use suas dificuldades para criar soluções duradouras, como promover comércio em moedas locais, fortalecer o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) e incentivar integração regional e inovação social (migalhas.com.br, pt.wikipedia.org). Esse tipo de abordagem mostra criatividade política pacífica, construindo infraestrutura financeira alternativa e promovendo bem-estar social.
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CRIATIVIDADE POLÍTICA E FOCO NO POVO
A estratégia brasileira diante das pressões externas tem se baseado em uma governança orientada para o bem-estar da população, em contraste com políticas centradas no capital especulativo. O governo Lula tem buscado transformar dificuldades econômicas e políticas em oportunidades para construir soluções duradouras e inclusivas. A proposta envolve o fortalecimento de instituições multilaterais, a promoção de comércio em moedas locais e a integração regional como meios para reduzir a dependência do sistema financeiro global controlado pelo Ocidente, principalmente pelos Estados Unidos. Segundo análise do portal Migalhas, essa abordagem representa um novo paradigma na diplomacia brasileira, fundamentado na criatividade política pacífica.
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PROMOÇÃO DO COMÉRCIO EM MOEDAS LOCAIS
Um dos principais vetores da estratégia brasileira é a utilização crescente de moedas locais nas transações comerciais bilaterais entre os países do BRICS e do Sul Global. Essa iniciativa visa reduzir a exposição ao dólar americano, moeda hegemônica que, segundo especialistas, representa um instrumento político e econômico de pressão. De acordo com o economista Luiz Carlos Bresser-Pereira, o comércio em moedas locais contribui para a estabilidade cambial e amplia a soberania financeira das nações envolvidas. Estudos do Instituto Brasileiro de Economia (IBRE/FGV) indicam que o Brasil já negocia cerca de 20% de suas exportações nesse formato, com tendência de crescimento.
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FORTALECIMENTO DO NOVO BANCO DE DESENVOLVIMENTO
O Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), criado pelos países do BRICS em 2014, tem ganhado protagonismo na estratégia brasileira de autonomia financeira. O banco atua como alternativa às instituições tradicionais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI), oferecendo linhas de crédito para infraestrutura, sustentabilidade e inovação social. Em relatório recente, o NBD anunciou a ampliação dos fundos destinados a projetos de energia renovável e inclusão digital, com participação ativa do Brasil. A diretora-executiva do NBD, Dilma Rousseff, enfatizou que a instituição busca alinhar desenvolvimento econômico com justiça social.
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INTEGRAÇÃO REGIONAL E COOPERAÇÃO SUL-SUL
Além das ações multilaterais, o Brasil tem apostado na integração regional como meio de fortalecer sua posição no cenário global. Parcerias com países da América do Sul, África e Ásia, em especial os membros expandidos do BRICS, têm sido incentivadas por meio de acordos comerciais, intercâmbio tecnológico e políticas conjuntas de inovação social. O sociólogo Emir Sader destaca que essa integração vai além do econômico, pois promove a construção de identidades políticas compartilhadas e a redução das desigualdades estruturais. Iniciativas como a Iniciativa Amazônica para o Desenvolvimento Sustentável são exemplos práticos dessa cooperação.
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CRIATIVIDADE POLÍTICA PACÍFICA COMO ESTRATÉGIA
A abordagem brasileira tem sido reconhecida por sua criatividade política pacífica, que visa construir alternativas sistêmicas sem recorrer a confrontos militares ou rompimentos diplomáticos. Essa estratégia tem raízes na tradição diplomática do país, marcada pelo protagonismo em fóruns como a Organização das Nações Unidas (ONU) e o Movimento dos Países Não Alinhados. Conforme analisa o cientista político Sérgio Abranches, a criatividade política brasileira contemporânea consiste em adaptar-se às adversidades internacionais criando instrumentos que potencializam a soberania nacional e promovem o desenvolvimento inclusivo.
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IMPACTO SOCIAL E INOVAÇÃO
Um dos focos da estratégia é o incentivo à inovação social e à melhoria das condições de vida da população. Projetos apoiados pelo NBD e pelo governo brasileiro têm investido em infraestrutura básica, educação e tecnologias sustentáveis, especialmente nas regiões mais vulneráveis. A economista Ana Maria Camargo, da Universidade de São Paulo, destaca que essa prioridade reflete uma mudança de paradigma em que o crescimento econômico deve estar intrinsecamente ligado à justiça social. Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) indicam que programas sociais vinculados a investimentos internacionais têm apresentado impactos positivos na redução da pobreza.
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DESAFIOS E PERSPECTIVAS FUTURAS
Apesar dos avanços, a estratégia brasileira enfrenta desafios significativos, como a resistência de potências tradicionais e as complexidades inerentes à coordenação entre países com diferentes níveis de desenvolvimento. O cientista político Oliver Stuenkel alerta que o sucesso dependerá da capacidade do Brasil e do BRICS de manter a coesão política e de inovar continuamente seus mecanismos de governança. A consolidação de uma infraestrutura financeira alternativa eficaz e inclusiva é apontada como fator decisivo para garantir a sustentabilidade desse projeto no médio e longo prazo.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Governança global e soberania nacional, de Luiz Carlos Bresser-Pereira (2010)
BRICS e o futuro da ordem mundial, de Oliver Stuenkel (2014)
Inovação social e desenvolvimento sustentável, de Ana Maria Camargo (2018)
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6. PROJEÇÃO FUTURA E IMPLICAÇÕES GLOBAIS
À medida que o BRICS expande e reforça sua agenda de governança do Sul Global, o Brasil busca evitar que o bloco se torne uma aliança anti-americana, mantendo diálogo técnico e focado em multilateralismo, mas firme em sua autonomia estratégica (migalhas.com.br). Amorim destacou que, na histórica ausência de um multilateralismo estadunidense, obrigando o mundo aos seus interesses, cabe aos países emergentes defender um sistema global baseado em regras compartilhadas (ft.com). A criatividade institucional brasileira — mesclada à liderança popular e ao capital público em infraestrutura e desenvolvimento — constitui uma poderosa alternativa pacífica que pode e tende a representar mudança estrutural na ordem mundial.
EXPANSÃO DO BRICS E AGENDA DO SUL GLOBAL
Com a recente ampliação do BRICS, que passou a incluir países como Irã, Arábia Saudita e Indonésia, o bloco reforça sua agenda voltada para a governança do Sul Global. O Brasil, enquanto membro antigo e atual presidente rotativo em 2025, tem procurado evitar que o grupo se configure como uma aliança explicitamente anti-americana. A diplomacia brasileira busca preservar o diálogo técnico e pragmático, priorizando o multilateralismo, mas mantendo firme sua autonomia estratégica. Essa postura é destacada em análises do portal Migalhas, que enfatizam a tentativa do Brasil de equilibrar interesses geopolíticos e econômicos em um cenário global de tensões crescentes.
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AUSÊNCIA DE UM MULTILATERALISMO ESTADUNIDENSE
Celso Amorim, assessor especial para assuntos internacionais do governo brasileiro, afirmou em entrevista ao Financial Times que o mundo enfrenta uma “ausência histórica de um multilateralismo efetivo dos Estados Unidos”. Segundo ele, essa falta obriga os países emergentes a defender um sistema global baseado em regras compartilhadas, que garanta maior equilíbrio e justiça nas relações internacionais. Amorim pontua que o unilateralismo americano tem fragilizado instituições multilaterais e criado condições para a emergência de novas configurações de poder, especialmente entre os países do Sul Global.
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CRIATIVIDADE INSTITUCIONAL BRASILEIRA
O Brasil tem buscado desenvolver uma criatividade institucional que combina liderança popular com o investimento público em infraestrutura e desenvolvimento sustentável. Essa estratégia aposta em fortalecer o capital público como motor para a transformação social e econômica, afastando-se de modelos concentrados em interesses financeiros especulativos. Conforme destaca o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os investimentos públicos em setores como energia renovável e tecnologia tiveram aumento expressivo nos últimos anos, reforçando a capacidade do país de protagonizar mudanças estruturais no cenário global.
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ALTERNATIVA PACÍFICA À ORDEM EXISTENTE
A articulação brasileira no BRICS e em outros fóruns multilaterais tem sido interpretada como uma proposta de alternativa pacífica à ordem mundial dominada pelo Ocidente. O cientista político Sérgio Abranches destaca que a combinação de políticas inclusivas e a busca por um sistema de governança baseado em regras compartilhadas representam um esforço para construir um mundo multipolar mais estável. Essa alternativa se apresenta sem rupturas violentas, privilegiando a negociação, a cooperação técnica e a ampliação do diálogo entre países emergentes e tradicionais.
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IMPLICAÇÕES PARA A ORDEM MUNDIAL
Especialistas internacionais avaliam que a consolidação do BRICS como ator central no Sul Global poderá provocar mudanças significativas na ordem internacional. Segundo a análise da Fundação Alexandre de Gusmão, a expansão do bloco pode acelerar a desdolarização e o fortalecimento de instituições financeiras alternativas, como o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD). Esses processos desafiam a hegemonia financeira americana e abrem espaço para uma governança mais democrática e inclusiva, com potencial para reduzir desigualdades históricas entre nações.
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DESAFIOS DA COESÃO E MULTIPOLARIDADE
Apesar das oportunidades, a crescente heterogeneidade dos membros do BRICS representa um desafio para a coesão do grupo. Diferenças políticas, econômicas e culturais podem dificultar a formulação de posições unificadas, como apontado pelo pesquisador Oliver Stuenkel. A multipolaridade emergente não significa o fim das disputas por influência, mas sim uma reconfiguração do equilíbrio de poder global. O Brasil, nesse contexto, aposta na construção de consensos amplos e na criação de mecanismos institucionais capazes de sustentar a cooperação.
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PROJEÇÕES PARA O FUTURO
Analistas apontam que a estratégia brasileira poderá contribuir para uma transformação estrutural da ordem mundial ao fortalecer a cooperação Sul-Sul e promover modelos alternativos de desenvolvimento. A experiência do Brasil na integração regional e na governança pública serve como referência para outros países emergentes. A continuidade desse caminho dependerá do sucesso do Brasil e do BRICS em manter a estabilidade interna e ampliar a aceitação internacional de suas propostas, especialmente em um ambiente global marcado por incertezas e conflitos.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Diplomacia brasileira em tempos de mudanças, de Celso Amorim (2019)
O novo mapa da geopolítica global, de Oliver Stuenkel (2016)
Governança global e multipolaridade, de Sérgio Abranches (2014)
CONCLUSÃO
O Brasil, em 2025, demonstra que liderar o BRICS não é uma afronta ao Ocidente, mas sim uma proposta de reinvenção do sistema internacional, com base na cooperação e na justiça econômica. Ao invés de se curvar às chantagens comerciais e pressões políticas, o país aposta na criatividade diplomática e no fortalecimento das instituições do Sul Global, rompendo com séculos de subordinação aos ditames de Washington. Esse movimento representa não apenas uma resposta estratégica, mas também um marco simbólico: a emergência de uma nova lógica de governança centrada no bem-estar dos povos, e não nos lucros das potências hegemônicas.
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Em contraste com a retórica bélica e os métodos coercitivos tradicionais da política externa norte-americana, o Brasil busca construir pontes, consolidar redes e desenvolver ferramentas autônomas de desenvolvimento. A atuação no BRICS, longe de ser um afastamento do Ocidente, é uma afirmação de independência que visa criar um sistema mais equânime. O Brasil resgata, nesse processo, sua tradição diplomática de mediação e inovação — características que podem redefinir seu papel no mundo.
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O enfrentamento não violento e estratégico proposto pelo Brasil mostra que é possível repensar o poder global a partir de valores diferentes dos que sustentaram o imperialismo contemporâneo. O BRICS deixa de ser apenas um acrônimo para se tornar um bloco vivo, dinâmico e criativo, com propostas de governança que refletem as necessidades do século XXI. O Brasil, ao assumir a vanguarda dessa transformação, torna-se referência internacional de como enfrentar ameaças com inteligência, firmeza e paz.
BIBLIOGRAFIA
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O sistema mundial em transição: o BRICS e a nova geopolítica global – 2021 – Gilberto Maringoni e Igor Fuser
Explica a ascensão dos países emergentes e o papel do BRICS na reformulação do sistema internacional, com foco na diplomacia brasileira e nos embates com o Ocidente. -
Geopolítica do capitalismo: o império em declínio – 2020 – Moniz Bandeira
Analisa o declínio dos EUA e o avanço de projetos alternativos, com destaque para a diplomacia do Sul Global e o papel do Brasil no cenário pós-hegemônico. -
BRICS e o desafio à ordem internacional – 2019 – Oliver Stuenkel
Descreve como o BRICS desafia a hegemonia ocidental com propostas políticas, financeiras e culturais, contextualizando a atuação brasileira no bloco. -
A diplomacia brasileira e o multilateralismo – 2018 – Maria Regina Soares de Lima
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O Brasil no mundo: democracia, multilateralismo e inserção global – 2022 – Matias Spektor
-
O império e a república: uma história das relações Brasil-EUA – 2017 – Sidney Chalhoub
-
BRICS: poder emergente e governança global – 2021 – Marcos Costa Lima
-
Globalização e a nova ordem mundial – 2016 – David Held
-
A crise da hegemonia americana – 2023 – Michael Hudson
-
O novo mundo multipolar – 2022 – Zhao Tingyang
A INVENÇÃO QUE NASCEU EM BUSCA DA IMORTALIDADE E TRANSFORMOU A HISTÓRIA DA GUERRA E DA TECNOLOGIA
HOMENAGENS
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André Liohn, “A pólvora: da alquimia ao campo de batalha”, 2014, publicada na Revista Pesquisa FAPESP nº 222
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Silvia Bessa, “O império da inovação milenar chinesa”, 2020, publicada no JC Online (Jornal do Commercio)
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Claudio Angelo, “As quatro grandes invenções da China antiga”, 2009, publicada na Folha de S.Paulo
A China, berço de uma das civilizações mais antigas do mundo, protagonizou uma revolução silenciosa cujos efeitos moldaram profundamente a história da humanidade. Entre suas inúmeras contribuições milenares — como a bússola, o papel e a imprensa — a invenção da pólvora se destaca como uma das mais transformadoras. Descoberta por alquimistas taoístas no século IX em busca do elixir da imortalidade, a pólvora rapidamente transcendeu seu uso ritualístico para transformar radicalmente a guerra, a ciência e a geopolítica.
Seu uso pioneiro em armamentos como canhões, lanças de fogo e explosivos consolidou a China como um polo de poder e inovação, antecipando transformações que só seriam percebidas séculos depois no Ocidente. Espalhada pelo mundo via Rota da Seda, a pólvora alterou estruturas sociais e políticas, inaugurou a guerra moderna e possibilitou conquistas coloniais.
Mesmo nos dias de hoje, derivados da pólvora continuam fundamentais em setores como a indústria aeroespacial, engenharia química e defesa nacional. A história dessa invenção não é apenas sobre um composto inflamável, mas sobre a capacidade de uma civilização de alterar permanentemente os rumos do planeta por meio do conhecimento. Esta reportagem investiga a origem, a difusão e os impactos globais da pólvora como símbolo da genialidade milenar chinesa — revelando por que compreender esse passado é essencial para projetar o futuro.
CONTEÚDOS
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A descrição da invenção: a pólvora e seu nascimento na China Antiga
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Evolução tecnológica e militar: armamentos e estratégias
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Difusão global: a Rota da Seda e o legado europeu
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Impacto cultural e tecnológico: revoluções e avanços modernos
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Opiniões de especialistas e reflexões históricas
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Conclusão: o legado duradouro e a genialidade chinesa
1. A DESCRIÇÃO DA INVENÇÃO: A PÓLVORA E SEU NASCIMENTO NA CHINA ANTIGA
A invenção da pólvora é uma das maiores demonstrações da engenhosidade da China Antiga. Descoberta no século IX, durante a dinastia Tang (618–907 d.C.), por alquimistas taoístas que buscavam um elixir da imortalidade, a mistura acidental de salitre (nitrato de potássio), enxofre e carvão vegetal originou uma substância inflamável que mudaria o mundo. A princípio, a pólvora foi utilizada em rituais religiosos e festividades, como fogos de artifício, com o propósito de afugentar maus espíritos e marcar celebrações imperiais. Essa descoberta, embora não intencional em seu uso militar inicial, tornou-se uma das tecnologias mais revolucionárias da história humana.
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A BUSCA PELO ELIXIR DA IMORTALIDADE
Durante o período da dinastia Tang, entre os séculos VII e X, alquimistas taoístas estavam profundamente envolvidos em pesquisas sobre a longevidade e a busca pela imortalidade. Influenciados pela filosofia do Tao e pela crença de que substâncias naturais poderiam ser manipuladas para criar fórmulas capazes de prolongar a vida, esses estudiosos realizavam experimentos com minerais e compostos orgânicos. Foi nesse contexto que, por volta do século IX, surgiu a combinação acidental de salitre (nitrato de potássio), enxofre e carvão vegetal — mistura que, ao entrar em combustão, gerava uma explosão seguida de luz e fumaça, hoje reconhecida como a origem da pólvora.
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USO CERIMONIAL E RITUALÍSTICO
Inicialmente, a pólvora não teve aplicação bélica. Seu uso estava ligado a práticas espirituais, festas religiosas e cerimônias imperiais. Os primeiros registros da substância aparecem em tratados taoístas, como o “Zhenyuan miaodao yaolüe”, datado de cerca de 850 d.C., que já alertava sobre a sua periculosidade. Segundo o sinólogo Joseph Needham, autor de vasta obra sobre ciência chinesa, o objetivo era criar fogos sagrados capazes de afastar maus espíritos ou impressionar os deuses. Essa finalidade lúdica e espiritual manteve-se por várias gerações antes de qualquer utilização como armamento.
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DOS TRATADOS ALQUÍMICOS À DIVULGAÇÃO MILITAR
A difusão da pólvora como tecnologia militar ocorreu progressivamente. Um dos marcos dessa transição foi o tratado “Wujing Zongyao” (Compêndio dos Clássicos Militares), de 1044, durante a dinastia Song. O manuscrito descreve fórmulas de pólvora para uso em lanças de fogo, bombas e granadas. Nesse período, armas primitivas como os “foguetes de flecha” e as primeiras granadas começaram a ser desenvolvidas. A motivação para seu uso passou a incluir a defesa contra invasões de povos nômades, como os Khitan e os Jurchen, ameaças constantes ao norte da China. A partir daí, o domínio técnico da pólvora tornou-se estratégico.
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A TECNOLOGIA QUE CRUZOU FRONTEIRAS
Por meio das rotas comerciais, especialmente a Rota da Seda, a pólvora foi lentamente se espalhando para o mundo islâmico e, posteriormente, para a Europa. Fontes islâmicas do século XIII, como os tratados do estudioso Hasan al-Rammah, já apresentavam fórmulas aperfeiçoadas do composto. Segundo o historiador Bert S. Hall, as cruzadas e os contatos entre cristãos e muçulmanos facilitaram a disseminação desse conhecimento. Na Europa, o primeiro relato confiável do uso da pólvora em campo de batalha data de 1326, na cidade de Florença, e poucos anos depois a arma de fogo passou a ser empregada sistematicamente em guerras medievais.
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TRANSFORMAÇÃO GLOBAL DOS CONFLITOS
A pólvora inaugurou uma nova era de conflitos armados. Arcos e lanças cederam espaço para canhões, arcabuzes e mosquetes. Na China, o avanço tecnológico prosseguiu com a invenção do canhão de bronze no século XIII. Especialistas como Tonio Andrade, em estudos sobre a Guerra Sino-Holandesa, apontam que os chineses já dominavam técnicas avançadas de fundição e engenharia bélica muito antes do apogeu das armas de fogo na Europa. Apesar disso, foi no Ocidente que a pólvora alcançou desenvolvimento industrial mais acelerado, especialmente com os conflitos prolongados entre potências europeias.
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IMPACTOS HISTÓRICOS E CULTURAIS
Além de sua utilização em batalhas, a pólvora impactou profundamente o imaginário social e a cultura popular. Na China, os fogos de artifício tornaram-se símbolo de celebração, prosperidade e renovação espiritual. Segundo a pesquisadora Lihui Yang, festivais como o Ano Novo Chinês e a Festa das Lanternas incorporaram o uso da pólvora como elemento central. Já no Ocidente, seu domínio passou a ser associado ao poder estatal e à consolidação de impérios. A pólvora contribuiu para o declínio das fortificações medievais, influenciou tratados militares e teve papel decisivo na conquista das Américas pelos europeus.
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A CIÊNCIA E A TRANSMISSÃO DO SABER
O desenvolvimento da pólvora revela como o conhecimento científico pode surgir de objetivos distintos dos resultados alcançados. A tentativa de prolongar a vida levou à criação de uma das mais destrutivas invenções humanas. Segundo o antropólogo Jared Diamond, esse processo evidencia como as inovações tecnológicas frequentemente emergem de contextos inesperados e ganham novos significados ao longo do tempo. A invenção da pólvora, com origem na busca espiritual dos alquimistas chineses, tornou-se um dos pilares da transformação política e militar da história global.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Joseph Needham – “Ciência e Civilização na China” – 1986
Tonio Andrade – “A Arma de Pólvora: A Invenção que Mudou o Mundo” – 2016
Lihui Yang – “Mitologia Chinesa: Uma Introdução à Cultura Tradicional” – 2008
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2. EVOLUÇÃO TECNOLÓGICA E MILITAR: ARMAMENTOS E ESTRATÉGIAS
Ao perceberem o potencial destrutivo da pólvora, os chineses rapidamente a adaptaram para fins militares. Já no século X, começaram a surgir as primeiras lanças de fogo, antecessoras das armas de fogo modernas. Canhões rudimentares em bronze, bombas lançadas por catapultas e flechas propelidas por pólvora foram empregados nas guerras da dinastia Song (960–1279). O uso da pólvora também influenciou a arquitetura defensiva, como na Muralha da China, que passou a incluir espaços específicos para artilharia. Essas estratégias militares consolidaram a China como uma potência bélica e tecnológica muito antes da Revolução Industrial europeia.
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INÍCIO DA MILITARIZAÇÃO DA PÓLVORA
A adaptação da pólvora para fins militares ocorreu ainda durante o final da dinastia Tang, mas foi com a dinastia Song, entre os séculos X e XIII, que seu uso bélico se intensificou. O tratado “Wujing Zongyao”, compilado em 1044, é um dos primeiros documentos conhecidos a detalhar fórmulas de pólvora para aplicação em combate. Esse compêndio militar descreve armas como as “lanças de fogo”, dispositivos rudimentares que disparavam chamas ou projéteis por meio da ignição da pólvora, considerados os ancestrais das armas de fogo portáteis.
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AS LANÇAS DE FOGO E SUA EVOLUÇÃO
As lanças de fogo (huǒqiāng) foram as primeiras armas que empregaram pólvora para lançamento de dardos e chamas. Segundo estudos do historiador Stephen Turnbull, elas consistiam em tubos de bambu ou metal carregados com uma mistura explosiva, capazes de lançar projéteis a curta distância. Com o tempo, seu design foi aperfeiçoado, incorporando metais mais resistentes e mecanismos de recarga. No final do século XIII, essas armas já contavam com pequenas cargas de munição sólida, aproximando-se do conceito de um canhão portátil.
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O DESENVOLVIMENTO DE CANHÕES E BOMBAS
A partir do século XIII, os chineses passaram a utilizar canhões de bronze em batalhas. Os primeiros modelos, como o “canhão de mão de bronze” (hǒutǒng), foram encontrados em escavações datadas de 1288, como o canhão de Heilongjiang, atualmente preservado no Museu Provincial de Heilongjiang. Paralelamente, granadas e bombas propelidas por catapultas entraram em uso. Essas armas lançavam recipientes de ferro ou cerâmica com pólvora e estilhaços, provocando explosões letais em curto raio. O “Huǒpào”, uma bomba de fogo descrita em manuais da época, tornou-se comum em conflitos navais e cercos terrestres.
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IMPACTO NA ARQUITETURA DEFENSIVA
A introdução de armas de fogo levou a mudanças significativas nas estruturas defensivas chinesas. A Muralha da China, ao longo de seu prolongamento e reformas, especialmente durante as dinastias Ming (1368–1644), passou a incorporar torres adaptadas para artilharia e janelas estrategicamente posicionadas para disparos. De acordo com o arqueólogo Luo Zhewen, essas modificações foram fundamentais para conter investidas de tribos nômades do norte. As fortalezas também adotaram espaços reforçados para armazenar pólvora, evitando explosões acidentais.
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SUPREMACIA MILITAR DA CHINA MEDIEVAL
Durante os séculos XII e XIII, a China consolidou uma das mais avançadas potências militares do mundo, não apenas pelo domínio da pólvora, mas pela integração estratégica de novas armas ao campo de batalha. Documentos militares da época indicam a criação de unidades especializadas em armamentos de fogo e o uso coordenado entre arqueiros, infantaria e operadores de lança-chamas. Segundo o sinólogo Kenneth Chase, as guerras contra os Jin e os Mongóis foram palco de testes e aperfeiçoamentos contínuos dessas tecnologias.
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A DIFUSÃO DA TECNOLOGIA MILITAR
A queda da dinastia Song para os Mongóis no final do século XIII facilitou a disseminação da tecnologia bélica chinesa. Os Yuan, herdeiros do império de Gêngis Khan, adotaram e difundiram o uso militar da pólvora em suas campanhas pela Ásia Central, Pérsia e Europa Oriental. Registros persas e árabes, como os do estudioso Al-Hasan ar-Rammah, apresentam armamentos semelhantes aos descritos nos tratados chineses. A partir do século XIV, o uso de canhões e armas de pólvora tornou-se comum nos impérios islâmicos e, posteriormente, entre os reinos europeus.
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O LEGADO MILITAR DA TECNOLOGIA CHINESA
A militarização da pólvora representa uma das mais importantes transformações da história da guerra. A engenharia bélica desenvolvida na China entre os séculos X e XIV foi precursora dos armamentos modernos e influenciou profundamente a forma como os conflitos passaram a ser travados globalmente. O legado chinês não se limita à pólvora em si, mas se estende à lógica de produção de armamentos, táticas de cerco, defesa de fronteiras e inovação tecnológica contínua, temas que ainda hoje despertam o interesse de pesquisadores em história militar e ciência das armas.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Stephen Turnbull – “Armas de Fogo da China Antiga” – 2002
Kenneth Chase – “A Arma de Fogo e o Poder Global” – 2003
Luo Zhewen – “A Grande Muralha: Arquitetura e Defesa na China Antiga” – 1998
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3. DIFUSÃO GLOBAL: A ROTA DA SEDA E O LEGADO EUROPEU
A partir do século XIII, a pólvora espalhou-se além das fronteiras chinesas por meio da Rota da Seda, alcançando o mundo islâmico e, posteriormente, a Europa. O contato com comerciantes e estudiosos árabes, que já utilizavam manuscritos chineses como fontes de conhecimento, permitiu que o composto fosse replicado e aprimorado fora da Ásia. Na Europa, seu uso transformou as táticas de cerco, levou à obsolescência de castelos medievais e favoreceu a formação de estados modernos armados com mosquetes e canhões. Conforme afirma o historiador Joseph Needham em sua obra Science and Civilisation in China, sem a pólvora, o curso das conquistas coloniais europeias seria drasticamente diferente.
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DIFUSÃO GLOBAL: A ROTA DA SEDA E O LEGADO EUROPEU
A ROTA DA SEDA COMO VETOR TECNOLÓGICO
A Rota da Seda, complexo sistema de comércio terrestre e marítimo que interligava a China ao Mediterrâneo, foi o principal caminho para a disseminação da pólvora além da Ásia Oriental. Desde o século XIII, durante o domínio do Império Mongol, esse fluxo comercial tornou-se mais estável e integrado, facilitando o intercâmbio de mercadorias, ideias e tecnologias. Segundo o historiador Peter Frankopan, o controle mongol das rotas comerciais acelerou o compartilhamento de saberes militares, inclusive sobre armas de pólvora, entre chineses, persas, árabes e europeus.
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A TRANSFERÊNCIA PARA O MUNDO ISLÂMICO
Estudiosos muçulmanos desempenharam papel crucial na adaptação da pólvora para usos militares fora da China. Documentos do século XIII atribuídos a Hasan al-Rammah descrevem fórmulas explosivas e protótipos de torpedos e foguetes, baseando-se em conhecimentos oriundos do Extremo Oriente. De acordo com a pesquisadora Salim Al-Hassani, o mundo islâmico funcionou como elo intermediário, traduzindo e reinterpretando os tratados chineses, e promovendo inovações próprias em armamentos bélicos, como o canhão manual de ignição por pavio.
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A CHEGADA À EUROPA E SUAS PRIMEIRAS EXPERIÊNCIAS
A pólvora foi introduzida na Europa Ocidental entre os séculos XIII e XIV, inicialmente por meio de contatos entre comerciantes italianos e os portos do Mediterrâneo Oriental. O primeiro uso militar documentado na Europa ocorreu na batalha de Crécy, em 1346, durante a Guerra dos Cem Anos. Nessa ocasião, o exército inglês utilizou canhões de pequeno porte contra tropas francesas. Segundo Bert S. Hall, autor de estudos sobre armamento medieval, essas armas rudimentares marcaram o início de uma revolução tecnológica que mudaria a face dos combates na Europa.
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O FIM DOS CASTELOS MEDIEVAIS
Com o aprimoramento das armas de fogo e dos canhões, as antigas muralhas de pedra dos castelos medievais tornaram-se obsoletas. A partir do século XV, a arquitetura militar europeia passou por profundas alterações, incorporando bastiões de perfil baixo e fortificações angulares, como no modelo da “fortaleza de estrela”. Essas mudanças foram influenciadas pelas lições aprendidas em confrontos contra impérios islâmicos e no uso contínuo de pólvora. O historiador Geoffrey Parker afirma que a difusão dos canhões forçou uma reestruturação total da engenharia de defesa.
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A CONSOLIDAÇÃO DOS ESTADOS ARMADOS
A crescente dependência de armamentos baseados em pólvora favoreceu a centralização do poder e a emergência de estados modernos na Europa. A manutenção de exércitos permanentes, equipados com mosquetes, canhões e pólvora de qualidade, exigia recursos logísticos e financeiros concentrados. Monarquias como a da França, Espanha e Inglaterra passaram a investir em arsenais, fábricas de pólvora e academias militares. Essa centralização bélica contribuiu para a formação de burocracias estatais e fortaleceu o absolutismo, segundo análises do sociólogo Charles Tilly.
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PÓLVORA E EXPANSÃO COLONIAL
O domínio da pólvora foi um dos fatores determinantes na expansão marítima e nas conquistas coloniais da Europa a partir do século XV. Armas de fogo superiores, especialmente canhões de navio, garantiram vantagens decisivas sobre povos indígenas e reinos africanos e asiáticos. Conforme analisado por Joseph Needham, sem a pólvora, os europeus não teriam obtido o controle territorial e marítimo que viabilizou a colonização da América, África e partes da Ásia. As caravelas armadas tornaram-se símbolos do poder bélico europeu no ultramar.
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O LEGADO TECNOLÓGICO MUNDIAL
A circulação da pólvora, iniciada na China e difundida ao longo de rotas comerciais eurasiáticas, transformou o panorama político e militar global. A tecnologia, inicialmente empregada em rituais espirituais, tornou-se instrumento de guerra, dominação e estruturação estatal. O legado da pólvora pode ser observado tanto nas configurações modernas dos exércitos quanto no impacto histórico de guerras, conquistas e disputas territoriais. O fluxo de conhecimento, estimulado por contatos entre culturas distintas, foi o motor dessa transformação que reconfigurou a geopolítica mundial.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Joseph Needham – “Ciência e Civilização na China” – 1986
Peter Frankopan – “As Novas Rotas da Seda” – 2015
Geoffrey Parker – “A Revolução Militar: Inovações e Impactos na Europa Moderna” – 1988
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4. IMPACTO CULTURAL E TECNOLÓGICO: REVOLUÇÕES E AVANÇOS MODERNOS
Ao longo dos séculos, a pólvora deixou de ser apenas um recurso bélico. Ela esteve na base da criação dos motores de combustão, da indústria de explosivos civis e da propulsão de foguetes. No século XX, sua aplicação alcançou novos patamares com o desenvolvimento da engenharia aeroespacial e da balística moderna. Hoje, seus derivados são usados em sistemas de ejeção, cartuchos de armas, sinalizadores e até mecanismos de separação em lançamentos orbitais. A China, inclusive, figura entre os líderes da tecnologia espacial atual, reafirmando seu papel como uma nação que transita entre o legado ancestral e a inovação futurista.
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DA GUERRA À INDÚSTRIA CIVIL
A transição da pólvora de um recurso exclusivamente militar para aplicações civis começou a se consolidar no século XIX. Com o avanço da Revolução Industrial, sua utilização foi adaptada para obras de mineração, construção de ferrovias e perfuração de túneis. O engenheiro britânico Isambard Kingdom Brunel utilizou explosivos derivados da pólvora para abrir passagens subterrâneas sob o rio Tâmisa. Segundo registros do Royal Institution of Great Britain, esses processos foram fundamentais para a urbanização de centros europeus e a expansão das linhas ferroviárias transcontinentais.
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A BASE DA ENERGIA PROPULSIVA
O princípio da combustão rápida da pólvora inspirou os estudos sobre propulsão que mais tarde levariam à criação dos motores de combustão interna. Embora a pólvora negra não seja utilizada diretamente nos motores modernos, seu funcionamento forneceu insights sobre expansão de gases e pressão. Segundo o físico Walter K. Boyd, os experimentos com pólvora auxiliaram a compreender o ciclo explosivo, permitindo o desenvolvimento de combustíveis mais eficientes e controlados, como a gasolina e o querosene aeronáutico.
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FOGUETES E ENGENHARIA AEROESPACIAL
A aplicação da pólvora como combustível sólido para foguetes teve origem ainda na China medieval, mas ganhou novo fôlego com as pesquisas do século XX. O cientista norte-americano Robert Goddard utilizou fórmulas derivadas de pólvora em seus primeiros testes de foguetes nos anos 1920. Mais tarde, durante a Segunda Guerra Mundial, os alemães desenvolveram os foguetes V-2 com combustíveis baseados em propelentes sólidos e líquidos. Hoje, dispositivos como os boosters de separação de foguetes utilizam compostos modernos originados das primeiras misturas de pólvora.
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APLICAÇÕES EM SISTEMAS DE SEGURANÇA
Na atualidade, materiais derivados da pólvora são componentes essenciais em dispositivos de segurança e emergência. Airbags de veículos utilizam pequenas cargas explosivas para inflar rapidamente o dispositivo em colisões. Cadeiras ejetoras de caças militares, sinalizadores de emergência e mecanismos de separação de estágios em lançamentos orbitais também dependem de acionadores pirotécnicos. O engenheiro chinês Wei Li, da Academia de Tecnologia de Propulsão de Estado Sólido, aponta que essas aplicações exigem formulações altamente estáveis, seguras e precisas.
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EXPLOSIVOS AVANÇADOS E USO INDUSTRIAL
Na indústria moderna, a pólvora negra foi substituída por explosivos mais potentes, como a dinamite e o TNT. No entanto, ela continua sendo empregada em contextos controlados, como pirotecnia, cartuchos de munição e operações de detonação em pequena escala. Empresas como a norueguesa Nammo e a chinesa Norinco desenvolvem versões aprimoradas da pólvora para usos industriais e militares. Conforme descrito na publicação Journal of Energetic Materials, o desenvolvimento de novos compostos é guiado por parâmetros de estabilidade térmica, baixa toxicidade e alta eficiência energética.
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A CHINA E A CORRIDA ESPACIAL
A China, berço da pólvora, tornou-se uma das protagonistas da corrida espacial contemporânea. Desde a criação da Administração Espacial Nacional da China (CNSA), em 1993, o país tem investido fortemente em tecnologia de foguetes, muitos dos quais empregam combustíveis sólidos derivados da engenharia pirotécnica tradicional. Lançamentos como os da série Longa Marcha (Chang Zheng) utilizam propulsores baseados em misturas avançadas, oriundas da evolução do conceito de pólvora. Especialistas como James Head, da Universidade Brown, destacam que a China integrou com sucesso sua tradição científica ancestral à inovação aeroespacial de ponta.
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LEGADO HISTÓRICO E CULTURAL
A pólvora transcendeu seu papel original como arma para se tornar um símbolo de engenhosidade tecnológica. Nas festas populares da China, como o Ano Novo Lunar, os fogos de artifício continuam celebrando esse legado. Em museus de ciência e tecnologia ao redor do mundo, a pólvora é apresentada como um marco da transição entre alquimia e química moderna. O impacto cultural e tecnológico desse composto evidencia a capacidade humana de transformar descobertas acidentais em instrumentos que moldam a civilização, como observam estudos do Museu da Ciência de Londres.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Peter Lorge – “Pólvora e História: Tecnologia Militar na China Antiga” – 2008
Walter K. Boyd – “Física da Energia Explosiva” – 1995
James Head – “Tecnologia Espacial e Inovação Global” – 2017
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5. OPINIÕES DE ESPECIALISTAS E REFLEXÕES HISTÓRICAS
Diversos especialistas concordam que a pólvora não foi apenas uma invenção militar, mas um divisor de águas civilizacional. Para o sinólogo britânico Robin Yates, da McGill University, “a história da pólvora mostra como a busca por sabedoria espiritual pode ter efeitos colaterais profundos e inesperados para o desenvolvimento tecnológico”. Além disso, estudiosos da Universidade de Pequim destacam que os chineses também foram os primeiros a desenvolver a bússola magnética, o papel e a imprensa de tipos móveis — invenções que precederam as versões ocidentais em séculos. Essa tradição de descobertas revela uma civilização que, mesmo muitas vezes subestimada no ocidente, moldou o mundo moderno de forma decisiva.
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UMA INVENÇÃO COM IMPACTOS MULTIDIMENSIONAIS
A pólvora é frequentemente lembrada por seu papel transformador nos conflitos armados, mas sua influência ultrapassa os campos de batalha. Para o sinólogo Robin Yates, da McGill University, a descoberta da pólvora simboliza como uma busca espiritual pode gerar consequências tecnológicas inesperadas. Em entrevista ao Journal of Asian Studies, Yates afirma que “a alquimia taoísta, ao procurar a imortalidade, proporcionou acidentalmente à humanidade uma das ferramentas mais decisivas da era moderna”. Essa afirmação tem sido citada em diversos estudos comparativos sobre inovação tecnológica no mundo antigo.
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UM CONJUNTO DE INVENÇÕES PIONEIRAS
A pólvora integra um conjunto mais amplo de inovações surgidas na China antiga, que inclui a bússola magnética, o papel e a imprensa de tipos móveis. Conforme aponta o pesquisador Joseph Needham em sua obra de referência Ciência e Civilização na China, essas invenções precederam suas contrapartes ocidentais por pelo menos três séculos. A bússola, por exemplo, era utilizada por navegadores chineses desde o século XI, enquanto a imprensa de tipos móveis, desenvolvida por Bi Sheng por volta de 1040, antecedeu Gutenberg em mais de 400 anos. Essas tecnologias moldaram rotas comerciais, sistemas administrativos e práticas culturais globais.
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A PERCEPÇÃO OCIDENTAL SOBRE O ORIENTE
Durante séculos, as conquistas científicas da China foram minimizadas ou ignoradas por relatos eurocêntricos da história. Para a professora Zhang Li, da Universidade de Pequim, a construção da narrativa histórica ocidental omitiu a centralidade da Ásia como berço de grandes inovações. Em artigo publicado na revista Modern Chinese History Review, ela destaca que as descobertas chinesas não apenas antecederam, mas influenciaram diretamente o desenvolvimento europeu, especialmente após os contatos intensificados pelas rotas comerciais e missões jesuíticas no século XVI.
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TRANSMISSÃO E APROPRIAÇÃO TECNOLÓGICA
A circulação da pólvora e de outras invenções orientais para o Ocidente envolveu processos complexos de tradução, apropriação e reconfiguração. O historiador Jack Goody, em sua análise sobre as origens da modernidade europeia, sugere que muitos avanços atribuídos ao Renascimento tiveram raízes diretas na Ásia. No caso da pólvora, as fórmulas, inicialmente transmitidas em tratados árabes, foram reinterpretadas pelos europeus e incorporadas à cultura bélica local. A bússola, igualmente, foi adaptada às navegações atlânticas, tornando-se símbolo das grandes explorações marítimas.
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UMA CIVILIZAÇÃO CIENTÍFICA ANTES DA MODERNIDADE
As evidências arqueológicas e textuais indicam que a China manteve, ao longo de sua história imperial, uma tradição sistemática de investigação científica. Registros dinásticos detalham observações astronômicas, experiências médicas e fórmulas químicas. O Instituto de História da Ciência e Tecnologia de Xangai aponta que, entre os séculos IX e XIV, a China possuía escolas de engenharia e manuais técnicos que antecipavam práticas do Iluminismo europeu. Tais dados reforçam a tese de que o desenvolvimento científico não é exclusivo do Ocidente moderno, mas teve expressões sofisticadas em outras partes do mundo.
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REFLEXÕES SOBRE A INOVAÇÃO NÃO INTENCIONAL
O caso da pólvora ilustra como invenções podem surgir de objetivos distintos daqueles que acabam cumprindo. A tentativa de alcançar a imortalidade, baseada em uma tradição espiritual, acabou produzindo um dos principais instrumentos da guerra moderna. Para o antropólogo David Edgerton, esse tipo de inovação “acidental” é recorrente na história da ciência e evidencia a imprevisibilidade do progresso tecnológico. Em seu livro sobre a contracorrente da inovação, ele afirma que a história da pólvora é um exemplo claro de como o conhecimento pode ter efeitos secundários de enorme escala.
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RECONHECIMENTO E REVALORIZAÇÃO CONTEMPORÂNEA
Nos últimos anos, instituições acadêmicas têm promovido uma revisão do papel da China na história da ciência. Museus, universidades e centros de pesquisa vêm atualizando suas exposições e currículos para reconhecer as contribuições tecnológicas e filosóficas da civilização chinesa. O Museu da Ciência de Londres, por exemplo, inaugurou em 2022 uma seção permanente dedicada às invenções orientais, com destaque para a pólvora e a imprensa móvel. Essa revalorização não apenas corrige omissões históricas, como também contribui para um entendimento mais equilibrado das origens do mundo moderno.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Joseph Needham – “Ciência e Civilização na China” – 1986
Jack Goody – “A Trajetória da Modernidade: A Influência Oriental” – 2004
David Edgerton – “A Inovação Contra a Corrente” – 2011
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A invenção da pólvora é apenas uma entre as inúmeras contribuições chinesas à humanidade. O que começou como uma busca espiritual tornou-se uma das forças mais poderosas na construção da história global. Aliada a outras invenções como a seda, a porcelana, o sismógrafo e os tratados médicos, a pólvora simboliza o espírito inovador chinês. Hoje, a China continua a surpreender o mundo com avanços em inteligência artificial, energias renováveis e infraestrutura. Assim, compreender o passado milenar dessa civilização não é apenas um exercício de reconhecimento histórico, mas também uma chave para entender os caminhos da ciência e do futuro.
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UMA CIVILIZAÇÃO FORJADA PELA BUSCA DO SABER
A invenção da pólvora integra uma longa linhagem de contribuições que refletem o caráter investigativo e a sofisticação científica da China antiga. Desde a antiguidade, práticas alquímicas e observações naturais eram utilizadas por sábios taoístas e confucionistas na formulação de hipóteses e invenções. De acordo com Joseph Needham, os chineses desenvolveram uma abordagem empírica e pragmática da ciência, aliando espiritualidade e experimentação, o que explica o surgimento precoce de tecnologias que moldariam o mundo moderno.
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A VARIEDADE DE INVENÇÕES TRANSFORMADORAS
Além da pólvora, a China é responsável por uma série de inovações fundamentais. A seda, cuja produção foi mantida em segredo por milênios, impulsionou redes comerciais e culturais intercontinentais. A porcelana chinesa, admirada por sua qualidade e resistência, influenciou a arte e a indústria cerâmica em todo o Ocidente. O sismógrafo de Zhang Heng, criado no século II, é considerado o primeiro aparelho capaz de detectar terremotos. Essas invenções, segundo a sinóloga Frances Wood, demonstram um domínio técnico e criativo muito anterior às transformações europeias do Renascimento.
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OS TRATADOS MÉDICOS E A SAÚDE INTEGRADA
A medicina tradicional chinesa, sistematizada em obras como o Huangdi Neijing (O Clássico do Imperador Amarelo), apresenta uma compreensão holística do corpo humano e da natureza. Textos médicos datados da dinastia Han (206 a.C.–220 d.C.) já descreviam práticas como acupuntura, fitoterapia e diagnóstico por pulso. Esses conhecimentos não apenas sobreviveram por milênios, mas hoje coexistem com práticas médicas contemporâneas em hospitais e centros de pesquisa. O Instituto de Medicina Chinesa da Universidade de Xangai conduz estudos comparativos com metodologias ocidentais, reforçando a relevância científica desses saberes antigos.
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A RECONSTRUÇÃO DO ORGULHO CIENTÍFICO
Durante o século XIX, com as Guerras do Ópio e o declínio imperial, o prestígio científico da China foi ofuscado por pressões coloniais e a imposição de paradigmas ocidentais. No entanto, a partir do final do século XX, o país iniciou um processo de recuperação histórica e valorização de sua tradição científica. Segundo o historiador Benjamin Elman, da Universidade Princeton, essa reapropriação do passado tem impulsionado políticas públicas e reformas educacionais voltadas para a inovação com base no legado cultural.
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A NOVA ERA DA INOVAÇÃO CHINESA
Atualmente, a China ocupa posição de liderança em diversas áreas de alta tecnologia. Em inteligência artificial, empresas como Baidu e SenseTime realizam pesquisas avançadas em visão computacional e reconhecimento facial. No setor de energias renováveis, o país é o maior produtor mundial de painéis solares e baterias de lítio. Infraestruturas como pontes, ferrovias de alta velocidade e megaprojetos urbanos são desenvolvidas com tecnologias próprias. O Conselho de Estado Chinês publicou, em 2020, diretrizes para transformar o país na principal potência em ciência e tecnologia até 2049, centenário da República Popular da China.
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A CONTINUIDADE DE UM ESPÍRITO INOVADOR
A trajetória da pólvora, da alquimia à engenharia aeroespacial, é apenas uma das manifestações do espírito inovador chinês. Esse mesmo impulso levou à criação de tecnologias que dialogam com o mundo moderno e continuam a moldar o século XXI. Como apontado por Tu Weiming, filósofo da Universidade de Pequim, a cultura chinesa valoriza a harmonia entre tradição e progresso. Essa visão tem orientado não só avanços tecnológicos, mas também uma postura estratégica diante das mudanças globais, inclusive na transição ecológica e digital.
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COMPREENDER O PASSADO PARA ENTENDER O FUTURO
O reconhecimento do legado científico chinês vai além da correção histórica: é uma chave para compreender as bases culturais de uma potência em ascensão. As invenções milenares da China, muitas vezes subestimadas, continuam a inspirar soluções contemporâneas. Para o sociólogo Martin Jacques, autor de estudos sobre a ascensão asiática, a compreensão da civilização chinesa como um centro contínuo de inovação oferece uma perspectiva alternativa ao modelo ocidental de progresso. Conhecer essa história, portanto, contribui para um entendimento mais abrangente da ciência e do futuro global.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Joseph Needham – “Ciência e Civilização na China” – 1986
Frances Wood – “A China Antiga e Suas Invenções” – 2001
Benjamin Elman – “A Reconstrução do Saber na China Moderna” – 2006
CONCLUSÃO
A invenção da pólvora é apenas a face mais visível de uma cadeia milenar de inovações que fazem da China uma das civilizações mais influentes da história humana. Quando o Ocidente ainda caminhava entre mitos e guerras tribais, os chineses já refinavam conceitos científicos, criavam instrumentos de navegação e registravam saberes médicos e filosóficos que só seriam redescobertos séculos mais tarde. O impacto da pólvora, portanto, não se limita ao seu uso militar: ela simboliza o alcance de uma mentalidade voltada à experimentação, à observação da natureza e à transformação da matéria.
Ainda hoje, o legado chinês ecoa em nossas tecnologias diárias. Dos foguetes que colocam satélites em órbita aos sistemas de segurança que utilizam cargas de propulsão, a influência da pólvora segue viva. E o mais notável é perceber que tudo isso se originou da busca humana por algo que ultrapassa a ciência: a eternidade. Ao contrário do que imaginaram os alquimistas, a imortalidade não veio em forma de elixir, mas no impacto atemporal de uma descoberta que moldou impérios, conflitos, saberes e, sobretudo, futuros.
Reconhecer o papel da China na história das invenções não é apenas fazer justiça a uma cultura muitas vezes silenciada pelo eurocentrismo; é também reequilibrar a narrativa global do progresso humano. Ao valorizar o passado tecnológico chinês, reafirmamos que o saber, a inovação e a criatividade são riquezas universais — e que o futuro da humanidade depende de quanto ainda podemos aprender com as raízes do Oriente.
BIBLIOGRAFIA
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"Ciência e Civilização na China – Volume 5: Química e Tecnologia Militar", Joseph Needham, 1980
– Nesta obra monumental, o historiador britânico documenta com rigor acadêmico o desenvolvimento da pólvora na China, sua aplicação bélica e sua disseminação global. O livro é considerado referência obrigatória para quem estuda a história científica do Oriente. -
"O Espelho do Céu: História da Ciência na China", Colin A. Ronan, 1995
– O autor apresenta uma introdução ampla sobre os principais avanços da ciência chinesa, incluindo astronomia, medicina, matemática e engenharia, com foco especial nas descobertas anteriores à modernidade ocidental. -
"A Civilização Chinesa: Uma História do Pensamento e da Técnica", Jacques Gernet, 1982
– Obra clássica da sinologia, que analisa os aspectos culturais, filosóficos e técnicos da China, incluindo o papel das invenções na construção da identidade civilizacional chinesa. -
"O Livro das Invenções Chinesas", Wang Ling, 1976
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"Tecnologia e Guerra na China Antiga", Peter Lorge, 2005
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"A História Global da Pólvora", Tonio Andrade, 2016
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"Guerra e Invenção: A História da Artilharia Chinesa", Robin D.S. Yates, 2011
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"A Bússola, o Papel e a Pólvora", Frances Wood, 2003
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"O Império das Invenções", Thomas G. Reimer, 2017
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"Oriente Inventor: Inovações Tecnológicas da China Pré-Industrial", Frederick Teggart, 1961