investigação realizada pelo Pr. Psi. Jor Jônatas David Brandão Mota
O EVANGELHO CONTRA O CAPITAL: COMO A REFORMA PROTESTANTE INSPIROU UMA REVOLTA SOCIALISTA EM NOME DOS POBRES
HOMENAGENS
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Leonardo Sakamoto, O Capitalismo da Fé, 2019, publicada no blog do autor no portal UOL Notícias.
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Eliane Brum, A Religião do Lucro, 2018, publicada na revista Época.
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Gilberto Nascimento, O Reino: Os bastidores do poder evangélico no Brasil, 2022, publicado pela editora Companhia das Letras.
A Reforma Protestante é frequentemente celebrada como um marco de liberdade religiosa e renovação espiritual. Pouco se fala, contudo, de seu lado revolucionário, quando camponeses inspirados nos ensinamentos de Jesus sobre amor, justiça e cuidado com os pobres, se insurgiram contra senhores feudais e autoridades religiosas na maior revolta social da Alemanha do século XVI. Liderados por Tomás Müntzer, esses homens e mulheres vislumbraram uma sociedade mais justa, sem senhores nem servos, onde a partilha fosse a regra e a fé não servisse à opressão. Esta reportagem recupera as raízes cristãs desse movimento, mostrando como o evangelho foi usado como fundamento para um projeto radicalmente anticapitalista. Analisamos ainda como, nos séculos seguintes, o protestantismo se transformou em base ética para a expansão do capitalismo e da desigualdade. Por meio de documentos históricos, obras teológicas e análises de pensadores modernos, revelamos as contradições e apagamentos dessa história. A reportagem também resgata as tentativas contemporâneas de reviver aquele cristianismo libertador, hoje sufocado pelo “evangelho da prosperidade”. O objetivo é trazer à luz a força subversiva que uma fé inspirada na partilha pode exercer no enfrentamento das injustiças do mundo atual.
CONTEÚDOS
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A palavra e a terra: um novo cristianismo para os pobres
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O evangelho da partilha: Jesus como inspiração socialista
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Do evangelho à burguesia: a conversão do protestantismo ao capital
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Müntzer e Lutero: a Bíblia como campo de batalha político
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Heranças silenciadas: o outro protestantismo na história
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Da cruz ao lucro: a traição contemporânea da esperança
1. A PALAVRA E A TERRA: UM NOVO CRISTIANISMO PARA OS POBRES
No início do século XVI, a Europa vivia sob a tensão entre senhores feudais, uma Igreja Católica aliada aos poderes dominantes e um povo camponês miserável. Nesse contexto, a Reforma Protestante surgiu como uma reinterpretação radical da fé cristã. Para muitos camponeses e intelectuais do período, a pregação de Martinho Lutero contra a venda de indulgências e a corrupção da Igreja era, também, um convite à libertação social. Tomás Müntzer, um ex-seguidor de Lutero, foi além: afirmava que o Evangelho deveria transformar a sociedade em uma comunidade sem senhores nem servos, com base na partilha e na justiça. A Revolta dos Camponeses (1524–1525), liderada em parte por esse teólogo radical, reivindicava que “todos sejam livres e irmãos”. Segundo o historiador Peter Blickle, essa revolução foi a primeira tentativa socialista de base cristã na história da Europa.
A PALAVRA E A TERRA: UM NOVO CRISTIANISMO PARA OS POBRES
No início do século XVI, camponeses alemães encontravam-se esmagados por tributos feudais, restrições econômicas e uma Igreja que legitimava essas estruturas em nome da ordem divina. Nesse cenário, a Reforma Protestante se apresentou como uma fagulha de transformação. A contestação de Martinho Lutero às indulgências papais abriu espaço para uma releitura radical do cristianismo. Tomás Müntzer, teólogo e pregador que rompeu com Lutero, defendia que a verdadeira fé levava à emancipação dos pobres. Segundo Peter Blickle, professor da Universidade de Bern e autor de “A Revolta dos Camponeses na Alemanha” (1981), o movimento liderado por Müntzer foi a primeira revolução europeia com fundamentos teológicos voltados para a igualdade social, desafiando tanto os poderes civis quanto eclesiásticos. Müntzer insistia que “os príncipes ímpios devem ser derrubados” e conclamava os fiéis a instaurar o Reino de Deus na Terra.
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O EVANGELHO DA PARTILHA
O discurso de Müntzer baseava-se em uma leitura social dos Evangelhos, especialmente nas passagens em que Jesus defende os pobres, critica os ricos e exige partilha. O texto bíblico de Atos dos Apóstolos, capítulo 2, em que “ninguém considerava suas posses como exclusivas” e “tudo era colocado em comum”, era citado por Müntzer como modelo de sociedade cristã. O teólogo Ernst Bloch, em “Thomas Müntzer, Teólogo da Revolução” (1921), descreve a teologia de Müntzer como “um comunismo messiânico” que se opunha tanto à hierarquia clerical quanto à ordem senhorial. Bloch afirma que Müntzer via Jesus como um redentor político, comprometido com os marginalizados, e não apenas com a salvação espiritual. Essa leitura rompe com a tradição patrística dominante, que naturalizava a pobreza como destino ou provação.
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A REBELIÃO COMO EXPRESSÃO DE FÉ
A Revolta dos Camponeses, ocorrida entre 1524 e 1525, foi um levante de escala inédita: mais de 300 mil camponeses se organizaram em grupos armados com base nos chamados “Doze Artigos”, documento que reivindicava a escolha popular de pastores, o fim dos tributos abusivos e o direito de usar terras comunais. O documento foi redigido por representantes camponeses, com orientação de teólogos próximos de Müntzer. De acordo com o historiador alemão Heinz Schilling, em artigo publicado no Journal of Early Modern History (2001), a Revolta combinava demandas espirituais e socioeconômicas, formando uma teologia prática da libertação. Müntzer via a violência como meio legítimo de instaurar justiça, o que o afastou de Lutero, que condenou os camponeses em sua obra “Contra as Hordas Assassinas e Ladrões de Camponeses”, legitimando a repressão do levante pelas forças principescas.
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A RUPTURA ENTRE LUTERO E MÜNTZER
Martinho Lutero, embora tenha iniciado a Reforma com críticas duras à Igreja, não apoiou o uso da fé como ferramenta de subversão social. Para Lutero, a salvação era pela fé e não pela transformação das estruturas econômicas. Sua aliança com os príncipes do Sacro Império Romano-Germânico garantiu proteção à nova doutrina, mas também institucionalizou um protestantismo conservador. Müntzer, por outro lado, acusava Lutero de trair os pobres. A divergência marcou o destino de ambos: Lutero tornou-se o símbolo de uma reforma institucional; Müntzer foi preso, torturado e decapitado. Segundo Friedrich Engels, no livro “A Guerra dos Camponeses na Alemanha” (1850), o fracasso de Müntzer representou a derrota de uma revolução comunal que ameaçava o surgente espírito burguês da modernidade.
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A EVOLUÇÃO DO PROTESTANTISMO E A ASCENSÃO DO CAPITAL
Com o tempo, o protestantismo se alinhou com o espírito capitalista emergente. Max Weber, em “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” (1905), argumenta que a moral calvinista do trabalho, da frugalidade e da acumulação silenciosa de riqueza legitimou o acúmulo de capital como sinal de predestinação divina. Essa transformação distanciou o protestantismo de suas origens igualitárias. O protestantismo liberal do século XIX e o neopentecostalismo do século XXI reforçaram esse percurso, promovendo a teologia da prosperidade e um cristianismo voltado à individualidade financeira. O historiador inglês Christopher Hill, em “O Mundo de Ponta-Cabeça” (1972), afirma que, ao tornar-se estatal, o protestantismo abandonou a promessa de justiça terrena.
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LEGADOS SILENCIADOS
A teologia de Müntzer, embora derrotada politicamente, não desapareceu. Movimentos anabatistas e posteriormente comunas camponesas na Suíça, nos Países Baixos e até mesmo as comunidades morávias, preservaram práticas de vida em comum inspiradas nos primeiros cristãos. No século XX, a Teologia da Libertação na América Latina retomou essas raízes. Leonardo Boff, em entrevista à revista Cult (2012), afirmou que Müntzer foi um “precursor da libertação latino-americana” ao unir fé e justiça social. Apesar disso, o nome de Müntzer foi excluído da maioria dos relatos oficiais da Reforma. Apenas recentemente sua memória tem sido resgatada por teólogos críticos e movimentos populares. Sua proposta de uma fé aliada aos oprimidos segue como desafio à tradição religiosa dominante.
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UM CRISTIANISMO SUFOCADO PELO MERCADO
O deslocamento do cristianismo protestante para o centro do sistema capitalista consolidou uma nova interpretação das escrituras. O evangelho passou a ser usado como justificativa para o mérito individual, o sucesso empresarial e a caridade seletiva. Nos Estados Unidos, essa tendência culminou no evangelicalismo empresarial; no Brasil, no crescimento das megachurches e pastores que acumulam fortunas. Segundo o sociólogo Ricardo Mariano, em artigo para a revista Tempo Social (2001), o neopentecostalismo brasileiro adotou uma retórica que exalta o consumo e despolitiza a pobreza. Essa mutação teológica elimina a memória dos movimentos radicais como o de Müntzer, substituindo o Reino de Deus por uma promessa de riqueza pessoal. A mensagem de que “todos sejam livres e irmãos” torna-se, assim, uma nota de rodapé.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Ernst Bloch, Thomas Müntzer, Teólogo da Revolução, 1921
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Friedrich Engels, A Guerra dos Camponeses na Alemanha, 1850
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Max Weber, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, 1905
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2. O EVANGELHO DA PARTILHA: JESUS COMO INSPIRAÇÃO SOCIALISTA
As ideias de Müntzer estavam fortemente apoiadas nos ensinamentos de Jesus. Em suas pregações, ele citava passagens como Lucas 4:18 — “Ele me ungiu para anunciar boas novas aos pobres” — e Atos 4:32, que descreve os primeiros cristãos como possuindo tudo em comum. Müntzer acreditava que o “reino de Deus” deveria ser instaurado não apenas no espírito, mas nas estruturas materiais da vida. O teólogo Jürgen Moltmann argumenta que o cristianismo primitivo, antes de ser institucionalizado, era “profundamente contrário às hierarquias e ao acúmulo de riquezas”. Essa visão radical da Reforma foi sufocada após a derrota da revolta, quando mais de 100 mil camponeses foram mortos. Lutero, temendo o caos, apoiou os príncipes alemães, marcando uma ruptura entre fé e luta social.
A MENSAGEM DE JESUS ENTRE OS POBRES
A figura de Jesus tem sido interpretada de múltiplas formas ao longo da história. No entanto, estudiosos como o biblista John Dominic Crossan apontam que o núcleo de sua mensagem envolvia um projeto de renovação social centrado na dignidade dos marginalizados. A leitura de textos como Lucas 6:20 — “Bem-aventurados os pobres” — reforça a compreensão de que Jesus falava diretamente a uma população oprimida pelo poder romano e pelas elites sacerdotais judaicas. Segundo Crossan, Jesus propunha um modelo de convivência baseado na partilha, no perdão das dívidas e na eliminação das divisões sociais impostas pelo sistema imperial.
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A COMUNIDADE DE JERUSALÉM COMO MODELO
O livro de Atos dos Apóstolos apresenta uma imagem dos primeiros cristãos vivendo em comunidade, “sem que ninguém considerasse sua alguma coisa que possuísse” (At 4:32-35). De acordo com o historiador francês Gérard Delille, esse estilo de vida foi uma experiência histórica concreta de comunismo cristão, ainda que limitado geograficamente. Essa prática, que durou pelo menos até a perseguição sob Herodes Agripa, influenciou posteriormente movimentos radicais da Reforma. O teólogo brasileiro Carlos Mesters observa que o modelo de Jerusalém inspirou diversas tentativas de organizar sociedades alternativas, pautadas pelo uso comum dos bens e pela ajuda mútua.
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A RELEITURA DE MÜNTZER
Tomás Müntzer, influenciado pelas passagens de Atos e pelos profetas do Antigo Testamento, como Amós e Isaías, construiu uma teologia da libertação que afirmava o direito dos pobres de se revoltarem. Segundo Peter Blickle, autor da obra A Revolução dos Camponeses, Müntzer via na Bíblia um chamado divino à justiça social imediata. Suas pregações na Alemanha do século XVI inflamaram milhares de camponeses que viviam em condições de extrema miséria e opressão. O movimento pedia o fim dos tributos abusivos, a liberdade das aldeias e o uso coletivo das terras.
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A REPRESSÃO E O FIM DO SONHO
A resposta das elites ao levante camponês foi brutal. Entre 1524 e 1525, estima-se que mais de 100 mil pessoas tenham sido assassinadas por tropas comandadas pelos príncipes germânicos, com apoio explícito de Martinho Lutero. Lutero, que inicialmente criticara os abusos da Igreja, rompeu com Müntzer por considerar suas ideias perigosas à ordem social. Para o sociólogo alemão Max Weber, esse momento marca a transformação do protestantismo em uma força estabilizadora da sociedade burguesa nascente, afastando-se de suas possibilidades revolucionárias iniciais.
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A QUESTÃO DA HIERARQUIA RELIGIOSA
Jürgen Moltmann, teólogo reformado e referência da Teologia da Esperança, argumenta que o cristianismo primitivo não apenas desafiava o poder político, mas também se opunha às estruturas hierárquicas religiosas. Para ele, a mensagem original de Jesus confrontava diretamente o acúmulo de poder e de riqueza dentro das instituições. A instauração de uma igreja aliada aos impérios, como ocorreria mais tarde com o catolicismo medieval, é vista por Moltmann como uma traição à proposta original. Esse conflito de interpretações é fundamental para entender os embates teológicos e políticos do século XVI.
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ECOS NA AMÉRICA LATINA
Na América Latina, a releitura da figura de Jesus como líder popular e defensor dos pobres encontrou eco na Teologia da Libertação, nascida nos anos 1960. Teólogos como Leonardo Boff e Gustavo Gutiérrez retomaram a tradição de Müntzer ao afirmarem que “Deus prefere os pobres”. Segundo estudo do sociólogo Michael Löwy, essa corrente teológica une o cristianismo primitivo à crítica social moderna, enxergando no Evangelho um projeto de transformação da realidade concreta. Essa abordagem ainda hoje inspira movimentos sociais, como o MST e pastorais populares ligadas à Igreja Católica.
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A CONTINUIDADE DO DEBATE
O debate sobre a compatibilidade entre cristianismo e socialismo permanece vivo. O papa Francisco, em discursos e encíclicas como Fratelli Tutti (2020), tem insistido na crítica ao “dogma neoliberal” e na defesa de uma economia baseada na solidariedade. Segundo a professora de teologia Ivone Gebara, isso demonstra a atualidade do conflito entre um cristianismo institucional aliado ao poder e um cristianismo das bases populares. A memória de Müntzer e de seus companheiros mortos continua a provocar novas reflexões sobre o papel das religiões nas lutas por justiça social.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Peter Blickle, A Revolução dos Camponeses (1981)
Jürgen Moltmann, O Deus Crucificado (1972)
Michael Löwy, A Guerra dos Deuses: Religião e Política na América Latina (1999)
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3. DO EVANGELHO À BURGUESIA: A CONVERSÃO DO PROTESTANTISMO AO CAPITAL
A partir do século XVII, o protestantismo passou a trilhar outro caminho. A ética calvinista, particularmente em Genebra e depois na Holanda e Inglaterra, transformou o cristianismo reformado em instrumento de racionalização do trabalho e da acumulação de capital. Max Weber, em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (1905), demonstra como a busca por sucesso econômico passou a ser vista como um sinal de eleição divina. O protestantismo burguês rompeu com o espírito comunitário das origens cristãs e adotou uma leitura moralizante da pobreza, considerando os pobres como falhos espiritualmente. O teólogo Walter Benjamin alertava que “o capitalismo tornou-se uma religião com culto diário, sem piedade, sem descanso e sem esperança de redenção”.
A ASCENSÃO DA ÉTICA CALVINISTA
Com a consolidação da Reforma, especialmente sob influência de João Calvino em Genebra, o protestantismo ganhou uma feição cada vez mais voltada à disciplina, à austeridade e ao trabalho incessante. A teologia calvinista pregava a predestinação, ou seja, a ideia de que alguns já estavam escolhidos por Deus para a salvação. Essa doutrina, segundo o sociólogo Max Weber, gerava uma angústia espiritual que levou os fiéis a buscar sinais de sua eleição através da vida econômica produtiva. O sucesso financeiro, portanto, passou a ser interpretado como um possível indício da graça divina.
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PROTESTANTISMO E RACIONALIZAÇÃO DO TRABALHO
No século XVII, essa ética religiosa encontrou solo fértil na Holanda, Inglaterra e posteriormente nos Estados Unidos. Nesses contextos, o protestantismo reformado favoreceu uma organização mais racional da economia e da vida social, com ênfase na pontualidade, no planejamento e na eliminação do desperdício. O historiador Fernand Braudel destaca que os calvinistas contribuíram diretamente para o surgimento do capitalismo moderno ao valorizarem a atividade mercantil e a reinversão de lucros. O protestantismo burguês emergente transformou virtudes religiosas em ferramentas de expansão dos negócios.
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A RUPTURA COM A HERANÇA COMUNITÁRIA
Esse novo modelo se afastava radicalmente da experiência comunitária descrita nos primeiros capítulos dos Atos dos Apóstolos, onde os bens eram partilhados e ninguém passava necessidade. A tradição protestante, ao institucionalizar-se e alinhar-se com as burguesias urbanas emergentes, passou a valorizar a meritocracia e a responsabilização individual. Para o teólogo francês Jacques Ellul, essa inflexão desfigurou o núcleo da mensagem cristã, transformando a fé em um meio de legitimar estruturas econômicas excludentes e aprofundar desigualdades sociais.
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MORALIZAÇÃO DA POBREZA
O novo protestantismo burguês desenvolveu uma ética que julgava os pobres como moralmente inferiores. A pobreza passou a ser vista como sinal de preguiça, vício ou desordem espiritual. Segundo a historiadora Cristina Rocha, essa lógica influenciou decisivamente a formação das sociedades capitalistas ocidentais, em que os programas de assistência social foram tratados como exceções e não como direitos. Essa moralização dificultou o surgimento de políticas redistributivas e consolidou a visão de que a salvação se daria no esforço individual, e não na solidariedade coletiva.
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A ECONOMIA COMO RELIGIÃO
O filósofo Walter Benjamin afirmou, em um fragmento publicado postumamente, que “o capitalismo deve ser entendido como uma religião”. Para Benjamin, o culto ao dinheiro e à produtividade substituiu os antigos rituais religiosos, criando um sistema sem pausa, sem penitência e sem redenção. Essa crítica ecoa em autores contemporâneos como Slavoj Žižek, que apontam o mercado financeiro global como o novo altar de adoração. A conexão entre fé protestante e lógica capitalista foi se consolidando como eixo dominante da modernidade ocidental.
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IMPLICAÇÕES PARA A MODERNIDADE
O pensamento de Weber influenciou profundamente os estudos sobre modernidade, ao sugerir que a secularização do mundo não eliminou a religiosidade, mas a transformou em práticas econômicas e políticas. A racionalidade instrumental, típica do capitalismo moderno, manteve o espírito de disciplina e vigilância moral oriundo da tradição protestante. Para o filósofo Charles Taylor, o protestantismo contribuiu para a construção de um “eu disciplinado”, voltado à produtividade e ao controle dos desejos, em detrimento de formas mais coletivas de espiritualidade.
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CONTESTAÇÕES NO SÉCULO XX
Apesar da hegemonia protestante nos países anglófonos, movimentos teológicos e sociais surgiram para questionar essa aliança com o capital. A Teologia da Libertação, na América Latina, e as igrejas negras nos EUA propuseram leituras alternativas, focadas na justiça social e na crítica ao imperialismo econômico. Segundo o teólogo James Cone, o cristianismo não pode ser cúmplice da opressão. Esse retorno ao evangelho da partilha representa uma tentativa de resgatar a dimensão ética e transformadora do cristianismo, perdida nas engrenagens do capital.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Max Weber, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (1905)
Jacques Ellul, A Subversão do Cristianismo (1984)
Walter Benjamin, O Capitalismo como Religião (1985)
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4. MÜNTZER E LUTERO: A BÍBLIA COMO CAMPO DE BATALHA POLÍTICO
A disputa entre Lutero e Müntzer foi mais que teológica; foi a disputa por duas interpretações políticas da Bíblia. Enquanto Lutero dizia que o cristão devia obedecer às autoridades, mesmo que injustas, pois “o poder vem de Deus” (Romanos 13), Müntzer invocava o Apocalipse e os profetas do Antigo Testamento como anúncio de justiça revolucionária. Para ele, os governantes deviam ser depostos se não cumprissem o mandamento do amor ao próximo. O filósofo Ernst Bloch, em Thomas Müntzer, Teólogo da Revolução, escreveu que Müntzer foi um dos primeiros a unir fé e luta revolucionária contra as estruturas de dominação. A repressão brutal a seus seguidores, que incluíam mulheres e crianças, selou a tentativa de um cristianismo revolucionário nos moldes de Jesus.
DUAS INTERPRETAÇÕES DA PALAVRA
No início do século XVI, a Reforma Protestante abriu brechas não apenas teológicas, mas políticas e sociais. Lutero e Müntzer, embora ambos reformadores, representaram projetos antagônicos de leitura bíblica. Lutero defendia que o fiel deveria submeter-se às autoridades constituídas, com base em Romanos 13, onde Paulo afirma que “não há autoridade que não venha de Deus”. Já Thomas Müntzer via na Bíblia, especialmente nos textos apocalípticos e proféticos, uma convocação à derrubada de tiranias. Para ele, a justiça divina se realizaria através da ação revolucionária dos pobres.
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A BÍBLIA COMO ESPADA DOS OPRIMIDOS
Müntzer utilizava passagens como o Magnificat (Lucas 1:52–53) e as denúncias dos profetas como Jeremias e Amós para justificar a insurreição camponesa. Segundo o filósofo alemão Ernst Bloch, Müntzer interpretava a Escritura como “chave para a ação histórica dos oprimidos”. Bloch aponta que o teólogo viu no Apocalipse uma revelação política da necessidade de destruir os poderes injustos da Terra. A Bíblia, para Müntzer, era mais que um livro sagrado: era um manual de combate. Ele rejeitava a fé passiva e pregava uma espiritualidade combativa, que envolvia transformar o mundo em nome do Reino de Deus.
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LUTERO E A ORDEM SOCIAL
Lutero, por outro lado, temia as consequências do radicalismo social. Após inicialmente apoiar algumas reivindicações dos camponeses, rompeu com eles durante a Guerra dos Camponeses (1524–1525), condenando sua revolta no panfleto “Contra as Hordas Assassinas e Ladrões de Camponeses”. O reformador alemão declarou que os camponeses deviam ser reprimidos com dureza, defendendo o uso da espada pelos príncipes. Sua aliança com os nobres garantiu proteção à Reforma, mas também marcou um afastamento da base popular. A Bíblia, para Lutero, era instrumento de renovação da fé individual, não de revolução social.
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A GUERRA DOS CAMPONESES
O confronto entre essas visões culminou na chamada Guerra dos Camponeses, o maior levante popular da Europa antes da Revolução Francesa. Mais de 100 mil camponeses foram mortos pelas tropas dos príncipes alemães. Müntzer, que liderou parte da revolta, foi capturado, torturado e executado em 1525. Historiadores como Peter Blickle afirmam que os camponeses não lutavam apenas por condições materiais, mas por um novo mundo inspirado na Bíblia. O programa de doze artigos do movimento, elaborado em 1525, pedia o direito de eleger pastores, o fim de tributos injustos e o acesso comum à terra.
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UMA TEOLOGIA REVOLUCIONÁRIA
Para o teólogo alemão Gerd Theißen, Müntzer foi precursor de uma teologia da libertação avant la lettre. Ele entendia que a fé cristã deveria transformar as relações sociais e denunciar as estruturas de dominação. Ao contrário de Lutero, que mantinha a separação entre Igreja e política, Müntzer afirmava que o Evangelho exigia a construção de um mundo justo. Sua teologia incorporava práticas místicas e apocalípticas, mas sempre com uma dimensão prática: o enfrentamento da opressão concreta.
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AS MULHERES E AS CRIANÇAS NA REVOLTA
Relatos históricos apontam que muitas mulheres e crianças participaram da revolta inspirada por Müntzer. Cronistas da época, como Sebastian Franck, descrevem aldeias inteiras sendo dizimadas pelas tropas imperiais. A repressão foi não apenas militar, mas também teológica: a tentativa de um cristianismo revolucionário foi classificada como heresia e apagada da história oficial da Reforma. Müntzer e seus seguidores foram retratados como fanáticos, embora seu projeto político-social estivesse enraizado na tradição profética da própria Bíblia.
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O LEGADO APAGADO
Thomas Müntzer foi marginalizado na história do protestantismo oficial, mas resgatado por pensadores críticos do século XX. Ernst Bloch, em sua obra sobre Müntzer, destaca que o teólogo encarnava “o lado quente da Reforma”, aquele que buscava, por meio da fé, mudar o mundo. Seu pensamento influenciou movimentos posteriores, como a Teologia da Libertação e setores progressistas das igrejas. A disputa entre Lutero e Müntzer revelou que a Bíblia pode ser tanto instrumento de conservação quanto de transformação, dependendo da leitura e do contexto.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Ernst Bloch, Thomas Müntzer, Teólogo da Revolução (1962)
Peter Blickle, A Revolta dos Camponeses (1975)
Gerd Theißen, A Religião dos Primeiros Cristãos (1997)
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5. HERANÇAS SILENCIADAS: O OUTRO PROTESTANTISMO NA HISTÓRIA
Embora marginalizado, o protestantismo de Müntzer e de outros grupos radicais, como os anabatistas, seguiu influenciando movimentos sociais nos séculos seguintes. As comunidades huteritas, por exemplo, mantêm até hoje um modo de vida comunal, inspirado em Atos dos Apóstolos. Já nos séculos XIX e XX, pensadores como Karl Barth e Dorothee Sölle propuseram um retorno ao Evangelho como denúncia do capitalismo e solidariedade com os pobres. A Teologia da Libertação protestante na América Latina também recupera essa herança. Como afirma o pastor e sociólogo Rubem Alves, “a utopia do Reino de Deus é incompatível com um sistema que faz da desigualdade um princípio”. Entretanto, essa corrente permanece abafada pelas igrejas evangélicas conservadoras que hoje legitimam o neoliberalismo em nome da “prosperidade”.
A TRADIÇÃO RADICAL DA REFORMA
Ao lado da Reforma de Lutero, uma vertente menos institucionalizada buscava reconfigurar radicalmente a fé cristã e a ordem social. Os chamados reformadores radicais, entre eles Thomas Müntzer, os anabatistas e grupos como os huteritas, defendiam o batismo de adultos, a não violência e o compartilhamento de bens. Segundo o historiador Carter Lindberg, esses movimentos colocavam em prática uma leitura comunitária do Novo Testamento, sobretudo inspirada no livro de Atos, onde os primeiros cristãos viviam “tudo em comum”. Por sua proposta igualitária, foram duramente reprimidos tanto por católicos quanto por protestantes.
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HUTERITAS: O CRISTIANISMO COMUNITÁRIO
Os huteritas, seguidores de Jakob Hutter no século XVI, continuam existindo hoje, principalmente nos Estados Unidos e no Canadá, em comunidades fechadas que rejeitam o individualismo moderno. Vivem sem propriedade privada, praticam a agricultura coletiva e tomam decisões por consenso. Segundo o pesquisador John Hostetler, essas comunidades representam uma resistência silenciosa ao capitalismo, inspiradas diretamente nos ensinamentos de Jesus e na prática da igreja primitiva. Apesar da perseguição histórica, sua longevidade revela a persistência de um cristianismo alternativo, centrado na partilha e na simplicidade.
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A TEOLOGIA DO JUÍZO E DA ESPERANÇA
No século XX, o teólogo suíço Karl Barth retomou a crítica ao sistema vigente a partir de uma leitura radical da Bíblia. Escrevendo em meio à ascensão do nazismo, Barth denunciava a aliança entre a igreja oficial e o poder opressor, e chamava os cristãos a resistirem em nome do Reino de Deus. Em sua obra Dogmática Eclesiástica, Barth afirma que “a graça de Deus é incompatível com qualquer dominação que se pretenda absoluta”. Essa posição influenciou diversas correntes teológicas posteriores que viam o Evangelho como anúncio de libertação, não de acomodação.
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A VOZ PROFÉTICA DE DOROTHEE SÖLLE
Dorothee Sölle, teóloga alemã nascida em 1929, aprofundou a crítica teológica ao capitalismo em obras como “Teologia do Socialismo”. Marcada pela experiência da Segunda Guerra Mundial e pela ditadura militar no Chile, Sölle argumentava que a fé cristã exigia uma ação concreta em favor dos pobres. Para ela, Deus está do lado das vítimas da história, e a espiritualidade deve estar unida à prática política. Sölle cunhou o termo “mística da resistência” para descrever um cristianismo engajado, em oposição à teologia conservadora que via na riqueza um sinal de bênção.
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A TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO PROTESTANTE
Na América Latina, a partir da década de 1970, surgiu uma vertente protestante da Teologia da Libertação, especialmente entre igrejas luteranas e metodistas. Um dos principais nomes foi o pastor e educador Rubem Alves, que propôs uma releitura do Evangelho centrada na utopia e na esperança. Para Alves, “a religião deve ser uma força de transformação e não de conformismo”. Essa corrente dialogava com os movimentos sociais, o marxismo e a pedagogia de Paulo Freire. Embora menos divulgada que a vertente católica, teve papel importante na luta por justiça social e direitos humanos.
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O EVANGELHO CONTRA O NEOLIBERALISMO
Pesquisadores como Franz Hinkelammert e Nancy Cardoso apontam que muitas igrejas evangélicas na América Latina abandonaram essa tradição profética. A chamada teologia da prosperidade, popularizada nos anos 1990, transformou a fé cristã em uma legitimação do sucesso econômico individual. Essa doutrina, influenciada pelo modelo norte-americano, ganhou força em igrejas pentecostais e neopentecostais, muitas vezes apoiando políticas neoliberais. Em contraste, a teologia radical denuncia que a desigualdade não é vontade divina, mas estrutura de pecado coletivo.
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UM LEGADO RESISTENTE
Apesar da marginalização institucional, o protestantismo alternativo continua vivo em comunidades, movimentos e redes de fé engajada. Coletivos como o “Cristianismo e Justiça” na Espanha, as igrejas do Sínodo Evangélico na Colômbia e grupos ecumênicos no Brasil mantêm viva a tradição de um Evangelho comprometido com os pobres. Em 2017, por ocasião dos 500 anos da Reforma, várias iniciativas buscaram resgatar essa memória silenciada. Para historiadores como Leonardo Boff, trata-se de redescobrir um cristianismo que não apenas interpreta o mundo, mas quer transformá-lo.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Dorothee Sölle, Mística e Resistência (1991)
Carter Lindberg, A Reforma Protestante (1996)
Rubem Alves, A Teologia como Política (1981)
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Nos dias atuais, o protestantismo — especialmente na América Latina e nos Estados Unidos — é amplamente identificado com políticas conservadoras, apoio a projetos neoliberais e a defesa da propriedade privada como direito sagrado. O “evangelho da prosperidade”, pregado por muitos pastores midiáticos, transforma a fé em mercadoria e a pobreza em maldição. Para estudiosos como Nancy Fraser e Boaventura de Sousa Santos, essa fusão entre religião e capitalismo representa uma captura dos símbolos cristãos pela lógica do mercado. A memória de Müntzer, das comunidades camponesas, de um cristianismo anticapitalista baseado na partilha, no cuidado e na justiça, continua viva apenas em poucos círculos acadêmicos e religiosos. Retomar essa história é, como disse Leonardo Boff, “fazer da fé uma força de libertação, não de dominação”.
O EVANGELHO COMO PRODUTO
A expansão do chamado “evangelho da prosperidade” nas últimas décadas transformou radicalmente a paisagem religiosa protestante, especialmente nas Américas. Pregadores televisivos e líderes de megatemplos passaram a associar a fé cristã ao sucesso financeiro, vendendo bênçãos e promessas de ascensão econômica em troca de dízimos e ofertas generosas. Segundo a pesquisadora brasileira Magali do Nascimento Cunha, essa teologia interpreta a fé como um investimento, onde a obediência e a generosidade do fiel resultariam em retorno material. A pobreza, nesse contexto, torna-se sinal de fracasso espiritual, rompendo com a tradição bíblica de solidariedade e compaixão pelos marginalizados.
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FUSÃO ENTRE DEUS E MERCADO
Para a filósofa norte-americana Nancy Fraser, esse processo faz parte de uma captura ideológica dos símbolos religiosos pela racionalidade neoliberal. Em textos como “O Velho é Novo de Novo”, Fraser argumenta que a religião deixa de ser um espaço de resistência e torna-se ferramenta de legitimação de políticas econômicas excludentes. A fé, domesticada pelo mercado, passa a reforçar estruturas de poder ao invés de questioná-las. Esse fenômeno tem especial impacto na América Latina, onde o discurso religioso é mobilizado para sustentar reformas trabalhistas, cortes sociais e privatizações.
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NEOLIBERALISMO E TEOLOGIA DA PROSPERIDADE
Estudos do sociólogo Ricardo Mariano mostram que o crescimento das igrejas neopentecostais no Brasil está intimamente ligado à ascensão do ideário neoliberal nos anos 1990. Durante os governos de Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso, essas igrejas cresceram rapidamente, oferecendo aos fiéis uma mensagem de superação individual que coincidia com os valores do mercado. O discurso da meritocracia e da autosuficiência ganhou destaque nos púlpitos, em contraste com a tradição bíblica de justiça coletiva. Pesquisas recentes apontam que o apoio evangélico a candidaturas conservadoras está diretamente associado a esse ethos econômico.
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A MEMÓRIA SILENCIADA DE MÜNTZER
Enquanto isso, heranças religiosas que uniam fé e luta social seguem sendo marginalizadas. A figura de Thomas Müntzer, teólogo e líder camponês do século XVI, quase desapareceu da narrativa oficial da Reforma. Em “Thomas Müntzer, Teólogo da Revolução”, Ernst Bloch destaca que Müntzer via o cristianismo como uma convocação à transformação radical do mundo, e não à submissão. Suas ideias influenciaram movimentos anticapitalistas nos séculos seguintes, mas hoje são quase desconhecidas fora de círculos acadêmicos. A memória de suas propostas, baseadas em partilha, igualdade e resistência, contrasta com o atual discurso dominante entre evangélicos midiáticos.
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UM DEUS DE DIREITA?
Nos Estados Unidos, o alinhamento de grandes setores protestantes com a direita política consolidou-se ao longo do século XX. A chamada “Direita Cristã” ganhou força a partir da década de 1970, com figuras como Jerry Falwell e Pat Robertson, que viam o liberalismo moral e o Estado de bem-estar social como ameaças à fé. Essa agenda foi exportada para a América Latina, onde muitas igrejas adotaram posições ultraconservadoras em temas como gênero, sexualidade e economia. O teólogo Philip Gorski, da Universidade Yale, afirma que a religiosidade cristã foi, em muitos casos, “reconfigurada para servir ao nacionalismo branco e ao capitalismo selvagem”.
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RESISTÊNCIAS ECUMÊNICAS
Apesar do domínio do discurso neoliberal nas igrejas evangélicas, há iniciativas que tentam recuperar a dimensão libertadora do cristianismo. No Brasil, projetos como o “Evangelho e Justiça” e a “Rede Cristã de Fé e Política” articulam lideranças evangélicas comprometidas com os direitos humanos, a justiça social e o combate à desigualdade. Em entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos, o teólogo Ronilso Pacheco defende que “o Jesus da Bíblia jamais caberia nas estruturas do mercado ou do racismo estrutural”. Essas vozes minoritárias mantêm viva a possibilidade de uma fé crítica, que confronte os poderes estabelecidos.
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A ESPERANÇA COMO RESISTÊNCIA
Para o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, a luta contra o neoliberalismo passa também por recuperar epistemologias e espiritualidades alternativas. Em “A Cruel Pedagogia do Vírus”, ele afirma que a crise contemporânea é também uma crise espiritual, e que tradições como a do cristianismo anticapitalista podem oferecer caminhos de reconstrução social. Já Leonardo Boff, em obras como “Tempo de Transcendência”, insiste que a espiritualidade libertadora não é um luxo, mas uma necessidade histórica. Recontar a história de Müntzer e dos camponeses da Reforma é resgatar o fio de uma fé que, longe de vender promessas, anunciava a possibilidade concreta de um mundo justo.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Ernst Bloch, Thomas Müntzer, Teólogo da Revolução (1962)
Nancy Fraser, O Velho é Novo de Novo: Capitalismo e Crise de Legitimação (2011)
Leonardo Boff, Tempo de Transcendência: O Novo Espiritualismo (2000)
CONCLUSÃO
A memória de Tomás Müntzer e dos milhares de camponeses que tombaram em nome de um cristianismo comunitário permanece como um espectro incômodo para o modelo religioso hegemônico atual. Ao insistir em que o evangelho não pode ser cúmplice do acúmulo de riquezas, nem se calar diante da fome e da injustiça, Müntzer ressoa como uma das vozes mais autênticas de Jesus no curso da história. Sua derrota política e teológica pavimentou o caminho para um protestantismo adaptado às exigências do capital, mas não apagou a força do ideal que representava: um mundo em que os pobres herdam a terra não apenas como metáfora, mas como realidade concreta.
Enquanto o “evangelho da prosperidade” avança com suas promessas de sucesso pessoal, carros de luxo e contas bancárias gordas como sinônimo de fé verdadeira, ignora-se que a mensagem original de Jesus subverte as lógicas de mercado. O Novo Testamento é repleto de críticas à riqueza, à exploração e ao desprezo pelos necessitados. Retomar a leitura de um cristianismo libertador não é apenas um ato de resgate histórico, mas de compromisso político com os marginalizados. Esse cristianismo não é apenas compatível com o socialismo: ele é, em sua origem, uma forma de vida comunitária que se choca com o individualismo econômico.
Em tempos de avanço do autoritarismo religioso e da mercantilização da fé, recordar os camponeses da Reforma é uma forma de resistência. Seu grito ainda ecoa para quem deseja romper com a aliança entre altar e trono, púlpito e mercado. O protestantismo não precisa ser o berço do neoliberalismo. Ele pode, e já foi, chão fértil para uma revolução moral, espiritual e econômica — enraizada no amor ao próximo, na justiça social e na recusa ao poder opressor. Recuperar esse legado pode ser a chave para reconstruir um cristianismo que realmente siga Jesus.
BIBLIOGRAFIA
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A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo – Max Weber, 1905
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Obra seminal que analisa como a ética do trabalho, promovida pelo protestantismo calvinista, influenciou o desenvolvimento do capitalismo moderno. Weber mostra como a ideia de “vocação” e “predestinação” levou à busca de sinais materiais de salvação, transformando o lucro em virtude.
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Thomas Müntzer, Teólogo da Revolução – Ernst Bloch, 1921
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Bloch retrata Müntzer como uma figura messiânica que tentou instaurar na Terra o Reino de Deus através da revolução social. O livro conecta a fé cristã com as bases do socialismo utópico.
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O Princípio Esperança – Ernst Bloch, 1954
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Nesta obra filosófica monumental, Bloch aprofunda a ideia de utopia como motor da história e mostra como o cristianismo original carregava sementes de um mundo mais justo.
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Teologia da Esperança – Jürgen Moltmann, 1964
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O Reino de Deus é de Todos – Leonardo Boff, 1986
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Cristianismo e Luta de Classes – José Comblin, 1981
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A Religião do Mercado – Harvey Cox, 1999
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Teologia da Libertação e Neoliberalismo – Hugo Assmann, 1992
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Evangelho e Revolução – Rubem Alves, 1984
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Deus na Revolução – Frei Betto, 1998
OS CALENDÁRIOS QUE ORGANIZARAM CIVILIZAÇÕES, RELIGIÕES E IMPÉRIOS AO LONGO DOS MILÊNIOS
Leandro Karnal, A invenção do tempo, 2009, publicada no jornal O Estado de S. Paulo.
Clóvis Rossi, O tempo dos homens e o tempo de Deus, 2013, publicada na Folha de S.Paulo.
Eliane Brum, Quando o tempo nos revela, 2018, publicada na revista Época.
Desde os primeiros passos da civilização, contar o tempo foi uma necessidade que ultrapassou o campo da astronomia e tornou-se fundamento para a organização social, religiosa e política dos povos. Calendários não são apenas instrumentos para marcar datas; são reflexos da maneira como diferentes culturas entendem o mundo, o cosmos e a vida em sociedade. Esta reportagem investiga os dez calendários mais marcantes da história da humanidade, com destaque para seus aspectos científicos, simbólicos e curiosos. Da complexidade do sistema maia à precisão do modelo gregoriano, passando pelo uso religioso do calendário hebraico e pela tradição viva do calendário chinês, percorremos milênios de evolução. Aprofundamos o papel civilizatório de cada um, revelando como o tempo foi moldado de formas distintas e estratégicas, revelando valores, medos e esperanças. Especialistas, historiadores e astrônomos ajudam a construir um retrato denso e fascinante dessa jornada. Ao estudar os calendários, compreendemos não só o passado, mas o modo como diferentes civilizações projetaram seu futuro. Afinal, controlar o tempo sempre foi uma forma de poder.
CONTEÚDOS
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O primeiro ritmo do tempo
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O calendário romano e a herança juliana
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O gregoriano, dominante mundial
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Calendários vivos: hebraico, islâmico e chinês
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Maias, hindus e calendários de outros mundos
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O tempo como construção humana
1. O PRIMEIRO RITMO DO TEMPO
A história dos calendários começa muito antes da escrita, com povos da pré-história observando o ciclo lunar para marcar o tempo. No entanto, o primeiro calendário formalmente estruturado conhecido foi o egípcio, baseado no ciclo solar e na observação da estrela Sírius, cujo surgimento anual coincidia com a cheia do Nilo. A cada 365 dias, o ciclo recomeçava, ainda sem o acréscimo de um dia bissexto. A partir dele, os babilônios, por volta de 2000 a.C., desenvolveram um calendário lunissolar com meses de 29 ou 30 dias e intercalando meses extras para alinhar-se ao ano solar. Segundo Anthony Aveni, historiador da astronomia, “o calendário é um reflexo da cultura que o constrói, e os babilônios tinham uma sociedade agrícola que exigia previsibilidade”.
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A HISTÓRIA MARCADA PELA LUA
Antes da invenção da escrita, povos da pré-história já observavam o céu em busca de padrões que ajudassem a organizar a vida cotidiana. As fases da Lua — cheia, nova, crescente e minguante — tornaram-se o primeiro marcador regular do tempo. Pinturas em cavernas e entalhes em ossos e pedras sugerem que sociedades de caçadores-coletores acompanhavam os ciclos lunares para rastrear a passagem dos dias. Um exemplo é o osso de Ishango, encontrado próximo ao Lago Eduardo, entre Uganda e República Democrática do Congo, com cerca de 20 mil anos, contendo entalhes que alguns arqueólogos interpretam como um possível calendário lunar rudimentar. A regularidade dos 29,5 dias entre luas novas permitiu a essas culturas medir períodos e talvez até prever comportamentos naturais como marés ou ciclos menstruais.
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A CIÊNCIA DOS EGÍPCIOS
Foi no Egito antigo que surgiu o primeiro calendário solar estruturado. Com base em observações astronômicas, os egípcios notaram que o surgimento heliacal da estrela Sírius, no horizonte leste pouco antes do nascer do sol, coincidia com a cheia do rio Nilo — evento crucial para a agricultura da região. Isso levou à formulação de um calendário civil com 365 dias, divididos em 12 meses de 30 dias, mais 5 dias epagômenos (dias fora dos meses). Embora esse calendário não incluísse anos bissextos, sua adoção foi essencial para a administração pública e a regulação dos ciclos agrícolas. Segundo o egiptólogo Richard A. Parker, a precisão e regularidade do calendário solar egípcio influenciaram civilizações posteriores, incluindo gregos e romanos.
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O LEGADO DOS BABILÔNIOS
Na Mesopotâmia, por volta de 2000 a.C., os babilônios desenvolveram um sistema lunissolar que combinava o ciclo lunar com ajustes para acompanhar o ano solar. Cada mês começava com a primeira aparição da Lua crescente, e os meses tinham 29 ou 30 dias. Para evitar o descompasso com as estações, intercalavam um mês extra, prática conhecida como intercalação. A regularidade era vital para as atividades agrícolas, religiosas e administrativas. O historiador Anthony Aveni destaca que “o calendário é um reflexo da cultura que o constrói”, apontando que a necessidade de previsibilidade numa sociedade agrícola motivava tal esforço de sincronização.
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OBSERVAÇÃO CELESTE E PODER
A construção de calendários exigia intensa observação astronômica, frequentemente associada ao poder religioso e político. Sacerdotes astrônomos detinham o conhecimento necessário para prever eclipses, mudanças sazonais e datas de rituais. Nos zigurates da Babilônia e nos templos egípcios, registrava-se o comportamento dos corpos celestes. Segundo o antropólogo Jack Goody, o controle do tempo por meio de calendários era uma forma de exercer domínio simbólico e material sobre a sociedade, pois permitia ordenar o trabalho coletivo e estabelecer datas sagradas.
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DA ASTRONOMIA AO RITUAL
Os calendários não serviam apenas para a agricultura ou para os tributos. Eles organizavam a vida religiosa, marcando datas de festivais, sacrifícios e celebrações. O calendário babilônico, por exemplo, previa festas religiosas ligadas aos ciclos lunares e safras, como o Akitu, festival de ano novo associado à renovação do poder do rei. A relação entre calendário e ritual evidencia como a percepção do tempo era inseparável da cosmologia e da ordem social. O historiador Mircea Eliade aponta que os calendários antigos não apenas marcavam o tempo, mas o “sacralizavam”, transformando a passagem dos dias em uma narrativa sagrada.
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O CALENDÁRIO COMO TECNOLOGIA SOCIAL
A construção de calendários pode ser considerada uma tecnologia social — uma forma de organizar coletivamente a experiência humana no tempo. Conforme destaca o arqueoastrônomo Clive Ruggles, os sistemas calendáricos representam “formas sofisticadas de conhecimento empírico acumulado”, refletindo as necessidades e os valores de diferentes culturas. A previsibilidade dos ciclos, essencial para o plantio e colheita, também regulava a cobrança de impostos, o recrutamento militar e até as atividades judiciais. A partir do Egito e da Babilônia, essa lógica se espalhou por impérios que precisavam coordenar vastos territórios.
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O IMPACTO DURADOURO
A influência desses calendários antigos chega até os dias de hoje. O calendário juliano, introduzido por Júlio César em 45 a.C., baseou-se em parte no modelo egípcio e deu origem ao calendário gregoriano, ainda em uso. A contagem dos meses, a divisão do ano e até algumas festividades têm raízes em tradições babilônicas e egípcias. Pesquisas em história da ciência, como as de Francesca Rochberg, revelam que o legado mesopotâmico em astronomia e cronologia ultrapassou milênios e moldou os modos como sociedades modernas organizam o tempo.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Aveni, Anthony (2001) Imperadores do Tempo: Calendário, Cosmos e Cultura
Goody, Jack (2006) O Poder da Escrita e a Organização do Conhecimento
Rochberg, Francesca (2004) O Céu e o Tempo: Astronomia na Antiga Mesopotâmia
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O calendário romano, predecessor direto do nosso, foi inicialmente lunisolar, com 10 meses e 304 dias, excluindo o inverno. Reformado por Numa Pompílio (715 a.C.) e depois por Júlio César em 46 a.C., o calendário juliano instituiu o ano solar de 365,25 dias, com um dia extra a cada quatro anos (o bissexto). Foi um avanço, mas ainda havia um erro de cálculo de 11 minutos por ano, o que resultou em um desvio de cerca de 10 dias até o século XVI. Essa discrepância motivaria a criação do calendário gregoriano. A influência do modelo romano permanece evidente nos nomes dos meses — como julho e agosto, homenagem aos imperadores — e na divisão do ano em doze meses.
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ORIGENS ESTRUTURAIS DO CALENDÁRIO ROMANO
O calendário original de Roma era profundamente ligado ao ciclo lunar. Segundo registros de autores como Plutarco e Tito Lívio, o primeiro calendário romano tinha 10 meses e apenas 304 dias, iniciando-se em março (Martius) e encerrando-se em dezembro (December). Os dois meses do inverno, período considerado improdutivo, não eram nomeados nem contabilizados. Esse sistema apresentava desafios para a administração pública e religiosa, sendo pouco confiável para eventos agrícolas e cívicos. A instabilidade do calendário refletia a ausência de uma base astronômica sólida e de um sistema regular de intercalação, essencial para alinhar o calendário com as estações do ano.
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A REFORMA DE NUMA POMPÍLIO
Por volta de 715 a.C., o rei Numa Pompílio introduziu reformas que buscavam maior alinhamento com os ciclos naturais. Acrescentaram-se os meses de janeiro (Ianuarius) e fevereiro (Februarius), completando o ciclo de 12 meses. Ainda assim, o ano mantinha apenas 355 dias, exigindo a intercalação de um mês adicional (o Mercedonius) em determinados anos, a critério dos pontífices. O historiador clássico Michael Grant destaca que essa instabilidade permitia manipulação política, pois os pontífices controlavam a inclusão do mês extra, podendo estender ou encurtar mandatos conforme interesses do Senado romano. A ausência de padronização tornou o sistema cada vez mais caótico com o tempo.
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O CALENDÁRIO JULIANO E SUA IMPLEMENTAÇÃO
Diante da crescente desordem, Júlio César, aconselhado pelo astrônomo alexandrino Sosígenes, instituiu em 46 a.C. uma reforma profunda que deu origem ao calendário juliano. Abandonou-se o modelo lunissolar em favor de um ano solar de 365 dias, com a adição de um dia extra a cada quatro anos — o ano bissexto. Para corrigir o descompasso acumulado, o ano de 46 a.C. teve 445 dias, conhecido como "o último ano da confusão". A adoção desse novo sistema foi um marco para a uniformização temporal no vasto território romano. O historiador David Ewing Duncan observa que a decisão de César teve efeitos não apenas administrativos, mas também simbólicos, fortalecendo o poder central por meio do controle do tempo.
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OS NOMES DOS MESES E O LEGADO IMPERIAL
Com a consolidação do calendário juliano, os nomes dos meses ganharam estabilidade, e alguns foram alterados por razões políticas. O mês Quintilis foi renomeado como Julius (julho), em homenagem a Júlio César, e Sextilis transformou-se em Augustus (agosto), em tributo a Augusto, seu sucessor. Ambos os meses receberam ajustes na quantidade de dias, estabelecendo 31 dias para preservar o prestígio das figuras homenageadas. O professor de filologia Werner Keller ressalta que essa denominação perpetuou a memória dos imperadores romanos e contribuiu para naturalizar a autoridade imperial no cotidiano das populações do império.
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O ERRO ACUMULADO E O DESVIO TEMPORAL
Apesar de revolucionário para a época, o calendário juliano continha um pequeno erro de cálculo: o ano solar tem cerca de 365,2422 dias, e não exatamente 365,25 como estimado por Sosígenes. Esse descompasso de 11 minutos por ano gerou um acúmulo de aproximadamente 10 dias até o século XVI. A principal consequência prática foi o deslocamento das datas religiosas, em especial a Páscoa, que depende do equinócio da primavera. O historiador da ciência John North aponta que esse erro só foi identificado com precisão a partir do desenvolvimento da astronomia moderna e da crescente preocupação da Igreja com a precisão litúrgica.
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DA HERANÇA JULIANA AO CALENDÁRIO GREGORIANO
Para corrigir o desvio acumulado, o papa Gregório XIII instituiu o calendário gregoriano em 1582. O novo sistema suprimiu 10 dias do calendário — passando do dia 4 de outubro diretamente para 15 de outubro — e ajustou a regra dos anos bissextos, excluindo-os nos anos múltiplos de 100, exceto os divisíveis por 400. Apesar da adoção inicial nos países católicos, sua disseminação pelo mundo foi gradual. A reforma gregoriana manteve a estrutura de 12 meses e os nomes herdados de Roma, preservando, assim, a base cultural e administrativa do calendário juliano.
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A ESTRUTURA MODERNA E SEUS ECOS ANTIGOS
O calendário em vigor atualmente carrega, em sua estrutura, os resquícios do sistema romano e da reforma juliana. A ordem dos meses, a quantidade de dias e a própria lógica de organização anual são fruto da sucessão de reformas iniciadas por Numa e culminadas por Júlio César. Mesmo em sociedades modernas e seculares, a presença de nomes como março (em homenagem a Marte) e janeiro (dedicado a Janus) evidencia como mitologia, política e ciência moldaram o modo como a humanidade mede o tempo. A cronologia ocidental, embora racionalizada, continua ancorada em construções simbólicas herdadas da Roma Antiga.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Grant, Michael (2001) O Mundo Clássico: A Vida e a Cultura na Grécia e Roma Antigas
Duncan, David Ewing (1998) O Calendário: A História da Nossa Longa Obsessão com o Tempo
North, John (2008) Cosmos: Uma História da Astronomia de Ptolomeu a Newton
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3. O GREGORIANO, DOMINANTE MUNDIAL
Promulgado em 1582 pelo papa Gregório XIII, o calendário gregoriano ajustou o erro do juliano ao eliminar 10 dias e redefinir os anos bissextos (suprimindo os múltiplos de 100, exceto os divisíveis por 400). Essa precisão fez com que fosse adotado gradualmente pelo mundo cristão e, mais tarde, por outras nações por conveniência comercial e diplomática. Hoje, é o calendário oficial da maioria dos países. Para o astrônomo britânico Derek Howse, esse modelo “foi menos uma inovação astronômica e mais uma reforma religiosa que moldou o calendário ocidental com eficiência surpreendente”. Curiosamente, países como a Rússia só o adotaram no século XX, e a Etiópia ainda segue um calendário próprio.
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A CRISE DO CALENDÁRIO JULIANO
Ao final da Idade Média, o desvio acumulado no calendário juliano em relação ao ano solar já ultrapassava dez dias, afetando diretamente o calendário litúrgico, sobretudo a data da Páscoa, fixada em relação ao equinócio da primavera. A Igreja Católica, percebendo o impacto sobre a precisão religiosa e astronômica, iniciou um processo de reforma liderado por estudiosos como Luigi Lilio e Christopher Clavius. O projeto visava alinhar o calendário civil ao ciclo solar real, baseando-se em novos cálculos astronômicos produzidos durante o Renascimento. A iniciativa resultaria em uma das mais significativas intervenções temporais da história.
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A REFORMA DO PAPA GREGÓRIO XIII
Em 1582, o papa Gregório XIII promulgou a bula Inter gravissimas, instituindo oficialmente o calendário gregoriano. O novo sistema eliminou 10 dias do calendário — passando de 4 para 15 de outubro — e introduziu uma nova regra para os anos bissextos: os múltiplos de 100 deixaram de ser bissextos, salvo os divisíveis por 400. A proposta corrigia o erro de 11 minutos anuais do calendário juliano, reduzindo a discrepância a menos de um dia a cada 3.000 anos. Para o astrônomo Derek Howse, autor de Greenwich Time and the Longitude, o gregoriano foi “uma reforma religiosa com eficácia astronômica surpreendente”.
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RESISTÊNCIA E ADOÇÃO NO MUNDO CRISTÃO
A adoção do novo calendário não foi imediata nem uniforme. Países católicos como Espanha, Portugal e Itália implementaram a reforma logo em 1582, enquanto nações protestantes, como Inglaterra e Suécia, resistiram, vendo nela uma imposição papal. A Inglaterra só adotaria o calendário em 1752, momento em que já era necessário eliminar 11 dias. O historiador E.G. Richards ressalta que, na Grã-Bretanha, a mudança gerou revolta popular, com protestos registrados sob o slogan “Devolvam-nos nossos onze dias”. A transição teve implicações diretas em registros históricos, contratos e celebrações religiosas.
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IMPLICAÇÕES CIENTÍFICAS E POLÍTICAS
A padronização do calendário gregoriano contribuiu para o avanço das ciências naturais e para a unificação administrativa entre as nações. A adoção de um sistema comum de contagem dos dias permitiu maior confiabilidade nos registros astronômicos, meteorológicos e históricos. No campo político, a convergência temporal facilitou as relações diplomáticas e comerciais. Como observa o cientista francês Jacques Le Goff, “o controle do tempo é também uma forma de poder”, e o calendário gregoriano consolidou a centralidade europeia nas práticas temporais globais durante a expansão colonial.
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RESISTÊNCIAS SECULARES E IDENTITÁRIAS
Apesar da difusão global, algumas culturas mantiveram sistemas próprios. A Rússia só adotou o calendário gregoriano em 1918, após a Revolução Bolchevique, substituindo o juliano por razões práticas e ideológicas. A Grécia aderiu em 1923. Já a Etiópia, que utiliza um calendário derivado do copta, ainda conserva um ano com 13 meses, sete a oito anos atrás do calendário ocidental. Para o antropólogo Emmanuel Todd, esses sistemas paralelos revelam como o tempo também serve como elemento de identidade cultural e resistência simbólica à hegemonia ocidental.
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O CALENDÁRIO COMO CONVENÇÃO GLOBAL
No século XX, o gregoriano tornou-se o padrão temporal internacional, adotado pela maioria dos países como calendário civil oficial. Sua presença é dominante em registros legais, transações comerciais, sistemas escolares e planejamentos públicos. Embora outras tradições coexistam — como o calendário islâmico, o hebraico e o chinês, ainda utilizados em contextos religiosos ou cerimoniais —, o gregoriano é a base dos sistemas organizacionais modernos. A Organização das Nações Unidas e instituições multilaterais também o utilizam como referência oficial em suas atividades.
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CONTINUIDADE E QUESTIONAMENTOS
Mesmo consolidado, o calendário gregoriano não está isento de críticas e propostas de revisão. Projetos como o Calendário Mundial e o Calendário Permanente Internacional sugerem reorganizações mais racionais, com semanas e meses simétricos, mas enfrentam resistência pela força da tradição. O astrônomo Cesare Emiliani propôs, ainda no século XX, o uso da escala de Tempo Holoceno, adicionando 10 mil anos à cronologia atual, para refletir melhor a presença humana na Terra. Nenhuma dessas alternativas, no entanto, superou a inércia institucional e cultural do sistema gregoriano.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Richards, E.G. (2001) Mapeando o Tempo: A História do Calendário e sua Influência nas Civilizações
Howse, Derek (1997) Tempo de Greenwich e a Longitude
Le Goff, Jacques (1990) O Nascimento do Purgatório
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4. CALENDÁRIOS VIVOS: HEBRAICO, ISLÂMICO E CHINÊS
O calendário hebraico, usado por judeus para fins religiosos, é lunissolar e combina ciclos lunares com ajustes solares, com anos comuns de 12 meses e anos embolísmicos de 13 meses. A contagem parte da suposta criação do mundo, em 3761 a.C. O islâmico, por sua vez, é totalmente lunar, com anos de 354 dias e meses que se movem pelas estações — o que explica o Ramadã ocorrer em épocas diferentes a cada ano solar. Já o chinês, também lunissolar, é marcado por ciclos de 60 anos e pelos famosos signos do zodíaco. Ele orienta datas de casamentos, negócios e festividades, como o Ano Novo Chinês. Esses calendários continuam vivos e praticados por bilhões, mostrando que o tempo também é identidade cultural.
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O TEMPO JUDAICO E A CRIAÇÃO DO MUNDO
O calendário hebraico é um sistema lunissolar utilizado majoritariamente em contextos religiosos e culturais por comunidades judaicas ao redor do mundo. Sua contagem de anos tem como marco a criação do mundo segundo a tradição bíblica, datada em 3761 a.C., e seu ano novo, o Rosh Hashaná, ocorre geralmente em setembro. O calendário alterna entre anos comuns de 12 meses e anos embolísmicos de 13 meses, com a inserção do mês de Adar II em sete dos 19 anos do ciclo metônico. Essa complexidade busca manter as festividades judaicas em harmonia com as estações do ano. Segundo o historiador Sacha Stern, da Universidade de Londres, essa adaptação “representa uma engenharia temporal sofisticada com raízes na Antiguidade”.
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A LUNARIDADE DO MUNDO ISLÂMICO
O calendário islâmico, também conhecido como Hijri, segue estritamente os ciclos da Lua. Com 12 meses lunares de 29 ou 30 dias, ele resulta em um ano de 354 ou 355 dias — cerca de 11 dias a menos que o calendário solar. Não há correções sazonais, o que faz com que os meses islâmicos deslizem por todas as estações ao longo de um ciclo de aproximadamente 33 anos solares. A contagem começa no ano da Hégira (622 d.C.), quando o profeta Maomé migrou de Meca para Medina. A determinação das datas religiosas, como o Ramadã e o Eid al-Fitr, é feita por observações lunares locais. O islamólogo Reza Aslan observa que “o calendário islâmico reflete a primazia da revelação e da observação direta da natureza sobre sistemas matemáticos”.
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O SISTEMA CHINÊS DE CICLOS E SIGNOS
O calendário chinês, em uso há mais de 2.000 anos, é lunissolar e estruturado em ciclos sexagenários — combinação de dez troncos celestiais e doze ramos terrestres, que incluem os doze animais do zodíaco. Cada mês começa com a lua nova e o ano novo varia entre o fim de janeiro e meados de fevereiro. A cada dois ou três anos, um mês lunar adicional é inserido para compensar a defasagem com o ano solar. Esse calendário é usado para definir datas auspiciosas de casamento, negócios, funerais e celebrações, como o Festival da Primavera. O antropólogo Laurence Ma, da Universidade de Hong Kong, destaca que “mais que medição do tempo, o calendário chinês é uma linguagem simbólica da harmonia entre o céu, a terra e os seres humanos”.
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SOBREVIVÊNCIA EM CONTEXTOS SECULARES
Mesmo com a hegemonia do calendário gregoriano em instituições governamentais e comerciais, os calendários hebraico, islâmico e chinês mantêm vitalidade em contextos religiosos, culturais e comunitários. Em Israel, o calendário hebraico coexiste oficialmente com o gregoriano, sendo usado em documentos legais e feriados públicos. Em países de maioria islâmica, como Arábia Saudita e Irã, o calendário islâmico é referência para eventos oficiais. Já na China, o calendário tradicional influencia amplamente o cotidiano, apesar da adoção formal do calendário ocidental desde 1912. Essa coexistência evidencia a pluralidade temporal presente nas sociedades contemporâneas.
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CONEXÃO COM RITMOS NATURAIS
Os três calendários vivos partilham uma conexão direta com os ritmos da natureza, especialmente os ciclos lunares. Essa característica confere a eles uma sensibilidade ecológica ausente em calendários solares puros. No caso do calendário hebraico, por exemplo, o mês de Nissan, que marca a Páscoa judaica, está vinculado à primavera no hemisfério norte. No mundo islâmico, o jejum do Ramadã acompanha as fases lunares, reforçando a dimensão espiritual da observação do céu. E no calendário chinês, as estações e os elementos naturais são parte essencial da escolha de datas para eventos pessoais e sociais.
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UMA DIMENSÃO IDENTITÁRIA DO TEMPO
Além de sua função cronológica, esses calendários funcionam como marcadores de identidade cultural e religiosa. Eles estruturam narrativas coletivas, memórias e modos de vida que se distinguem dos paradigmas ocidentais. O historiador israelense Yuval Noah Harari aponta que “controlar o tempo é uma forma de contar a história — e quem escolhe o calendário escolhe o começo do mundo”. O uso contínuo desses sistemas reforça um pertencimento ancestral, expressando cosmovisões próprias. Em comunidades da diáspora judaica, muçulmana e chinesa, as festividades guiadas por seus calendários reforçam vínculos de continuidade cultural entre gerações.
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TEMPOS PARALELOS EM UM MUNDO GLOBAL
Em um mundo marcado por globalização, esses calendários vivos demonstram que a organização do tempo não é universal, mas produto de construções históricas e culturais diversas. A coexistência de múltiplos sistemas calendáricos revela que o tempo é também um campo de disputa simbólica. Enquanto o gregoriano se consolidou como padrão global, os calendários hebraico, islâmico e chinês seguem operando como alternativas legítimas e enraizadas. Para a historiadora Lynn Hunt, “os calendários alternativos não são vestígios do passado, mas expressões vibrantes de diferentes formas de estar no mundo”.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Stern, Sacha (2001) Calendário e Comunidade: Um Estudo do Tempo Judaico
Aslan, Reza (2005) Não Há Deus Além de Deus: A Origem, Evolução e Futuro do Islã
Hunt, Lynn (2007) A Invenção do Tempo Moderno: O Século XVIII e a Criação da História
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5. MAIAS, HINDUS E CALENDÁRIOS DE OUTROS MUNDOS
Os maias criaram um dos calendários mais sofisticados da história antiga, o Tzolk’in, de 260 dias, e o Haab’, de 365 dias, interligados no chamado Ciclo de Calendário Redondo, além da Contagem Longa, que permite datar eventos em milhares de anos. Eles tinham um entendimento astronômico refinado, segundo Michael Coe, arqueólogo e especialista em Mesoamérica. Já os hindus utilizam vários calendários regionais baseados no movimento lunar e solar, como o Vikram Samvat e o Shaka Samvat, ambos usados na Índia contemporânea para fins religiosos e administrativos. A diversidade revela que cada civilização moldou seu modo de entender o tempo segundo o céu que observava.
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A ENGENHARIA TEMPORAL MAIA
Os maias desenvolveram um dos sistemas calendáricos mais complexos da Antiguidade, combinando observações astronômicas rigorosas com cálculos matemáticos avançados. Três calendários se destacam: o Tzolk’in, de 260 dias, usado para fins rituais; o Haab’, de 365 dias, que regulava o ciclo solar agrícola; e a Contagem Longa, que permitia datar eventos em períodos superiores a 5 mil anos. Essa estrutura possibilitava calcular não apenas datas passadas, mas projeções futuras. O arqueólogo Michael D. Coe, em suas pesquisas na região de Copán, destacou que “os maias tinham um conceito cíclico do tempo, onde cada evento cósmico era parte de uma engrenagem divina”.
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TZOLK’IN E HAAB’: CALENDÁRIOS CRUZADOS
O Tzolk’in, com seus 20 nomes de dias combinados a 13 números, produzia um ciclo de 260 dias sem equivalente exato no calendário solar. Já o Haab’, com 18 meses de 20 dias mais um período de 5 dias chamados de Uayeb — considerado de má sorte — formava um ano solar aproximado. A interseção dos dois gerava o Ciclo de Calendário Redondo, de 52 anos, fundamental para os cerimoniais religiosos. A cada fim de ciclo, realizavam-se rituais de renovação para evitar o fim do mundo conhecido. A mesoamericanista Linda Schele ressaltou que “a precisão dos cálculos dos maias rivalizava com a dos astrônomos modernos, mesmo sem telescópios”.
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A CONTAGEM LONGA E O TEMPO CÓSMICO
A Contagem Longa é um sistema posicional vigesimal, onde cada posição representa multiplicações sucessivas de 20 (exceto a terceira, multiplicada por 18, para alinhar com o ano solar). Esse sistema permitia aos maias registrar datas em longos períodos históricos. A chamada data zero corresponde ao ano 3114 a.C., segundo a correlação mais aceita entre calendários. O fim de um grande ciclo em 21 de dezembro de 2012 causou comoção mundial, erroneamente interpretado como previsão de apocalipse. Arqueólogos como David Stuart, da Universidade do Texas, reiteraram que o evento era “apenas o reinício de um ciclo, como virar o odômetro de um carro”.
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CALENDÁRIOS HINDUS: DIVERSIDADE E CONTINUIDADE
Na Índia, o tempo é regulado por diversos calendários tradicionais, alguns solares, outros lunares ou lunissolares. Entre os principais estão o Vikram Samvat, criado no século I a.C., e o Shaka Samvat, adotado oficialmente pelo governo indiano desde 1957. O Vikram Samvat é usado principalmente no norte da Índia e Nepal, enquanto o Shaka Samvat predomina no sul e em contextos administrativos. Ambos seguem complexas regras de inserção de meses intercalados (adhik maas) para sincronizar com o ano solar. Segundo o sociólogo Arvind Sharma, “os calendários hindus são expressões regionais de uma cosmovisão sagrada do tempo”.
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RITUAIS, FESTAS E O TEMPO SAGRADO
Os calendários hindus não são apenas instrumentos de marcação do tempo, mas guias para festivais religiosos, jejuns, casamentos e peregrinações. Datas como Diwali, Holi ou o Kumbh Mela são fixadas segundo os alinhamentos astronômicos indicados pelos panchangams — almanaques religiosos baseados em observações solares e lunares. Os sacerdotes hindus utilizam esses sistemas para orientar decisões importantes na vida dos fiéis. A astrônoma Radhika Ramachandran, do Instituto Indiano de Astrofísica, explica que “o tempo, nos calendários hindus, é antes de tudo uma manifestação do dharma — a ordem cósmica e moral do universo”.
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RAÍZES ANTIGAS, USOS ATUAIS
Apesar da adoção do calendário gregoriano em instâncias oficiais, os sistemas hindus e maias continuam vivos. No sul do México e na Guatemala, comunidades maias seguem usando o Tzolk’in para determinar datas de batismos, casamentos e plantio. Na Índia, milhões de pessoas organizam seu cotidiano segundo os calendários tradicionais, coexistindo com o calendário ocidental. O uso dessas estruturas revela não apenas continuidade cultural, mas também resistência simbólica diante da padronização temporal global. O antropólogo Claude Lévi-Strauss apontava que “os calendários antigos são menos um registro do tempo e mais uma maneira de habitá-lo”.
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ASTRONOMIA E MATEMÁTICA PARALELAS
Tanto maias quanto hindus desenvolveram cálculos astronômicos sofisticados sem os aparatos modernos da ciência ocidental. As observações lunares, eclipses e posições planetárias foram integradas em calendários que serviam tanto à agricultura quanto à religião. Textos como o Surya Siddhanta, do século IV, detalham equações precisas sobre o movimento solar. Já os códices maias, como o de Dresden, preveem eclipses com impressionante acurácia. Pesquisadores como Anthony Aveni consideram que esses sistemas revelam “civilizações que não apenas contavam o tempo, mas compreendiam sua mecânica celeste”.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Coe, Michael D. (1999) Os Maias
Aveni, Anthony (2001) Astronomia Antiga: O Céu e os Povos do Mundo
Sharma, Arvind (2005) Tempo e Tradição na Índia Antiga
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6. O TEMPO COMO CONSTRUÇÃO HUMANA
Cada calendário reflete mais do que uma técnica de contagem de dias: ele revela cosmovisões, valores religiosos, políticas de poder e prioridades sociais. O historiador David Christian, em Maps of Time (2005), argumenta que “a unificação do tempo com o calendário gregoriano serviu à globalização, mas também apagou muitas formas locais de marcar o tempo”. O estudo comparado dos calendários — egípcio, babilônico, romano, gregoriano, hebraico, islâmico, chinês, maia, hindu e etíope — nos mostra que o tempo é também linguagem, memória e símbolo de humanidade. Conhecê-los é, portanto, uma forma de viajar entre as civilizações que nos precederam e ainda nos inspiram.
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TEMPO COMO LINGUAGEM CULTURAL
O tempo, em suas múltiplas formas de medição, sempre foi mais do que um sistema de marcação: trata-se de uma linguagem simbólica enraizada em crenças, ciclos naturais e necessidades sociais. Segundo o antropólogo Jack Goody, o calendário é uma “tecnologia da organização da vida”, cuja função vai além da contagem — ele estrutura o cotidiano, ritualiza os momentos marcantes e molda as relações sociais. Cada cultura construiu sua maneira de ler o céu e traduzir em datas suas práticas e mitos, o que confere aos calendários um papel de espelho das civilizações.
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OS CALENDÁRIOS DA ANTIGUIDADE
Na Antiguidade, egípcios usavam um calendário solar de 365 dias, antecipando o modelo ocidental. Babilônios adotaram um sistema lunissolar com meses ajustados por ciclos intercalados, influenciando gregos e romanos. O calendário romano, reformado por Júlio César em 46 a.C., deu origem ao calendário juliano, que por sua vez foi corrigido por Gregório XIII em 1582, originando o atual calendário gregoriano. Cada transição reflete um esforço de poder político e domínio sobre a organização do tempo. O historiador Paul Boyer aponta que “controlar o calendário é também controlar a narrativa da história”.
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CALENDÁRIO GREGORIANO E GLOBALIZAÇÃO
O calendário gregoriano tornou-se o padrão global por razões econômicas, diplomáticas e religiosas. Sua adoção facilitou o comércio internacional e os acordos políticos entre nações cristãs da Europa. Países como Japão, China e Turquia só o adotaram oficialmente no século XX. O historiador David Christian, em Maps of Time, argumenta que “a unificação temporal serviu à expansão colonial e comercial, apagando tempos locais e impondo uma cronologia eurocêntrica”. A globalização, nesse sentido, implicou não só um modelo econômico, mas também um padrão de temporalidade ocidentalizado.
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COSMOVISÕES RELIGIOSAS DO TEMPO
Os calendários religiosos mantêm sistemas alternativos ao gregoriano. O calendário hebraico, por exemplo, data a criação do mundo em 3761 a.C. e regula rituais como o Yom Kippur e o Pessach. O islâmico inicia sua contagem com a Hégira (622 d.C.) e estrutura eventos como o Ramadã. O calendário hindu ajusta práticas religiosas a posições lunares e solares. O etíope, ainda em uso oficial na Etiópia, segue sete anos atrás do calendário ocidental. Cada um reflete uma forma distinta de viver o tempo, vinculando cronologia a identidade espiritual e memória coletiva.
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CALENDÁRIOS E POLÍTICA DO TEMPO
Além da religião, calendários serviram como instrumentos políticos. A Revolução Francesa, por exemplo, tentou implantar um calendário revolucionário baseado na razão, com semanas de dez dias e novos nomes para os meses. Já os soviéticos experimentaram o calendário revolucionário soviético entre 1929 e 1940. Essas tentativas mostram como a concepção do tempo pode ser usada para romper com tradições e estabelecer novas formas de poder. O sociólogo Norbert Elias destaca que “o controle social do tempo é tão fundamental quanto o controle dos corpos”.
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RESISTÊNCIA TEMPORAL E CALENDÁRIOS VIVOS
Apesar da padronização gregoriana, diversas culturas continuam mantendo seus calendários paralelos. O Ano Novo Chinês é celebrado com base no calendário lunissolar chinês; comunidades judaicas e islâmicas seguem marcando festas sagradas por seus próprios sistemas. Na Guatemala, o calendário maia Tzolk’in ainda orienta cerimônias entre grupos indígenas. Essas práticas representam formas de resistência simbólica, afirmando modos próprios de compreender a realidade. Para a historiadora Silvia Federici, “o tempo do capital não substitui completamente os tempos do corpo, da terra e da memória ancestral”.
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TEMPO COMO PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE
O estudo comparado dos calendários revela uma pluralidade de modos de existência no tempo. Para além de uma sequência linear de dias, os calendários são construções sociais, cosmovisões encarnadas em tabelas e cerimônias. Entendê-los como patrimônio imaterial da humanidade permite valorizar a diversidade de experiências temporais e refletir sobre os limites da cronologia dominante. O antropólogo Alfred Gell observou que “o tempo é uma arte cultural, não um dado universal da natureza”. Viajar por esses calendários é, portanto, visitar formas distintas de estar no mundo.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Christian, David (2005) Mapas do Tempo
Goody, Jack (2006) A Domesticação do Pensamento Selvagem
Elias, Norbert (1988) Sobre o Tempo
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CONCLUSÃO
O estudo dos calendários revela que o tempo não é uma constante absoluta, mas uma convenção profundamente enraizada nas culturas que o organizam. Se o calendário gregoriano triunfou no mundo moderno por sua precisão e utilidade política, outros sistemas sobreviveram justamente por expressarem a identidade de seus povos. O calendário judaico marca o ciclo das festas religiosas com exatidão; o islâmico sustenta o ritmo das orações e jejuns em toda a umma; o chinês rege não apenas feriados, mas decisões pessoais e comunitárias. São práticas temporais que resistem à padronização, mantendo vivo um patrimônio imaterial essencial.
Em um planeta globalizado, onde o relógio dita ritmos industriais e financeiros, a diversidade dos calendários desafia o monopólio ocidental sobre a organização do tempo. Cada calendário que persiste é um grito de autonomia cultural. Além disso, eles nos ensinam que tempo é mais do que produção: é memória, mito, ciclo e cuidado. Aprender com os calendários antigos é resgatar sabedorias enterradas sob o concreto da cronologia moderna.
Por isso, compreender os calendários da humanidade não é apenas uma incursão pela história científica ou pela astronomia antiga — é um convite a refletir sobre as formas como vivemos e nos orientamos no tempo. A busca por sentido nas datas, nas estações e nas festividades demonstra o quanto o tempo foi e ainda é um elo entre o humano e o sagrado. O que cada civilização fez com o tempo, diz muito sobre o que ela esperava do futuro.
BIBLIOGRAFIA
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Mapas do Tempo: Uma Introdução à Grande História – David Christian, 2005
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O autor traça uma narrativa ampla da história do universo, incluindo a invenção dos calendários como uma das formas humanas de dar sentido ao tempo e conectar eventos em escalas astronômicas e sociais.
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Impérios do Tempo: Calendários, Relógios e Culturas – Anthony Aveni, 2002
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Explora como diferentes civilizações desenvolveram métodos únicos de medir o tempo, analisando as implicações culturais e espirituais de seus calendários.
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O Tempo e os Calendários – Eviatar Zerubavel, 1982
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Um estudo sociológico sobre como os calendários moldam a experiência coletiva do tempo nas sociedades humanas.
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O Tempo Sagrado: Calendários Religiosos e as Estruturas do Tempo – Michael North, 1997
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História do Tempo – Stephen Hawking, 1988
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Calendários Antigos do Mundo – Sasha Newborn, 2010
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Tempo e Cultura – Norbert Elias, 1992
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Medindo o Tempo com os Maias – Prudence M. Rice, 2007
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O Relógio Cósmico – Paul Davies, 1996
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O Calendário e a Consciência – Mircea Eliade, 1974
Aveni, Anthony. Empires of Time: Calendars, Clocks, and Cultures. Tauris Parke, 2002.
Coe, Michael D. The Maya. Thames & Hudson, 2015.
Howse, Derek. Greenwich Time and the Discovery of the Longitude. Oxford University Press, 1997.
Christian, David. Maps of Time: An Introduction to Big History. University of California Press, 2005.
O CRISTIANISMO MANTÉM VIVO O ESPÍRITO DA INQUISIÇÃO SOB A ROUPAGEM DA DEMOCRACIA
HOMENAGENS
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Eliane Brum, “O Brasil e a fé que mata: a religião como instrumento de violência”, 2021, publicada na revista El País Brasil.
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Felipe Betim, “A cruz e a espada: como a fé virou arma política no Brasil”, 2022, publicada na Piauí.
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Patrícia Campos Mello, “Evangelismo e autoritarismo: a nova cruzada política brasileira”, 2020, publicada na Folha de S.Paulo.
A reportagem investiga como o cristianismo contemporâneo — especialmente na vertente protestante brasileira — vem repetindo, em nova forma, os métodos e propósitos da Inquisição histórica. Com o uso de redes sociais, influência política e discursos de autoridade moral, certos grupos religiosos têm promovido perseguição simbólica, censura cultural e vigilância comportamental, sob o pretexto de proteger a fé e a Bíblia. A reportagem analisa como essa atuação revive o espírito inquisitorial, apesar das barreiras legais e democráticas, e discute o papel contraditório do protestantismo, que nasceu como crítica à opressão católica, mas que, agora, reproduz práticas similares. O texto apresenta ainda reflexões de especialistas, casos reais no Brasil recente e o risco de ruptura com os princípios do Estado laico. O fenômeno é lido como ameaça à pluralidade e à liberdade de expressão, alertando para os efeitos de uma religião que pretende dominar os espaços públicos e subjetivos da sociedade. Uma nova cruzada se ergue, desta vez sem fogueiras — mas com algoritmos, microfones e gabinetes parlamentares.
CONTEÚDOS
Uma experiência que muitos vivem
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A repetição de um passado queimado
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O protestantismo e sua contradição histórica
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Quando a lei freia o fanatismo
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Bíblia como escudo e arma
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A nova inquisição digital
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Um alerta para a democracia
PERSEGUIDO POR PARTICIPAR DE ENCONTRO POLÍTICO
O pastor Sérgio Dusilek, teólogo, professor e articulador de importantes redes eclesiásticas no Brasil, revelou em entrevista à revista Protestantismo em Revista que sofreu intensas perseguições por parte da liderança da denominação batista à qual era vinculado. O motivo: sua presença em um encontro político com o então candidato à presidência Luiz Inácio Lula da Silva. A entrevista, conduzida por Nataniel dos Santos Gomes, detalha o processo de hostilidade enfrentado por Dusilek, que culminou em exclusão institucional, apagamento público e assédio psicológico.
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VIOLÊNCIA RELIGIOSA DENTRO DA PRÓPRIA CASA
Dusilek narra que, após sua participação no evento político, líderes batistas passaram a adotar contra ele medidas de represália explícita, incluindo ataques nas redes sociais, difamação e o esvaziamento de seus espaços de atuação. Segundo ele, tratou-se de uma “violência religiosa institucional”, disfarçada de zelo doutrinário, mas que escondia motivações ideológicas e partidárias. A perseguição atingiu não apenas sua figura como teólogo, mas também sua identidade e atuação pastoral.
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O PREÇO DE UM COMPROMISSO ÉTICO
Para Dusilek, o episódio revelou o quanto setores religiosos no Brasil estão reféns de uma lógica de poder autoritária e alinhada com projetos políticos conservadores. A escolha de apoiar um candidato identificado com causas populares foi lida como traição por lideranças que esperam submissão ideológica. Em suas palavras, o espaço da igreja foi sequestrado por um fundamentalismo que instrumentaliza o evangelho em nome de interesses eleitorais.
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EXCLUSÃO, AMEAÇAS E SILENCIAMENTO
Além de ser afastado de espaços ministeriais e acadêmicos que antes ocupava com prestígio, Dusilek conta que passou a receber ameaças, teve seus vínculos rompidos e foi silenciado institucionalmente. O impacto foi profundo: sua família sofreu, seu sustento foi comprometido e sua imagem foi publicamente atacada por lideranças que, segundo ele, agiam como se estivessem defendendo a “pureza da fé”, mas na verdade promoviam uma caça ideológica.
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A RESPOSTA DO EVANGELHO À VIOLÊNCIA
Apesar das dores sofridas, Dusilek afirma que sua fé foi reafirmada na resistência. Para ele, o evangelho é incompatível com a lógica da perseguição. A denúncia que faz é também um chamado à integridade: ele insiste que ser discípulo de Jesus é comprometer-se com a justiça, mesmo que isso custe a reputação ou o lugar dentro de estruturas eclesiásticas. “Minha fé não cabe dentro de um projeto de dominação política”, disse o pastor.
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RELIGIÃO, POLÍTICA E DEMOCRACIA
A entrevista de Dusilek reacende o debate sobre o papel das igrejas na política brasileira. Para ele, não se trata de afastar a fé da vida pública, mas de rejeitar o uso da fé como instrumento de opressão e exclusão. A democracia, afirma, depende de uma espiritualidade que valorize o diálogo, o dissenso e a justiça social. A perseguição que sofreu é, segundo ele, sintoma de uma crise mais ampla que atravessa o campo evangélico brasileiro.
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UM TESTEMUNHO DE RESISTÊNCIA
Ao final da entrevista, Dusilek reafirma seu compromisso com o evangelho da paz, da dignidade humana e da justiça. Sua trajetória, marcada por coragem e sofrimento, torna-se símbolo de resistência diante da intolerância religiosa dentro do próprio campo cristão. Sua voz ecoa como um apelo a pastores, igrejas e fiéis: que a fé não seja cúmplice do autoritarismo, mas instrumento de libertação e esperança.
A inquisição, historicamente marcada pela violência, censura e perseguição a divergentes, parece hoje revivida em formas adaptadas à contemporaneidade. Especialmente em setores do cristianismo atual, observa-se uma nostalgia por um tempo em que a fé religiosa tinha o poder de moldar comportamentos pela força. O discurso atual não traz mais fogueiras ou torturas públicas, mas insiste em restringir direitos, censurar expressões artísticas, atacar a ciência e marginalizar dissidentes, sob o argumento de “defesa da fé”. Essa postura ecoa o espírito inquisitorial, ainda que sem os instrumentos brutais de séculos atrás. A socióloga Renata Menezes (UFRJ) destaca que “a religiosidade institucionalizada, quando se vê ameaçada pela pluralidade de ideias, tende a reativar estruturas simbólicas de controle”.
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A REPETIÇÃO DE UM PASSADO QUEIMADO
A inquisição, marcada entre os séculos XIII e XIX por perseguições religiosas, torturas e execuções em nome da ortodoxia cristã, tem sido invocada por pesquisadores para descrever práticas simbólicas e institucionais atuais. Embora as fogueiras tenham desaparecido, permanecem mecanismos de exclusão e punição a vozes dissidentes dentro de algumas estruturas religiosas contemporâneas. O historiador Henry Kamen aponta que, mais do que um tribunal religioso, a inquisição foi um instrumento de poder político-cultural, que moldava sociedades inteiras a partir de um controle rígido da fé (Kamen, 1997). O fenômeno atual, embora mais sutil, resgata essa lógica ao transformar discordância teológica ou posicionamento político em ameaça à identidade religiosa.
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RESTAURAÇÃO MORALISTA E O DISCURSO DE GUERRA
Nas últimas décadas, diversas lideranças cristãs evangélicas, sobretudo no Brasil e nos Estados Unidos, adotaram um discurso moralizante que se articula com o campo político. Termos como "guerra cultural", "inimigos da fé" e "perseguição aos cristãos" passaram a fazer parte do vocabulário público de segmentos religiosos que se opõem a pautas como o direito ao aborto, os direitos LGBTQIA+ e a liberdade artística. Para a antropóloga Christina Vital (UFF), “existe uma tentativa de restaurar um modelo de autoridade religiosa hegemônica, travestida de defesa de valores, mas que opera pela exclusão e silenciamento de outras formas de viver” (Vital, 2021).
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CIÊNCIA SOB SUSPEITA
Durante a pandemia de Covid-19, o conflito entre ciência e setores religiosos se intensificou, especialmente no Brasil. Líderes religiosos influentes chegaram a desestimular o uso de vacinas, a recomendar tratamentos sem eficácia comprovada e a desacreditar instituições científicas. O Centro de Pesquisa em Direito e Religião da Universidade Federal de Uberlândia aponta que essa resistência não é apenas ideológica, mas tem raízes em uma tradição histórica de desconfiança da racionalidade científica quando esta confronta interpretações religiosas conservadoras. A rejeição à ciência, nesse contexto, funciona como reafirmação identitária e estratégia de mobilização política.
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EXPRESSÕES ARTÍSTICAS COMO ALVO
Nos últimos anos, peças teatrais, filmes, exposições e performances foram censuradas ou alvos de protestos liderados por movimentos religiosos. A exposição “Queermuseu”, cancelada em 2017 após pressão de grupos cristãos conservadores, é um exemplo emblemático. O sociólogo Ronaldo de Almeida (Unicamp) aponta que a censura artística ressurge como uma forma de “restabelecer um imaginário cristão uniforme, onde a arte que questiona dogmas ou visões morais é lida como afronta direta à fé”. Para ele, há uma “recriação de fronteiras sagradas” que busca controlar o simbólico e o sensível no espaço público.
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ESCOLA COMO TERRITÓRIO DE DISPUTA
O projeto "Escola Sem Partido", defendido por políticos ligados a lideranças religiosas, propõe restringir professores de expressarem opiniões sobre gênero, sexualidade, política e religião em sala de aula. A proposta, embora apresentada como neutralidade, foi criticada por organizações educacionais e de direitos humanos por violar a liberdade de cátedra e promover autocensura. Segundo pesquisa do Instituto de Estudos da Religião (ISER), 72% dos professores entrevistados em escolas públicas afirmaram sentir-se vigiados por pais e gestores escolares em relação ao conteúdo lecionado, especialmente em temas que confrontam discursos religiosos hegemônicos.
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ESTRUTURAS SIMBÓLICAS DE CONTROLE
A socióloga Renata Menezes (UFRJ) destaca que a religiosidade institucionalizada, ao se sentir ameaçada pela pluralidade, “reativa estruturas simbólicas de controle, ainda que não mais associadas a instrumentos físicos de repressão”. Isso se manifesta em pressões sobre membros dissidentes, rompimentos de vínculos comunitários, exclusões informais e campanhas de difamação. Tais práticas são identificadas como formas modernas de inquisição simbólica, segundo Menezes, que alerta para o impacto psicológico e social desses mecanismos, especialmente em contextos onde as instituições religiosas exercem forte influência nas comunidades.
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FUNDAMENTALISMO E PODER
Pesquisadores como Leonardo Boff e Marcio Goldman têm apontado que o fundamentalismo contemporâneo — fenômeno global — opera como resistência à modernidade pluralista. Em seu lugar, propõe uma uniformização religiosa, política e moral que centraliza o poder em figuras carismáticas e estruturas hierárquicas rígidas. Goldman, em estudos etnográficos, observa que a adesão a tais projetos se dá muitas vezes por medo da dissolução de identidades em um mundo plural. O retorno simbólico à inquisição, nesse sentido, representa uma resposta a esse medo, em nome da ordem, da verdade e da autoridade religiosa.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Henry Kamen, A Inquisição Espanhola (1997)
Leonardo Boff, Fundamentalismo e Ética Global (2009)
Christina Vital, Religião e Política: Medos Sociais, Extremismo Religioso e as Eleições 2018 (2021)
3. O PROTESTANTISMO E SUA CONTRADIÇÃO HISTÓRICA
Durante a Reforma, os protestantes condenaram a Inquisição católica com veemência, denunciando a intolerância da Igreja de Roma e propondo uma leitura mais direta e pessoal das Escrituras. No entanto, com o tempo, muitos setores do protestantismo passaram a reproduzir os mesmos mecanismos de controle ideológico e moral. A historiadora Elaine Pagels, da Universidade de Princeton, mostra em suas obras que, após conquistarem poder político, certos grupos protestantes perseguiram heresias, censuraram ideias e impuseram padrões morais rígidos. No Brasil, líderes evangélicos com forte influência política promovem agendas que lembram tribunais da fé — como no caso da tentativa de criminalização de artistas que representam símbolos religiosos fora do padrão tradicional.
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REFORMADORES SOB O PESO DO PODER
Apesar do discurso inicial de liberdade espiritual, líderes protestantes históricos impuseram normas estritas sobre suas comunidades. Calvino, em Genebra, criou um regime teocrático com tribunais que puniam blasfêmia, adultério, danças e vestimentas consideradas indevidas. A execução de Miguel Servet, em 1553, por negação da Trindade, ilustra essa contradição. O historiador Diarmaid MacCulloch afirma que “o protestantismo, quando institucionalizado, nem sempre se mostrou mais tolerante que a Igreja que criticava”. A estrutura de poder se rearticulou em nome da ortodoxia reformada, com punições exemplares e repressão à dissidência teológica.
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PROTESTANTISMO E CENSURA CULTURAL
No Brasil contemporâneo, o crescimento do poder político de lideranças evangélicas tem sido acompanhado por episódios de censura cultural. Em 2020, parlamentares ligados à chamada “bancada evangélica” criticaram e tentaram proibir exposições de arte com temas religiosos interpretados de forma não literal ou considerados ofensivos à fé cristã. O Instituto de Estudos da Religião (ISER) registrou um aumento de projetos legislativos com base em “ofensa religiosa”, muitos deles voltados contra artistas e educadores. Para o cientista político Juliano Spyer, esses projetos refletem “uma tentativa de legislar a moralidade a partir de uma leitura única da Bíblia”.
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A LUTA CONTRA AS HERESIAS MODERNAS
Grupos protestantes conservadores têm se mobilizado contra o que consideram “heresias modernas”: teorias de gênero, pluralismo religioso e liberdade artística. Organizações como a Frente Parlamentar Evangélica atuam para barrar pautas progressistas, em nome da defesa da “família tradicional”. Segundo o antropólogo Eduardo Dullo (USP), “há uma reprodução simbólica de tribunais da fé, onde o debate é substituído por julgamentos morais e excomunhões públicas de figuras vistas como desviantes”. Essas práticas têm levado a processos formais e informais de ostracismo de fiéis e lideranças dissidentes dentro das próprias igrejas.
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O CASO DAS ESCULTURAS E O JULGAMENTO PÚBLICO
Em 2023, a instalação artística “Maria Mãe Trans”, apresentada em uma exposição independente em São Paulo, gerou protestos e ameaças por parte de grupos evangélicos organizados. A artista, alvo de inquérito no Congresso por “crime contra o sentimento religioso”, teve apoio de setores do campo artístico e acadêmico, que denunciaram a tentativa de censura. A situação foi comparada por juristas ao uso de leis de blasfêmia em países teocráticos. O advogado Marcelo Andrade, especialista em direito constitucional, observou que “a liberdade de expressão artística está sendo colocada em xeque por um discurso religioso moralizante e autoritário”.
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LIDERANÇAS E A CONSTRUÇÃO DO INIMIGO INTERNO
A retórica de certos pastores midiáticos, que afirmam estar em “batalha espiritual” contra inimigos infiltrados na cultura, na política e na educação, tem gerado um ambiente de polarização e medo. Segundo a professora Magali Cunha (Intercom), “o protestantismo conservador construiu figuras de inimigos simbólicos — como artistas, professores e ativistas — que ocupam hoje o papel que as bruxas ou hereges ocupavam nos tempos medievais”. Esse processo é sustentado por redes sociais, púlpitos e programas televisivos que mobilizam fiéis em torno de campanhas de boicote, denúncias e orações contra supostos “agentes do mal”.
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A HERANÇA DA REFORMA EM DISPUTA
Estudiosos apontam que há múltiplos protestantismos em disputa no Brasil: um progressista, que busca coerência com os ideais libertários da Reforma, e outro conservador, que reproduz mecanismos históricos de controle e exclusão. O teólogo Ronilso Pacheco defende que “o verdadeiro legado da Reforma é a autonomia da consciência, não a imposição de dogmas”. No entanto, esse debate permanece marginalizado em muitos espaços eclesiásticos. A contradição entre a origem crítica do protestantismo e suas práticas autoritárias atuais evidencia uma tensão histórica ainda não resolvida entre fé e poder.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Elaine Pagels, Origens do Cristianismo e as Heresias Antigas (2003)
Diarmaid MacCulloch, História do Cristianismo (2010)
Ronilso Pacheco, Ocupar, Resistir, Subverter (2016)
4. QUANDO A LEI FREIA O FANATISMO
O Estado laico, construído com base em princípios iluministas e democráticos, tem sido um dos maiores impedimentos para a repetição literal dos horrores inquisitoriais. No entanto, há uma luta constante por parte de certos grupos religiosos para enfraquecer a separação entre Igreja e Estado. Em 2020, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal precisou intervir contra decretos municipais que permitiam cultos presenciais em plena pandemia, em nome da vida e da ciência. O teólogo Leonardo Boff alerta: “se o cristianismo não for contido por uma ética dos direitos humanos, ele corre o risco de voltar a ser instrumento de opressão”.
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O ESTADO LAICO COMO GARANTIA DEMOCRÁTICA
A consolidação do Estado laico no Brasil remonta à Constituição de 1891, que rompeu com o modelo do Império, onde Igreja e Estado estavam formalmente unidos. Inspirado pelos ideais iluministas e pela laicidade francesa, o novo ordenamento jurídico estabeleceu a separação entre as esferas religiosa e civil como base da convivência democrática. Esse princípio foi reafirmado na Constituição de 1988, que garante liberdade religiosa e impede a imposição de valores religiosos nas leis e políticas públicas. Para a jurista Debora Diniz, a laicidade “é a fronteira que protege tanto o direito à fé quanto o direito de não ter fé”.
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O CONFLITO PANDÊMICO DE 2020
Durante a pandemia da Covid-19, o princípio da laicidade foi testado em várias frentes. Um dos momentos mais tensos ocorreu em 2020, quando lideranças religiosas pressionaram prefeitos e governadores a manter igrejas abertas, mesmo com o agravamento da crise sanitária. O Supremo Tribunal Federal (STF) interveio em decisões como a do município de Belo Horizonte, proibindo cultos presenciais em nome da proteção da saúde pública. O então ministro Gilmar Mendes argumentou que “a ciência deve prevalecer sobre convicções particulares, por mais respeitáveis que sejam”. A decisão gerou reações de líderes evangélicos, que acusaram o STF de perseguição religiosa.
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O AVANÇO DO FUNDAMENTALISMO NA POLÍTICA
Nos últimos anos, a presença de representantes religiosos nas casas legislativas aumentou substancialmente. A Frente Parlamentar Evangélica, formada por cerca de 200 deputados federais, tem apresentado projetos de lei que, segundo analistas, tensionam o princípio da laicidade. Um levantamento do Instituto de Estudos da Religião (ISER) mostra que muitos desses projetos têm motivação moral ou doutrinária, como a tentativa de incluir ensino religioso confessional nas escolas públicas. A pesquisadora Cecília Mariz, da UERJ, aponta que “o discurso religioso, quando se transforma em norma legal, pode ameaçar direitos de minorias e a neutralidade do Estado”.
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BOFF E A ÉTICA DOS DIREITOS HUMANOS
O teólogo Leonardo Boff, um dos expoentes da Teologia da Libertação, tem alertado para os riscos do uso político da religião. Em entrevistas e livros, Boff defende que o cristianismo deve ser permanentemente confrontado com os princípios dos direitos humanos. Segundo ele, “o fanatismo religioso se alimenta da certeza absoluta e do desejo de controle”. Em contextos de crise, como pandemias ou polarização política, cresce a tentação de buscar respostas unificadoras, e a religião pode ser mobilizada para justificar autoritarismos. Para Boff, o equilíbrio está em uma “espiritualidade aberta ao diálogo e ao cuidado com a vida”.
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A REAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL
Diversas entidades da sociedade civil têm se mobilizado para reafirmar os limites entre religião e poder público. A Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) tem promovido campanhas e publicações que defendem a laicidade como cláusula pétrea da Constituição. Em 2021, a organização entrou com ações judiciais contra decretos estaduais que priorizavam instituições religiosas no acesso a verbas públicas e isenções fiscais. Segundo a advogada Patrícia Oliveira, da ABJD, “a neutralidade do Estado é essencial para que nenhum grupo imponha sua visão do mundo como se fosse lei universal”.
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O USO POLÍTICO DAS IGREJAS
A instrumentalização das igrejas para fins eleitorais também tem sido tema de debate. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tem recebido denúncias de uso indevido de templos e cultos religiosos para propaganda de candidatos. A legislação eleitoral brasileira proíbe esse tipo de prática, mas sua fiscalização tem sido ineficaz, segundo especialistas. O cientista político Pablo Ortellado observa que “a religião se tornou uma plataforma de mobilização política poderosa, mas que, sem os freios constitucionais, pode se transformar em veículo de intolerância e exclusão”. Ortellado defende maior fiscalização e responsabilização dos abusos de poder religioso nas campanhas.
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A TENSÃO PERMANENTE ENTRE FÉ E DIREITO
A laicidade não significa hostilidade à religião, mas sim a garantia de que nenhuma crença dominará o espaço público. Essa tensão entre fé e direito, presente desde a formação do Estado moderno, permanece viva em sociedades democráticas. No Brasil, a convivência entre múltiplas religiões — e com a não religiosidade — depende da manutenção clara dessa separação. A filósofa Marilena Chauí ressalta que “um Estado laico é a única forma de garantir que a liberdade religiosa não se transforme em imposição religiosa”. Essa vigilância constante é essencial para impedir que o fanatismo, ainda que sem fogueiras, volte a ameaçar a pluralidade e os direitos civis.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Leonardo Boff, Cristianismo: O Mínimo do Mínimo (2008)
Debora Diniz, Zika: Do Sertão Nordestino à Ameaça Global (2016)
Marilena Chauí, Convite à Filosofia (2000)
5. BÍBLIA COMO ESCUDO E ARMA
Muitos que promovem essa nova forma de “inquisição” justificam suas ações com base na defesa da Bíblia. Porém, esse uso da Bíblia como escudo para práticas antidemocráticas ignora o contexto histórico e literário dos textos. A pesquisadora Karen Armstrong, em A Bíblia: Uma Biografia, demonstra como os textos bíblicos foram usados historicamente para justificar tanto a paz quanto a guerra, tanto a compaixão quanto a violência. O problema, portanto, não é a Bíblia em si, mas a forma como é lida e usada. No Brasil contemporâneo, a apropriação bíblica por figuras públicas alimenta o preconceito contra minorias, sugerindo que a “fé verdadeira” tem o direito de se sobrepor às liberdades individuais.
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INTERPRETAÇÕES EM DISPUTA
Ao longo da história, a Bíblia foi utilizada tanto para justificar atos de amor e justiça quanto para legitimar guerras, escravidão e intolerância. A leitura literalista, que desconsidera o contexto histórico, cultural e linguístico dos textos, tem sido alvo de críticas por parte de teólogos e historiadores. A pesquisadora Karen Armstrong, em sua obra A Bíblia: Uma Biografia, explica que “os textos bíblicos foram escritos em contextos muito diferentes do nosso, e cada geração os interpretou à sua maneira”. Na Idade Média, por exemplo, a Bíblia foi usada para legitimar cruzadas e perseguições, mas também inspirou movimentos de reforma e solidariedade.
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A LEITURA COMO ARMA POLÍTICA
Nos tempos atuais, certos líderes políticos e religiosos brasileiros recorrem à Bíblia para sustentar agendas conservadoras, especialmente em temas ligados a costumes, sexualidade e direitos das minorias. Essa instrumentalização dos textos sagrados é criticada por estudiosos como o biblista Carlos Mesters, que defende a leitura comunitária e libertadora das Escrituras. Para ele, “a Bíblia foi escrita para gerar vida, e não opressão”. Mesters aponta que a seletividade na escolha dos trechos usados em discursos públicos revela mais sobre os interesses políticos do que sobre a fé cristã.
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APROPRIAÇÃO MIDIÁTICA DA FÉ
A presença da Bíblia em campanhas políticas, discursos públicos e até em peças de marketing institucional revela seu uso como símbolo de autoridade moral. Um levantamento do Instituto de Estudos da Religião (ISER) mostrou que, entre 2018 e 2022, cresceu o número de parlamentares que citam trechos bíblicos em sessões legislativas. Em muitos casos, essas citações não são acompanhadas de qualquer contextualização. A antropóloga Juliana Farias, da UFRJ, alerta que “a Bíblia está sendo transformada em um totem, usado para legitimar discursos que vão contra os princípios constitucionais de igualdade e liberdade”.
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VIOLAÇÕES DOS DIREITOS DAS MINORIAS
Essa apropriação religiosa tem impactado negativamente os direitos de grupos historicamente marginalizados. Projetos de lei que restringem a abordagem de gênero nas escolas ou tentam proibir manifestações artísticas que envolvam símbolos religiosos são frequentemente justificados com base em “valores cristãos”. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos já alertou o Brasil sobre retrocessos legislativos motivados por argumentos religiosos. Em parecer de 2021, a entidade recomendou que os Estados-membros da OEA assegurem que a liberdade religiosa não seja utilizada como pretexto para discriminar populações vulneráveis.
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HERMENÊUTICA E RESPONSABILIDADE
Especialistas em teologia bíblica têm insistido na necessidade de desenvolver uma hermenêutica responsável, que leve em conta os gêneros literários e o contexto sociopolítico das passagens. A teóloga Ivone Gebara defende uma leitura crítica e ética da Bíblia. Segundo ela, “o problema não está no texto, mas nas lentes de quem o lê”. Para Gebara, a literalidade tem servido como escudo para resistências à modernidade e à pluralidade de direitos. A leitura fundamentalista, ao isolar versículos do todo bíblico, favorece interpretações que reforçam desigualdades e exclusões.
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BÍBLIA COMO PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE
A UNESCO reconheceu, em diferentes ocasiões, a Bíblia como patrimônio cultural da humanidade, por sua influência na literatura, nas artes e na filosofia. No entanto, isso não significa que sua interpretação deva ser monopolizada por instituições religiosas ou figuras públicas. A pluralidade de leituras faz parte da riqueza desse texto milenar. Universidades e centros de pesquisa ao redor do mundo estudam a Bíblia como documento histórico e literário, o que contrasta com o uso dogmático e político que ela recebe em certos círculos contemporâneos. Segundo o historiador João Marcos Lopes, “a Bíblia pode ser instrumento de diálogo ou de confronto, a depender de como é usada”.
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UMA TENSÃO PERMANENTE NO ESPAÇO PÚBLICO
No Brasil contemporâneo, a fronteira entre fé e política se tornou palco de disputa ideológica. A presença constante da Bíblia em debates públicos não é em si um problema, mas torna-se crítica quando serve para violar direitos fundamentais ou justificar políticas discriminatórias. A liberdade de crença, garantida pela Constituição, inclui também a liberdade de não crer — e o Estado deve assegurar esse equilíbrio. A defesa da laicidade, nesse cenário, aparece como uma salvaguarda contra a imposição de visões religiosas particulares como norma coletiva.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Karen Armstrong, A Bíblia: Uma Biografia (2008)
Ivone Gebara, Rompendo o Silêncio: Uma Fenomenologia Feminista do Mal (2000)
Carlos Mesters, Por Trás das Palavras: Um Estudo Sobre a Leitura Popular da Bíblia (2002)
6. A NOVA INQUISIÇÃO DIGITAL
Diferentemente da Idade Média, a atual perseguição aos que pensam diferente acontece sobretudo nas redes sociais e nos púlpitos digitalizados. Influenciadores religiosos com milhões de seguidores expõem pessoas, ridicularizam práticas de outras religiões e propõem boicotes a empresas e obras culturais consideradas “pecaminosas”. O pesquisador André Lemos, da UFBA, chama isso de “panóptico digital da fé”: um sistema de vigilância e punição moral em tempo real, onde a comunidade religiosa atua como juíza e algoz. Esse ambiente produz medo, culpa e exclusão — exatamente os mesmos efeitos pretendidos pelos inquisidores da Igreja no passado.
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RELIGIÃO E TECNOLOGIA DE CONTROLE
A propagação de discursos religiosos nas redes sociais assumiu uma nova configuração no século XXI. O pesquisador André Lemos, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), propôs o conceito de “panóptico digital da fé” para descrever como lideranças religiosas e seus seguidores vigiam comportamentos, opiniões e escolhas de indivíduos em tempo real. Inspirado no conceito de Jeremy Bentham e na releitura de Michel Foucault, esse panóptico não exige mais muros ou prisões: ele atua por meio da hiperexposição nas plataformas digitais, onde qualquer desvio da norma moral imposta pode ser punido por linchamentos virtuais ou exclusão comunitária.
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A VIGILÂNCIA COMO INSTRUMENTO DE PODER
O fenômeno da moral religiosa digital se manifesta em diferentes formas: de denúncias públicas a campanhas de boicote a produtos culturais e comerciais. Influenciadores com milhões de seguidores denunciam artistas, obras e posicionamentos considerados “anticristãos”, promovendo hashtags e movimentações coordenadas. Um levantamento feito pela pesquisadora Magali Cunha, do Coletivo Bereia, mostra como perfis religiosos no Brasil atuam de forma semelhante a tribunais morais, interferindo inclusive em campanhas eleitorais e decisões de consumo. Essa vigilância coletiva transforma o espaço público digital em território de controle doutrinário.
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HERANÇAS DA INQUISIÇÃO
Apesar do contexto digital, muitos dos mecanismos de exclusão atuais lembram estratégias empregadas pela Inquisição da Igreja Católica na Idade Média. A exposição pública do “herege”, a denúncia por condutas desviantes e a exigência de confissão e arrependimento continuam presentes, agora adaptadas às plataformas sociais. Segundo o historiador Carlos Zeron, da Unicamp, “a Inquisição não acabou: ela apenas se transformou”. Na Idade Média, a fogueira era o destino dos que contrariavam o dogma. Hoje, o cancelamento e a destruição da reputação digital cumprem esse papel simbólico.
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FÉ, LUCRO E ENGAJAMENTO
Essa nova cruzada digital é potencializada pela lógica algorítmica das redes sociais, que premia o engajamento. Conteúdos polêmicos e moralizantes, mesmo que excludentes, alcançam maior visibilidade e geram receitas publicitárias para seus produtores. Estudos conduzidos pelo NetLab, da UFRJ, apontam que páginas religiosas figuram entre as que mais movimentam interações no Facebook brasileiro. A pesquisadora Marie Santini observa que “há um ciclo vicioso entre indignação moral, viralização e monetização”. Assim, a fé se transforma em espetáculo, e o julgamento em show público com audiência massiva.
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IMPACTOS PSICOSSOCIAIS
As vítimas desse novo moralismo digital frequentemente relatam sintomas de ansiedade, depressão e isolamento. Denúncias públicas feitas por pastores e líderes digitais podem levar ao rompimento de laços familiares, perda de empregos e afastamento de comunidades religiosas. O psicólogo Danilo Siqueira, especialista em saúde mental e religião, afirma que “o pânico moral instaurado por certos discursos religiosos online gera culpa paralisante e medo de punição”. As consequências subjetivas dessa nova forma de perseguição se assemelham, em muitos aspectos, ao terror psicológico promovido pelos tribunais inquisitoriais históricos.
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FUNDAMENTALISMO EM REDE
O fundamentalismo religioso encontra nas redes sociais um ambiente fértil para crescer, em especial entre os mais jovens. Vídeos curtos, mensagens impactantes e promessas de salvação em meio ao caos produzem identificação e adesão rápida. A pesquisadora Lívia Reis, da PUC-Rio, destaca que “a estética da internet favorece discursos absolutos e punitivos, especialmente quando travestidos de autoridade espiritual”. A ausência de mediação institucional permite que qualquer indivíduo se coloque como intérprete legítimo da vontade divina, favorecendo discursos sectários e intolerantes.
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RESPOSTAS E RESISTÊNCIAS
Apesar do crescimento dessa nova inquisição digital, há movimentos organizados que propõem uma religiosidade mais inclusiva e dialógica nas redes. Pastoras, padres, rabinos e representantes de religiões afro-brasileiras têm ocupado o espaço digital com leituras críticas e respeitosas da fé. Iniciativas como o projeto Reconstruindo a Fé, o canal Fé no Clima e o perfil Evangélicos pelo Estado de Direito têm promovido debates sobre justiça social, pluralismo e liberdade religiosa. Essas ações mostram que a tecnologia também pode ser usada para fortalecer a democracia e os direitos humanos no campo religioso.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Karen Armstrong, Em Nome de Deus: O Fundamentalismo no Judaísmo, no Cristianismo e no Islã (2001)
André Lemos, Cibercultura: Tecnologia e Vida Social na Cultura Contemporânea (2002)
Magali Cunha, Religião e Política nas Redes: Evangélicos e Fake News nas Eleições de 2018 (2020)
7. UM ALERTA PARA A DEMOCRACIA
O crescimento do cristianismo político e sua tentativa de controlar comportamentos sociais em nome da fé exige atenção das instituições democráticas. Quando a religião se transforma em política de Estado ou em poder normativo acima das leis, os direitos civis correm perigo. Como advertiu o filósofo Michel Foucault, “onde há poder, há resistência” — e é preciso fortalecer os espaços de resistência para que a fé, seja ela qual for, não se transforme novamente em instrumento de opressão. O risco não está em acreditar em Deus, mas em acreditar que apenas uma forma de fé pode conduzir a sociedade, silenciando todas as outras. E nisso, a história mostra: o preço da liberdade é a vigilância eterna.
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CRISTIANISMO POLÍTICO EM ASCENSÃO
O avanço do cristianismo político no Brasil e em outras democracias tem sido objeto de análise de pesquisadores das ciências sociais e do direito. Em sua obra sobre governamentalidade, Michel Foucault aponta como o poder moderno se exerce por meio de normas internalizadas e discursos hegemônicos. No campo religioso, esse poder se manifesta na tentativa de impor valores morais a toda a sociedade, sob a justificativa de proteger os “princípios cristãos”. A conversão da fé em política de Estado desafia o princípio da laicidade e compromete a diversidade democrática.
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HISTÓRICO DE CONFLITOS ENTRE FÉ E ESTADO
A história da humanidade apresenta inúmeros exemplos de embates entre liberdade civil e imposição religiosa. Durante a Reforma Protestante, no século XVI, tanto católicos quanto reformadores usaram o poder político para impor suas crenças, promovendo guerras e perseguições. No século XX, o regime franquista na Espanha consolidou a Igreja Católica como poder estatal, limitando liberdades individuais e impondo censura. Esses casos demonstram que quando o Estado se alia a uma doutrina religiosa, a pluralidade tende a desaparecer, abrindo espaço para o autoritarismo moral.
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BRASIL: UM ESTADO LAICO SOB PRESSÃO
No Brasil, a Constituição de 1988 estabelece o princípio da laicidade, garantindo que o Estado não adote nenhuma religião oficial. No entanto, discursos políticos com forte conteúdo religioso têm ganhado força no Congresso Nacional. Parlamentares da chamada Bancada Evangélica defendem projetos de lei que refletem princípios teológicos, como a criminalização do aborto, a censura a manifestações culturais e o ensino religioso confessional. A jurista Eloísa Machado, da FGV-SP, aponta que “a atuação desses parlamentares coloca em risco o equilíbrio entre liberdade religiosa e laicidade estatal”.
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O PERIGO DA NORMA ÚNICA
O domínio de uma única moral religiosa sobre a esfera pública restringe os direitos de minorias. Grupos LGBTQIA+, adeptos de religiões de matriz africana, ateus e até cristãos progressistas têm sido alvos de discriminação institucionalizada. A antropóloga Débora Diniz destaca que “a ideia de uma verdade única, legitimada por Deus, transforma divergência em pecado e cidadãos em inimigos”. O pluralismo democrático exige que diferentes formas de viver e crer tenham espaço, e não sejam subordinadas a uma visão teológica dominante.
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RESISTÊNCIA CIVIL ORGANIZADA
Em resposta ao avanço do cristianismo político, diversos movimentos têm emergido para defender a democracia plural. Organizações como o Instituto de Estudos da Religião (ISER) e o coletivo Evangélicas pela Igualdade de Gênero atuam na construção de um discurso religioso comprometido com os direitos humanos. Esses grupos não rejeitam a fé, mas questionam seu uso político autoritário. Em audiência pública no STF, representantes de várias religiões defenderam que a liberdade de crença não pode se converter em liberdade para discriminar.
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A RELIGIÃO NO DISCURSO POPULISTA
O uso da fé como instrumento de mobilização política também é comum em regimes populistas. Pesquisadores da Universidade de Oxford analisaram, em 2022, o discurso de líderes populistas em 12 países, incluindo o Brasil, e identificaram a apropriação de símbolos religiosos como estratégia para construir uma imagem messiânica. Ao se apresentarem como ungidos por Deus, líderes políticos eliminam a distinção entre crítica política e blasfêmia. Essa sobreposição torna o debate democrático inviável e reforça a autoridade pessoal acima das instituições.
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O DESAFIO DA VIGILÂNCIA DEMOCRÁTICA
O alerta de Foucault sobre o poder e a necessidade de resistência encontra eco na atual conjuntura brasileira. Juristas, acadêmicos e movimentos civis têm insistido que a vigilância cidadã é essencial para garantir que o Estado laico se mantenha como protetor das liberdades individuais. A professora Silvia Viana, da USP, afirma que “a democracia não é um dado: é uma conquista cotidiana”. A sociedade civil organizada e a imprensa livre desempenham papel central na denúncia de tentativas de imposição moral em nome da fé.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Michel Foucault, Microfísica do Poder (1979)
Débora Diniz, Zika: Do Sertão Nordestino à Ameaça Global (2016)
Eloísa Machado, Direitos Fundamentais e Liberdade Religiosa (2020)
CONCLUSÃO
O espírito da Inquisição nunca desapareceu — apenas se adaptou. Hoje, ele habita discursos inflamados, plataformas digitais, gabinetes religiosos e decisões judiciais enviesadas. A justificativa de proteger a fé e a Bíblia tem sido usada para impor visões únicas sobre o mundo, restringindo o debate público e as liberdades individuais. Essa apropriação do espaço democrático por interesses religiosos não representa apenas um retrocesso teológico, mas um risco civilizacional.
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A herança da Reforma Protestante, que denunciava a tirania da fé institucionalizada, agora parece esquecida por muitos de seus herdeiros. O poder religioso, quando deixa de se submeter ao limite ético da convivência democrática, transforma-se em instrumento de perseguição. A censura a artistas, a criminalização de comportamentos e o controle sobre os corpos e as mentes são formas atuais de uma ortodoxia que se recusa a dialogar com a diversidade. Em vez de libertar, como proclamava Lutero, muitos líderes preferem o julgo autoritário de uma fé sem compaixão.
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O desafio contemporâneo está em garantir que o espaço da fé seja vivenciado com liberdade, mas sem se sobrepor ao bem comum e à razão pública. A democracia não pode se curvar ao dogmatismo — ela existe para proteger justamente os diferentes, os dissidentes, os frágeis. Só assim evitaremos que se repita, sob novos nomes e novas armas, o que tanto custou para a humanidade superar: a inquisição dos corpos, das consciências e dos sonhos.
BIBLIOGRAFIA
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A Bíblia: Uma Biografia – Karen Armstrong, 2007
Obra que traça a história do livro mais influente do Ocidente, mostrando como ele foi usado ao longo dos séculos para justificar tanto práticas humanitárias quanto políticas de opressão. Armstrong alerta para os riscos das leituras literais e manipuladas do texto sagrado.
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O Cristianismo e a Violência – Gilbert Durand, 1993
Durand explora a relação entre símbolos religiosos, arquétipos culturais e comportamentos violentos, revelando como a estrutura simbólica do cristianismo ocidental pode servir à repressão e à guerra.
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História da Inquisição – Henry Kamen, 1997
Um dos maiores estudiosos da Inquisição Espanhola, Kamen analisa os aspectos políticos, sociais e religiosos que motivaram e sustentaram esse sistema de repressão durante séculos.
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Cristianismo e Totalitarismo, J.B. Metz, 1992
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A Cruz e a Espada: Religião e Política no Brasil, Maria das Dores Campos Machado, 2014
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Do Céu ao Cárcere: Religião e Prisões no Brasil, Juliana Farias, 2020
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Deus no Congresso: Religião e Política no Brasil Contemporâneo, Magali Cunha, 2021
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O Império da Fé: Como as Religiões Conquistaram o Mundo, Tom Holland, 2019
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O Poder da Fé: Como a Religião Molda as Nações, Reza Aslan, 2016
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Entre a Cruz e a Constituição: Religião e Democracia no Brasil, Silas Guerriero, 2018
TEIXEIRA DE FREITAS ESCONDE TESOUROS QUE PODEM GERAR TURISMO, RENDA E AUTOESTIMA: VALORIZAR O FOLCLORE É INVESTIR NO FUTURO
Adriana Carranca – Folclore, identidade e turismo: as narrativas que sustentam comunidades – 2011 – Publicada no jornal O Estado de S. Paulo
José Hamilton Ribeiro – A alma do Brasil está nos causos do povo – 2006 – Reportagem na revista Globo Rural
Eliane Brum – O Brasil que se conta por dentro: mitos populares, sobrevivência e pertencimento – 2015 – Publicada na revista Época
Durante quase trinta anos atuando como pastor em Teixeira de Freitas, um município jovem, mas profundamente enraizado na oralidade popular, o autor da obra Folclore da Minha Cidade dedicou-se a colher com paciência e sensibilidade os relatos mais emblemáticos do imaginário local. Transformou histórias sussurradas em bancos de praças e cozinhas em crônicas literárias que resgatam não apenas personagens folclóricos, mas uma alma coletiva. Esta reportagem explora como esse gesto de escuta se tornou também um manifesto cultural e uma proposta concreta de desenvolvimento. O folclore, tradicionalmente visto como curiosidade ou superstição, pode e deve ser reconhecido como força econômica legítima. Eventos folclóricos bem estruturados movimentam o turismo, geram empregos, fortalecem a autoestima de comunidades e colocam cidades no mapa nacional e internacional. Mais do que um gesto de preservação, valorizar o folclore é criar pontes entre passado e futuro. Esta é uma reportagem que mostra como as crendices de um povo podem, quando cultivadas com respeito e planejamento, transformar-se em instrumentos poderosos de transformação social, educacional e econômica.
CONTEÚDOS
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Raízes de uma voz coletiva
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O folclore como expressão viva da identidade
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Economia do encantamento
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O papel das políticas públicas e do povo
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Folclore, educação e turismo de base comunitária
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Do encantamento à ação
1) RAÍZES DE UMA VOZ COLETIVA
Cheguei a Teixeira de Freitas nos anos 1990, ainda jovem pastor em uma cidade recém-emancipada, e me deparei com um povoado vibrante em memória e imaginação. Entre visitas pastorais, conselhos e rodas de conversa, fui colhendo histórias que iam muito além do cotidiano: eram lendas, assombrações, milagres e personagens que habitavam as noites, os becos, os rádios e as cozinhas da cidade. Ao longo de quase três décadas, anotei cada relato com a reverência de quem percebe o valor imensurável dessas vozes. O resultado foi o livro Folclore da Minha Cidade, que registra não apenas causos, mas um modo de viver, sentir e lembrar – uma alma coletiva que molda a identidade local.
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CIDADE, MEMÓRIA E IDENTIDADE
Teixeira de Freitas, no extremo sul da Bahia, foi emancipada politicamente em 1985, quando ainda era um centro urbano em crescimento, resultado de ciclos migratórios, sobretudo a partir das décadas de 1960 e 1970, com a abertura da BR-101 e o avanço da fronteira agrícola no sul da Bahia. Ao longo dos anos 1990, o município consolidava uma identidade própria, sustentada não apenas em sua função econômica, mas em uma cultura popular viva e profundamente marcada pelas narrativas orais. Como aponta o antropólogo José Carlos Sebe Bom Meihy, a oralidade é um dos pilares fundamentais da construção da memória coletiva, especialmente em contextos de urbanização recente.
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FOLCLORE COMO RESISTÊNCIA CULTURAL
O termo folclore, popularizado por William Thoms em 1846, remete a um conjunto de práticas, histórias, saberes e crenças transmitidos de geração em geração, muitas vezes à margem da cultura letrada. Em Teixeira de Freitas, a força dessas expressões se manifesta em relatos de “corpo-seco”, “lobisomem” e “padres milagrosos”, que circulam entre moradores mais antigos e se adaptam à nova paisagem urbana. De acordo com Câmara Cascudo, folclore é também uma forma de resistência simbólica: “é o inconsciente coletivo de um povo, funcionando como proteção contra o desaparecimento cultural” (Cascudo, 1952). Nesse sentido, as narrativas locais funcionam como arquivos vivos da história não oficial.
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A VOZ DO POVO NOS BECOS E NAS COZINHAS
Na pesquisa de campo realizada por um pastor nos anos 1990, e posteriormente publicada no livro Folclore da Minha Cidade, observa-se o papel fundamental das cozinhas, dos becos e dos rádios como espaços de transmissão oral. O historiador Paul Thompson defende, em sua obra sobre história oral, que esses ambientes são mais do que físicos: são plataformas de diálogo, onde o saber popular circula e se renova. Muitas das histórias registradas não se limitam ao entretenimento; elas contêm valores morais, alertas de convivência e formas sutis de interpretar o mundo, especialmente diante das ausências do Estado e das religiões formais.
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INFÂNCIA E FABRICAÇÃO DA IMAGINAÇÃO
A infância teixeirense, sobretudo nas décadas anteriores à digitalização da comunicação, foi marcada pelo encantamento das histórias contadas ao pé do fogão. Segundo a psicóloga e folclorista Nelly Novaes Coelho, o contato com as narrativas orais estimula a formação da imaginação simbólica e reforça vínculos com o território. Em Teixeira de Freitas, o mito e o real frequentemente se entrelaçam em vivências cotidianas, formando um tecido simbólico no qual o medo, o sagrado e o fantástico convivem com a realidade dos bairros periféricos, das igrejas evangélicas e das feiras-livres.
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O LIVRO COMO ARQUIVO DA ALMA COLETIVA
A obra Folclore da Minha Cidade, fruto da escuta atenta de mais de trinta anos, cumpre um papel fundamental de registro e valorização de vozes que, muitas vezes, não encontram espaço nas bibliotecas acadêmicas. Com a sistematização desses relatos, a cidade ganha um espelho simbólico de sua própria trajetória cultural. O sociólogo Maurice Halbwachs, precursor dos estudos sobre memória coletiva, argumenta que a lembrança é sempre compartilhada e que o grupo social a organiza para preservar sua coesão e sua identidade. O livro, portanto, cumpre uma função de memória coletiva viva e acessível.
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ESPECIALISTAS E POLÍTICAS DE PRESERVAÇÃO
Apesar da relevância das manifestações orais para a identidade cultural de Teixeira de Freitas, especialistas alertam para a fragilidade da preservação dessas memórias diante do avanço da urbanização e da padronização cultural midiática. A professora Rita de Cássia Barbosa, da Universidade Federal do Sul da Bahia, em entrevista à Rádio UFSB, destaca que “sem políticas públicas de registro, incentivo e difusão, corremos o risco de perder a riqueza das culturas locais.” Projetos como o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC), do Iphan, poderiam incluir tais relatos, fortalecendo sua presença no debate nacional sobre patrimônio imaterial.
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EDUCAÇÃO, MEMÓRIA E FUTURO
Iniciativas educativas voltadas para o ensino da história local têm se mostrado fundamentais para a valorização do folclore como bem cultural. Experiências em escolas públicas de Teixeira de Freitas, como o projeto “Meu Bairro, Minha História”, vêm incorporando relatos orais ao currículo escolar, com o apoio de educadores, historiadores e artistas locais. A memória, nesse caso, deixa de ser apenas uma lembrança do passado para se tornar uma ferramenta de construção de identidade, pertencimento e cidadania. É o folclore, reinventado na escuta das novas gerações, que garante a continuidade da alma coletiva da cidade.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Maurice Halbwachs – A memória coletiva (1950)
Luís da Câmara Cascudo – Dicionário do folclore brasileiro (1952)
Paul Thompson – A voz do passado: história oral (1978)
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2) O FOLCLORE COMO EXPRESSÃO VIVA DA IDENTIDADE
As histórias que ouvi — como a do Velho Tapuruçu, do Menino do Km 880 ou do Fantasma da Bahia Sul — revelam muito mais que superstição ou curiosidade popular. Elas são expressões da espiritualidade, da resistência e da criatividade de um povo em formação. Em diálogo com pensadores como Câmara Cascudo, que definia o folclore como "a cultura espontânea do povo", percebi que aquelas narrativas revelavam medos, esperanças, críticas sociais e um senso profundo de pertencimento. Em uma cidade nascida da confluência de baianos, mineiros, capixabas e outros tantos migrantes, o folclore tornou-se o elo invisível que une identidades diversas em uma cultura singular.
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ESPIRITUALIDADE E IMAGINAÇÃO POPULAR
Em Teixeira de Freitas, personagens como o Velho Tapuruçu, o Menino do Km 880 e o Fantasma da Bahia Sul circulam entre gerações, revelando não apenas o sobrenatural, mas camadas profundas da espiritualidade popular. Essas histórias não são isoladas nem aleatórias. Segundo a pesquisadora Lúcia Helena Vianna, da Universidade Federal da Bahia, “o sobrenatural nas narrativas folclóricas é uma forma de expressão simbólica dos conflitos sociais e das inquietações humanas diante da morte, da desigualdade e do abandono institucional”. A religiosidade informal e o misticismo cotidiano servem, assim, como estruturas para interpretar a realidade à margem das tradições religiosas formais.
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MIGRAÇÃO E DIVERSIDADE CULTURAL
Teixeira de Freitas foi constituída por ondas migratórias, especialmente nas décadas de 1970 e 1980, com a chegada de baianos do sertão, mineiros e capixabas em busca de terras, trabalho e oportunidades. Essa confluência de culturas contribuiu para o surgimento de um folclore híbrido, onde os mitos e causos refletem traços das origens dos migrantes, mas também elementos novos, criados no processo de adaptação ao território. A socióloga Ecléa Bosi ressalta que “a memória é também um laboratório de invenção social”, e, nesse sentido, o folclore local funciona como dispositivo de integração simbólica entre grupos diversos.
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FOLCLORE COMO CRÍTICA SOCIAL
Muitos dos relatos orais recolhidos ao longo dos anos revelam críticas implícitas à realidade social. O Fantasma da Bahia Sul, por exemplo, é associado por moradores a episódios de violência urbana, corrupção e impunidade. O Velho Tapuruçu, com sua figura sombria que aparece nos descampados, é visto por alguns como uma metáfora da presença ausente do Estado em regiões periféricas. De acordo com Michel de Certeau, o saber popular utiliza “artes do fazer” para narrar o mundo, e o folclore seria uma dessas práticas: narrar de forma disfarçada os problemas concretos da existência.
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A CRIANÇA COMO GUARDIÃ DA MEMÓRIA
As crianças desempenham papel crucial na preservação das narrativas folclóricas, pois são ao mesmo tempo ouvintes e recontadoras. Nas escolas públicas de Teixeira de Freitas, professores de história e literatura vêm incorporando essas histórias nos projetos pedagógicos, com o objetivo de valorizar a cultura local. A educadora Eliane Ramos, da Universidade Estadual de Santa Cruz, afirma que “a escuta e o recontar de histórias são práticas que desenvolvem empatia, pertencimento e consciência histórica”. A infância, nesse contexto, torna-se agente de continuidade da memória coletiva.
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A VOZ COLETIVA COMO PATRIMÔNIO
O conceito de “voz coletiva” se refere à soma das memórias, vivências e imaginários de uma comunidade. Em um território marcado pela juventude institucional e pela fluidez cultural, como Teixeira de Freitas, a oralidade folclórica funciona como uma âncora de pertencimento. O antropólogo Néstor García Canclini defende que “o patrimônio cultural não está apenas nas coisas, mas nas práticas, nas narrativas e nas formas de relação com o tempo”. Assim, os causos ouvidos em becos, cozinhas e bancos de praça devem ser reconhecidos como parte legítima do patrimônio cultural imaterial do município.
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REGISTRO E PRESERVAÇÃO DAS NARRATIVAS
Projetos de registro das histórias populares vêm ganhando força na cidade, como o livro Folclore da Minha Cidade, resultado de mais de trinta anos de coleta oral. Essa prática de documentação segue a linha dos estudos desenvolvidos por Paulo Freire, que via na escuta ativa e no respeito à fala do outro um exercício de reconstrução da memória popular. A ausência de políticas públicas específicas para preservação de tradições orais, no entanto, ainda é um desafio. O Iphan reconhece a importância do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC), mas sua aplicação depende de iniciativas locais organizadas e apoio institucional contínuo.
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A CULTURA COMO ESTRATÉGIA DE INTEGRAÇÃO
O folclore tem desempenhado papel relevante na construção de uma identidade cultural própria em Teixeira de Freitas, sobretudo diante da diversidade de seus habitantes. Mais do que entretenimento, ele se configura como um mecanismo de mediação simbólica, espiritual e social. A integração entre diferentes matrizes culturais — indígenas, sertanejas, mineiras e capixabas — passa pelo compartilhamento de histórias que, ao serem contadas e escutadas, ajudam a construir um “nós” coletivo. Como observa o historiador Jacques Le Goff, “a memória é, antes de tudo, uma reconstrução social do passado feita no presente para projetar um futuro”.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Cascudo, Luís da Câmara – Dicionário do folclore brasileiro (1952)
Le Goff, Jacques – História e memória (1988)
Certeau, Michel de – A invenção do cotidiano (1980)
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3) ECONOMIA DO ENCANTAMENTO
Durante o processo de escrita do livro, percebi algo que ultrapassava o valor cultural: o potencial econômico latente dessas histórias. Quando bem trabalhado, o folclore pode se tornar uma fonte legítima de desenvolvimento, especialmente para cidades como Teixeira de Freitas. Eventos temáticos, festivais de narrativas orais, roteiros turísticos baseados em lendas locais e roteiros escolares podem movimentar a economia criativa, gerar renda e atrair visitantes. Exemplo disso é o impacto do Festival de Parintins, no Amazonas, que movimenta mais de R$ 100 milhões por edição (Carvalho, 2018). O que lá é o boi-bumbá, aqui pode ser Sinhá Emancipa ou o Samurai do Mamão.
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POTENCIAL CULTURAL E ECONÔMICO
A cidade de Teixeira de Freitas, no extremo sul da Bahia, abriga um vasto repertório de lendas, personagens e narrativas populares que, além de compor sua identidade simbólica, representam um ativo econômico ainda pouco explorado. De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), a economia criativa corresponde a cerca de 3% do PIB global e emprega mais de 30 milhões de pessoas no mundo. O folclore, inserido nesse setor, se torna uma estratégia de desenvolvimento sustentável para regiões que desejam articular cultura e geração de renda, conforme destaca o Relatório da Economia Criativa da Unctad (2013).
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EXEMPLOS NACIONAIS DE SUCESSO
O Festival Folclórico de Parintins, no Amazonas, é um dos exemplos mais emblemáticos da transformação de narrativas culturais em força econômica. Movimentando mais de R$ 100 milhões a cada edição, o evento atrai turistas nacionais e internacionais, estimula a cadeia produtiva local e fortalece a autoestima coletiva. O economista e pesquisador Carlos Carvalho (2018) analisa que “o boi-bumbá deixou de ser um simples espetáculo para se tornar o eixo de uma economia cultural que integra artistas, comerciantes, costureiras, guias turísticos e produtores audiovisuais”. Esse modelo serve como inspiração para outras regiões com forte tradição oral, como Teixeira de Freitas.
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A IDENTIDADE COMO ATRATIVO TURÍSTICO
As figuras do Velho Tapuruçu, da Sinhá Emancipa ou do Samurai do Mamão podem compor roteiros turísticos com foco na experiência cultural, incluindo visitas guiadas a bairros históricos, oficinas temáticas, apresentações performáticas e exposições comunitárias. De acordo com o Ministério do Turismo, o segmento de turismo cultural representa 17% da demanda nacional e é um dos que mais cresce no país. Em entrevista ao jornal Valor Econômico, a antropóloga Regina Abreu afirma que “o turista contemporâneo busca não apenas destinos, mas experiências que o conectem com a história e com a alma do lugar”.
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EDUCAÇÃO E ECONOMIA CRIATIVA
A integração entre educação e economia criativa pode ser fortalecida com a inclusão das narrativas locais no currículo escolar, por meio de feiras culturais, concursos de contação de histórias, ilustrações feitas por estudantes e jogos baseados no folclore regional. Além de fomentar o aprendizado significativo, essas atividades podem gerar produtos culturais vendáveis — livros ilustrados, podcasts, vídeos e souvenirs — com o apoio de cooperativas ou startups locais. A pesquisadora Ana Carla Fonseca, especialista em cidades criativas, defende que “a educação é um dos pilares da economia criativa porque forma novos consumidores, criadores e mediadores culturais”.
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INFRAESTRUTURA E POLÍTICAS PÚBLICAS
Para que a cultura local seja alavanca de desenvolvimento econômico, é necessário investimento em infraestrutura, capacitação e políticas públicas permanentes. Municípios como São Luiz do Paraitinga (SP) e Laranjeiras (SE) conseguiram consolidar eventos folclóricos no calendário nacional a partir de leis de incentivo, criação de conselhos culturais e articulação com o setor privado. Em Teixeira de Freitas, a ausência de um plano municipal de cultura e a descontinuidade de projetos comprometem a consolidação de iniciativas que transformem o potencial simbólico em capital econômico. A aprovação da Lei Paulo Gustavo e a aplicação correta dos recursos pode ser uma oportunidade nesse sentido.
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COMUNIDADES COMO PROTAGONISTAS
A sustentabilidade da economia do encantamento depende da participação direta das comunidades na concepção, gestão e distribuição dos benefícios gerados pelas ações culturais. O conceito de “protagonismo cultural comunitário”, defendido pelo antropólogo Antonio Albino Canelas Rubim, enfatiza que as práticas culturais não devem ser apenas vitrines para turistas, mas espaços de afirmação das subjetividades locais. Assim, os festivais e eventos baseados no folclore teixeirense devem preservar a integridade das narrativas e garantir que os lucros não sejam capturados por agentes externos sem vínculo com a cidade.
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PERSPECTIVAS PARA TEIXEIRA DE FREITAS
Com uma população estimada em mais de 160 mil habitantes, Teixeira de Freitas possui um mercado interno que pode se beneficiar da valorização do seu próprio imaginário. As narrativas que permeiam a cidade — quando sistematizadas, respeitadas e articuladas a projetos criativos — podem gerar uma nova dinâmica econômica, com impacto no turismo, no comércio, na educação e na autoestima social. As experiências de outros municípios sugerem que a transformação simbólica em recurso produtivo exige tempo, articulação intersetorial e reconhecimento institucional, mas oferece caminhos para o desenvolvimento com identidade.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Fonseca, Ana Carla – Economia criativa como estratégia de desenvolvimento (2008)
Canelas Rubim, Antonio Albino – Políticas culturais no Brasil: balanços e perspectivas (2011)
Carvalho, Carlos – Cultura, identidade e desenvolvimento regional (2018)
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4) O PAPEL DAS POLÍTICAS PÚBLICAS E DO POVO
A valorização do folclore, contudo, não pode depender apenas da iniciativa individual. É necessário o envolvimento de políticas públicas, investimentos em infraestrutura turística e programas culturais que abracem essas narrativas como elementos centrais da identidade municipal. Meu trabalho, feito entre orações, visitas e cadernos amarelados, poderia ser apenas um livro de memórias. Mas se bem integrado às estratégias educacionais e econômicas, ele pode se tornar uma ferramenta viva de transformação. Projetos como o "Mapeamento de Patrimônios Imateriais" da UNESCO (2003) mostram que registrar e valorizar saberes populares é um passo essencial para o desenvolvimento sustentável de comunidades.
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PLANEJAMENTO CULTURAL E DESENVOLVIMENTO
A valorização do folclore como ativo simbólico e econômico exige mais do que esforços individuais: requer planejamento estatal, integração intersetorial e participação cidadã. De acordo com a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial da Unesco (2003), políticas públicas voltadas à cultura devem promover o reconhecimento, a proteção e a transmissão de expressões culturais locais como parte do desenvolvimento sustentável. Em Teixeira de Freitas, esse princípio ainda enfrenta desafios, como a ausência de um Sistema Municipal de Cultura plenamente implementado, o que dificulta a articulação entre ações educativas, turísticas e patrimoniais.
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MAPEAMENTO COMO PRIMEIRO PASSO
O mapeamento dos patrimônios imateriais — como práticas orais, rituais e personagens folclóricos — é uma das etapas mais relevantes para a criação de políticas públicas eficazes. O programa “Mapeamento dos Saberes e Fazeres Populares”, promovido em diversos municípios brasileiros com apoio do IPHAN, tem como objetivo identificar, documentar e valorizar esses bens culturais. Em municípios como Lençóis (BA) e Laranjeiras (SE), o mapeamento permitiu o surgimento de projetos educativos, rotas turísticas temáticas e editais públicos para mestres da tradição. O pesquisador Hermano Vianna destaca que “não se preserva aquilo que não se conhece nem se reconhece”.
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EDUCAÇÃO COMO EIXO ESTRATÉGICO
A incorporação do folclore no currículo escolar vai além do conteúdo festivo: trata-se de uma ferramenta pedagógica de valorização da cultura local, de combate à homogeneização cultural e de estímulo à identidade comunitária. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) reconhece a importância da cultura regional nos componentes de história, artes e língua portuguesa. Iniciativas como o projeto “Educar com Memória”, desenvolvido na rede pública de Vitória da Conquista (BA), utilizam lendas, músicas e causos como base para práticas interdisciplinares. O educador Miguel Arroyo argumenta que a escola “deve deixar de ser um reprodutor de conteúdos externos e tornar-se um espaço de escuta do território”.
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TERRITÓRIO, ECONOMIA E INFRAESTRUTURA
Para que o folclore se traduza em vetor de desenvolvimento, é fundamental pensar a infraestrutura urbana e turística de forma articulada com o território simbólico. A ausência de espaços culturais adequados, centros de memória e sinalização patrimonial compromete a circulação dos saberes locais. Municípios que avançaram nesse campo, como Piranhas (AL) e São Cristóvão (SE), aliaram incentivos à economia criativa com melhorias urbanas que favoreceram a fruição cultural. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), o investimento em espaços culturais regionais é um dos instrumentos mais eficazes para o fortalecimento da identidade local.
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PARTICIPAÇÃO POPULAR E GESTÃO COMPARTILHADA
A consolidação de políticas públicas voltadas ao folclore depende da escuta ativa e do protagonismo das comunidades locais. Conselhos municipais de cultura, fóruns regionais e editais participativos são mecanismos fundamentais para garantir que as decisões respeitem as prioridades da população. A pesquisadora Maria Cecília Londres Fonseca afirma que “a política cultural só é democrática quando é formulada com a participação direta dos agentes culturais do território”. Em Teixeira de Freitas, a criação de um plano de cultura baseado nas narrativas populares pode representar um marco no processo de construção coletiva de políticas públicas.
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DOCUMENTAÇÃO E TECNOLOGIA
O uso de tecnologias digitais para registrar e difundir o folclore local tem se mostrado uma ferramenta eficaz em diversas cidades brasileiras. Plataformas como o Acervo Digital dos Saberes Populares, vinculado à UFMG, mostram como vídeos, podcasts, mapas interativos e arquivos sonoros podem transformar memórias orais em patrimônios acessíveis. Essa estratégia exige não apenas recursos tecnológicos, mas capacitação comunitária e apoio institucional. Em Teixeira de Freitas, iniciativas como blogs comunitários, documentários escolares e rádios livres podem contribuir para a documentação e valorização das expressões culturais locais.
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A MEMÓRIA COMO POLÍTICA PÚBLICA
A transição do livro de memórias para uma política pública de memória é um processo que depende do reconhecimento do folclore como parte essencial da cidadania cultural. Como aponta o sociólogo francês Pierre Nora, “a memória se torna história quando é institucionalizada e protegida como bem coletivo”. Documentos como o Plano Nacional de Cultura (PNC) e a Agenda 21 da Cultura propõem que cada município desenvolva mecanismos próprios para registrar, proteger e fomentar seus bens culturais. O trabalho desenvolvido por agentes locais, como o autor do livro Folclore da Minha Cidade, pode se tornar referência se integrado às estratégias educacionais, turísticas e patrimoniais de longo prazo.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Fonseca, Maria Cecília Londres – Gestão cultural: profissionalização e participação (2005)
Vianna, Hermano – O mundo funk carioca (1988)
Arroyo, Miguel – Ofício de mestre: imagens e autoimagens (2003)
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5) FOLCLORE, EDUCAÇÃO E TURISMO DE BASE COMUNITÁRIA
A experiência de colher histórias com olhos e ouvidos atentos também revelou a necessidade de envolvimento das escolas, das igrejas, dos bairros e das famílias na preservação da memória oral. O folclore deve ser contado e recontado nas salas de aula, dramatizado nos teatros locais, pintado nas paredes, resgatado em feiras culturais. O turismo de base comunitária, que cresce em várias partes do Brasil, pode encontrar aqui um solo fértil. Uma cidade que ama seus mistérios passa a encantar seus visitantes. E, com isso, o que era apenas "causo de assombração" vira patrimônio, vira economia, vira legado.
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MEMÓRIA ORAL E ESCOLA
A transmissão do folclore local por meio da educação formal é uma estratégia eficaz para a preservação da memória oral e para o fortalecimento da identidade comunitária. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) orienta que o ensino de história e cultura local deve ser incentivado como forma de valorização da diversidade cultural brasileira. Em Teixeira de Freitas, projetos pedagógicos que trabalham com a escuta e a reinterpretação de causos populares — como o do Menino do Km 880 ou da Sinhá Emancipa — podem estimular a criatividade dos alunos e conectá-los à sua herança cultural. O educador Paulo Freire já apontava a importância do diálogo com a cultura do lugar como condição para uma educação significativa.
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ARTE E LUGAR DE PERTENCIMENTO
A dramatização de narrativas populares em teatros comunitários, murais escolares e festivais de bairro representa um caminho concreto para a revitalização cultural. De acordo com a pesquisadora Ana Mae Barbosa, a arte-educação é um instrumento de leitura do mundo e de expressão de subjetividades. Em várias cidades do Nordeste, como Juazeiro do Norte e Caruaru, experiências artísticas baseadas no imaginário popular geraram espaços permanentes de exibição cultural. A visualidade das lendas, quando incorporada ao cotidiano urbano, transforma o espaço público em uma galeria viva de memória coletiva.
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O TURISMO DE BASE COMUNITÁRIA NO BRASIL
O turismo de base comunitária (TBC) vem se consolidando como alternativa sustentável de geração de renda e fortalecimento cultural. Trata-se de um modelo no qual os próprios moradores organizam a recepção de visitantes, oferecendo hospedagem, alimentação, roteiros temáticos e vivências culturais. Segundo o Ministério do Turismo, mais de 300 iniciativas de TBC estão mapeadas no país, com destaque para os quilombos de Alcântara (MA), a Ilha de Boipeba (BA) e os assentamentos do sul do Pará. A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha defende que “o turismo, quando protagonizado por comunidades, pode ser uma alavanca para a valorização de saberes locais e o fortalecimento da autonomia cultural”.
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FOLCLORE COMO ROTEIRO VIVO
Em Teixeira de Freitas, o repertório de personagens e histórias pode ser transformado em roteiros culturais que envolvam visitas a pontos simbólicos da cidade, apresentações ao vivo e oficinas temáticas. Os “roteiros do encantamento”, como são conhecidos em cidades como São Luiz do Paraitinga (SP), combinam caminhada histórica com narração oral, oferecendo ao visitante uma imersão sensorial na cultura local. O Instituto Brasileiro de Turismo (Embratur) aponta que o turismo cultural é responsável por 40% do fluxo turístico internacional e que o patrimônio imaterial tem ganhado centralidade nas estratégias de promoção territorial.
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FAMÍLIAS E IGREJAS COMO GUARDIÃS
A tradição oral sobrevive graças à transmissão familiar e aos espaços de convivência comunitária. As igrejas, sobretudo nos bairros periféricos, funcionam como importantes pontos de encontro onde histórias, causos e saberes são compartilhados entre gerações. A socióloga Silvia Helena Simões Borelli observa que “a oralidade religiosa, sobretudo no protestantismo popular, é um meio de atualização da experiência histórica do grupo”. Incorporar as comunidades de fé e as famílias em projetos de mapeamento cultural e turismo pode ampliar a legitimidade das ações e reforçar o enraizamento das memórias.
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FEIRAS CULTURAIS E ECONOMIA CRIATIVA
As feiras culturais que reúnem gastronomia, artesanato e apresentações artísticas são ambientes férteis para a ativação econômica do folclore. Em cidades como Porto Seguro e Ilhéus, a valorização do patrimônio oral nas feiras resultou na criação de produtos turísticos com identidade local, como cordéis, camisetas ilustradas e pratos típicos inspirados em lendas. A pesquisadora Lia Calabre, da Fundação Casa de Rui Barbosa, afirma que “a economia criativa de base comunitária é uma forma de distribuir renda, estimular a criação e preservar valores simbólicos”. Em Teixeira de Freitas, as feiras podem funcionar como vitrines da memória local.
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LEGADO E CONTINUIDADE
Transformar o folclore em patrimônio vivo é um desafio que exige continuidade, articulação e apoio institucional. A cidade que valoriza seus mistérios passa a narrar-se a si mesma de maneira positiva, atraindo visitantes e fortalecendo sua autoestima. A memória, quando cultivada coletivamente, deixa de ser apenas lembrança e passa a ser política pública, educação crítica e economia cultural. O legado das histórias ouvidas e escritas entre orações e cadernos pode ser o início de um novo capítulo para Teixeira de Freitas: aquele em que a imaginação popular se torna alicerce de desenvolvimento e cidadania.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Freire, Paulo – Pedagogia do oprimido (1968)
Cunha, Manuela Carneiro da – Cultura com aspas e outros ensaios (2009)
Calabre, Lia – Políticas culturais no Brasil: tramas, trajetórias e tensões (2016)
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6) DO ENCANTAMENTO À AÇÃO
Com Folclore da Minha Cidade, quis mais do que registrar histórias: quis fazer um gesto de gratidão à terra que me acolheu, e ao povo que me confiou seus segredos. Mas também lancei uma semente. Quando um povo acredita no valor de suas próprias narrativas, ele começa a contar sua história com mais coragem — e a escrever seu futuro com mais consciência. A valorização do folclore é, sim, um ato cultural, mas também político, econômico e pedagógico. Que Teixeira — e tantas outras cidades — possam colher os frutos dessa memória encantada, promovendo turismo, identidade e desenvolvimento por meio do que têm de mais genuíno: sua própria voz.
NARRAR PARA EXISTIR
A valorização das narrativas populares representa mais do que a preservação de tradições: é um exercício de reconhecimento coletivo. Em contextos de urbanização acelerada e apagamento simbólico, como o de Teixeira de Freitas, o folclore se torna um meio para o povo afirmar sua existência cultural e histórica. O sociólogo Ecléa Bosi ressalta que a memória oral é o território simbólico onde as comunidades constroem sentidos para sua experiência cotidiana. Ao registrar os “causos” de sua cidade, o autor de Folclore da Minha Cidade mobilizou um processo que extrapola a literatura: trata-se de ativar o direito à memória como ferramenta de cidadania.
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VOZES LOCAIS COMO POLÍTICA PÚBLICA
O fortalecimento das vozes locais implica sua institucionalização nas políticas culturais e educacionais. Iniciativas como os Pontos de Cultura, lançados pelo Ministério da Cultura em 2004, mostraram que o incentivo às expressões comunitárias pode gerar impactos concretos em autoestima, renda e coesão social. A pesquisadora Albino Rubim observa que “a política cultural deve ser entendida como política de Estado, voltada à garantia de direitos culturais e à ampliação da democracia simbólica”. Em Teixeira de Freitas, a criação de um plano de cultura que incorpore o patrimônio oral pode fortalecer a identidade coletiva e estimular a produção cultural autônoma.
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CULTURA E ECONOMIA TERRITORIAL
A ativação da economia simbólica local passa pela valorização de seus ativos intangíveis, entre eles as lendas, ritos e personagens que habitam o imaginário popular. O economista Celso Furtado já destacava que a cultura é o núcleo estruturador do desenvolvimento, especialmente em territórios periféricos. A transformação dessas narrativas em produtos e serviços culturais — como festivais, roteiros turísticos, livros, espetáculos e mídias digitais — pode estimular cadeias produtivas locais e promover inclusão social. Para isso, é necessário planejamento, qualificação profissional e articulação entre sociedade civil, poder público e iniciativa privada.
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IDENTIDADE COMO BASE DO DESENVOLVIMENTO
O desenvolvimento sustentável de uma cidade envolve, além de indicadores econômicos, a construção simbólica de pertencimento e identidade. O antropólogo Stuart Hall afirma que “a identidade cultural é uma construção contínua e estratégica que articula passado e presente na invenção do futuro”. Quando uma cidade assume sua voz — e não apenas importa modelos externos —, ela potencializa suas capacidades locais. Em Teixeira de Freitas, o ato de recontar histórias ancestrais pode ser o ponto de partida para políticas urbanas, educacionais e turísticas fundamentadas na escuta ativa e no respeito às suas raízes.
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A EDUCAÇÃO COMO ESPAÇO DE ESCUTA
A escola é um dos espaços mais estratégicos para articular a memória popular com a formação cidadã. Iniciativas como o projeto “Escola Viva a Memória”, realizado em municípios do interior do Ceará, demonstram que a oralidade, o teatro e a contação de histórias, quando incluídos no currículo, geram maior engajamento dos alunos e estabelecem vínculos afetivos com o território. O educador Moacir Gadotti defende que “uma educação comprometida com a realidade deve partir da cultura do lugar, da história do povo e de seus modos de vida”. O folclore, nesse sentido, não é apenas conteúdo, mas linguagem educativa.
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DO LIVRO À CIDADE
Folclore da Minha Cidade não é apenas um compêndio de lendas; é um gesto político de escuta e devolução simbólica. Sua possível transformação em política pública, em guia turístico ou material pedagógico depende da decisão coletiva de ver no folclore não um resquício do passado, mas um eixo estruturador de futuro. Como observam os estudos do Observatório da Diversidade Cultural (UFMG), a gestão da cultura deve considerar os bens imateriais como instrumentos de planejamento urbano e social. O livro, ao ser apropriado pela cidade, pode se tornar ferramenta de ação pública, fortalecendo os laços entre memória e projeto.
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UMA CIDADE QUE CONTA SUA HISTÓRIA
O reconhecimento do valor das narrativas locais leva a uma nova forma de relação entre povo, território e futuro. Quando os moradores se veem representados em suas lendas e causos, ativam um sentimento de pertencimento que transforma o espaço em comunidade. Em Teixeira de Freitas, o encantamento das histórias pode dar lugar à ação: à construção de políticas, à geração de renda, à formação de cidadãos conscientes. Nesse processo, o que era segredo sussurrado entre vizinhos se torna símbolo compartilhado, e o que era silêncio se converte em voz pública.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Hall, Stuart – A identidade cultural na pós-modernidade (1997)
Furtado, Celso – Cultura e desenvolvimento em tempos de crise (2008)
Bosi, Ecléa – Memória e sociedade: lembranças de velhos (1979)
CONCLUSÃO
O que começou como uma prática pastoral de escuta e acolhimento revelou-se, com o tempo, um repositório vasto de sabedoria popular, que muitos esquecem de reconhecer como patrimônio. As lendas de Teixeira de Freitas não são meras invenções: são códigos simbólicos de uma cidade que se narra para sobreviver, para se fortalecer, para pertencer. Registrar essas histórias é mais do que um exercício de memória — é um ato de cidadania cultural.
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A valorização do folclore, nesse contexto, torna-se um projeto de desenvolvimento pleno. Em um Brasil tão desigual, onde o interior é muitas vezes negligenciado, dar valor ao que o povo conta é também afirmar que o povo importa. Que suas formas de ver o mundo, de lidar com o sagrado e com o medo, são legítimas. E que disso pode nascer um movimento que articule cultura, turismo, renda e dignidade, como já demonstram diversas cidades que fizeram de suas narrativas populares um atrativo turístico e educacional.
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Para que isso aconteça, é essencial o envolvimento do poder público, da educação, das lideranças comunitárias e da iniciativa privada. O livro Folclore da Minha Cidade é um convite — e um exemplo concreto — para que outras cidades façam o mesmo: documentem suas memórias, encenem seus causos, criem espaços de fruição simbólica. Porque uma cidade que acredita em suas histórias tem força para criar novos capítulos — e prosperar com eles.
BIBLIOGRAFIA
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Dicionário do Folclore Brasileiro – Câmara Cascudo – 1962
Obra clássica que compila crenças, costumes, lendas e personagens do folclore brasileiro. Fundamenta-se em décadas de pesquisa etnográfica e é indispensável para compreender o universo simbólico e cultural dos povos do Brasil. -
Folclore e Desenvolvimento Cultural – Maria Isaura Pereira de Queiroz – 1995
Analisa o folclore não apenas como herança cultural, mas como fator ativo de desenvolvimento sociocultural e político. A autora defende o papel estratégico da cultura popular na formação de identidades comunitárias. -
O povo sabe o que diz: memória e tradição oral no Brasil – Regina Abreu – 2003
Trata da oralidade como forma de transmissão de saberes e de construção da história coletiva, especialmente em contextos não letrados ou de baixa escolaridade. Um estudo fundamental sobre a escuta como método. -
Cultura Popular e Identidade – José Jorge de Carvalho – 2001
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A Tradição e o Presente: Estudos de Cultura Popular – Luís da Câmara Cascudo – 1971
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O que é Cultura Popular – Walnice Nogueira Galvão – 1983
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Turismo e Cultura: Caminhos da Sustentabilidade – Maria Cristina Castilho Costa – 2011
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A Invenção das Tradições – Eric Hobsbawm e Terence Ranger – 1983
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Os Donos da Memória: A história da antropologia e do folclore no Brasil – Lilia Moritz Schwarcz – 2000
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Patrimônio Imaterial e Identidade Cultural – Antonio Augusto Arantes – 2005