CAMINHOS DO AUTO-ENCONTRO NO SÉCULO 21
“O século 21 será espiritual, ou simplesmente não será”. A frase foi atribuída ao filósofo André Malraux. Ele desmentiu a autoria, mas nunca contestou o conteúdo da afirmação. Quais são as principais características da busca espiritual nos dias de hoje?
30 DE AGOSTO DE 2012 ÀS 11:11
Por Luis Pellegrini
Ela entrou na minha sala com pisar decidido, sorriso bem aberto, e o jeito de falar de quem já fez vários cursos de auto-ajuda, de magnetismo pessoal, de controle do poder da mente. Apresentou-se e disse o nome separando cada sílaba, de modo a deixá-lo indelevelmente impresso na minha memória: "Olá, como vai? Sou Fu-la-na-de-Tal". Esse foi o primeiro sinal. Notei que trazia ao pescoço uma pequena pirâmide de cristal engastada numa moldura de fio de ouro e pendurada numa corrente fina. O segundo sinal. Quando estendeu-me a mão, lá estava, brilhando no dedo anular, um anel atlante. Terceiro sinal. Convidei-a a sentar, já um tanto apreensivo.
Um pensamento quase perverso invadiu minha mente: “Agora ela vai me contar cada detalhe do encontro de terceiro grau que acaba de ter com um ser extraterrestre tripulante de disco voador”. Mas uma outra voz interna, mais sensata, embora menos divertida , tentou enfriar essas cogitações de mau agouro. A voz disse: “Luis, não seja tão intolerante. Você vai ficar um velho cansado. Você sabe que expectativas pessimistas são o melhor meio para se atrair experiências negativas”. Baixei a cabeça para o conselho do diabo sábio que às vezes surge dentro de mim, respirei fundo, e encarei o belo rosto à minha frente.
Nos muitos anos em que fui diretor da revista Planeta, recebi muitas dezenas de visitas do mesm o tipo. Perguntei a ela em que lhe podia ser útil. Ela queria minha opinião sobre alguns temas de linha esotérica que, nos últimos anos, tinham se tornado o seu assunto preferido. Não os temas em si, mas o modo como ela os abordava, confirmou, para meu desalento, minha primeira intuição. Perguntou-me sobre anjos e a possibilidade de se entrar em contato com eles para que resolvessem uma série de problemas; sobre pantáculos cabalísticos - um tipo de amuleto e talismã protetor na forma de complicados diagramas desenhados; sobre a energia curativa das pirâmides e dos cristais. Minhas respostas foram, em geral, evasivas. Embora tenha escrito muito sobre ocultismos, New Age, Era de Aquário e quetais, nem de longe possuo um conhecimento enciclopédico que me permita falar, a bel prazer, sobre tudo e qualquer coisa do complexo mundo das coisas esotéricas. De qualquer forma, o teor da conversa com minha visitante serviu rapidamente para confirmar um diagnóstico que, desde o início, se configurara: achava-me na presença de mais uma legítima representante da legião dos buscadores da varinha de condão. A tribo cada vez mais numerosa daqueles que procuram nos préstimos de alguma fada madrinha a solução mágica para os seus próprios problemas, para os problemas dos outros, e os do mundo. Soluções que, de preferência, não dependam de muito esforço pessoal, mas que aconteçam assim, no estalar dos dedos, graças à intervenção de algum objeto de poder, alguma força mágica, alguma entidade benéfica do astral.
O número dos legionários da varinha de condão é tão grande, que fico a pensar quem realmente lê toda a farta literatura do gênero atualmente disponível nas livrarias. Quem realmente presta atenção nos ensinamentos dos assim chamados grandes mestres das religiães, como Gautama Buda; da psicologia, como Carl Jung; dos gurus verdadeiros das filosofias espiritualistas, como o indiano Ramana Maharishi ou o americano Paul Brunton.
Desde que o mundo é mundo, todo autor sério do pensamento esotérico, todo filósofo espiritualista digno desse nome, repete exaustivamente o mesmo ensinamento: todas as respostas vêm de dentro; todas as soluções surgem primeiro no interior da pessoa, para depois serem projetadas no mundo exterior. O que chamamos de abertura espiritual, e que é, em quase total medida, sinônimo de crescimento psicológico e de ampliação dos níveis da consciência, é sempre resultado de muito trabalho no sentido do autoconhecimento, da autodisciplina e da autoconfiança. Nada que venha de fora pode fazer por nós aquilo que deve acontecer dentro de nós: a criação de nós mesmos. Suportes externos - venham êles na forma de tarôs, horóscopos, búzios, rituais mágicos, etc. - podem, no máximo, funcionar como apoios simbólicos, como setas que vão indicando o caminho. Mas não podem percorrer o caminho por nós.
Tentei discutir tudo isso com a minha visitante. Mas ela abriu a bolsa e retirou lá de dentro um magnífico cristal de quartzo transparente que devia pesar pelo menos meio quilo. Mostrou-me o objeto e perguntou: “Quer dizer que, na sua opinião, o fato de eu andar com esse cristal não ajuda em nada o meu crescimento espiritual e nem traz benefícios para a saúde? Você não acredita no poder dos cristais?”
Pensei com cuidado na resposta. Sabe-se lá qual expectativa utópica ela poderia estar projetando naquele cristal? E disse, em tom de professor de ciências exatas: “Pelo que sei, a estrutura cristalina do quartzo tem a propriedade de mobilizar certos campos de energia. A física estuda isso. Se essa propriedade do cristal influi ou não sobre o campo energético das pessoas, é coisa que só a ciência pode verificar. Agora, acreditar num cristal? Como vou acreditar num pedaço de pedra?”
Nossa conversa, a partir daí, infelizmente azedou. Minha interlocutora era uma daquelas que não admitem contestação às suas conviccões. Eu sou um daqueles que desconfiam de toda crença que não tenha passado pelo crivo da minha vivência pessoal. E mesmo assim, mais de uma vez, percebi depois que as conclusões que tirara de minha vivência estavam equivocadas, e tive de mudar minha convicção. Por isso o diálogo entre nós ficou difícil. Logo depois ela foi embora, levando consigo todos os seus objetos de poder, inclusive o cristal de meio quilo.
Mas esse encontro foi para mim objeto de muita reflexão, que acabou se resumindo na pergunta: Por que, ainda hoje, há tantas pessoas que procuram soluções mágicas para os seus problemas?
A primeira ideia que me ocorre tem a ver com a grave crise de civilização que vivemos nos dias de hoje. Uma crise global, de características e dimensões que não têm precedentes em toda a história da humanidade. Em todas as áreas do conhecimento humano, seja ele de tipo científico, filosófico, religioso ou artístico, os valores estabelecidos são questionados, as certezas são postas em dúvida. Aquilo que ontem era tido como verdade indiscutível, hoje está sendo reexaminado, e amanhã já poderá ser descartado como coisa superada e sem valor. E vice-versa.
A tais períodos, onde quase tudo é incerto, os especialistas chamam de “crise histórica”. Para os astrólogos, trata-se da crise da passagem da Era de Peixes para a Era de Aquário. Isso significa que um ciclo cósmico da vida da humanidade está se encerrando, e que, ao mesmo tempo, um outro ciclo, inteiramente novo, está nascendo. Como em toda situação onde morte e renascimento estão presentes, há também muita angústia e insegurança para a maioria das pessoas. E não existe estado psicológico mais propício à busca da soluçäo mágica do que o da angústia e insegurança.
Mas, como ensinam os sábios chineses, crise é sinônimo de oportunidade de transformação. É nesses momentos históricos críticos em que as escalas tradicionais de valores envelhecem e perdem substância que costuma aflorar nas pessoas uma grande inquietude existencial e espiritual. E é exatamente a energia coletiva dessa inquietude o combustível que alimentará o processo de criação de uma nova civilizaçäo. Da mesma forma, como bem sabem os psicoterapeutas, para que haja uma real transformação na estrutura psicológica da pessoa é preciso, antes, que a estrutura envelhecida entre em crise. As leis que regem o funcionamento do indivíduo humano são as mesmas leis que regem o funcionamento da sociedade humana, do planeta e do próprio cosmos.
Essa situação geral de crise-oportunidade de transformação atualmente em curso já provocou várias alterações no comportamento individual e coletivo. Na área da religião e da espiritualidade, por exemplo, a tendência crescente que se observa é a de um comportamento muito diferente daquele praticado até há pouco, nos séculos que se convencionou chamar de “Era de Peixes”, e que iria, segundo a astrologia, dos tempos de Cristo até os nossos dias. Em Peixes, a maioria das pessoas aceitava passivamente as explicações que as diversas igrejas forneciam em relação ao mundo e a vida espiritual. Mesmo as colocações dogmáticas mais absurdas tinham de ser engolidas sem discussão. Nada era questionado e, no que tocava à religião, as pessoas se comportavam de modo infantil, como crianças que, ainda incapazes de discernir por conta própria, aceitam tudo que os pais lhes proporcionam, desde alimentação e vestuário, até educação e normas de comportamento.
Agora que, sempre segundo a astrologia, começamos a entrar em Aquário, a tendência em matéria de religião é muito diferente. Hoje, aconselha-se cada vez mais as pessoas a buscar dentro de si aquelas respostas, e a não mais esperar que elas venham de fora, já digeridas e preparadas para serem engolidas.
Como fazer esse mergulho interior em busca de respostas e, principalmente, em busca de si mesmo? De início é preciso entender uma coisa com a qual a religião e a ciência moderna concordam inteiramente: o ser humano é uma síntese de todo o universo. Ele é um microcosmo que abriga em si todas as leis e todas as propriedades, todas as possibilidades e todo o mistério do macrocosmo. Além disso, é um microcosmo dotado de um certo grau de consciência. E, no fundo da consciência individual, existe uma voz que nos fala, quando nos dispomos a ouvi-la. Essa voz é capaz de responder a todas as perguntas, não dando todas as respostas de uma vez, mas sim fornecendo-as uma a uma, à medida que delas tenhamos necessidade. Essa voz é aquilo que todos os sábios, de todos os tempos, conheciam pelo nome de “Deus interior”, e que os modernos psicólogos, cada vez mais próximos dos sábios da antiguidade, chamam agora de "eu superior", o self da psicologia de Carl Jung.
Estabelecer um diálogo inteligente com o próprio self é objetivo fundamental de todas as religiões e psicologias verdadeiras. Muitas técnicas foram criadas, ao longo dos milênios, e pelas diferentes civilizações, para ajudar as pessoas a chegar lá. Uma delas, por exemplo, é a meditação, que não significa, como muita gente acredita, ficar refletindo longamente sobre um tema ou outro. Meditar significa serenar a mente, quase sempre uma infatigável tagarela, acalmar as emoções e relaxar os músculos, para que a pessoa possa se recolher no interior de si mesma, no centro da sua mente e do seu coração, onde habita o eu superior.
Há inúmeras modalidades de meditação, agrupadas em duas grandes categorias: a das meditaçöes estáticas e a das dinâmicas. No primeiro caso estão aquelas técnicas que empregam posturas clássicas e tradicionais. O meditador costuma se sentar numa cadeira ou simplesmente no chão, de pernas cruzadas. Através de um relaxamento passivo, ele tranquiliza seu corpo, suas emoções e sua mente e vai, pouco a pouco, mergulhando dentro de si. Corta os canais de comunicação com o mundo exterior (visão, audição, olfato, tato, paladar), e abre os canais que dão acesso aos sentidos interiores. Nas meditações dinâmicas obtem-se o mesmo resultado, porém as técnicas não são passivas e sim ativas. Envolve movimentos, exercícios corporais, respirações. As artes marciais (judô, caratê, kung-fu, tai chi chuan etc.) são consideradas técnicas de meditação dinâmica. As danças rituais do candomblé e da umbanda constituem outro exemplo dessa modalidade de meditação. E, a rigor, também a dança - quando o bailarino se entrega inteiramente aos movimentos que nascem dentro de si e consegue exprimir esses movimentos com o próprio corpo -, e a música - quando o instrumentista ou o cantor sentem que entre eles e o som musical não há mais diferença -, são meditações dinâmicas. Se prosseguirmos nessa linha, chegaremos à conclusão de que toda e qualquer atividade humana, desempenhada não de modo frio, automático e robotizado, mas sim com toda a nossa consciência e todo o nosso sentimento, são, afinal, formas de meditação que nos levam ao self. Ir à cozinha e exercitar o talento de preparar com amor um prato delicioso pode ser, por exemplo, uma excelente meditação dinâmica.
Por outro lado, para mostrar que a moderna psicologia busca, no fundo, o mesmo objeto da verdadeira religião, basta ressaltar que todas as modernas escolas de psicoterapia (psicanálise, psicologia analítica, psicologia transpessoal etc.) também são, no fundo, técnicas para conduzir o indivíduo na senda do autoconhecimento que leva ao contato com o seu eu superior.
Mas, para que isso aconteça, é preciso em primeiro lugar que nos libertemos da massa de condicionamentos artificiais que quase sempre nos impede de saber quem realmente somos. Todos nós somos vítimas de um grande número de condicionamentos que nos são impostos desde que nascemos e ao longo de toda a vida. São condicionamentos educacionais, familiares, sociais, culturais, religiosos que pouco a pouco vão nos moldando e, ao mesmo tempo, funcionando como uma camisa de força que nos impede de respirar a vida com toda a capacidade de que dispomos. Desbastar essa floresta dos condicionamentos, para que possamos ver, compreender e aceitar a nossa pessoa real, é condição sem a qual não é possível o tão ambicionado contato com o eu superior.
E é preciso, como segunda condição fundamental, abdicar dessa tendência infantil de buscar respostas e soluções fora de nós mesmos. Nosso centro de gravidade deve permanecer sempre dentro de nós. Não deve ser projetado para fora, pois isso fatalmente nos coloca em situação de desequilíbrio. É exatamente isso que a sabedoria popular quer dizer quando alerta: “Fulano está fora de si”.
O moderno conceito aquariano de trabalho psicológico-espiritual diz claramente que nada fora de nós poderá fazer o trabalho que toca a nós. Não há cristal, nem gnomo, nem pirâmide, nem pantáculo que possa efetivamente nos ajudar. A não ser, para falar como poeta capenga, o cristal claro dos nossos sentimentos, o gnomo dos nossos instintos, a pirâmide da nossa mente, o pantáculo da nossa sensibilidade intuitiva. E nenhum espírito encarnado ou desencarnado, nenhum anjo ou orixá poderá fazê-lo por nós. Mesmo o melhor dos gurus, o mais sério, honesto e competente, não poderá ser mais do que o parteiro do nosso renascimento. Um guia amigo que, com sua experiência, poderá facilitar nossa caminhada. Mas que nunca poderá trilhar a estrada pessoal, única e irrepetível, que foi desenhada para cada um de nós.
Isso é realmente tudo que, depois de anos de investigação, de tantos erros e alguns acertos, eu poderia de coração dizer à Fu-la-na-de-Tal. Se ela quisesse ouvir. Dizer que, à medida em que assumimos, com liberdade e com responsabilidade, a autoria de nós mesmos, passamos a ouvir, cada vez com maior clareza, a voz do nosso eu superior. É essa voz, e não outra, que nos ajudará a responder a mais importante de todas as perguntas: Quem sou eu? E que, finalmente, nos fará talvez um dia entender que somos apenas aquilo que fizemos de nós.
http://www.brasil247.com/pt/247/revista_oasis/77429/A-busca-espiritual---Caminhos-do-auto-encontro-no-s%C3%A9culo-21.htm