- "O ódio como política: A reinvenção das direitas no Brasil" - Esther Solano (2018)
- "A Igreja do Medo: Ressentimento, autoritarismo e o PT" - Ricardo Alexandre (2018)
- "Democracia e religião: Tensões e diálogos" - Lídice Meyer Pinto Ribeiro (org.) (2017)
- "Religião e política no Brasil: Ensaios de sociologia e de história" - Ronaldo de Almeida (org.) (2006)
- "Evangélicos e mídia: Discursos, práticas e disputas" - Sandra Duarte de Souza (org.) (2013)
- "O surgimento do neopentecostalismo no Brasil: Uma análise histórica" - Magali do Nascimento Cunha (2001)
- "A religião no espaço público: Estudos sobre os pentecostais no Brasil" - Cecília Mariz (org.) (2009)
- "Mídia, religião e política: A nova cruzada midiática" - Jorge Miklos e Pedro Gerolimich (2012)
- "Política e religião: Perspectivas históricas e contemporâneas" - Antonio Carlos Santana de Souza (org.) (2014)
- "O Espírito Santo e o mercado: Um estudo de caso da Igreja Universal do Reino de Deus" - Reginaldo Prandi (1997)
Evangélicos brasileiros têm revelado a desobediência a uma das orientações que permeiam o livro sagrado cristão: não mentir
Apesar de serem caracterizados, histórica e culturalmente, pelo apego à Bíblia, evangélicos brasileiros têm desobedecido intensamente nos últimos anos uma das principais orientações do livro sagrado cristão: não mentir.
Nos muitos textos sobre o tema, é enfatizado que Deus abomina a mentira, como no trecho de Provérbios 6.16-19, que se torna uma síntese dos outros vários.
“Há seis coisas que o Senhor odeia, sete coisas que ele detesta: olhos altivos, língua mentirosa, mãos que derramam sangue inocente, coração que traça planos perversos, pés que se apressam para fazer o mal, a testemunha falsa que espalha mentiras e aquele que provoca discórdia entre irmãos.”
Apesar da nítida orientação contida no livro tão amado e ressaltado por evangélicos, o que temos acompanhado no Brasil, pelo menos desde 2018, é um conjunto de posturas que favorece a circulação e a propagação de mentiras entre este grupo.
Estas posturas se configuram em um ponto inicial que é a formulação do conteúdo mentiroso dentro do próprio ambiente evangélico. Segundo o acompanhamento realizado desde a pesquisa Caminhos da Desinformação: Evangélicos, Fake News e WhatsApp no Brasil até o que é empreendido pelo Coletivo Bereia – Informação e Checagem de Notícias, pastores, pastoras, presidentes de igrejas, bispos e outra autoridades, influenciadores digitais, entre artistas gospel, políticos evangélicos e outras personagens que ocupam o espaço público e emergem como celebridades midiáticas, criam conteúdo falso e enganoso e o propagam em seus espaços nas mídias sociais dos aplicativos populares das big techs.
Nesta postura, parece haver uma intenção, ou seja, elaboração deliberada da mentira, para captar apoios de natureza demagógica nas comunidades evangélicas a temas e pautas de cunho ideológico. Entre elas esteve, por exemplo, a oposição a procedimentos científicos, como as medidas sanitárias aplicadas para a prevenção da covid-19 nos anos de 2020 e 2021. Está também a negação do valor da vacinação na proteção contra doenças e a aversão aos direitos de pessoas que não aplicam em suas vidas a orientação dos costumes evangélicos no tocante à sexualidade.
É possível contabilizar neste grupo material falso contra o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral e sobre fraudes em urnas eletrônicas, por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro durante o processo eleitoral 2022, entre outros temas, como foi o caso da campanha contra o Projeto de Lei 2630/2020, denominado popularmente de Lei das Fake News. A noção de que a chamada Lei das Fake News é uma lei de censura criada pelo atual governo e pelas esquerdas e o STF para silenciar as igrejas e para impedir críticas públicas a políticos, foi fartamente disseminada por estas personagens citadas acima.
Outra postura é o alinhamento à mentira da parte deste grupo e de lideranças que estão em nível intermediário (pastores e pastoras e pessoas que têm funções de destaque nas diversas comunidades evangélicas do Brasil afora) com a replicação (o compartilhamento) de conteúdo produzido por terceiros. Boa parte destas mensagens não tem conteúdo religioso exclusivo, mas traz temas como o do suposto cerceamento de liberdade de expressão, o negacionismo em relação à ciência (em especial na área da saúde), a ameaça comunista e de ativistas feministas e LGTBI+, e são repercutidos por afinidade/alinhamento ideológico.
Produtores da indústria da desinformação, que não são religiosos, mas querem captação de apoio para interferir em temas de interesse público e obter vantagens (políticas ou financeiras), conseguem assessoria de lideranças e influenciadores evangélicos para produzirem material específico destinado ao grupo. Oferecem memes, cards, áudios, vídeos, com linguagem que cria vínculos emocionais, com textos bíblicos, por exemplo. No caso da desinformação em torno do PL 2630, tornou-se conhecido que a Câmara Brasileira de Economia Digital, associação brasileira que reúne empresas como Meta (Facebook, Instagram e WhatsApp), Google e TikTok produziu um documento entregue a deputados afirmando que o projeto de lei proibiria a livre expressão de cristãos nas mídias sociais, especialmente a publicação de certos versículos bíblicos. O conteúdo falso foi disseminado por personagens como o deputado federal da Igreja Batista Deltan Dallagnol.
A postura da assimilação, por evangélicos comuns, as pessoas que participam cotidianamente das igrejas, é a que torna este grupo um forte propagador, ou “traficante” de desinformação. Fiéis evangélicos são os destinatários de todo este conteúdo. Tanto as lideranças e influenciadores religiosos, como os produtores da indústria da desinformação, buscam afetar estas pessoas, como mencionado acima, lançando mão do imaginário evangélico sedimentado em quase dois séculos de pregação e atuação predominantes entre grupo religioso no Brasil.
Este imaginário é moldado por elementos-chave como a superação perseguição religiosa, algo que absolutamente não existe no país contra cristãos, mas que é acionado pela imagem bíblica da perseguição de Roma aos primeiros cristãos; o enfrentamento de inimigos, as hostes do mal (Satanás e seu séquito) que atuam contra a propagação do Evangelho e o crescimento das igrejas; a pureza do corpo, em especial no cultivo de uma sexualidade padronizada no ocidente como heteronormativa, guardada para o casamento monogâmico para a geração de filhos e prosseguimento no povoamento da Terra.
Além de assistirmos a esta instrumentalização da religião para campanhas públicas em bases falsas e enganosas, vemos também o uso da palavra, por parte de líderes, para perseguir e atacar quem se coloca em oposição a estas posturas dentro das igrejas. Não são poucas as pessoas classificadas como não cristãs, traidoras da igreja, simplesmente por denunciarem o uso da mentira para capturar apoios.
Fica o desafio de pessoas e grupos evangélicos retomarem a Bíblia tão amada e um dos destacados ensinamentos de Jesus sobre conhecer a verdade, tal como registrado no Evangelho de João, fartamente instrumentalizado em discursos políticos do ex-presidente que deixou o cargo em 31 de dezembro passado, a mentira é exposta como filha do inimigo de Deus, o Diabo. Jesus diz, aos que se colocavam em oposição às suas ações, e que apregoavam mentiras neste debate público: “Vocês pertencem ao pai de vocês, o Diabo, e querem realizar o desejo dele. Ele foi homicida desde o princípio e não se apegou à verdade, pois não há verdade nele. Quando mente, fala a sua própria língua, pois é mentiroso e pai da mentira” (João 8.44).
Nunca foi tão urgente enfrentar a intolerância religiosa
Historicamente, a intolerância religiosa no país remonta ao exclusivismo católico no Brasil Colônia, sob a ideologia da superioridade europeia
Recorrentes casos de incêndios e destruição de terreiros de candomblé e de umbanda e de monumentos relacionados a estas religiões. Frequentes episódios de discriminação e ataques contra a integridade de pessoas afrorreligiosas vestidas com símbolos sagrados. Significativo número de capelas e igrejas cristãs católicas pichadas, com imagens sagradas destruídas. Diversas situações de ofensa e violência física a mulheres muçulmanas. Periódica desqualificação pública de evangélicos como pessoas esquisitas, alienadas, ignorantes, vigaristas e charlatãs. Diversas formas de agressão contra judeus e sinagogas. Certo índice de assédios e afrontas contra ateus e contra pessoas que não confessam uma religião.
Sim, estamos falando do Brasil, na segunda década do século 21, e de práticas intensificadas neste período, identificadas como “intolerância religiosa”. Entre as muitas formas de indisposição ao outro, ao diferente, da falta de capacidade ou de vontade de coexistir, de reconhecer e de respeitar as diferenças, está a intolerância religiosa. Ela se concretiza em preconceito, discriminação, segregação, ódio, violência nas mais diferentes expressões, contra vinculações, práticas e expressões religiosas e de fé e do direito de não se ter uma crença.
A intolerância religiosa pode ser praticada por religiões dominantes frente a outras expressões religiosas e de não-religião, e entre religiosos contra diferentes formas de interpretar e viver a fé dentro de uma mesma religião.
Historicamente, a intolerância religiosa no país remonta ao exclusivismo católico no Brasil Colônia, sob a ideologia da superioridade europeia. Durante o século 20, o Brasil viveu aberturas graduais à liberdade religiosa: mais facilmente em relação aos cristãos evangélicos e a religiões trazidas por imigrantes (como as orientais, por exemplo), porém, mais tardiamente com os grupos afrorreligiosos e de raízes indígenas.
Entretanto, a defesa da liberdade religiosa e o enfrentamento do racismo e da xenofobia tornou nítida a pluralidade religiosa nestas terras. O Brasil é um país plural do ponto de vista religioso. Esta noção, antes negada pela construção da imagem do país católico, vem sendo construída lentamente, a partir da segunda metade do século 20. As bases estão na defesa do direito à liberdade de crença e não crença, contidas na Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 18) e na Constituição Cidadã, de 1988 (artigo 5º).
Estes princípios foram fundamentais para alimentarem políticas públicas para garantia deste direito no Brasil, como o Disque 100 (serviço de denúncias e proteção contra violações de direitos humanos, que funciona 24 horas, todos os dias da semana). Também, a instituição do Dia Nacional do Combate à Intolerância Religiosa, 21 de janeiro (data escolhida em homenagem à Iyalorixá Mãe Gilda, morta em 1999, vítima de intolerância religiosa no final de 1999, e em referência ao Dia Mundial da Religião).
Relatórios apresentados pelo Estado brasileiro e por instituições como a Unesco, nos últimos 20 anos, reafirmam que a população afrorreligiosa é a mais vitimada. Um grupo de pesquisadores defende o termo “racismo religioso”, diante do que foi estruturado cultural e ideologicamente a partir da colonização, alimentador da intolerância.
No entanto, a situação se agravou na última década, com a insurgência de movimentos de extrema-direita política que conseguiram eleger o presidente da República em 2018.
O Brasil passou a experimentar o avanço dos fundamentalismos político-religiosos (de católicos e evangélicos e de outras religiões) que representam o uso da matriz religiosa para a defesa de pautas anti-direitos das minorias sociais, como mulheres, LGBTI+, comunidades tradicionais (negras e indígenas).
Emergiram grupos religiosos e inter-religiosos (cristãos, espíritas, judeus, islâmicos, de espiritualidades da floresta) que se revestem características passionais em alto grau, de fanatismo, de idolatria de personagens-líderes, e adquirem caráter de seita, com base em uma matriz religiosa ancorada na “luta contra inimigos da fé, da família, da Pátria”. Estes grupos usam o discurso da “liberdade religiosa” justamente para atuar pelo contrário, para agir livremente contra a pluralidade de ideias e de religiões e impor uma única forma de crer e de viver a fé.
A instrumentalização política da religião para alimentar práticas extremistas, ancoradas na imposição de uma única visão de mundo, no ódio, na exclusão, na eliminação do Outro, do Diferente, está provocando cada vez mais intolerância. Estas práticas, em si, já reproduzem, com agravantes, séculos de história do Brasil de violência contra religiões. Por outro lado, instigam intolerância em pessoas que desejam ver a justiça fluir para todos. Apesar delas se oporem a tal instrumentalização, acabam assumindo atitudes de rejeição e discriminação a expressões religiosas legítimas, que são, afinal de contas, um direito humano.
Nunca foi tão urgente enfrentar a intolerância religiosa, afinal, o quadro é grave, como descrito aqui. Porém, o momento, como declarado por lideranças de diversas frentes sociais, é de pacificação e de reconstrução da democracia, com base na pauta de direitos. Ficam como desafios para o Estado e para cada uma de nós:
- atuar para se garantir o direito de cada grupo religioso, qualquer que seja, existir e viver sua fé e para o direito de não se ter uma religião;
- denunciar e contrapor a instrumentalização política oportunista das religiões que nega o direito e engana com discursos que distorcem a noção da liberdade;
- educar em todos os espaços (incluindo os ocupados por agentes públicos) para a valorização da pluralidade religiosa e para o reconhecimento e o respeito às diferenças;
- desafiar lideranças, nos mais diversos níveis, a uma compreensão e à sensibilidade quanto ao lugar das expressões religiosas na vida das pessoas, como elemento que atribui sentido e estimula ações e vivências.