Selvageria agressiva começou com a sedentarização da humanidade
Nossa imagem do ser humano pré-histórico selvagem e guerreiro, que persiste até os dias atuais, na verdade, é um mito, criado na segunda metade do século 19. Pesquisas arqueológicas mostram que, na verdade, a violência coletiva surgiu com a sedentarização das comunidades e a transição de uma economia de predação para uma de produção. Foto de abertura: A “Cueva de las Manos”, no Rio Pinturas – com contornos detalhados de mãos humanas – é considerada um dos locais de habitat mais importantes para os primeiros grupos de caçadores-coletores da América do Sul. Na província de Santa Cruz, na Argentina.
6 de março de 2020, 12:58 h Atualizado em 6 de março de 2020, 14:30
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Por: Marylène Patou-Mathis (*)
Fonte: Courier Unesco
Mesmo que hoje os seres humanos pré-históricos ainda sejam percebidos na imaginação popular como seres violentos em conflito perpétuo, essas sociedades eram realmente tão violentas quanto a nossa? Somente os vestígios arqueológicos podem fornecer respostas a essas questões. Para caracterizar um ato violento, os arqueólogos estudam os impactos de projéteis e lesões em ossos humanos, avaliam o estado de preservação dos esqueletos e analisam o ambiente em que foram descobertos.
Atualmente, os mais antigos traços de violência já encontrados são aqueles resultantes da prática do canibalismo. Marcas de desmembramentos, definhamento (perda de massa muscular), fraturas e calcinação foram observadas em ossos humanos paleolíticos. Essa prática relativamente rara – que apareceu há 780 mil anos e foi documentada nas montanhas da Serra de Atapuerca, na Espanha – persistiu em outras sociedades nômades de caçadores-coletores da era paleolítica, bem como entre os agropastoris neolíticos. No entanto, essa evidência da ação de um ser humano sobre o corpo de outro ser humano levanta questões: as vítimas foram mortas antes de serem devoradas? Na verdade, o canibalismo alimentar pode ser praticado em indivíduos que já estão mortos – como no endocanibalismo funerário, que consiste em devorar um membro da própria família após sua morte.
A fome, provocada por escassez de comida, parece ser o principal fator que levava as comunidades a guerrear.
Devoradores e devorados
Apenas a presença de vestígios derivados da decapitação em ossos humanos, ou ferimentos ocasionados pelo impacto de projéteis ou de objetos contundentes causando a morte, pode apoiar a hipótese de que as vítimas consumidas foram mortas de forma violenta. Na era paleolítica, essas marcas foram observadas em menos de 30 casos. A questão permanece: os “devoradores” e os “devorados” pertenciam à mesma comunidade? Embora atualmente a prática de canibalismo – tanto alimentar quanto ritual – esteja documentada em vários sítios paleolíticos, muitas vezes é difícil saber se o que ocorreu foram casos de endocanibalismo ou de exocanibalismo.
Ausência de violência coletiva
Excluindo esse contexto específico, pouco menos de 12 casos de violência – impactos de projéteis, golpes na cabeça – foram identificados em várias centenas de ossos humanos com mais de 12 mil anos. No entanto, esses ferimentos são resultado de um acidente, ou de um ato de violência durante um conflito interpessoal, intragrupo ou intergrupo? Nesses períodos iniciais, é difícil fazer a distinção. Contudo, em muitos casos, lesões como essas, causadas por um choque ou por um golpe na cabeça, haviam cicatrizado. Assim sendo, essas pessoas não foram mortas, o que tende a provar que seus ferimentos foram resultado de um acidente, ou de uma briga entre duas pessoas.
Em outros casos, a questão da identidade do agressor surge novamente – o indivíduo era membro da comunidade da vítima, ou um forasteiro? Isso continua sem resposta. Além disso, o uso de ossos humanos na fabricação de objetos domésticos ou ornamentos também levanta a questão sobre as condições da morte desses indivíduos. Na maioria desses casos, é difícil concluir que a morte foi violenta, porque os ossos poderiam facilmente comprovar um procedimento fúnebre específico.
Dados arqueológicos mostram que uma forma de violência já existia na era paleolítica, sobretudo em cerimônias que envolviam o canibalismo. No entanto, até agora não foram encontradas evidências de violência coletiva. Na maioria dos casos retidos e estudados (fora do contexto do canibalismo), apenas um indivíduo foi vítima de violência – o que pode demonstrar a existência de conflitos interpessoais (raramente fatais) ou rituais de sacrifício.
Portanto, é razoável supor que não ocorreram guerras no período paleolítico, falando em sentido estrito. Diversas razões podem explicar essa ausência – uma população pequena, um território de subsistência suficientemente rico e diversificado, a falta de recursos e uma estrutura social igualitária e menos hierárquica.
Entre esses pequenos grupos de caçadores-coletores nômades, a colaboração e o apoio mútuo entre todos os membros do clã eram necessários para sua sobrevivência. Além disso, um bom entendimento entre eles era essencial para garantir a reprodução e, portanto, a descendência. A suposta “selvageria” dos seres humanos pré-históricos é, assim, apenas um mito – criado na segunda metade do século 19 e no início do século 20 para reforçar o discurso sobre o progresso alcançado desde o nascimento da humanidade e o conceito de “civilização”. Essa imagem de seres humanos pré-históricos “violentos e belicosos” é o resultado de uma construção acadêmica popularizada por artistas e escritores.
O desenvolvimento dos conflitos
A violência coletiva parece ter surgido com a sedentarização das comunidades no final da era paleolítica, por volta do ano 13 mil a.C. no Oriente Próximo; mas, novamente, apenas um ou poucos indivíduos foram mortos. Isso pode demonstrar a existência de conflitos dentro do grupo, mas também o surgimento de sacrifícios humanos.
Dois sítios são exceções a isso: o Sítio 117 de Jebel Sahaba, na margem direita do Rio Nilo na fronteira norte do Sudão com o Egito; e Nataruk, a oeste do Lago Turkana, no Quênia. Na necrópole de Jebel Sahaba, datada entre 14.340 e 13.140 anos antes da era atual, metade dos 59 esqueletos (descobertos em 1964) de homens, mulheres e crianças de todas as idades – escavados de vários poços cobertos com lajes de pedra – indicavam que estes haviam morrido de forma violenta.
As mortes foram resultantes de golpes na cabeça, principalmente, ou após seus corpos serem trespassados por pontas de lanças ou projéteis com ponta de pedra, alguns dos quais foram encontrados incrustados nos restos mortais. Três dos homens provavelmente estavam caídos no chão quando foram mortos. Mesmo que permaneça sem resposta a questão de se todos os 59 corpos foram enterrados ao mesmo tempo, esse sítio representa o primeiro caso comprovado de violência coletiva. Foi uma violência intragrupo ou intergrupo? O debate permanece aberto.
Há cerca de 10 mil anos, em Nataruk, 27 indivíduos, incluindo homens, mulheres e crianças, provavelmente foram jogados em um pântano. Dez entre os 12 corpos perfeitamente preservados apresentavam lesões causadas por atos de violência, e dois deles, incluindo uma mulher grávida, tinham suas mãos amarradas. Descobertos pela primeira vez em 2012, longe de um local habitável, esse pequeno grupo de caçadores-coletores pode ter sido exterminado por outro grupo durante uma estadia longe de suas casas.
Da predação à produção
Vestígios de atos de violência são mais frequentes no período neolítico. Esse período foi marcado por muitas mudanças de natureza diferente. Mudanças ambientais (aquecimento global); econômicas (domesticação de plantas e animas, busca por novos territórios, excedente e armazenamento de alimentos); sociais (sedentarização, explosão da população local, surgimento de castas e de uma elite) e, no final do período, religiosas (deusas deram lugar a divindades masculinas).
Crânio de 460 mil anos mostra sinal de violência na fronte.
Em várias necrópoles, datadas entre cerca de 8.000 e 6.500 anos atrás, os tipos de armas usadas (poucos impactos de flechas) e os fragmentos de cerâmica associados aos corpos comprovam conflitos internos ou entre as aldeias. Os restos mortais dessas vítimas são testemunhas de eventos trágicos ligados a uma crise (demográfica, de governança, epidemiológica) ou à prática de rituais – fúnebres, propiciatórios, expiatórios ou fundacionais – com sacrifícios humanos às vezes seguidos de refeições canibais.
No entanto, a existência de conflitos entre dois grupos ou comunidades não pode ser descartada, como mostram algumas pinturas nas paredes de abrigos de pedra na Espanha. Datadas entre 10.000 e 6.500 anos antes da era atual, elas representam cenas de encontros armados entre grupos de arqueiros – cenas que não existiam na arte parietal paleolítica.
A mudança na economia (da predação à produção), que levou a uma mudança radical nas estruturas sociais desde o início do período, parece ter desempenhado um importante papel no desenvolvimento de conflitos. Diferentemente da exploração de recursos na natureza, a produção de alimentos permitia a opção de um excedente de alimentos, o que deu origem ao conceito de propriedade – e, consequentemente, ao surgimento de desigualdades.
Muito rapidamente, as mercadorias armazenadas despertaram inveja e provocaram lutas internas, mas também eram potenciais despojos dos conflitos entre comunidades. Como evidenciado pelo surgimento das figuras do chefe e do guerreiro (visíveis na arte rupestre e nos sepultamentos) na Europa durante o período neolítico, essa mudança na economia também conduziu a uma estrutura hierárquica nas sociedades agropastoris. O surgimento de castas e de uma elite incluía os guerreiros e, como consequência, os escravos precisavam realizar o trabalho agrícola, em especial.
Além disso, o surgimento de uma elite com seus próprios interesses e rivalidades provocou disputas internas por poder e conflitos intercomunitários. Foi apenas a partir de 5500 a.C., época marcada pela chegada de novos migrantes, que os vestígios dos conflitos entre aldeias se tornaram muito mais frequentes. Isso se proliferou na Idade do Bronze, que começou antes de 3000 a.C. Foi durante esse período, quando surgiram verdadeiras armas de guerra feitas de metal, que a guerra se institucionalizou.
As causas históricas e sociais da violência
Embora atualmente seja difícil avaliar a verdadeira extensão dos atos de violência na pré-história – uma vez que a avaliação da importância desse fenômeno provavelmente é qualificada pela situação das descobertas e dos estudos – é possível propor algumas ideias. Por um lado, parece que o número de sítios pré-históricos em que foram observados atos de violência é baixo em relação à extensão geográfica e à duração do período considerado (vários 100 mil anos).
Por outro lado, podemos concluir que, embora o comportamento violento em relação aos outros seja antigo, a guerra nem sempre existiu. Suas origens parecem estar correlacionadas com o desenvolvimento da economia de produção, que desde o início levou a uma mudança radical nas estruturas sociais.
A violência não está gravada em nossos genes. Seu surgimento tem causas históricas e sociais – o conceito de “violência primordial (original)” é um mito. A guerra não é, portanto, inseparável da condição humana, mas sim o produto das sociedades e das culturas que geram. Como mostram os estudos das sociedades humanas primitivas, quando confrontados com crises, uma comunidade é mais resiliente se for baseada em cooperação e apoio mútuo, em vez de individualismo e competição.
Quanto à realidade da vida de nossos antepassados, ela provavelmente está em algum lugar entre duas visões – ambas míticas – a hobbesiana das Aubes cruelles (Alvoradas cruéis, livro de poemas sobre a era pré-histórica do cientista e escritor Henri-Jacques Proumen, 1879-1962), e a idade de ouro do florescimento humano, imaginada pelo filósofo Jean-Jacques Rousseau.
(*) Marylène Patou-Mathis – A pesquisadora da pré-história, especialista no homem de Neandertal, Marylène Patou-Mathis é diretora de pesquisa no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) da França para o Museu Nacional de História Natural de Paris.
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