The form of eternity
iUniversidade Federal do Espírito Santo - Vitória - ES - Brasil
Segundo a literatura mítico-religiosa, o tempo é determinado pela natureza eterna da divindade ou origem de tudo. A partir desta máxima, a bibliografia teológica é provocada e estudos sobre a índole eterna do divino sugerem que se o universo é criado à imagem de seu criador o primeiro deverá ser também eterno. Com efeito, pergunta-se: como dar forma àquilo que por natureza é disforme, infinito, a saber, a eternidade? Para responder a esta questão, o seguinte artigo desenvolve não apenas um breve histórico da tradição judeo-cristã acerca do problema do tempo e sua relação com a eternidade como também tenta elaborar, ao final, uma resposta lógica à interrogação apresentada.
Palavras-chave: tempo; eternidade; teologia; ser; YHWH
According to the mythical-religious literature time is determined by the eternal nature of divinity or origin of all things. From this adagio, theological literature is provoked and studies on the eternal nature of divinity suggest that if the universe was created the image of its creator the first must also be eternal. Therefore the question arises: how to shape that which by nature is formless, infinite, namely eternity? To answer this question the following paper develops a brief history about the Judeo-Christian tradition on the problem of time and its relationship with eternity and also tries to prepare at the end one logical answer to the question about the form of eternity.
Keywords: time; eternity; theology; being; YHWH
O que tem sido, isso é o que há de ser; e o que se tem feito, isso se tornará a fazer; nada há que seja novo debaixo do sol. (Ecl. 1:9)
A literatura mítico-religiosa preocupa-se com a ideia de tempo por meio de sua relação com a eternidade e a infinitude da divindade. Ela é testemunha da tentativa de dar forma finita àquilo que seria por natureza disforme, infinito: a divindade e seus atributos. A partir do estudo sobre a temporalidade do mundo, essa bibliografia provoca a elaboração teológica sobre o sentido desse mundo, o que implica em certa reflexão sobre a ideia de tempo e, por isso, deve interessar à investigação sobre as relações entre tempo e sentido. Com efeito, ao se conhecer a fisionomia do tempo, acredita-se conhecer o seu sentido, segundo a vertente mítico-religiosa.
Devo esclarecer inicialmente que compreendo “mito” e “religião”, naturalmente, como termos e conceitos distintos, apesar de próximos no contexto linguístico vulgar atual. O professor Jacyntho Lins Brandão entende ser possível o uso abrangente do conceito, que é originalmente grego (mýthos), pois particularmente desde o advento da antropologia moderna (em especial, Lévi-Strauss) houve um alargamento semântico natural do termo mito e, ainda, a aproximação do seu significado em relação ao entendimento do que são as religiões (Brandão, 2014, p. 299). Nestes termos, ao se tratar aqui a tradicional “história judaica” enquanto “mito judaico”, pretende-se nada mais que demarcar o caráter não-confessional e crítico deste estudo. A Bíblia hebraica (Tanakh), portanto, será lida como trabalho da mente humana, tal como Leo Strauss a lê; da mesma maneira que se lê Homero, Platão, Shakespeare (Strauss, 1981, p. 6) ou Guimarães Rosa.
Outro ponto a ser iluminado é a evidente diversidade de ideias de tempo que se dedicam ao mesmo problema, o questionamento da eternidade da divindade e do mundo por um prisma religioso ou mítico. Egípcios, yorubás, astecas, maias, povos ameríndios variados, masdaístas, sumérios, hindus, budistas, taoístas, gregos, romanos, judeus, muçulmanos, cristãos, todos se aventuram a responder tal pergunta; produziram ideias sobre o tempo de grande alcance e influência, motivando teogonias, cosmogonias e teleologias estruturadas pela ideia de eternidade. Também determinam a experiência vivida segundo a repetição cosmo-religiosa de acordo com a natureza dos dias, noites, meses, estações do ano, que atuam como a reinauguração do ato criador originário (Leclant, 2011, p. 2111-2113). Mas, a despeito dessa pluralidade e das inúmeras particularidades que podem ser encontradas em cada uma destas ideias, é possível falar em consenso, em termos genéricos, sobre a ideia de tempo no mundo religioso. A literatura mítico-religiosa sempre se depara com o conceito de “eternidade” como expressão do mistério próprio à origem e ao sentido do mundo; quando se quer falar do tempo, a discussão é sempre desviada na direção do “eterno” como fenômeno fundamental (Tunca & Pirenne-Delforge, 2003, p. 13). Visto isso, opta-se pela reflexão judaico-cristã sobre a ideia de tempo, adiante apresentada, não de maneira arbitrária, mas como parte da intenção de desenhar as origens da constelação de nome “tradição ocidental sobre a ideia de tempo” e suas respectivas implicações filosófico-históricas quanto ao desenvolvimento e usos do conceito de eternidade com o deliberado interesse final de responder ao questionamento sobre a forma da eternidade. Por mais que haja, como já sinalizado, uma série de meditações a esse respeito, por exemplo, no(s) Veda(s) ou no Tao-te Ching, será a Bíblia judaico-cristã que fornecerá as ferramentas e materiais para o debate dentro do mundo mítico e religioso a partir do qual a tradição teológica ocidental sobre o tempo erige seus fundamentos, sua ontologia do tempo.
Nesse sentido, a teologia judaico-cristã, particularmente a hebraica antiga, enumera uma série de características para a divindade que se relacionam com os diversos aspectos da vida cotidiana, desde o bem-estar e o amor mútuo até guerra e a beligerância próprias ao oriente próximo antigo. Trata-se aqui, destarte, de especificar certa qualidade de índole temporal própria ao deus dos povos hebreus, qual seja, a eternidade em conexão com a ideia de tempo e sua forma, que deve ser finita por definição. Naturalmente, como já evidenciado não se quer com isso inscrever este estudo dentro de limites proselitistas; bem ao contrário, objetiva-se apresentar de maneira histórico-filológica os parâmetros discursivos e as consequências teóricas que a tradição teológica sobre o tempo enfrenta de modo a tratar o texto bíblico não como verdade revelada, mas enquanto suporte técnico inultrapassável para melhor compreensão de determinada cultura sobre a ideia de tempo que, neste caso, se confunde com a ideia de eternidade.
A eternidade no mundo judaico e grego
O livro que abre a Bíblia cristã ou a Torah, comumente traduzido por “Gênesis” (o bereshit [בראשית; no começo], para a tradição judaica), responde ao questionamento mítico-religioso sobre o caráter divino, particularmente com relação ao problema teológico responsável por interrogar a forma do que por natureza seria desprovido de forma - a divindade que é infinita, disforme. O tempo surge, então, como ideia que introduz uma solução teórica e metafísica à questão da seguinte maneira: a divindade é eternidade e ela não apenas incarna, misteriosamente, o tempo, mas também o determina organicamente, delimitando o início e o fim da vida (o nascimento e a morte) - teleologicamente, em sua gênese é anunciada ao mesmo tempo seu fim. Por isso, se há algo que foge ao conhecimento humano e que pertence aos limites divinos, segundo essa literatura, é o tempo em sua acepção mítico-religiosa. Em linguagem profana, a índole divina se traduz como teleológica, ou seja, carregada de sentido pré-determinado. A definição mítico-religiosa do tempo lembra que há um início do mundo, uma gênese, e, por outro lado, um fim para toda criação, pré-determinado pela divindade segundo sua própria eternidade (potência de ser eterno). Entretanto, diferente de outras teogonias, nada se diz sobre a origem divina na literatura judaico-cristã. No livro de “Isaías” é possível observar a tradição de compreensão intemporal da divindade, pois ela é o primeiro e também o último, o princípio e o fim, simultaneamente. “Eu sou o primeiro, e eu sou o último (...) [אחרון ואני ראשון אני]” (Is. 44:6).1 A divindade, assim, não possui origem, ela é a própria origem e sobrevive às próprias criações.
O tempo seria conteúdo do mundo, mas está contido na divindade que se diferencia do mundo, precisamente por ser eternidade. Do ponto de vista temporal, desse modo, pode-se afirmar que ser eterno é nada mais que ser intemporal (ou ainda, atemporal). Na The Encyclopedia of Religions, dirigida por Mircea Eliade, Peter Manchester assina o verbete “eternity” [eternidade], por meio do qual se afirma a eternidade como “condição ou atributo da vida divina por meio da qual se relaciona com igual imediaticidade e potência com todos os tempos” (Manchester, 1987, p. 167). E nota-se que
isenta de todo ter sido e vir a ser, a eternidade é familiarmente definida como intemporal, diferentemente de toda permanência (às vezes também chamada sempiterna). (Manchester, 1987, p. 167)
Reafirma-se assim que, diferentemente do que perdura no tempo, a eternidade é intemporal para todos os efeitos.
Um dos nomes da divindade é mesmo Eternidade, em hebraico antigo; atributo temporal que se confunde com o seu nome próprio. No Gênesis, além de Elohim [אלהים] (Pai/Senhor criador e onipotente) (Gn. 1:1) a divindade é El-Olam [עולם אל] (Pai/Senhor-Eternidade) (Gn. 21:33); El de sempre, El de eternidade (Römer, 2014, p. 107). Nome que se repete em outros momentos da Tanakh, por exemplo, nos salmos davídicos, que situam temporalmente a natureza divina fora do mundo, pois “antes que nascessem os montes, ou que tivesses formado a terra e o mundo, sim, de eternidade a eternidade [עדעולם ומעולם] tu és Deus” (Sl, 90:2). O atributo (in)temporal eternidade [עולם; olam] é a própria natureza primeva da divindade, cuja gênese se desconhece, pois ela se perde no fluxo exotérico do que é eterno e, assim, corrobora sua índole infinita e misteriosa.
O análogo filosófico desta reflexão se encontra em Platão, no Timeu, posteriormente reelaborada em Plotino, no sétimo livro da IIIª Enéada. Ambos seguem um mesmo padrão reflexivo, qual seja, compreender a eternidade enquanto potência metafísica que assegura a existência do mundo, (temporal). Platão e Plotino estão interessados em apreender o aspecto metafísico do tempo, não sua natureza que poderíamos chamar, hoje, de psíquica ou física, como quiseram Agostinho ou Aristóteles, por exemplo (Cf. Callaham, 1948). Por mais que Plotino anuncie uma possível origem anímica do que é propriamente temporal, será apenas com Agostinho de Hipona que tal discussão ganhará fôlego. Ao mesmo tempo, por mais que Platão indique o movimento dos céus e o número deste movimento como agentes temporais, será Aristóteles quem dará contornos nítidos e completos a essa proposição. Por isso, das meditações sobre o tempo de cada um, pode-se afirmar que há muitas correspondências do ponto de vista teórico em relação ao problema da eternidade entre Platão, Plotino e a teologia judaico-cristã. Platão e Plotino, visando interrogar a natureza do que é o tempo, desviam o seu olhar, ao termo, em direção ao questionamento sobre a eternidade do mundo, próprio da teologia (Lloyd, 1975, p.159-163). De acordo com José Baracat Júnior, a investigação de Plotino deriva de uma exegese do Timeu de Platão, conferindo, assim, uma afinidade direta entre as duas reflexões (Baracat Júnior, 2014, p. 54). Segundo a narrativa de Platão, Timeu de Lócris, ao propor estabelecer a causa pela qual o “demiurgo” (ou “construtor”) produziu o vir a ser e o universo, afirma que
mesmo que fosse eterna a natureza do Ser Vivo [demiurgo], era impossível conferi-la plenamente a qualquer coisa gerada; portanto, ele concebeu produzir uma imagem móvel da eternidade, e à medida que ordenava o céu, ele produziu, simultaneamente, uma imagem eterna [aiônion eikôna] daquela eternidade que permanece na unidade, e essa imagem se movendo de acordo com o número, mesmo o que chamamos de tempo [khrónon] (...). O tempo portanto, veio a ser (foi gerado) simultaneamente ao céu (universo). (Pl. Ti. 37d).
Ou seja, pela exposição platônica, o tempo nada mais é do que uma “imagem móvel da eternidade”. Assim como para a tradição mítico-religiosa judaico-cristã o tempo é determinado pela eternidade original divina, o demiurgo que dá forma ao mundo platônico é um “deus eterno” (Pl. Ti. 37c-d), ele imagina o tempo como o movimento dos dias e estações, eternamente reinauguráveis por meio de sua origem, a eternidade [aiṓn]. Algo parecido diz Plotino, seguindo Platão, ao afirmar que “fabricamos o tempo como imagem da eternidade [aiṓn]” (Plot. Enn. 3.11.15). A diferença fundamental da asserção de Plotino para a de Platão se restringe ao agente realizador do tempo: Platão reconhece no demiurgo a diferenciação da eternidade original em tempo; Plotino, por sua vez, reconhece, de modo quase agostiniano, tal diferenciação originalmente no intelecto ou alma. Porfirio de Tiro, no século III de nossa era, irá repetir as elaborações platônicas de Plotino em suas Sententiae ad intelligibilia ducentes [Sentenças que conduzem aos Inteligíveis]. Apesar de Martin Heidegger, em suas preleções do semestre de verão de 1927, nos Die Grundprobleme der Phänomenologie, ao comentar a IIIª Eneida de Plotino, acreditar que “aeon é uma forma intermediária caracterizada entre a eternidade e o tempo” (GA II.24, p. 327)2. O que ainda mantém a discussão plotiniana nos limites theo-lógicos do problema. Dito isso, o que seria tempo e eternidade para Platão e Plotino, portanto, reserva grande afinidade com a perspectiva da tradição judaico-cristã sobre o tópico. Não é por acaso que Platão terá grande trânsito entre a intelectualidade cristã. Mesmo na filosofia moderna, a título de exemplo, o ponto de vista de Schelling sobre o conceito de eternidade, também se desvia da discussão sobre o tempo em direção ao questionamento sobre a eternidade. Para Schelling, “é evidente que a eternidade não é um mero conceito negativo, mas antes uma capacidade de dispor livremente dos tempos ou, em outras palavras, uma soberania sobre os tempos e não uma abolição do mesmo” (Rey Puente, 2005, p. 232).
Quem ou o que é a divindade hebraica?
Do ponto de vista teológico, para além dos nomes divinos que indicam “uma ação” ou “estado”, há uma exceção, o nome próprio divino, “yod, hé, vav, hé” (Guia I:61)3. O chamado tetragrama, “YHWH” [יהוה], é seu nome próprio, invocado inicialmente como nome de si mesmo no capítulo dois do “Gênesis”. Ele permanece como mistério para a teologia judaico-cristã e, simultaneamente, como exigência para a afirmação monoteísta e pessoalizada da divindade hebraica, pois El é senhor, é eternidade, é criador, mas também é “alguém”. Mas quem?
YHWH é certamente um nome associado há bastante tempo à divindade hebraica. Tal fato é atestado extra-biblicamente pela estela de Mésha (ou pedra Moabita), estrutura de basalto com quase três mil anos de idade, datada do século IX a.C., descoberta em 1868, na qual se pode ler uma inscrição em moabita (língua arcaica semítica) cujo nome YHWH figura como deus dos samaritanos da antiga Israel, também chamado de “Reino do Norte” (Renz & Rölling, 1995, p. 89-90). Entretanto, o problema do nome divino do deus de Israel é, desde sua origem, caracterizado por questões relacionadas aos limites linguísticos do hebraico antigo e, também, da doutrina judaica.
Sendo o hebraico antigo ou bíblico um sistema escrito destituído de vogais, foi necessário que os baalai hamasorah, mestres ou senhores da tradição, produzissem a sinalização gráfica que indicasse a vocalização para a correta ou tradicional recitação do texto bíblico. O que acontece, no entanto, apenas entre os séculos III e X da era cristã (ou comum), tornando o texto massorético a norma. Até então, antes da masorah normalizar a vocalização da Tanakh, o texto bíblico foi recitado segundo a tradição oral coeva, que poderia variar de região para região, apesar de haver o Templo de Jerusalém como padrão. Justamente a partir da destruição do chamado Segundo Templo e da consequente diáspora causada pela expulsão dos hebreus da Judeia romana (a segunda diáspora), faz-se necessário o registro das formas corretas de recitação dos textos sagrados. Dessa normatização, no entanto, há uma palavra que atravessa a tradição sem ser pronunciada, a saber, o nome próprio divino, YHWH, que, registrado apenas em versão consonantal, mesmo após a reforma massorética, persiste inalterado, intocado pelos gramáticos, copistas ou tradutores (Römer, 2014, p. 38-39). Com efeito, perde-se sua pronúncia original, pois a tradição hebraica impõe, segundo o princípio da intocabilidade do nome próprio divino, a proibição do uso do nome YHWH em vão (Êx. 20:7), uma das ordenanças do “decálogo mosaico” [as dez palavras]; por isso, sua pronúncia é sempre suprimida e substituída pelas palavras adonai [אדני; meu senhor] ou Elohim [deus criador; deus(es)]. Os samaritanos ainda utilizam ha-Shem [השם; o Nome]. Até mesmo os tradutores antigos não traduzem o tetragrama, mantendo-o na forma original consonantal ou, então, seguindo a tradição rabínica que substitui o nome próprio da divindade hebraica por “o Senhor” [ho kýros] ou, o mais usual, “Deus” [theós], conforme a Septuaginata. Portanto, a pronúncia correta de YHWH, que pode variar (sobretudo por se tornar desconhecida), abre margem para uma série de significações que, apesar de distintas, confluem para uma só raiz hebraica, segundo a etimologia maimonideana (não isenta de dúvidas): o verbo “ser” [היה; hyh] (Guia I:61) (Êx. 3). Para o RaMBaM, o tetragrama indicaria, portanto, a existência necessária (Guia I:61; Leibovitz, 1992, p. 44) da divindade que por simplesmente “ser”, esquiva-se das nomeações imperfeitas e, ao mesmo tempo, abrange as possibilidades imutavelmente infinitas daquilo que apenas é.
A pronúncia ‘Yahweh’ corresponde, com efeito, à vocalização de uma forma causativa da terceira pessoa do masculino singular da raiz ‘ser’. Yahweh será então ‘aquele que faz ser’, aquele que cria... (Römer, 2014, p. 47).
Sinal da essência inflexivelmente eterna ou infinita da divindade é esta maneira que a tradição judaico-cristã encontra para nomeá-la, como “o verbo”. Pois o verbo na língua hebraica é determinado por certa “raiz” que sempre se apresenta na terceira pessoa do singular masculina, tal como “ser” [hyh]. Assim, a divindade antes de qualquer coisa é. Essa maneira de visar El-Olam é mais bem apresentada na conhecida passagem do livro de “Êxodo” que descreve um dos raros momentos de auto-enunciação do deus dos judeus que se torna também deus dos cristãos
Então disse Moisés a Deus: Eis que quando eu for aos filhos de Israel, e lhes disser: O Deus de vossos pais me enviou a vós; e eles me perguntarem: Qual é o seu nome? Que lhes direi? Respondeu Deus a Moisés: Eu sou o que sou [אהיה אשר אהיה; ehyeh asher ehyeh]. Disse mais: Assim dirás aos olhos de Israel: Eu sou me enviou a vós. (Êx. 3:13-14)
Do ponto de vista filosófico, que como já sinalizado possui em Platão uma evidente afinidade com a tradição judaica, deve-se notar que em relação ao logos grego há também entre os primeiros filósofos correspondências com o aspecto supracitado da manifestação do eterno, qual seja, da relação entre ser e eternidade; pois há entre os primeiros filósofos um consenso sobre o uso do verbo “ser” para descrever a eternidade como propriedade das coisas.
Uma das estratégias da composição oral é o uso de ideias prontas que podem ser incluídas para completar versos. Essas fórmulas são estabelecidas, de maneira mais ou menos fixa, como unidades, como uma expressão idiomática. Com o advento da escrita e o abandono da métrica, amplia-se a possibilidade de alterar essas fórmulas a partir de uma concepção mais crítica do seu significado. Na Grécia antiga, a chamada fórmula da eternidade passou por esse processo. Em sua versão mais antiga, encontramo-la composta pelo verbo ‘ser’ no particípio presente, futuro e presente precedido pela preposição pró (antes). Desta maneira, os poetas se referiam à eternidade falando de algo que ‘é, será e era’. A partir daí vários filósofos pré-socráticos adequaram essa fórmula para explicar como funcionava o tempo em relação às entidades centrais das suas concepções de mundo. O uso foi bem livre. De acordo com o interesse de cada um, optaram, por exemplo, por trocar a ordem das palavras ou adicionar advérbios para enfatizar o presente, o passado ou o futuro, a mudança constante ou a estabilidade do que é eterno. (Vieira, 2014, p. 34)
Observamos este procedimento em Heráclito (DK22 B30), Parmênides (DK28 B8.5-6), Empédocles (DK31 B21.13), Anaxágoras (DK59 B12.20-21), Melisso (DK30 B2.1). Em suma, o “ser” anuncia propriedades invariáveis dos elementos fundamentais que compõem a existência. “Os filósofos pré-socráticos explicam o tempo na sua cosmologia como uma espécie de presente eterno adequada a cada cosmologia apresentada” (Vieira, 2014, p. 52).
O verbo “ser”, então, utilizado para a auto-nomeação, auto-determinação ou auto-proclamação divina perante Moisés, tal como para os primeiros filósofos, caracteriza-se pela pluralidade de compreensões simultâneas do verbo, o que salienta a característica imutável própria ao “ser”. A fórmula אהיה אשר אהיה [ehyeh asher ehyeh], grosso modo, poderia ser traduzida de quatro maneiras distintas: “Eu sou quem eu sou”, “Eu sou quem eu serei”, “Eu serei quem eu sou”, ou “Eu serei quem eu serei”. Conforme Gerardo Sachs:
1. ‘EU SOU QUEM EU SOU’ - refere-se a um ser eternamente imutável. Tal entendimento corresponde a certa filosofia ‘estática, à ideia segundo a qual desde que o mundo foi criado tudo permanece intocado assim como surgiu das Mãos de Deus.
2. ‘EU SOU QUEM EU DEVO SER’ - suporta certa constância fundamental, independente de variações. Tal concepção do Eterno não ignora as evidentes mudanças que ocorrem na natureza no curso do tempo, mas as considera de importância secundária sem consequências para a eterna imutável essência de Deus.
3. ‘EU DEVO SER QUEM EU SOU’ - é a ideia segundo a qual a evolução é inerente à essência de Deus. É uma concordância com o conhecimento científico presente sobre o universo, a formação das galáxias, a evolução das criaturas vivas na terra e particularmente às possibilidades das técnicas genéticas com seus cruzamentos e ‘novos modelos’ de plantas e animais. Junto a essa interpretação, o naturalista judeu contemporâneo Lutz Zwillenberg escreveu, “O propósito do Universo é a percepção de todas as possibilidades inerentes a ele”.
4. ‘EU DEVO SER QUEM EU DEVO SER’ - pode ter dois sentidos: “Para todos eu sou algo diferente” ou “cada pessoa tem uma ideia diferente de Mim”, como expressado de maneira exemplar pelo autor do Shir ha-kavod, um hino bem conhecido das sinagogas, ou para o pensador teísta que poderia ler tal assertiva como se Deus continuamente realizasse si mesmo. (Sachs, 2010, p. 246)
A eternidade divina, assim, é caracterizada pela pluralidade e unicidade de seu ser que é imutável dentro da sua extensão infinita e diversa; dada a abertura que a própria gramática hebraica oferece. Em outras palavras, a sua infinitude une a pluralidade em um só ser, eterno, uno e imutável, exatamente pela extensão infinita própria ao “ser” divino. Essa imutabilidade é traduzida em uma imagem apresentada no livro de “Isaías”, na qual a divindade é uma “rocha eterna”: “(...) o Senhor Deus é uma rocha eterna [עולמים צור]” (Is. 26:4). A rocha, então, sugere a rigidez intransigente e imutável daquilo que é eterno ou daquilo que é, simplesmente. A divindade judaica é, portanto, antes de qualquer coisa, a eternidade manifestada através de seu nome próprio, o ser.
Ser e eternidade na tradição judaico-cristã
No mundo cristão,
de são Paulo a santo Agostinho, e aos grandes teólogos da Idade Média, a Igreja cristã tentará concentrar o espírito dos cristãos em um presente que, com a encarnação do Cristo, ponto central da história, é o início do fim dos tempos. (Le Goff, 1986, p. 47)
Nesse sentido, os homens da Idade Média tentaram viver o presente de forma intemporal, em um instante que seria como um momento de eternidade (Le Goff, 1986, p. 48). Isto é, o presente ou a presença foi o ponto de inflexão de toda experiência teológica que seria, portanto, também uma experiência escatológica e, somente por se encontrar no reino da eternidade, teleológica. São Tomás de Aquino pergunta-se, em sua décima questão da primeira parte da Summa Theologiæ (1265-1274) sobre a eternidade da divindade, destacando que sua imutabilidade [immutabilitatem] se expressa pelo seu nome que é, sempre. “A eternidade, em seu sentido próprio e verdadeiro, só se encontra em Deus. Pois a eternidade corresponde à imutabilidade (...)” (Summa Theologiæ, Q.10, Art.3). O primeiro versículo do primeiro capítulo do primeiro livro da Torah já diz: “No princípio criou [ברא; bará] Deus [Elohim] os céus e a terra” (Gn. 1:1). O princípio, comumente interpretado como a gênese do mundo, como já dito, não deve ser confundido como gênese da divindade, pois a divindade já existia previamente, ela é quem cria o mundo na qualidade de divindade e não possui vínculo temporal com este mundo, pois se encontra antes mesmo do princípio. Como lembra, ainda, Tomás de Aquino: “diz Jerônimo a Dámaso: Só Deus não tem princípio” (Summa Theologiæ, Q.10, Art.3). O próprio verbo bará [criar], dentro da Bíblia, é curiosamente reservado apenas a um sujeito: a divindade. “Em toda a Bíblia, este verbo é reservado à Deus” (Neher, 1975, p. 172); o verbo bará é aplicado apenas à divindade, criadora original, pois tudo mais deriva de suas criações originais (Strauss, 1981, p. 9).4 Nesses termos, a divindade cria ou gera tudo, ela antecede qualquer criação, inclusive a si mesmo. A divindade não possuiria princípio e, destituída de princípio, não teria fim. Ela seria eterna e infinita - portanto, imutável (como já explicado). Determinado temporal-teleologicamente seria apenas o mundo. As criações divinas, inicialmente também “eternas” (Summa Theologiæ, Q.10, Art.3), como que caem no tempo, degenerando sua natureza eterna, precisamente por se afastarem da divindade (no ato do pecado original). Assim, a divindade é “incorruptível”, segundo a epístola de Paulo aos romanos (Rm. 1:23), pois “(...) à medida que algo se afasta da imobilidade própria do ser e se encontra sujeito às mudanças, ele se afasta da eternidade e está sujeito ao tempo” (Summa Theologiæ, Q.10, Art.4). Por conseguinte, o mundo e as coisas do mundo que se afastaram do “ser” divino adquirem uma determinação temporal e finita, algo incompatível com a infinitude divina.
Certamente, infinitude é uma noção presente na Bíblia em frases como eyn heker (insondável) e eyn mispar (incomensurável), os quais são usados para descrever a grandeza de Deus. Além disso, nós encontramos expressões similares na literatura rabínica, tais como let sof (sem fim) ou let minyan (sem número). Assim, a noção de infinitude e conceitos correlatos carregam duas marcas inseparáveis: uma magnitude ótima e uma inacessibilidade inevitável. (Valabregue-Perry, 2015, p. 407-408)
Do lado judaico da exegese bíblica filosófica, Baruch Spinoza, no século XVII, em seus Pensamentos Metafísicos, corrobora a tradição metafísica de compreensão da natureza divina enquanto eternidade e infinitude. O rabino-filósofo lembra que a natureza temporal do mundo e das coisas está como que inserida na eternidade da criação enquanto resultado dela. Em outras palavras, tudo o que está no mundo tem sua temporalidade determinada, ou melhor, contaminada pela eternidade divina.
(...) não é a existência presente das coisas que é a causa da sua existência futura, mas somente a imutabilidade de Deus, porque é preciso dizer: desde o instante que Deus criou as coisas, ele a conserva logo depois; ou seja, ele continua sua ação de criação (...) essa existência infinita eu chamo Eternidade. (Spinoza, 1954, p. 267)
A eternidade, “atributo sob o qual concebemos a existência infinita de Deus” (Spinoza, 1954, p. 258), seria, portanto, a origem do que se compreende como a medida da existência finita das coisas: a duração. “O atributo sobre o qual nós concebemos a existência das coisas criadas conforme elas perseveram em sua existência atual” (Spinoza, 1954, p. 258). A ideia de tempo surge, então, para a leitura que Spinoza faz de El-Olam, não como uma afeição das coisas, mas somente como “um simples modo de pensar, ou como (...) um ser de razão; é um modo de pensar que serve à explicação da duração.” (Spinoza, 1954, p. 258).
O tempo, portanto, enquanto um “ser-de-razão”, não é nada além de um “modo de pensar que serve para reter, explicar e imaginar mais facilmente as coisas já compreendidas” (Spinoza, 1954, p. 245). O tempo não surge enquanto determinação do mundo, como se vê, mas como uma forma que se empresta para a experiência da duração, da medida-de-tempo que ela, sim, é determinada por Elohim, criador, enquanto El-Olam, eterno.
Efetivamente, no primeiro capítulo do primeiro livro bíblico, bereshit, quem cria os céus e a terra é a divindade que precede tudo quanto pertence ao mundo, criado por Ela e por determinação d’Ela. O tempo seria, assim, simplesmente a ordem divina das coisas que se originam da sua natureza eterna. Os dias, a noite e o dia, já relatados no “Gênesis” são demarcações de tempo criadas pela deidade como “tempo para os homens”. Sua natureza, por outro lado, não pertence ao tempo, mas, ao contrário, é intemporal, eterna.5
Segundo o judaísmo, o tempo é criado por Deus. No livro da Gênese (capítulo primeiro), Deus criou não somente o mundo inteiro, mas igualmente o tempo e toda sua estrutura: uma semana de sete dias, um mês de dezoito dias e um ano de doze ou treze meses. Essa concepção do tempo implica dois aspectos: uma estrutura cronológica ou histórica e uma concepção cíclica (o tempo passa, mas certas épocas reaparecem). (Oegema, 2003, p. 75)
A concepção de tempo mítico-religiosa no seu sentido cronológico ou “cíclico” surge, assim, da natureza divina que é, paradoxalmente, intemporal. Pois a divindade “cria” o tempo, os dias, o mundo, as estações, tudo, a partir de sua potência eterna, sua eternidade. Para o judaísmo, o sétimo dia, em especial, carrega sozinho a expressão da eternidade divina. Rebbe Abraham Heschel, no clássico Les Bâtisseurs du Temps (1957), argumenta a favor da ideia segundo a qual a tradição judaica nasce a partir da separação do tempo e do espaço, sendo o tempo o âmbito das coisas sagradas e, por outro lado, o espaço, o lugar das coisas profanas. O sétimo dia, shabbat, por isso, ergue-se como a catedral judaica por excelência; o verdadeiro templo do judaísmo. “O judaísmo é uma religião do tempo tendendo à santificação do tempo (...). O Sabbat é nossa catedral” (Heschel, 1957, p. 105). O sétimo dia, portanto, enquanto imagem da eternidade, abrevia a experiência criadora primordial e se demarca como a proximidade imediata da figura divina, pois “a imagem de Deus não poderia se encontrar senão no tempo que é a mascara da eternidade” (Heschel, 1957, p. 116). Tal como afirma Heschel, na última frase de seu livro, “a eternidade faz nascer o Dia” (1957, p. 205). A fonte do tempo é, com efeito, a eternidade, ela mesma enquanto real potência que assegura o ato criador. Ensina Rabbi Akiba: “O Sabbat e a eternidade são um, ou pelo menos da mesma essência - a ideia é antiga” (Heschel, 1957, p. 176). Ou seja, a estrutura temporal que a tradição judaica relata, vive como rito e até mesmo anuncia o eterno como verdade manifesta, finalmente revela a eternidade divina como a verdadeira arquitetura temporal do mundo, encoberta ou escondida pelo tempo. Logo, a cronologia segundo a determinação do mundo mítico-religiosa assemelha-se mais a uma teleologia: a divindade atribuiu ao mundo um sentido que pode ser apreendido em sua criação, ou em sua natureza escondida, a eternidade. O mundo e tudo que pertence a ele estariam impregnados de sinais naturais que expressam a eternidade divina no seu sentido dado ao mundo desde a primeira determinação temporal situada na gênese da criação. Por outro lado, a forma cíclica ou repetitiva que se impõe ao mundo pode ser também uma forma linear, pois ambas se filiam sem prejuízo lógico à eternidade, porque é a eternidade divina que produz sentido. Como diz Mestre Eckhart,
[e]is uma verdade necessária, que o tempo não pode se distender em Deus e na alma. Pudesse o tempo distender-se na alma, não haveria alma. Pudesse Deus ser tocado pelo tempo, então ele não seria Deus. (Predigt. 38.408.3-7)
O retorno cosmológico e natural como facticidade ou manifestação da eternidade
Compreende-se o que Mircea Eliade chamou de “tempo sagrado”, tempo das festas, tempo das atualizações do ato criativo inicial e genético como ato repetitivo, como rito que deseja (re)encontrar o sentido teleológico da criação divina, pois
O homem religioso conhece dois tipos de tempo: profano e sagrado. Uma duração evanescente e um “conjunto de eternidades” periodicamente recuperáveis durante as festas que constituem o calendário sagrado. O tempo litúrgico do calendário ocorre em círculos fechados: é o tempo cósmico do ano, santificado pelas obras dos deuses. E porque a mais grandiosa obra divina foi a criação do mundo, a comemoração da cosmogonia tem um papel importante em tantas religiões. O ano novo coincide com o primeiro dia da criação. O ano é a dimensão temporal [cronológica] do cosmos. (...) Cada ano novo reitera a cosmogonia, recria-se o mundo, e, dessa maneira, cria-se também o tempo, regenera-se o “começar de novo”. (...) A festa religiosa é a reatualização de um evento primordial, de uma história sagrada cujos atores são os deuses ou seres semidivinos. (Eliade, 1965, p. 93)
A estrutura teleológica do tempo mítico-religioso é ainda marcadamente caracterizada pelo retorno do ritmo próprio ao mundo enquanto reinauguração ritual. Haveria certa necessidade de se voltar ao “início” para reinaugurar o tempo segundo a natureza eterna do mundo, objetivando, assim, a atualização (tornar ato) da eternidade divina presente na criação. Trata-se de uma condenação ao “eterno retorno” que é necessária para a objetificação da natureza eterna divina, pois o retorno à gênese criativa produz a facticidade ou torna manifesto aquilo que seria infinito, disforme por natureza, a eternidade.
Mircea Eliade (1969), em Le mythe de l’éternel retour, reitera, com reservas, o argumento de A. J. Wensinck, em “The semitic New Year and the origin of eschatology” (1923), segundo o qual a origem da concepção ritual-cósmica do tempo se relaciona diretamente com o desaparecimento e o reaparecimento da vegetação, determinados pelas estações mais frias e mais quentes do ano, respectivamente, ou segundo as estações mais chuvosas e as menos chuvosas, férteis e inférteis. Pois se o mundo foi criado no mês de nissan (entre março e abril) ou no mês de tichri (entre setembro e outubro)6 do calendário hebraico, é certo que ambas as estações são chuvosas e que, de uma maneira ou de outra, expressam factualmente através da vegetação, por meio de uma objetificação biológica ou natural, a regeneração periódica da vida, da criação; isto é, a repetição do ato cosmogônico. Porque, se não há teogonia na tradição judaico-cristã, há cosmogonia.
Um fato adicional contribui para a compreensão da repetição eterna enquanto objetificação da eternidade segundo padrões biológico-cosmológicos naturais, um outro nome divino também derivado do misterioso tetragrama. Se de YHWH se retira hyh [ser] pela exegese do terceiro capítulo da narrativa cosmogônica da Torah, o professor Thomas Römer (2014) apresenta outro argumento a favor da facticidade da divindade hebraica em L’invention de Dieu como divindade da chuva; o que corrobora as relações possíveis entre a reinauguração repetitiva do ano segundo o arquétipo biológico (tanto do ato reinaugurador, repetitivo, quanto da própria divindade em si). Poder-se-ia extrair do tetragrama outra raiz, qual seja, hwy [הוי]. A raiz hwy possui três significados distintos: desejar, cair, soprar. Mas apenas dois dos três significados possíveis são verificados linguisticamente empregados na tradição bíblica, o que leva à hipótese do professor Römer, segundo a qual
o sentido de ‘desejar’ e de ‘cair’ são igualmente atestados em hebraico bíblico, somente o sentido de ‘soprar’ não é. Talvez, trata-se, então, de uma censura voluntária em razão do nome divino. (Römer, 2014, p. 49-50)
Esta afirmação coloca-se junto ao argumento do biblista Julius Wellhausen, cujo clássico dos estudos sobre história das religiões Israelitische und Jüdische Geschichte (1914) propõe que YHWH poderia ser caracterizado como divindade da chuva ou tempestade, radicando-se linguisticamente em hwy, quem sopra o vento ou faz cair a chuva. Além disso, tal hipótese pode ser averiguada em inscrições proto-semíticas amoritas (III milênio a.C.), encontradas na cidade de Mari, contendo o que talvez possa ser entendido como uma lista de nomes próprios divinos, dentre os quais o de certo Yahwi-Adad, “manifestação de Adad”; Adad que é notoriamente a divindade das chuvas e tempestades (Cf. Von Soden, 1985). Com efeito, a ideia de YHWH como deus das chuvas e tempestades segue para Thomas Römer como explicação satisfatória sobre o caráter manifesto da divindade hebraica. De fato, não seriam sem sentido próprio as diversas menções ao céu enquanto expressão factual da divindade (Cf. Dt. 33: 2; Jz. 5:4-5; Sl. 68:8-9).
Com isso, torna-se claro que, sejam quais forem as formas concretas da divindade manifesta para a cultura hebraica, elas são formas que buscam exteriorizar o caráter eterno de sua natureza original. Pois a eternidade divina objetiva-se ou se torna ato quando pretende imitar a origem criativa através dos rituais de passagem do tempo, sempre por meio da afirmação da repetição, do retorno; ou seja, nos momentos em que se espacializa aquilo que é em si temporal - a transitoriedade - por meio da objetificação da repetição, então, criando uma forma finita para algo a princípio infinito. A eternidade, antítese do que é transitório, assim, paradoxalmente aparece quando o tempo “retorna”, quando a sua transitividade re-inaugura-se, precisamente quando o mundo re-aparece: a noite torna-se dia; a lua, sol; as estações frias, quentes; a vegetação morta pelo frio, floresce (Gn. 8:22). São padrões naturais que não cessam de se repetir e que aparecem aos olhos da teologia como manifestação da eternidade divina que, no caso hebreu ou proto-cristão, não é apenas um atributo abstrato, mas factual, explicado pela origem arcaica de YWHW como hwy, deus das chuvas e tempestades, isto é, como espécie de deus da fertilidade do mundo natural. Algo que inicialmente é apresentado como facticidade da origem de YHWH, contamina a tradição que, então, sedimenta-se literariamente enquanto atributo, epíteto, característica ou mesmo nome próprio da divindade; o que se averigua, como demonstrado, na literatura mítico-religiosa judaico-cristã.7
O modus temporal presente é, enfim, a forma da eternidade
O homem religioso que fia sua experiência-no-mundo nesta vertente de compreensão do tempo como imagem material da eternidade insere-se no tempo enquanto expressão da eternidade apenas pela repetição, atualização da história do mundo divino que é, como observado, um ato teleológico, antes de cronológico. A teleologia, por sua vez, só se realiza pela qualidade eterna do divino como exterior ao tempo e expressão da sua infinitude, simultaneamente, qualitativamente entendido como imutável, intransitivo. O tempo-eternidade que a temporalidade mítico-religiosa primordial evoca, então, é um tempo infinito, disforme, particularmente em sua relação com o homem, pois ele é, originalmente, eternidade, ainda que se expresse teleologicamente no mundo segundo um desenho circular, repetitivo, ou mesmo segundo uma linha sobre a qual se imprimem os planos divinos, da criação ao fim dos tempos, tal como predito pela “revelação” apocalíptica de João, do lado cristão, ou pelos profetas maiores da antiga Judá, como Daniel e Isaías, do lado judaico. Igualmente, pode-se enxergar tal teleologia na tradição messiânica judaica e cristão cuja relação com a escatologia é clara. Nesse sentido, tal profetismo ou mesmo a existência mesma dos profetas parece ser possível somente por meio da arquitetura teológica do tempo, segundo a qual o futuro e o passado possuem formas idênticas e isonômicas, permitindo ao profeta a perscrutação futuróloga de maneira semelhante à investigação do passado. Por isso, o profeta surge como personalidade possível, assim como a profecia surge como fenômeno possível, dentro das estruturas culturais teológicas.
Dessa maneira, o profeta bíblico é partícipe da duração transcendental de Deus e inserido no mais profundo dos tempos e o devir que tece a trama das vidas humanas. Porque esse devir já se reveste, em seu sentido mais íntimo, de um escopo escatológico. (...) Fora do tempo e no tempo, de uma só vez. Há um julgamento profético sobre o devir humano, que envolve uma escatologia, sem dúvidas, mas também - e de forma direta - uma história. (Gardet, 1978, p. 197)
É preciso sublinhar, entretanto, que o messianismo e a escatologia não reproduzem uma expectativa pura sobre o futuro, mas, bem ao contrário, anuncia o simples inacabamento do destino do mundo que, determinado pela teleologia, é, por fim, eterno (Cf. Camilli, 2013). A interpretação sobre o “fim” da história do mundo é apenas uma possibilidade de compreensão da escatologia bíblica, sociologicamente e historicamente localizada, mas que não descaracteriza a ontologia do tempo teológica como sinônimo do estudo sobre a eternidade. A própria língua hebraica antiga não possibilita a expectativa puramente futura e seu devido “fim”, pois não há tempo passado, presente e futuro, mas somente os tempos das ações “acabadas” e “inacabadas”, gramaticalmente8 e antropologicamente. Portanto, o Messias não “virá”, mas ele “vem vindo”, seja no “futuro-presente”, conforme Agostinho de Hipona nos ensina, que será adiante devidamente analisado, ou “hoje” [היום], conforme a parábola do tratado Sanhedrin (98a), do Talmud Bavli, sendo tanto o “futuro-presente” quando o “hoje” localizados na eternidade, expressão também do inacabamento do sentido próprio ao messiânico. A facticidade eterna da divindade, assim, é reafirmada como a matéria criadora e caráter fundamental da criação do mundo, de acordo com a compreensão teológica mítico-religiosa sobre a ideia de tempo.
O caráter teleológico, desse modo, objetiva-se como o atributo exemplar do discurso mítico-religioso sobre o tempo, retirando-o do âmbito investigativo da consciência, tornando qualquer aspecto temporal do mundo e das coisas uma determinação da sua natureza primeva eterna, infinita, imutável, disforme. Não se admite qualquer transitividade como atributo da criação, que é intransigente em relação ao destino do mundo; algo que tanto a escatologia bíblica quanto a ritualística religiosa prescrevem. Ou seja, para a acepção mítico-religiosa do tempo, o que é compreendido pela consciência enquanto experiência cronológica ou temporal, a transitividade - as coisas passadas ou futuras - não é nada mais do que uma predeterminação de El-Olam. Tanto o futuro (as expectativas), como o passado (a memória das coisas), são por consequência teleologicamente intemporais, eternos. O tempo nada mais é do que a imagem móvel (Platão), pois ela se torna e se esvai, da eternidade divina. E o retorno cosmológico do movimento dos astros, estações, ou mesmo da própria vida, são provas de sua facticidade.
Agostinho, o bispo de Hipona, em sua ontologia da divindade (Weis, 1984, p. 104), nas Confessiones, em fins do século IV de nossa era, sintetiza de modo claro tal caracterização do tempo através da ideia de eternidade quando atribue ao modus temporal presente, que substancialmente contém tanto os passados quanto os futuros, como a manifestação da eternidade sempre presente, pois o presente não passa nem se torna, ele simplesmente é, sempre, presente.
(...) precedes [Deus] todos os passados com a celsitude da tua eternidade sempre presente [praecedis omnia praeterita celsitudine semper praesentis aeternitatis], e superas todos os futuros porque são futuros e, quando vierem, serão passados; entretanto tu és sempre o mesmo, e os teus anos não morrem. (August. Conf. 9.16)
Agostinho afirma ser a substância divina a eternidade: “aeternitas ipsa dei substantia est [a eternidade é a substtancia divina]” (O’Donnell, 1992, p. 253). Seguindo a tradição teológica, em franco diálogo com Platão e Plotino, Agostinho não estuda o tempo por meio da referência da eternidade, mas dispõe “tempo” e “eternidade” como contrastes, pois o tempo seria vestigium ou imitatio da eternidade, nunca a tendo como modelo (O’Donnell, 1992, p. 278). A eternidade, ao termo, é a qualidade que delimita o tempo, pois impede o passado e o futuro de serem ao restringirem-se ao presente ou à eterna presença do presente (O’Daly, 1986, p. 160-161). Nesse sentido, o presente, como manifestação factíver do tempo, é “eterno não meramente no sentido de não ter nem começo nem fim, mas também no sentido de não ser sucedido nem pelo passado nem pelo futuro, portanto há somente o presente permanente [abiding]” (Teske, 1996, p. 14). A muito conhecida fórmula agostiniana, “há três tempos, o presente relativo às coisas passadas, o presente relativo às presentes, e o presente relativo às futuras” (August. Conf. 9.26), indica precisamente que o modus temporal presente é a manifestação da transitividade intransigente própria ao que é eterno; sua forma, portanto. Agostinho demonstra de forma mais precisa o que o Rebbe Heschel nos diz, que a “imagem de Deus está no tempo” (Heschel, 1957, p. 116). Na verdade, a imagem da divindade é o presente, compreendido como a forma da eternidade.
Não por acaso, pode-se, com efeito, alcançar certa pré-visibilidade dos planos divinos de maneira profética, pois futuro e passado se confundem na informalidade do que são o passado e o futuro para a literatura mítico-religiosa. O que está admitido na imutabilidade própria àquilo que é. A eternidade, portanto, é o verdadeiro caráter do tempo segundo a significação teo-lógica (ou mesmo lógica), seja ele futuro, seja ele passado. A eternidade é sempre presente; o modus temporal presente, portanto, é a forma [צלם; tzelem] ou imagem [εἰκών; eikón] da eternidade, sua imediata manifestação, o ser do tempo, a fisionomia finita do eterno.9
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