Religiões interpretam a morte para compreender a vida

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Diferentes culturas traduzem os momentos finais da vida como novos ciclos. As religiões amenizam o sofrimento ao defender o entendimento da morte como um percurso natural da existência

Legenda: Padre Clairton Alexandrino, na Capela da Ressurreição, no subsolo da Catedral Metropolitana de Fortaleza
Foto: Foto: Natinho Rodrigues

Em vida, pouco tempo é dispensado em pensamentos sobre a morte. A ideia assume um tom mórbido. A finitude acaba sendo esquecida e distanciada da realidade, quando, de fato, é parte obrigatória da própria existência humana.

No Dia de Finados, a sociedade é confrontada com essa percepção, seja no desejo de homenagear entes queridos que se foram ou ao observar a movimentação na cidade, que ganha um fluxo diferente dos demais com as muitas visitas aos cemitérios. A data é marcada no calendário católico, mas seu simbolismo também reverbera por outras religiões. Dentre tantas, sete têm em comum a ressignificação da morte, e oferecem amparo aos fiéis em momentos de luto.

Ao invés de um motivo para tristeza, a morte pode ser uma oportunidade de celebrar o que foi feito de bom durante a vida. Essa é a interpretação budista, conforme explica Gislene Macêdo, que atua como facilitadora no Centro de Estudos Budistas Bodisatva (Cebb), no bairro Meireles.

Falar sobre a morte, na perspectiva budista, significa abordar também a forma como se vive. Ao viver de um modo bom - ou seja, trazer benefícios aos seres e não causar sofrimento - o momento da morte é acompanhado da sensação de dever cumprido, permitindo que as pessoas "se desprendam do corpo de forma mais suave". Os praticantes do budismo acreditam na possibilidade de renascer.

Gislene Macêdo considera que a morte nos coloca diante da "impermanência". A facilitadora recomenda refletir enquanto há tempo. "Não pensamos que vamos morrer, a gente tende a ignorar esse fato. Vivemos como se não houvesse amanhã. Aprendendo a morrer, a gente aprende também a viver", explica.

Reencarnação

O aprendizado marcou o processo de identificação de Fernando Bezerra com o espiritismo. O vice-presidente do Instituto de Cultura Espírita do Ceará (ICE) cita a prática do bem, da caridade ao outro, e entender o próximo como irmão, independentemente do pensamento religioso, como os fatores que mais o atraíram durante o primeiro contato com a religião.

"Foi a doutrina espírita que me deu uma ideia muito mais abrangente das religiões que existem no nosso planeta, e entender cada uma delas como fase nossa de aprendizado", diz. No espiritismo, não há um culto à morte ou desapego à vida. O objetivo, segundo Fernando, é entender o que representa a vida física para o seu processo de evolução como espírito. "A morte, para o espírita, é uma transformação. Ele sai da vida física e vai para a vida espiritual. A separação daqueles que se amam, no mundo das formas, faz parte de um processo natural".

Embora a saudade atinja o espírita como a qualquer outra pessoa, por compreender a doutrina, o praticante não se desespera, nem se sente "injustiçado perante as leis divinas". Entende que a morte é uma passagem de grande importância para o desenvolvimento espiritual.

Salvação

O retorno à "esfera espiritual" também faz parte do plano de salvação da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. A religião é baseada em duas escrituras: A Bíblia e o Livro de Mórmon. A segunda obra foi traduzida do egípcio para inglês pelo profeta Joseph Smith, nos Estados Unidos, em 1830.

"Cremos que a morte faz parte do plano de salvação: Vivíamos com Deus antes de nascermos; viemos à terra para ganhar experiência; deixaremos esta vida mortal; voltaremos a uma esfera espiritual", detalha Raniere Sales, diretor de Assuntos Públicos da Igreja em Fortaleza.

Ele explica que os adeptos da religião, identificados como Santos dos Últimos Dias, também sofrem a perda de entes queridos, mas crêem que existe vida além da experiência terrena, e se esforçam para cumprir os mandamentos de Deus para que sejam "dignos de um casamento eterno que se realiza em templos especiais da Igreja". "Essa cerimônia nos permite a união da família para o tempo e eternidade", afirma. Em Fortaleza, o templo da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias foi erguido na Avenida Santos Dumont, bairro de Lourdes.

'Não morro'

A fé acompanha o padre Clairton Alexandrino por muito mais que os 20 anos que vem dedicando à Catedral Metropolitana de Fortaleza. Ele define o Dia de Finados como uma celebração ao momento de retorno à "casa do Pai", o encontro com o criador, conforme a crença católica.

"Para nós, cristãos, a morte não é uma tragédia, não é um aniquilamento da pessoa, apenas a sua transformação. A nossa alma é imortal, e, por isso, quando celebramos Finados, estamos celebrando a plena e total realização humana, em que o homem volta para o lugar de onde veio. Isso é o que a Igreja ensina a respeito da morte. A separação da alma e o corpo, e o retorno da alma para junto do seu criador, enquanto aguarda a ressurreição dos corpos".

Aos que estão de luto, padre Clairton aconselha ter esperança na vida eterna, e ressalta que a Bíblia diz que são insensatos aqueles que julgam que a morte é uma tragédia. Ele argumenta que as pessoas parecem morrer, mas estão nas mãos de Deus, e, diante d'Ele, tudo vive. "É a certeza de que estamos em uma caminhada inexorável na busca desse encontro definitivo com o Pai e Criador de todos nós, que é a felicidade suprema".

O sacerdote enfatiza que ao viver uma vida com a consciência de sua finitude, ciente de que não é cidadão deste mundo, que foi feito para Deus e, mais cedo ou mais tarde, irá se encontrar com Ele, "não tem como temer a morte". "É como Santa Teresa de Ávila dizia: muero porque no muero. Morro porque não morro", conclui.

Consciência

É na finitude da morte que se entende o ciclo da vida, de acordo com o pastor Costa Neto. O fundador da Comunidade Cristã Videira explica que, para os evangélicos, não há comunicação com os mortos, mas acredita-se na eternidade. "A nossa base é amar a Deus sobre todas as coisas e servir pessoas. É a base da nossa fé", descreve.

O Dia de Finados, para os adeptos da religião, é um dia comum, não por desprezarem o fato, mas por acreditarem que não há mais contato com quem se foi. Portanto, devem honrar as pessoas enquanto estão vivas.

"A gente acredita na vida eterna, e a morte é uma passagem para a vida eterna. Sentimos a ausência física, por isso o luto, mas acreditamos na vida eterna", enfatiza o pastor. "A religião me trouxe a consciência de Deus, um propósito de vida, um estilo de vida fundamentado no que Jesus prega, o valor da família, a questão de que só é possível ter integridade e caráter através da palavra de Deus, e enxergar o ser humano como ele é".

Ancestralidade

A passagem entre dois mundos é uma das crenças herdadas pelo Candomblé de suas raízes africanas. A religião se traduz em um culto à ancestralidade e à natureza, onde a morte representa uma passagem entre Àiyé e Òrum - nomes africanos para o mundo material e o mundo imaterial, respectivamente.

Foto: Foto: Thiago Gadelha

"Eu falo da cosmovisão do Candomblé Ketu, que predominou no Brasil. Existe uma ligação direta, são mundos que dialogam constantemente. A perspectiva da morte é um orixá, chamado Iku", descreve Kelma Nunes, ou Mãe Kelma de Iemanjá. Ela explica que existe a possibilidade do retorno, de transitar entre o mundo imaterial e o material, dando continuidade à vida. "Mas isso é um mistério", admite.

A mãe de santo da casa Ilé Asé Ojuo Oyá, do Pai Valdo de Yansã, destaca que para o Candomblé, as coisas não se acabam, mas se transformam. Apesar do sofrimento pela perda e distanciamento de quem faleceu, existe alento em saber que o ente está no Òrum e foi recebido por outros familiares que já estão lá, além da possibilidade do retorno.

Adoração

O senso de justiça é atribuído ao dia do juízo, conforme a fé islâmica. A religião é fundada sobre revelação de Alá, ou "Allah Subhanallah", como é referenciado pelos muçulmanos. A frase árabe se traduz em "Deus é perfeito, livre de erros". "O muçulmano que segue realmente a religião vai levar uma vida de adoração. Nós sabemos que somos só viajantes nessa vida, trilhando um caminho para a próxima vida. É sendo submisso a Allah que se tem a recompensa, que são os jardins abaixo dos quais correm os rios, onde vamos viver eternamente", diz Aishah bint Humberto Barletta, bolsista do Núcleo de Medicina Tropical da UFC.

Apesar de aceitarem o luto, segundo Aishah, a tristeza não deve ser maior que a certeza e o conhecimento de Alá, de que o que ele faz é o melhor. Não se deve demonstrar desespero. "Nós somos encorajados a visitar os túmulos, apesar de não termos um dia específico, o que seria errado, islamicamente".

O islamismo determina que, após a morte, o corpo deve ser lavado. Uma mulher é lavada por uma mulher, e um homem é lavado por um homem, exceto se forem casados. "As últimas lavagens da água são perfumadas com flor de lótus. No cabelo da mulher, são feitas três tranças. A gente enrola o corpo em alguns pedaços de tecido branco. Tem uma oração especial para a pessoa que morreu, que é uma obrigação geral da comunidade comparecer", descreve Aishah. Depois disso, a pessoa é enterrada na direção da sagrada Caaba, construção reverenciada pelos muçulmanos. 


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