Cartas do Cárcere 67 a 92

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(Carta 67)

4 de novembro de 1930 Queridíssima Giulia,
ignoro se te encontras ainda em soci85 e se esta carta deve ser reenviada, ou se estás de volta do repouso. É por isso que nom te escrevo ainda umha longa carta, à maneira do doutor Grillo86, e que tinha já pensada, com toda a sua estrutura de dissertaçom académica. Fica para umha próxima vez. advirto-che entretanto que se «descobriu tudo», que já nom existem mistérios para mim, quer dizer, que fum informado polo miúdo das tuas verdadeiras condiçons de saúde. era, a dizer verdade, o que na Itália chamamos «o mistério do evidente», porque eu já compreendera que estavas bastante mal, ou que atravessavas polo menos umha crise psíquica que devia ter umha base fisiológica; teria sido um «literato» bem mesquinho se nom tivesse compreendido isto lendo as tuas cartas, que, após a primeira leitura —que eu chamaria desinteressada, em que só me guia o afeto por ti — som relidas, por assim dizer, como «crítico» literário e psicanalítico. Para mim, a expressom literária (lingüística) é umha relaçom entre a forma e o conteúdo: a análise demonstra-me, ou ajuda-me a entender, se há, entre a forma e o conteúdo, umha solidariedade completa ou se existem fendas, disfarces, etc. Um também pode equivocar-se, especialmente se se quiger deduzir demasiado, mas se se tiver critério um pode compreender algumha cousa, polo menos o estado de ánimo geral. escrevo-che tudo isto para te advertir de que a partir de agora podes e deves
85     sochi, centro balneário e de cura no Mar Negro.
86     o curandeiro Grillo levava os petos cheios de receitas copiadas de velhos livros e repartia-as ao acaso entre os doentes, dizendo para si: «acerta, Grillo».
escrever-me com máxima sinceridade. recebim algumhas fotografias dos nossos filhos, mui mal conseguidas do ponto de vista técnico, mas interessantíssimas na mesma para mim.
abraço-te afetuosamente. antonio
(Carta 68)
17 de novembro de 1930 Queridíssima tatiana,
recebim o postal de 10 de novembro e a carta do 13. Procurarei responder por ordem as tuas perguntas.
1° Para já, nom deves mandar-me livros. os que tiveres, conserva-os, e aguarda a que te avise para os enviares. Quero livrar-me antes de todas as revistas velhas que tenho acumulado desde há quatro anos: antes de enviá-las reviso-as para apanhar apontamentos sobre os temas que mais me interessam e naturalmente isso leva-me umha boa parte da jornada, dado que as notas eruditas som acompanhadas por chamadas, por comentários, etc. Centrei-me em três ou quatro temas principais, um dos quais é a funçom cosmopolita que tivérom os intelectuais italianos até o século XVIII, que depois se divide em muitas seçons: o renascimento e Machiavelli, etc. se tivesse a hipótese de consultar o material necessário, penso que haveria para escrever um livro verdadeiramente interessante ainda inédito; digo livro, por falar só numha introduçom a um certo número de trabalhos monográficos, visto que a questom se apresenta de maneira diferente segundo a época, e do meu ponto de vista seria necessário remontar-se aos tempos do Império romano. entretanto escrevo notas, também porque a leitura do relativamente pouco que tenho lembra-me as velhas leituras do passado. de resto, nom é umha tema completamente novo para mim, porque há dez anos escrevim um ensaio sobre a questom da língua em Manzoni, e isso exigiu umha certa pesquisa sobre a organizaçom da cultura italiana, desde que a língua escrita (o chamado latim médio, isto é, o latim escrito do 400 depois de Cristo até o 1300) se afastou completamente da língua falada polo povo, fragmentada em infinitos dialetos após o fim da centralizaçom romana. a este latim médio sucedeu o vulgar, que foi novamente afogado polo latim humanístico, dando lugar a umha língua douta, vulgar polo léxico, mas nom pola fonologia e muito menos pola sintaxe, que foi decalcada do latim: assim continuou a existir umha dupla língua, a popular, ou dialetal, e a douta, isto é, a língua dos intelectuais e das classes cultas. o mesmo Manzoni, ao refazer Os Noivos, e nos seus tratados sobre a língua italiana, tomou em conta, realmente, um único aspeto da língua, o léxico, e nom a sintaxe, que de outra parte é umha parte essencial de qualquer língua, até o ponto de que o inglês, apesar de ter mais de 60% de palavras latinas ou neolatinas, é umha língua germánica, enquanto o romeno, apesar de ter mais de 60% de palavras eslavas, é umha língua neolatina, etc. Como vês, o tema interessa-me tanto que me deixei levar.
2° relativamente às revistas: a «Bibliografia fascista» nom me parece mui útil, porque as revistas bibliográficas que recebo som redigidas polos mesmos escritores e os livros resenhados som os mesmos. Falas-me de umha revista inglesa: seria bom que me mandasses um número de amostra por meio da Livraria. Poderias fazer que me mandassem também um número de amostra do suplemento semanal do «Manchester Guardian» e do «Times», que vim no cárcere de roma: porém, acho que a prosa literária destas revistas é ainda demasiado difícil para mim. e ademais nom tenho muita vontade de estudar línguas.
3° Nom entendim o que escreveche a propósito de umha «jaqueta», da qual me teria falado Carlo, [...]87. Polo que lembro de quanto me dixo Carlo, trataria-se de umha camisola ou de umha camisola interior de lá para o inverno. Chamas-lhe «jaqueta», e no cárcere só é permitida a jaqueta regulamentar. Já lhe dixera a Carlo que tenho suficientes prendas de ponto para vários anos e nom apenas camisolas normais: tenho quatro casacos, se nom cinco, e dous nem sequer os toquei ainda. Para que mandar-me mais umha vez objetos do mesmo tipo, embora tenham um melhor aspeto ou simplesmente diferente? Para que os comam aos carunchos[...]88.— escreveche demasiado rápido para a Livraria para a renovaçom das assinaturas a revistas: demasiado zelo, porque em dous messes tenhem todo o tempo para esquecer também o aviso. recebo regularmente o «Secolo Illustrato». o «Emporium» nom o quero em absoluto: tenho já chinelos avondo89. Nom te enfades.
abraço-te com tenrura. antonio
recebim o sedobrol e as meias de lá. obrigado.
Manda a outra metade da folha para minha irmá teresina Gramsci-Paulesu.
87        Palavras censuradas. 88   Palavras censuradas.
89 G. di isso porque utilizava o papel para aquecer os pés. [N. do T.]

(Carta 69)

15 de dezembro de 1930 Queridíssima mae,
nom sei explicar-me o que se passa. Carlo nom me escreve desde há mais de três messes. a tua última carta recebim-na há cousa de uns dous messes. Há cousa de um mês e meio recebim umha carta de teresina, que respondim, sem ter mais contestaçom (escrevim para teresina há exatamente quatro semanas). Na verdade, nom sei explicar-me este silêncio sistemático: por quê nom interrompê-lo polo menos com algum postal ilustrado? tatiana escreve-me que recebeu umha carta de Carlo, que se excusa por nom escrever mais amiúde, aduzindo o seu grande trabalho. Penso que é umha justificaçom insuficiente; pode explicar por que nom se escrevem cartas longas, mas nom se explica o silêncio absoluto; um postal ilustrado pode escrever-se num instante. Pensei que Carlo pudo ter sarilhos pola minha causa e nom quer ou nom sabe explicar-me o seu estado de ánimo de desconcerto ou de dúvida. Pedirei-lhe por isso que me tranquilize ou que faga que me tranquilize, talvez fazendo que Mea escreva umha carta. desta maneira, gostaria de ser informado um pouco mais amiúde sobre as tuas condiçons de saúde. recuperache as forças? se nom tiveres forças para escrever fai que alguém escreva postais e depois pom-lhes apenas a tua assinatura; para mim será suficiente. Queridíssima mamae, eis o quinto natal que passo em privaçom de liberdade e o quarto que passo no cárcere. Na verdade, a condiçom de desterrado com que passei o natal do 26 em Ustica era ainda umha espécie de paraíso de liberdade pessoal em comparaçom com a condiçom de preso. Mas nom creias que a minha serenidade diminuiu. envelhecim quatro anos, tenho muitos cabelos brancos, perdim os dentes, já nom rio com alegria como antano, mas creio que cheguei a ser mais sábio e que aumentei a minha experiência dos homens e das cousas. Polo demais, nom perdim o gosto pola vida; todo me interessa ainda e tenho a certeza de que mesmo se já nom podo «zaccurrare sa fae arrostia»90, nom experimentaria desgosto vendo e ouvindo os demais a zaccurrare. Nom me convertim portanto num velho, de acordo? Convertemo-nos em velhos quando começamos a temer a morte e quando nos desagrada ver fazer aos demais aquilo que nós já nom podemos fazer. Neste sentido, tenho a certeza de que nem sequer tu te converteche numha velha, apesar da tua idade. tenho a certeza de que estás decidida a viver muitos anos, para poderes ver-nos a todos juntos novamente e para conheceres todos os teus netinhos: enquanto se deseja viver, enquanto se sente o gosto pola vida e se deseja atingir ainda algumha meta, resistem-se todos os achaques e todas as doenças. Porém, deves convencer-te de que é preciso também poupar um pouco as próprias energias e nom teimar em fazer grandes esforços, como quando eras adolescente. Precisamente, penso que teresina me indicara na sua carta, com um pouco de malícia, que pretendes fazer demasiado e que nom queres renunciar à autoridade nos labores domésticos. No entanto, deves renunciar e descansar. Queridíssima mamae, desejo-te muitas cousas polas férias, que estejas alegre e tranquila. Muitas felicidades e cumprimentos a todos os da casa. abraço-te com tenrura. antonio
90 em sardo, «mordicar favas tostadas».

(Carta 70)

15 de dezembro de 1930 Queridíssima tatiana,
sim, sim, o livro de Zangwill91 recebim-no há algum tempo e esqueço sempre confirmá-lo. É um livro mui interessante, mas já o conhecia; porém, relim-no com prazer.
as revistas «Pégaso» e «Les Nouvelles Littéraires» recebimnas sempre de maneira regular e de facto parecem-me interessantes: podes confirmar a assinatura na Livraria, mas penso que já confirmaras em geral todos as assinaturas em curso e que portanto nom é necessária umha confirmaçom específica, nom achas?
Quanto à petiçom de revisom, visto que foi feita já por um dos condenados, nom é preciso que a faga eu. os elementos individuais som úteis para a apelaçom, nom para a revisom, na qual se exige apenas, como justificaçom, a prova de defeitos de forma, ou bem de contraste com outras sentenças do mesmo tribunal, etc., isto é, elementos de caráter técnicojurídico que só um advogado pode identificar. eu nom sei a que advogado terá encarregado Umberto92 tratar o seu recurso, no caso de que ele fosse aceite; a dizer verdade, nem conheço o procedimento dos recursos de revisom, se se trata de umha deliberaçom na cámara do conselho ou se se lhe permite ao advogado desenvolver os motivos do recurso perante o conselho investido para o julgamento. seja como for o caso, dado que o nosso julgamento foi totalmente político, também o recurso será aceite ou será rejeitado por motivos políticos,
91      Israel Zangwill, Giuseppe il sognatore, ed. delta, Milám, 1929.
92      Umberto terracini.
e nom por motivos jurídicos formais; portanto, é suficiente a petiçom de um particular. trata-se apenas de ver se no recurso se expugérom todos os motivos jurídicos por Umberto e isso duvido-o, polo facto de que no julgamento os advogados, do ponto de vista profissional, fôrom de umha insuficiência estupefaciente (digo insuficiência por nom empregar palavras mais fortes). Nom nos informárom de um facto essencial, isto é, de que noutro julgamento, anterior ao nosso, esse do grupo florentino serafino Masieri e Cia.93, se absolvera do crime de incitaçom à guerra civil. Porém, no nosso julgamento constava que Masieri cometera o crime, e nós fomos condenados a 15 anos de reclusom como «mandantes», mandantes de um crime do qual o mandatário fora absolvido! Mas mesmo isto é umha bagatela, porque, como che dixem, o julgamento era político, ou seja, como dixo o fiscal militar e como repete a sentença, nós fomos condenados por sermos um «perigo potencial», porque poderíamos ter cometido todos os crimes contemplados no código: que os tivéssemos cometido ou nom era umha cousa secundária. Portanto, esquece o tema do recurso; o importante era que se figesse, quer dizer, que constasse nas atas do tribunal especial que nós recorremos a todas as instáncias permitidas pola lei para protestarmos contra a condena; acho que ninguém tem quaisquer esperanças de revisom real, eu polo menos nom o pensei nunca, e hoje muito menos.
Querida tatiana, ainda nom quero escrever para Giulia; quero receber primeiro umha carta sua e ter notícias diretas dela sobre a sua saúde. aliás, penso que continuas a mandar-
93 G. refere-se ao julgamento celebrado em 31 de janeiro de 1928, perante o tribunal especial, contra um grupo de 23 comunistas acusados de terem participado numha reuniom secreta e «armada» na cidade de Florença no dia 24 de outubro de 1924. Masieri, ex-carpinteiro, fora condenado a dez anos de reclusom.
lhe todas as minhas cartas, embora as escritas para ti pessoalmente. se lhe enviares também esta, lerá este desejo meu, que responde a umha autêntica exigência psicológica que nom som capaz de superar. deve ser porque toda a minha formaçom intelectual foi de natureza polémica; incluso pensar «de maneira interessada» me parece difícil, isto é, o estudo polo estudo. somente algumha vez, mas raramente, acontece que me perdo numha determinada ordem de reflexons e que encontro, por assim dizer, o interesse nas cousas em si, para dedicar-me à sua análise. Normalmente, é necessário para mim situar-me num ponto de vista dialógico ou dialético; de outra maneira nom sinto qualquer estímulo intelectual. Como che dixem umha vez, nom gosto de guindar pedras à toa; quero escutar um interlocutor ou um adversário em concreto; mesmo nas relaçons familiares quero dialogar. de outra maneira, pareceria-me que escrevo um romance em forma epistolar, que sei eu, que fago má literatura.
É claro que me interessaria saber o que delio pensa da sua viagem, que impressons tivo, etc. Mas já nom tenho vontade de pedir para Giulia que empurre delio para contar-me algo. Figem-no umha vez; escrevim umha carta para delio, talvez o lembres, mas tudo ficou em nada. Nom podo pensar porque se lhe escondeu a delio que estou em prisom, sem refletir precisamente em que ele poderia tê-lo sabido de maneira indireta, quer dizer, da maneira mais desagradável para umha criança, que começa a duvidar da veradicidade dos seus educadores e começa a pensar pola sua conta e a fazer vida à parte. Polo menos assim me aconteceu a mim quando era meninho: lembro-o perfeitamente. este elemento da vida de delio nom me empurra a escrever-lhe diretamente: penso que cada itinerário educativo, mesmo o pior, é sempre melhor que as interferências entre dous sistemas opostos. Conhecendo a grande sensibilidade nervosa de delio e ignorando quase tudo da sua vida real e do seu desenvolvimento intelectual (nem sequer sei se começou a apreender a ler e a escrever) duvido em tomar iniciativas com respeito a ele, ao duvidar justamente se nom irei causar interferências com estímulos sentimentais contraditórios, que considero seriam nocivos. o que achas? Por isso seria necessário estimular Giulia para me escrever com umha maior constáncia ou ao melhor para me sugerir sobre o que devo escrever, e seria necessário convencê-la de que nom é nem justo nem útil, em último análise, manter oculto às crianças que estou no cárcere: é possível que a primeira notícia cause neles reacçons desagradáveis, mas a maneira de informá-las deve ser escolhida com critério. acho que é bom tratar as crianças como seres razoáveis e com quem se fala de maneira séria, até das cousas mais sérias; isso deixa neles umha impressom bem profunda, fortalece o caráter, mas principalmente evita que se abandone a formaçom da criança ao acaso das impressons do ambiente e ao caráter mecánico das circunstáncias fortuitas. É mesmo estranho que os maiores esqueçam que fôrom crianças e que nom tenham em conta as próprias experiências; eu, pola minha parte, lembro como me ofendia e como me induzia a fechar-me em mim próprio e a fazer umha vida à parte cada vez que descobria um subterfúgio empregue para ocultar-me, mesmo as cousas que podiam magoar-me; convertera-me, por volta dos dez anos, num autêntico tormento para minha mae, e era tam fanático da sinceridade e da verdade nas relaçons recíprocas como para fazer cenas e provocar escándalos.
recebim os dous pacotes de tabaco, que é bom, mas é de-
masiado forte. agradeço-cho, mas será melhor renunciar.
Gostaria de que visses se na revista «Educazione fascista» de dezembro foi publicado o recente discurso do senador Giovanni Gentile no Istituto di Cultura fascista94: podes encontrar esta revista na Livraria do Littorio e talvez o empregado saiba dizer se o discurso foi publicado noutra revista (talvez na «Bibliografia fascista», que também é dirigida por Gentile). seja como for, agradeceria-che que me conseguisses um número da «Educazione fascista» de amostra, para ver como se edita e se vale a pena fazer a subscriçom: o número de dezembro, que contém o índice do ano, é indicativo como amostra. Queridíssima, desejo-che umhas felizes festas e abraço-te com tenrura. antonio

(Carta 71)

13 de janeiro de 1931 Queridíssima Giulia,
recentemente, tania fijo-me chegar cinco fotografias, nas quais aparece delio junto com outras crianças e umha fotografia de 1929 em que delio está sentado sobre um pequeno muro de soci, enquanto come um cacho de uvas. som as fotografias mais interessantes que recebim nestes quatro anos e meio, depois de separar-me de ti e dos nossos filhos. Há nelas movimento e espontaneidade. Podo captar as diversas expressons e gestos de delio, manifestados num pequeno espaço de tempo, captando melhor desta maneira a sua individualidade nascente. em minha opiniom, a sua personalidade destaca mais e com maior naturalidade justamente porque está em
94                  La formazione politica della coscienza nazionale, «Educazione fascista», VIII, dezembro de 1930, pp. 675-686. o discurso fora pronunciado no dia 5 de dezembro.
grupo; cada um tem um traço caraterístico, cada um tem a sua personalidade, e no entanto o grupo é homogéneo, forma umha «massa» que se reflete nos indivíduos e os ilumina melhor. delio cresceu, desenvolveu-se de umha maneira harmoniosa (vê-se bem onde aparece retratado espido, na beira do mar); acho que exageram quando me escrevem que é demasiado serio. Na fotografia que lhe figérom no refeitório aparece, polo contrário, como umha criança normal: chega com compará-lo com a rapariguinha sentada à sua esquerda, na qual há umha expressom de curiosidade um pouco ingénua, mas apenas aparente: na minha opiniom, predomina a inteligência e a ingenuidade é mais própria de umha pequena e linda atriz. Lembras o que dizias em roma quando delio tomava banho? «temos um filho bem lindo!»
Com certeza, as lembranças de roma, fortalecidas novamente quando vim delio no 25, mesmo se doente, ajudam-me muito a reconstrui-lo melhor com as atuais fotografias; isso é mais difícil no caso de Giuliano, embora delio me ajude indiretamente.
Queridíssima Iulca, desde há um tempo nom recebo as tuas cartas. agora temo que as minhas cartas nom che cheguem e que também as tuas sofram extravios. Nestes últimos tempos fum informado, acho que de maneira definitiva, sobre as tuas condiçons de saúde. acho que este modo de comportar-se acabará por tornar as relaçons recíprocas convencionais, bizantinas, sem espontaneidade e que nom se pensa bem que os sentimentos criados por estes cintos de arame farpado nas relaçons recíprocas chegam a ser exasperantes e doentios. Prometéramos ser sempre sinceros e verdadeiros nas informaçons recíprocas sobre nós mesmos: lembras? Por quê nom mantivemos a palavra? Por quê nom rompemos absolutamente com estas maneiras de comportar-se que cheiram a vida feudal, a domostroi95, a legislaçom inglesa do século XVIII? (segundo esta legislaçom, o marido escondia à mulher a vida dos filhos e os tribunais sancionavam que entre mae e filho nom existia parentesco!). Naturalmente, som mui feliz quando recebo umha carta tua: enche muito do meu inútil tempo e interrompe o meu isolamento da vida e do mundo. Porém, acho necessário que escrevas, mesmo para ti própria, porque me parece que também tu deves estar isolada e algo afastada da vida e que quando me escreves podes sentir menos essa soidade interior. Quando a 19 de novembro de 1926 me comunicárom o decreto que me adjudicava cinco anos de deportaçom nas colónias, o comandante do cárcere comunicou-me que me destinaram à somália; aos outros colegas meus comunicáromlhes o destino à Cirenaica e a eritreia. Convencim-me de que, conhecendo como se viaja aos lugares de reclusom, se calhar nem sequer chegaria vivo (quase dous messes de viagem com as cadeias, com a passagem do equador) e que de qualquer maneira nom sobreviveria durante muito tempo. Permitíromme escrever, mas durante umhas doze horas estivem na dúvida: nom seria melhor nom escrever para ninguém e desaparecer como umha pedra no oceano? depois decidim-me a escrever-che, mui brevemente, e se lembras aquelas poucas palavras, contudo, transluzem algo das minhas convicçons da altura. escrevim para a casa, e para umha irmá minha, quando estava em Ustica (porque o 26 em Nápoles nos comunicárom oficialmente que já nom iríamos para a áfrica), escreveume que a minha carta lhe parecera um testamento. agora rio disso, mas foi umha viragem moral na minha vida, porque já
95                  Domostroi: texto anónimo russo do século XVI sobre a organizaçom da vida familiar e sobre o governo da casa. sinónimo de educaçom familiar atrasada e conservadora.
me habituara à ideia de ter que morrer em breve. depois disso, que poderia afetar-me de umha maneira séria? abraço-te forte forte
antonio

(Carta 72)

9 de fevereiro de 1931 Queridíssima Giulia,
recebim a tua carta de 9 de janeiro, que começa assim: «Quando penso em escrever —cada dia— penso naquilo que me fai calar, penso que a minha debilidade é nova para ti...». — também eu penso que até agora houvo um certo equívoco entre nós, também sobre esta presente debilidade tua e sobre a tua presumida força anterior, e deste equívoco quero assumir polo menos a maior parte da responsabilidade que me corresponde realmente. Umha vez escrevim-che (talvez o lembres) que estava convencido de que foras sempre mais forte do que tu mesma pensavas, mas quase me repugnava insistir demasiado nesta ideia, porque me parecia ser um negreiro, visto que a ti che tocárom os pesos mais grandes na relaçom. ainda penso dessa maneira, mas o que nom significava entom, nem significa hoje muito menos, é que me figesse de ti umha imagem de «mulher forte», convencional e abstrata: sabia que até eras débil, que algumhas vezes eras polo contrário mui débil, que eras, em resumo, umha mulher viva, que eras Iulca. Mas pensei muito em todas estas cousas desde que estou no cárcere e mais de um tempo para esta parte. (Quando nom se podem fazer previsons para o futuro, rumina-se continuamente o passado, analisa-se, acaba-se por vê-lo melhor em todas as suas relaçons e pensa-se sobretudo em todas as parvoíces cometidas, nos próprios atos de debilidade, naquilo que teria sido melhor fazer ou nom fazer, e naquilo que teria sido necessário fazer, ou nom). assim me convencim de que, no relativo à tua debilidade e fortaleça, figera muitas parvoíces (assim me parecem) e figem-nas por umha tenrura excessiva por ti, que era umha torpeza pola minha parte e que, na realidade eu, que me achava bastante forte, era todo o contrário de forte, era, antes, sem dúvida, mais débil do que tu. assim se criou este equívoco, que tivo consequências mui graves, se é que nom me escreveche quanto terias querido escrever, para nom turvares a imagem que pensavas que eu me formara da tua força. os exemplos que deveria dar destas afirmaçons minhas, tenhem um conteúdo que agora me parece tam ingénuo, que a custo consigo representar-me as condiçons em que me encontrava quando sentia e obrava de umha maneira tam ingénua; por isso nom me sinto capaz de escrever-che a respeito disso. aliás, serviria de pouco. acho que é mais importante estabelecer agora entre nós relaçons normais, conseguir que nom tenhas que sentir freios inibidores ao escrever-me, que nom tenhas que sentir quase repugnáncia a parecer diferente daquela que imaginas que eu creio que és. dixem-che que estou convencido de que és bem mais forte do que tu mesma achas: também a tua última carta me reafirma neste convencimento. Mesmo no estado de depressom em que te encontras, de grave desequilíbrio psicofísico, conservache umha grande força de vontade, um grande controlo sobre ti própria, e portanto isso significa que o desequilíbrio psicofísico é muito menor do que poderia parecer, e limita-se, na realidade, a um agravamento relativo das condiçons da tua personalidade, que eu acho permanentes, ou polo menos que eu percebim como permanentes, na medida em que estám relacionadas com um ambiente social que exige de maneira permanente umha tensom da vontade extremamente forte. opino, em resumo, que a dia de hoje estás obcecada polo sentimento das tuas responsabilidades, que fai que as tuas forças sejam inadequadas para os deveres que queres cumprir, extravia-te a vontade e esgota-te fisicamente, colocando toda a tua vida ativa num círculo viçoso em que realmente (mesmo se parcialmente) queimas as forças sem resultado, ao serem aplicadas de maneira desordenada. Mas penso que, contudo, conservache as forças e a vontade suficientes para superares por ti própria estas dificuldades em que te encontras. Umha intervençom exterior (exterior apenas num certo sentido) facilitaria-che a tarefa: por exemplo, se tatiana fosse viver contigo e te convencesses concretamente de que as tuas responsabilidades diminuírom de facto; por isso insisto a tatiana para que se decida a partir, como lhe insisto para que se ponha em condiçons de poder reunir-se contigo numhas condiçons de saúde tais que lhe permitam depressa ser ativa: de outra maneira, acho que toda a situaçom pioraria, em lugar de melhorar. Porém, insisto em afirmar o meu convencimento de que subestimas a tua própria força real, e que és capaz de superares a atual crise por ti própria. sobreestimache a tua força no passado e eu parvamente deixei-che fazer (agora digo parvamente, mas naquela altura nom achava ser parvo); agora despreza-la, porque nom sabes adequar concretamente a tua vontade ao fim a atingir e nom sabes graduar os teus fins, porque estás algo obcecada. Querida, sei mui bem que isto tudo que che escrevo é inapropriado e frio. sinto a minha impotência para fazer algo real e eficaz que te ajude; debato-me entre o sentimento de umha imensa tenrura por ti, por umha debilidade que me parece deve ser consolada de imediato com umha carícia física, e o sentimento de que é necessário que faga um grande esforço de vontade para convencer-te ao longe, com palavras frias e insípidas, de que também tu és forte e podes, e deves, superar a crise. e logo obceca-me o pensamento do passado. Lembras o nascimento de delio e o carrinho (mas como pudeche esquecer que em abril de 1925 o levamos juntos de passeio naquele carrinho a um jardim próximo à tverskaia-Yamskaia?),96 e Bianco e os doze rublos que tomache em empréstimo? e por que rejeitache tam tenazmente a ajuda que che mandara através de Bianco? sei que foi porque nom conseguim impor-me sobre ti e fazer com que reconhecesses o meu direito a ajudar-che? acho que naquela altura recebera 8.200 liras de indemnizaçom jornalística e que as destinara totalmente ao novo jornal97. Por que permitim que contraísses dívidas de 12 rublos, enquanto eu gastava 8.200 liras no jornal, enquanto eu podia ter gastado, sem dificuldade nengumha e também cumprindo com o meu dever, apenas 50%? Isto tudo fai que me irrite agora com quem era naquele tempo e fai-me ver como as nossas relaçons eram de umha incongruência e de um romantismo bem atroz. É verdade que entom nom me mencionache esses doze rublos; polo contrário, riche de mim polas minhas «pretensons» de ajudarche, mas agora sinto que deveria ter encontrado a maneira de impor-che também aquilo que nom querias.
seja como for, tés razom porque no nosso mundo, no meu e no teu, toda a debilidade é dolorosa e toda a força umha ajuda. acho que a nossa maior desgraça foi a de ter estado juntos demasiado pouco, e sempre em condiçons gerais
96                  em março-abril de 1925, G. realizara umha segunda viagem à Uniom soviética. a tverskaia-Yamskaia, hoje rua Gorki, era umha das principais avenidas de Moscovo; a família schucht morava no número 14.
97                  trata-se, quase com certeza, do jornal L’Unità, que começou a sair no dia 12 de fevereiro de 1924 e cujo título fora sugerido polo próprio G.
que nom eram normais, afastadas da vida real e concreta de todos os dias. devíamos agora, nas condiçons de força maior em que nos encontramos, remediar estas faltas do passado, de maneira que a nossa uniom mantivesse toda a sua solidez moral e se salvasse da crise o que de belo houvo também no nosso passado e que vive nos nossos filhos. Nom achas? eu quero ajudar-che, na medida em que puder, a superar a tua depressom atual, mas é preciso também que tu me ajudes um pouco e me ensines a melhor maneira de che ajudar com eficácia, endireitando a tua vontade, arrancando todas as teias de aranha das falsas representaçons do passado que podam estorvá-la, ajudando-me a conhecer cada vez melhor os nossos dous filhos e a participar da sua vida, da sua formaçom, da afirmaçom da sua personalidade, de maneira que a minha «paternidade» chegue a ser mais concreta e seja sempre atual, convertendo-se numha paternidade viva e nom apenas num feito do passado, cada vez mais longínquo e ajudando-me assim também a conhecer melhor a Iulca de hoje, que é Iulca + delio + Giuliano, soma em que o mais nom indica apenas um feito quantitativo, mas sobretudo umha nova pessoa qualitativa. Querida, abraço-te forte forte e espero que me escrevas com mais vagar.
antonio
Querida tatiana,
acrescento umha pequena apostila para ti, para saudar-te, e ainda : 1° para pedir que nom me envies reconstituintes, porque tomei mais umha vez esses que já me enviaras. —2° para pedir que nom fagas a viagem a turi: se Carlo tiver tempo de vir, bem; mas penso que também ele poderia abster-se de fazêla e poupar o dinheiro para outra ocasiom. —3° pido-che que escrevas para a livraria, para perguntar como é que nom recebim nengumha revista do novo ano: como previra, as novas assinaturas devêrom sofrer umha demora, por esquecimento ou por outra cousa. abraço-te. antonio

(Carta 73)

20 de março de 1931
Queridíssima Giulia,
tania enviou-me duas fotografias das crianças feitas pola sua avó, toda umha série de observaçons muito interessantes sobre a sua vida e o seu caráter e algumha informaçom sobre as tuas condiçons de saúde. enviou-me também um pimpò de delio, com um aparato crítico hermenêutico. Nom consigo interpretar nada pola minha conta. Gostaria de escrever umha carta directamente para as crianças, mas nom sei como fazer. escrever só para lhes agradecer a sua extensa carta pareceme demasiado pouco. teria de haver entre eles e eu um intermediário de boa vontade e isto só o poderias ser tu, mas nom acho que te sintas capaz de o ser; escrevim-che sobre isso algumhas vezes, inutilmente, porque nem o mencionache. aguardo que em breve estejas em condiçons de poder escrever-me. abraço-te com tenrura, junto a delio e Giuliano antonio

(Carta 74)

7 de abril de 1931 Queridíssima tatiana,
devo responder a umha série de questons que colocache:  —1° recebim o teu pacote na véspera de Páscoa e agradeço muito o teu solícito afeto. Neste momento tenho montes de cousas que ham de chegar-me durante alguns messes. —2° Carlo escreveu-me um postal no dia 16 de março e depois mais nada. —3° recebim o discurso do senador Gentile; fora publicado justamente no fascículo de dezembro de Educazione Fascista. —4° os números de Leonardo que che encomendara procurar som justamente os de 1927, que me perdêrom precisamente em Ustica, aonde a revista continuou a chegar depois da minha partida, com a licença da direçom da Colónia, sendo entregada aos amigos que ali ficárom, os quais me prometeram mandar-me todos os números no fim do ano. desta maneira, elimina-se o teu escrúpulo-adivinha. —5° Gostaria de saber que ediçom do Príncipe de Machiavelli leche ou estás a ler. eu aqui tenho dous exemplares, mas ambos ficárom já antiquados devido à publicaçom da ediçom crítica feita há alguns anos polo professor Mario Casella98, quem corrigiu muitas incorreçons e erros das impressons tradicionais. —6° Nom me surpreende que as palestras do professor Bodrero sobre a filosofia grega nom che interessassem muito. ele é professor de História da Filosofia, mas nom sei agora em que universidade (outrora estava em Pádua); ele nom é nem filósofo nem historiador: é um filólogo erudito, capaz de fazer discursos de tipo humanístico-retórico. Lim recentemente um artigo seu sobre
98 após a ediçom na coletânea de 1929, Casella preparou umha ediçom à parte de O Príncipe e de outras obras, na Libreria d’Italia, Milám-roma, 1929-VII.
a Odisseia de Homero que fijo abalar mesmo o convencimento de que é Bodrero um bom filólogo, já que descobriu que ter ido à guerra é umha caraterística que permite compreender a Odisseia; duvido que um senegalês, por ter ido à guerra, poda compreender melhor Homero. de resto, Bodrero esquece que Ulisses, segundo a lenda, foi um renitente à leva e umha espécie de auto-lesionador, já que perante a comissom militar que o fora procurar à ítaca, fingiu-se doido (nom auto-lesionador, corrijo, mas simulador, para ser eximido99). —7° Na questom do gioddu nom se trata de patriotismo sardesco nem de bairrismo. Com efeito, todos os pastores primitivos preparam o leite desta maneira. trata-se de que o gioddu ou iogurte nom se pode enviar nem manter por muito tempo sem que se estrague, porque caseifica. e há também umha outra razom mui importante: parece que é necessária umha certa dose de sujidade do pastor e do ambiente para que o gioddu seja genuíno. este elemento nom se pode fixar matematicamente e é umha mágoa, porque doutra maneira as senhoras pastorzinhas procurariam, por snobismo, serem porquinhas. e aliás: a sujidade necessária deve ser autêntica sujidade, dessa genuína, natural e espontánea, dessa que fai feder o próprio pastor como um castrom. Como vês, o tema é complexo e é melhor que renuncies a fazer de amarillidi e de Cloe numha ceninha arcádica.
Querida tania, a tua carta interessou-me muito e encantou-me. Figeche mui bem em nom refazê-la. Por que pois? o facto de te apaixonares, quer dizer que há em ti muita vitalidade e muito ardor. Na verdade, nom entendim bem algumhas
99 emilio Bodrero (1874-1949), historiador da Filosofia e homem político; deputado de 1925 a 1928, ocupou o cargo de subsecretário de educaçom Nacional. o artigo ao qual alude G., intitulado «Itaca Italia», aparecera na revista Gerarchia, X, 6, junho 1930, pp. 452-465.
das tuas consideraçons, como esta: «deveria viver sempre fora do próprio eu para poder gostar da vida com a maior intensidade»?, porque nom sei imaginar como se pode viver fora do próprio eu, se é que existe um eu identificável umha vez por sempre e nom se trata da própria personalidade em contínuo movimento, algo polo qual se está continuamente fora do próprio eu e continuamente dentro. em minha opiniom, a questom simplificou-se muito e cheguei a ser, na minha altíssima sabedoria, mui indulgente. Brincadeira à parte, pensei muito nos temas que mencionas e que te apaixonam, e acabei por convencer-me de que a culpa de muitas cousas é mesmo minha. digo culpa, porque nom sei encontrar outra palavra. se calhar, é verdade que existe umha forma de egoísmo em que se cai inconscientemente. Nom acho que se trate das formas habituais de egoísmo. Por exemplo, nom acho que se trate do egoísmo mais comum, aquele que consiste em servir-se dos demais como instrumento para o próprio bem-estar e a própria felicidade; neste sentido, nom me parece ter sido nunca egoísta, porque penso que tenho dado, em toda a minha vida, polo menos tanto quanto recebim. No entanto, há umha questom: o débito e o crédito estám equilibrados na contabilidade geral, mas estám-no cada umha das partes? Quando se une a própria vida a um fim e se concentra nele toda a soma das próprias energias e toda a vontade, nom é inevitável que algumhas ou muitas, ou mesmo umha só das partes individuais fique ao descoberto? Nem sempre se pensa nisto e por isso num certo ponto se paga. até se descobre que um pode parece egoísta justamente àqueles a quem menos se pensara poder parecer-lho. e descobre-se a origem do erro que é a debilidade, a debilidade de nom ter sabido como ousar ficar sós, nom criar vínculos, afeiçons, relaçons, etc. Chegados a este ponto, é claro que só a indulgência pode dar a tranquilidade, ou umha certa tranquilidade que nom seja a completa apatia e indiferença e deixando algumha fenda para o futuro. Na verdade: amiúde relembro todo o curso da minha vida e parece-me que somos como renzo tramaglino no fim de Os Noivos, isto é, que podo fazer um inventário e podo dizer: apreendim a nom fazer isto, a nom fazer isto outro, etc. (embora esta soma de aprendizagens me preste bastante pouco). estivem sem escrever para a minha mae alguns anos (polo menos dous anos seguidos) e apreendim que é doloroso nom receber cartas (mas provavelmente se fosse livre recairia nestas mesmas faltas ou nom as julgaria tais, ou nom reflexionaria sobre elas em absoluto) e assim para a frente. em resumo: envelhecim no cárcere 4 anos e 5 messes, e dentro dalguns anos espero estar completamente embalsamado: explicarei-me tudo, de qualquer feito encontrarei que nom podia nom suceder, explicarei e encontrarei que as minhas explicaçons nom som absolutamente controvertíveis. acabarei por convencer-me de que o melhor de tudo seria nom pensar mais, nom receber de fora nengumha incitaçom a pensar e portanto nom escrever mais a ninguém, deixando a um lado as cartas recebidas sem lê-las, etc. etc. Mas se calhar nom acontece nada disto tudo, e somente tenha conseguido encabuxar-te e que estejas de mau humor durante algum tempo, o qual significaria que estás fora do teu eu e que o meu eu, hóspede desagradável, tomou o seu lugar.
Queridíssima tatiana, nom te enfades se me burlo de ti de umha maneira algo brincalhona. Quero-te muito e abraço-te afetuosamente.
antonio

(Carta 75)

18 de maio de 1931
Queridíssima tania,
recebim os óculos; vam-me mui bem. agradeço a tua solicitude. Porém, continuo a estar convencido de que teria sido suficiente gastar muito menos. os óculos a que rompim a armaçom custaram 48 liras; fôrom comprados em dezembro de 1926 no cárcere de Palermo, quando viajava na transferência para Ustica. Visto que a firma Viganò garante a armaçom até 3 anos, parece que estes óculos de 48 liras figérom um discreto serviço; nom estám para tirar com eles, porque as lentes estám intatas e se calhar será suficiente para os consertar umha aplicaçom de metal na armaçom.
Neste momento, recebo a tua carta de 15 de maio e a carta de Giulia. teria desejado que me tivesses escrito as tuas impressons sobre a carta de Giulia. Para mim é ainda difícil orientar-me. acho que pode ser identificada umha parte positiva: quer dizer, que Giulia conquistou umha certa confiança em si própria e nas suas próprias forças, mas nom será esta confiança de caráter puramente intelectual e racional, isto é, pouco profunda? opino que o caráter intelectualístico do seu estado de ánimo é demasiado evidente, isto é, que o momento «analítico» nom se tem convertido ainda em força vital, em impulso volitivo. aquilo que me tranquiliza um pouco é que Giulia, como a maioria dos russos contemporáneos, tem umha grande fé na ciência, e refiro-me a umha fé de caráter quase religioso, isso que nós ocidentais tivemos no fim do século passado e depois perdemos pola causa da crítica da filosofia mais moderna e nomeadamente através do desastre da democracia política. também a ciência foi submetida à «crítica» e foi limitada. Nom teria acreditado nunca em que em turi se pudesse encontrar alguém que pudesse dizer qualquer cousa inteligente, como parece que che passou a ti. além disso, terá sido entom tam inteligente, aquilo que se che dixo? acho que nom é difícil encontrar maneiras de vida esplêndidas; o difícil, no entanto, é viver. Lim recentemente que na europa moderna somente alguns italianos e alguns espanhóis conservam ainda o gosto pola vida: é mesmo possível, embora se trate de afirmaçons genéricas que dificilmente poderiam ser provadas. algumhas vezes som equívocos bastante cómicos. Umha vez tivem umha discussom curiosa com Clara Zetkin100, que admirava precisamente dos italianos o seu gosto por viver e acreditava encontrar umha subtil prova disso no facto de os italianos dizerem: «feliz noite» e nom «noite tranquila» como os russos, ou «boa noite», como os alemáns, etc. Que os alemáns, os russos e até os franceses nom pensem em «noites felizes» é possível, mas os italianos falam também em «feliz viagem» e em «assuntos felizmente resolvidos», o qual diminui o valor sintomático de «feliz»; de resto, os napolitanos dim de umha mulher bonita que é «boa», sem malícia, é claro, porque «bonita» é precisamente um «bonula» mais antigo. em resumo, acho que as fórmulas de vida, quer exprimidas em palavras, quer resultado dos costumes de um povo, tenhem um único valor: servir de incitaçom ou de justificaçom para quem apenas tem veleidades, para converter em vontade concreta estas veleidades. a vida real nom pode ser nunca determinada por sugestons ambientais ou por fórmulas, mas nasce antes de raízes internas.
100 G. conhecera a Clara Zetkin (1857-1933) em Moscovo, por ocasiom dos trabalhos do IV Congresso da Internacional Comunista, em novembro-dezembro de 1922. Zetkin dirigia entom o movimento feminista da Internacional Comunista.
No caso de Giulia, é justa a sugestom de «desfazer o novelo», isto é, de procurar em si própria as suas forças e as suas razons de vida, quer dizer, nom ser tam tímida e nom deixarse vencer e especialmente nom fixar-se na vida objetivos irrealizáveis ou demasiado difíceis. e acredito que esta sugestom é justa até... para ti, que por vezes pensas que se deve ou se pode sair do próprio eu para realizar a vida.
Perguntas-me se deves mesmo escrever para Carlo como che dixem: penso que nom che digem nada terrível. Carlo, desde que estivo em turi, ainda nom me escreveu (apenas um postal ilustrado no dia 16 de março, nem sei o seu endereço) e é algo que me desagrada muito, porque creio adivinhar as razons do seu mutismo, que deveriam ofender-me se nom soubesse quem é Carlo. abraço-te. antonio

(Carta 76)

18 de maio de 1931 Queridíssima Giulia,
recebim a tua carta do 8 de maio. Há alguns dias recebim também umha carta tua de julho de 1930, onde falas da língua «délia» (nom sei se ainda o lembras). a tua última carta fijome mui feliz. Certamente, entende-se depressa, lendo-a, que estás mui cambiada, que estás mais forte e és mais «cuidadosa». Muitas cartas anteriores ressentiam-se do esforço, havia nelas algo de embaraçoso (mas talvez nom seja esta a palavra exata), e para além disso (devo dizê-lo, mesmo se te fago rir) formiguejavam de erros e de deturpaçons da língua italiana, o qual demostrava umha certa turvaçom na conceiçom e na formaçom das ideias e umha notável debilidade da memória. Porém, esta carta é mesmo límpida e sem... um só erro. Portanto, neste caso satisfai nom só o meu sentido... gramatical, mas também o meu sentido «antonio». Verdadeiramente, acho que nom te surpreenderás se... che revelo que considero as tuas cartas até de um ponto de vista gramatical; seja como for, isso significa que também a gramática fai parte da vida. ora bem, devo dizer que é isso o que me acontece, especialmente desde há alguns anos, a saber, desde que tento extrair das tuas poucas cartas todo o sugo possível, analisando-as de todos os pontos de vista: as cartas eram mui breves e em grande parte repetiam-se. dava-me a impressom de que escrever-me che custava um grande esforço e se calhar teria sido melhor que eu che propugesse nom escrever-me mais, para evitar-che um castigo fadigoso (dérom-me as notícias sobre a tua saúde com conta-gotas e acho que ainda hoje nom sei exatamente até que ponto estiveche mal, e ainda menos os diagnósticos feitos polos médicos; pola tua carta parece que se falou até em epilepsia, o qual é surpreendente e demostra apenas, para mim, um excesso de subtileza científica). acho que esta carta tua inicia um novo período nas nossas relaçons e estou feliz por isso, porque é preciso que che confesse que começara já a «enovelar-me» pola minha conta e estava chegando a ser mais hirto do que um ouriço-cacho. agora terás de ser tu quem me ajude um pouquinho a voltar à superfície. Mas talvez isso aconteça de forma automática. É certo que desde algum tempo me sentia mui deprimido, a força de ruminar tantos pequenos episódios do passado. Porque, de outra parte, nom é verdade que só tu tenhas sido passiva. Lembro, por exemplo, umha vez que quase chega a haver umha cena da «terrível senhora Ciccone», como dizia delio, que eu previra. tu dixeche daquela que, por tê-la previsto, tinha que ter-me imposto sobre ti e que terias gostado de umha imposiçom, ou algo parecido; em resumo, querias dizer que nom era justo que por vezes (quando eu sabia que tinha razom) nom che figesse sentir a minha vontade. Lembro que a tua frase me causou muita impressom (porém, estávamos nos últimos dias da tua estadia em roma) e fijo-me cavilar. aquilo significava certamente que o chamado respeito da personalidade dos outros se converte numha forma de «estetismo», por assim dizer, isto é, o «outro» converte-se por vezes num «objeto», precisamente quando se acredita em que se tem mais respeito pola sua subjetividade. em conclusom: o mundo é grande, terrível e complexo, e estamos atingindo umha sabedoria que chegará a ser proverbial. eu que já cheguei polo menos a ser mais sábio do que Lao-tse, que ao nascer tinha já o conhecimento e a compostura de um homem de 80 anos; acho que já esquecim completamente como se lançam as pedras e como se agarram as lagartixas. sabem delio e Giuliano lançar as pedras longe, fazê-las zunir e choutar quatro e cinco vezes na água? sinto nom ter podido ensinar-lhes todas estas habilidades e outras mais. deste ponto de vista, acho que eles fôrom educados algo a mais por mulherzinhas.
abraço-te com tenrura. antonio

(Carta 77)

1 de junho de 1931 Queridíssima Giulia,
tania referiu-me a «epístola» de delio (emprego a palavra mais literária) com a declaraçom do seu amor polos contos de Puškin e polos referidos à vida da mocidade. Gostei muito dela e gostaria de saber se esta expressom foi pensada por delio de maneira espontánea ou se se trata de umha reminiscência literária. Vejo até com certa surpresa que agora nom te assustas polas tendências literárias de delio; acho que umha vez estavas convencida de que as suas tendências fossem antes de... engenheiro que de poeta, enquanto agora prevês que ele lerá dante até com amor. espero que isso nom aconteça nunca, mesmo estando mui contente porque delio goste de Puškin e de tudo o relativo à vida criativa nas suas primeiras manifestaçons. aliás, quem lê dante com amor? os professores gagás, que fam religions de um poeta ou escritor qualquer e celebram estranhos ritos filológicos. Penso que umha pessoa inteligente e moderna deve ler os clássicos em geral com um certo «distanciamento», quer dizer só polos seus valores estéticos, enquanto o «amor» implica adesom ao conteúdo ideológico da poesia; ama-se o «próprio» poeta, «admira-se» o artista «em geral». a admiraçom estética pode ser acompanhada por um certo desprezo «civil», como no caso de Marx por Goethe101. estou contente, portanto, polo facto de que delio ame
101 G. alude, quase com certeza, ao texto de engels (nom de Marx) Deutscher Sozialismus in Versen und Prosa, «Deutsche Brüsseler Zeitung», 21 de novembro — 9 de dezembro de 1847, que ele traduziu parcialemente no cárcere da ediçom reclam cit., onde o texto parece atribuido a Marx. Cfr. Por exemplo a seguinte passagem: «...trata-se da luita contínua nele entre o poeta genial anojado pola mesquindade do seu ambiente e o filho do prudente conselheiro de Francoforte,
as obras de fantasia e fantasie também por própria iniciativa; nom acho que por isso nom poda chegar a ser na mesma um grande «engenheiro» construtor de arranha-céus ou de centrais elétricas, antes polo contrário. Podes perguntar a delio, da minha parte, de qual dos contos de Puškin gosta mais; eu verdadeiramente só lhe conheço dous: O galo pequeno de ouro e O pescador. Conheço também a história da «bacia», com a almofada que salta como umha rá, o lençol que sai voando, a candeia que vai aos grandes saltos esconder-se baixo a estufa etc., mas nom é de Puškin. Lembra-las? sabes que lembro ainda de memória dezenas dos seus versos? Quigera contar para delio um conto da minha aldeia que acho interessante. Fago-che um resumo e tu podes desenvolvê-lo, para ele e mais para Giuliano.
Umha criança dorme. Há umha jarra de leite preparada para quando ela acordar. Um rato bebe-lhe o leite. a criança, como nom tem o leite, grita e a mamae grita. o rato desesperado bate com a cabeça contra o muro, mas repara em que nom serve de nada e corre junto da cabra para conseguir leite. a cabra daria-lhe leite se tivesse erva para comer. o rato vai ao campo por erva e o campo árido quer água. o rato vai junto da fonte. a fonte está rota por causa da guerra e a água perde-se: necessita um mestre alvanel para que a conserte. o rato vai junto do mestre alvanel: necessita as pedras. o rato vai ter com a montanha e produze-se um dialogo sublime entre o rato e a montanha que foi desflorestada polos especuladores e que mostra por toda a parte os seus ossos sem terra. o
por sua vez conselheiro secreto de Weimar, que se vê obrigado a pactuar umha trégua com aquele e habituar-se a ele. desta maneira, Goethe é ora gigantesco, ora minúsculo, ora um génio orgulhoso, petulante, que se burla do mundo, ora um filisteu cauteloso, moderado, fácil de contentar».
rato conta toda a história e promete que a criança, quando ela crescer, plantará pinheiros, carvalhos, castanheiros, etc. assim, a montanha dá as pedras, etc., e a criança tem tanto leite que se lava também com o ele. Cresce, planta as árvores, transforma-se tudo; desaparecem os ossos da montanha baixo o novo húmus, a precipitaçom atmosférica volta a ser regular porque as árvores retenhem os vapores e impedem aos torrentes devastarem a chaira, etc. em soma, o rato concebe umha autêntica e própria piatilietca102. É um conto próprio de umha aldeia arruinada pola desflorestaçom. Queridíssima Giulia, deves mesmo contar este conto e referir-me depois as impressons das crianças. abraço-te com tenrura. antonio

(Carta 78)

15 de junho de 1931 Queridíssima mae,
recebim a carta que teresina escreveu por ti. em minha opiniom deverias escrever-me com esta freqüência; sentim na carta todo o teu espírito e a tua maneira de razoar; era mesmo umha carta tua, e nom umha carta de teresina. sabes o que me lembrou? Lembrou-me, de umha maneira bastante transparente, quando estava em primeiro ou em segundo de primária, e tu corrigias as minhas tarefas: lembro perfeitamente que nunca conseguia lembrar que «pássaro» se escreve com dous s, e corrigiche-me esse erro polo menos dez vezes.
102     Piatilietka, em russo, «plano quinquenal».
consequentemente, visto que nos ajudache a aprender a escrever (e antes nos ensinaras muitas poesias de memória; ainda lembro Rataplan e a outra, «Lungo i clivi della Loira / che qual nastro argentato / corre via per cento miglia / un bel suolo avventurato»103) é justo que um de nós escreva por ti quando nom tés suficientes forças. aposto que a lembrança de Rataplan e da cançom do Loira che fará sorrir. e lembro também quanto admirava (devia ter quatro ou cinco anos) a tua habilidade para imitar na mesa o toque do tambor, enquanto declamavas Rataplan. além disso, nom podes imaginar em quantas cousas das que lembro apareces tu, sempre como umha força benéfica e cheia de tenrura para connosco. se o pensas bem, todas as questons da alma, da imortalidade da alma e do paraíso, e do inferno nom som, no fundo, afinal de contas, mais do que umha maneira de ver este simples facto: que qualquer açom nossa se transmite aos demais em funçom do seu valor, seja bom ou mau, passa de pai para filho, de umha geraçom para outra num movimento perpétuo. Que todas as lembranças que temos de ti sejam de bondade e de fortaleça, ou que desses as tuas forças para nos educar, significa que já estás, desde entom, no único paraíso real que existe, que para umha mae, acho, é o coraçom dos próprios filhos. Vês o que che escrevim? além de mais, nom deves pensar que queira ofender as tuas opinions religiosas, e por outro lado, penso que concordas comigo mais do que achas. di a teresina que aguardo a outra carta que me prometeu. abraço-te com tenrura, junto a todos os da casa. antonio
103     a balada de «rataplám» é Il vecchio sergente, de Pietro Paolo Parzanese. os versos, livremente citados por G., pertencem ao início do pequeno poema de arnaldo Fusinato, Le due madri: «ao longo das margens do Loira/que qual fita de prata/percorre cem milhas/de um chao venturoso...»

(Carta 79)

27 de julho de 1931
Queridíssima Giulia,
dentro de alguns dias delio fará os 7 anos e no fim do mês Giuliano fará 5 anos. Para delio, a data é importante, porque habitualmente os 7 anos som considerados umha etapa importante no desenvolvimento da personalidade. a Igreja Católica, que é sem dúvida o organismo mundial que possui a maior acumulaçom de experiências organizativas e propagandísticas, fixou nos 7 anos a entrada solene na comunidade religiosa mediante a primeira comunhom, que significa para o miúdo a primeira responsabilidade pola escolha de umha ideologia, que deve imprimir umha lembrança indelével para toda a sua vida. Nom sei se concedes um caráter particular a esta festa de delio, que deixa na sua memória umha pegada mais profunda e duradoira do que outras festividades anuais. se Giuliano nom tivesse apenas 5 anos, e se nom fosse impossível, polo menos dentro de certos limites, distinguir entre delio e Giuliano, acho que este seria o momento de explicar a delio que estou no cárcere e por qué. acho que umha explicaçom assim, unida ao facto de ser considerado capaz num certo sentido responsável, causaria nele umha grande impressom e marcaria, sem dúvida, umha data no seu desenvolvimento. Nom sei exatamente o que achas a este respeito. Por vezes acho que sobre este tema pensamos de maneira idêntica; outras vezes acho que na tua consciência há umha certa dissidência ainda nom definida: quer dizer, tu (polo que por vezes me parece) compreendes bem, do ponto de vista intelectual e teórico, que és um elemento do estado e que tés o dever, como tal, de representares e exercitares o poder da coerçom em determinadas esferas, para modificares capilarmente a sociedade e, nomeadamente, para conseguires que a geraçom que nasce esteja preparada para umha nova vida (desempenhando em determinadas esferas a açom que o estado desempenha de maneira concentrada em toda a área social) e o esforço capilar nom pode distinguir-se na teoria do esforço concentrado e universalizado; ora, acho que na prática, quando explicas o surgimento e o desenvolvimento de novos tipos de humanidade capazes de representar as diversas fases do processo histórico, nom consegues liberar-te de certos costumes tradicionais, que mantenhem presas as concepçons espontaneístas e libertárias. assim me parece, polo menos, mas podo estar enganado. seja como for, quero que me sintas perto de ti e dos nossos filhos nos dias em que se lhes lembra que crescêrom um ano e que cada vez som menos crianças e cada vez mais homens. abraço-te com tenrura. antonio

(Carta 80)

3 de agosto de 1931 Queridíssima tatiana,
acho que dramatizache a minha expressom sobre os «fios arrancados» e por isso quero precisar melhor o meu estado de ánimo atual. tenho a impressom, que cada vez se vai enraizando mais e adquirindo a força de umha convicçom, de que o «mundo» das minhas relaçons afetivas se habituou já à ideia de que esteja no cárcere. Isso nom acontece sem reciprocidade; também eu me habituei à ideia de que os demais se habituem etc., e isso constitui justamente o meu estado de ánimo. escrevim-che que no passado isso me aconteceu algumha outra vez (embora nom fosse com respeito ao cárcere, naturalmente) e é verdade. Porém, no passado, estas «roturas de fios» quase que me enchiam de orgulho, até o ponto de que nom só nom procurava evitá-las, mas que as procurava de maneira voluntária. Na realidade, eram factos progressivos necessários para a formaçom da minha personalidade e para a conquista da minha independência; isso nom podia acontecer justamente sem romper umha certa quantidade de fios, porque se tratava de alterar por completo o terreno sobre o qual desenvolver a minha vida ulterior. Hoje nom é assim, hoje trata-se de cousas mais vitais; dado que nom existe pola minha parte umha mudança no terreno cultural, trata-se de que me sinto isolado no mesmo terreno que por si mesmo deveria suscitar vínculos afetivos. Nom penses que o sentimento de estar pessoalmente isolado me tenha desesperado ou condicionado um estado de ánimo trágico. de facto, nunca sentim a necessidade de umha achega exterior de forças morais para viver intensamente a minha vida, nem nas piores condiçons; tanto menos hoje, quando sinto que as minhas forças volitivas adquirírom um grau superior de concreçom e de valor. todavia, enquanto no passado, como dixem, me orgulhava quase de encontrar-me isolado, agora sinto, polo contrário, toda a mesquinhez, a aridez, a tacanharia de umha vida que seja exclusivamente vontade. este é o meu estado de ánimo atual. tenho a impressom de que ainda nom recebeche, ou recebeche com grande atraso, umha carta minha de há algumhas semanas; tratava-se de umhas poucas linhas para ti e de umhas poucas linhas para minha irmá teresina. sabes que nom me escrevem da casa desde há muito e que nom me mandam notícias sobre a saúde de minha mae? estou mui preocupado ao respeito.
dei umha primeira vista de olhos ao artigo do príncipe Mirski sobre a teoria da história e da historiografia e opino que se trata de um ensaio mui interessante e valioso104. de Mirski lim há alguns messes um ensaio sobre dostoievski, publicado num número único de Cultura, dedicado ao próprio dostoievski105. também este ensaio era mui perspicaz e é surpreendente que Mirski dominasse com tanta inteligência e penetraçom polo menos umha parte do núcleo central do materialismo histórico. acho que a sua posiçom científica é tanto mais digna de nota e de estudo, porquanto ele se demonstra livre de certos preconceitos e incrustaçons culturais que se foram infiltrando parasitariamente no campo dos estudos de teoria da história, como consequência da grande popularidade gozada polo positivismo no fim do século passado e nos inícios do atual.
Já recebim as Perspetivas Económicas de Mortara; em minha opiniom o volume deste ano representa umha viragem na direçom mantida até agora polo autor no seu anuário. a crise económica, com as suas terríveis incógnitas, deve ter contri-
104               Mirski, dimitri Petrovich (sviatopolsk-Mirski), 1890-1937, filho do príncipe Mirski, ministro da administraçom Interna russa em 1904-1095, iniciou primeiro a carreira das armas, combatendo durante a guerra civil russa no exército «branco». emigrado na Inglaterra, aderiu ao movimento comunista e ensinou literatura no King’s College de Londres, desde 1922 a 1932, para além de desenvolver umha intensa atividade propagandística nas revistas de emigraçom russa. o artigo ao qual se refere G., intitulado «Burgeois History and Historical Materialism», aparecera na revista marxista inglesa The Labour Monthly. a revista, enviada a G. por sraffa, foi para ele umha das escassas fontes de informaçom sobre o movimento revolucionário internacional.
105               La Cultura, X, fasc. 2, fevereiro de 1931. o número da revista dedicado a dostoievski, para além do ensaio de Mirski, Il posto de Dostoievski nella letteratura russa (pp. 100-115) incluia textos de e. Lo Gatto, v. Pozner, a. Bém, W.
Giusti, e. damiani, Zino Zini.
buído para fixar a nova atitude de Mortara; seja como for, do ponto de vista científico é escandalosa umha mudança tam radical de um ano para o outro.
Pode-se dizer que já nom tenho um verdadeiro programa de estudos e de trabalho e isto devia acontecer de maneira natural. Propugera-me refletir sobre umha certa série de questons, mas devia acontecer que num certo ponto estas reflexons passassem à fase da documentaçom e portanto a umha fase de trabalho e de elaboraçom que requer grandes bibliotecas. Isso nom quer dizer que perda completamente o tempo mas, é isso, já nom tenho grandes curiosidades em determinadas direçons gerais, polo menos para já. Quero colocar-che um exemplo: umha das ocupaçons mais interessantes para mim nos últimos anos foi a de fixar alguns aspetos caraterísticos na história dos intelectuais italianos. este interesse nasceu, de umha parte, do desejo de aprofundar no conceito de estado e, de outra parte, de ter reparado nalguns aspetos do desenvolvimento histórico do povo italiano. Mesmo restringindo a pesquisa às linhas essenciais, permanece contudo formidável. É preciso remontar-se necessariamente ao Império romano e à primeira concentraçom de intelectuais «cosmopolitas» («imperiais») que aquele causou: portanto, estudar a formaçom da organizaçom clerical cristiano-papal, que oferece à herança do cosmopolitismo intelectual imperial umha forma de casta europeia, etc. etc. só desta maneira, em minha opiniom, se explica que só depois do século XVIII, isto é, após o início das primeiras luitas entre o estado e a Igreja com o jurisdicionalismo, se poda falar em intelectuais italianos «nacionais»: até entom, os intelectuais italianos eram cosmopolitas, exercitárom umha funçom universalista (ou para a Igreja ou para o Império) anacional, contribuírom para organizarem outros estados nacionais, como técnicos e especialistas, oferecêrom «pessoal dirigente» a toda europa, e nom se concentrárom como categoria nacional, como grupo especializado de classes nacionais.
Como vês, este tema poderia dar lugar a toda umha série de ensaios, mas é preciso por isso toda umha pesquisa erudita. o mesmo acontece com outras pesquisas. também é preciso considerar que o hábito de severa disciplina filológica, adquirido durante os estudos universitários, me deu umha excessiva, talvez, reserva de escrúpulos metódicos. a isto tudo soma-se a dificuldade de recomendar livros demasiado especializados. recomendo-che aliás dous volumes que quero ler: 1° Un trentennio di lotte politiche (1894-1922) do prof. de Viti de Marco, «Collezione meridionale editrice», roma; 2° Lucien Laurat, L’Accumulation du capital d’après R. Luxembourg, Paris, rivière.
Isso que escreves com respeito ao novo regulamento carcerário e sobre a hipótese de fazer traduçons no cárcere é um projeto sem fundamento; nom quero comprometer-me a fazer trabalhos continuados, porque nem sempre som capaz de trabalhar; de outra parte, também nom acho que nos centros especiais poda ser legal a obriga de trabalhar106. Queridíssima, procurarei escrever-che quanto me seja possível. abraço-te com tenrura.
antonio
106 a penitenciaria de turi era um «centro especial» para presos doentes.

(Carta 81)

24 de agosto de 1931 Queridíssima mae,
recebim as cartas de Mea, de Franco e de teresina, com informaçons sobre a saúde de todos. Mas porque deixar-me tanto tempo sem notícias? Mesmo com a febre da malária se pode escrever algumha linha, e eu devo contentar-me com algum postal ilustrado. também eu estou velho, estás a ver?, e portanto nervoso, mais irritável e mais impaciente. razoo assim: nom se escreve para um preso por indiferença ou por falta de imaginaçom. No teu caso, e nos demais da casa, nem penso que se poda tratar de indiferença. Penso antes que se trata de falta de imaginaçom: nom podedes imaginar bem como pode ser a vida do cárcere e que importáncia essencial tem a correspondência, como enche as jornadas e oferece ainda um certo sabor à vida. Nunca falo dos aspetos negativos da minha vida, antes de mais porque nom quero ser compadecido: fum um combatente que nom tivo fortuna na luita imediata, e os combatentes nom podem e nom devem ser compadecidos, quando luitárom nom porque fossem obrigados, mas porque eles mesmos assim o quigérom de maneira consciente. Mas isso nom quer dizer que nom existam os aspetos negativos da minha vida carcerária e que nom sejam mui duros, e que nom podam, quando menos, serem agravados polas pessoas queridas. além disso, este discurso nom vai dirigido a ti, quanto a teresina, a Grazietta e a Mea, que justamente poderiam escrever-me polo menos algum postal.
Gostei muito da carta de Franco e apreciei os seus cavalinhos, automóveis, bicicletas, etc.: naturalmente, na medida em que me for possível, farei-lhe também um presente para lhe mostrar que o quero muito e que tenho a certeza de que é um rapazinho bom e com educaçom, mesmo se algumha vez, acredito, fai travessuras. enviarei para Mea a caixa de pinturas, logo que me for possível, mas Mea nom deve esperar qualquer cousa grandiosa. teresina nom respondeu para umha pergunta que lhe figera: se chegou o fardo de livros e revistas que Carlo enviou de turi em março passado. É preciso que saiba se estes livros e revistas vos incomodam, porque ainda tenho dezenas e dezenas de quilogramas para enviar, e para que se perdam tanto tem que, em parte polo menos, os ofereça para a biblioteca do cárcere. Naturalmente, acho que, de qualquer maneira, mesmo se vos incomodassem na estreiteza de espaço que sofredes, poderiam ser úteis quando as crianças cresçam; acho que preparar-lhes umha biblioteca familiar é umha cousa importante. especialmente teresina devia lembrar como devorávamos os livros na nossa infáncia e como sofríamos por nom termos suficientes à nossa disposiçom.
Mas como explicas que a malária se propague no centro da regiom? ou trata-se somente de vós? acho que os atuais administradores da Cámara deveriam fazer os esgotos como os seus predecessores figérom o aqüeduto: um aqüeduto sem esgotos nom faz com que que a malária deixe de se estender por onde já tinha umha incidência esporádica. em resumo, antes as mulheres de Ghilarza eram feias e barrigonas por causa da água em mau estado, agora serám bem mais feias pola malária; os homens farám a cura intensiva do vinho, imagino.
Muitos abraços afetuosos.
antonio

(Carta 82)

31 de agosto de 1931 Queridíssima Giulia,
umha das cousas que mais me interessárom da tua carta de 8-13 de agosto é a notícia de que delio e Giuliano se dedicam a apanhar rás. Há alguns dias vim citado num artigo de revista um juízo de Lady astor sobre a maneira como som tratadas as crianças em rússia (Lady astor acompanhou G. B. shaw e Lorde Lothian na sua recente digressom): polo que parece, a única crítica que fai Lady astor no artigo ao tratamento dado às crianças é esta: que os russos estám de tal maneira ansiosos por manterem limpas as crianças, que nem lhes deixam o tempo de se emporcar. Como vês, esta ilustre senhora é engraçada e epigramática; no entanto, é certamente mais engenhoso o escritor do artigo, que alça desesperadamente ao céu os seus braços liberais e exclama: «Que será destas crianças quando tenham crescido tanto que seja impossível obrigálas a tomarem banho!». Parece que pensam que enquanto se converter em impossível a coerçom, os rapazes nom vam fazer outra cousa que mergulharem sistematicamente na lama, como reaçom individual-liberal ao autoritarismo de que som vítimas na atualidade. seja como for, gosto de que delio e Giuliano tenham algumha oportunidade de se emporcarem apanhando rás. Gostaria de saber se se trata ou nom de rás comestíveis, o qual daria à sua atividade de caçadores um caráter prático e utilitário que nom deve ser desprezado. Nom sei se quererás prestar-te, porque provavelmente terás contra as rás as mesmas aristocráticas prevençons de Lady astor (os ingleses chamam depreciativamente aos franceses de «comedores de rás»), mas devias ensinar às crianças a distinguirem as rás comestíveis das outras: as comestíveis tenhem o ventre completamente branco, enquanto as outras tenhem o ventre encarnado. Podem-se apanhar colocando na fio como engado um pedaço de farrapo vermelho, ao qual podam dar dentadas: é preciso contar com umha jarra, para metê-las dentro assim que se lhes corta a cabeça e as patas com as tesouras. depois de esfolá-las, podem preparar-se de duas maneiras: para fazer um caldo delicioso e neste caso depois de fervê-las durante muito tempo com os habituais condimentos, passamse pola peneira, de maneira que todo passe para o caldo, a exceçom dos ossos: ou bem podem-se fritir e comer douradas e estaladiças. Num caso e no outro som umha comida bem saborosa, mas especialmente bem nutritiva e de fácil digestom. Penso que fazendo assim delio e Giuliano poderiam entrar à sua atual e tenra idade na história da cultura russa, por introduzirem este novo alimento nos costumes populares, criando-se bastantes milhons de rublos de nova riqueza humana, arrebatada ao monopólio dos corvos, das gralhas e das serpes.
Isso que me escreves sobre a tua saúde interessa-me muito, mas nom sei se continuas ainda com a cura psicanalítica. Visto que Freud observa que os familiares som um dos obstáculos mais graves para a cura no tratamento da psicanálise, nom quigem insistir nunca no tema e também nom che insistirei agora. além disso, tu mesma lembrache como amiúde me referia a alguns princípios da psicanálise insistindo em que te esforçasses em «desenovelares» a tua autêntica personalidade. estava convencido de que sofrias aquilo que os psicanalistas acho que chamam de «complexo de inferioridade», que leva à sistemática repressom dos próprios impulsos volitivos, isto é, da própria personalidade, e à aceitaçom servil de umha funçom subalterna nas decisons, mesmo quando se tem a certeza de ter razom, com a exceçom das poucas ocasions em que se tenhem explosons de irritaçom furiosa, também por cousas insignificantes. em outubro de 1922, quando fora a Ivanovo, umha manhá, ao encontrar a porta aberta, entrei na vossa casa sem que ninguém se apercebesse e pudem ouvir assim, sem que o soubesses, umha destas explosons de fúria. Falei-che depois nisso, observando que a descriçom do teu caráter como «suave e doce» devia ser bastante corrigida, porque por vezes te armavas um pouco em «galo».
abraço-te com tenrura. antonio

(Carta 83)

7 de setembro de 1931
Queridíssima tatiana,
soubem por Carlo que lhe escreveche umha carta sobre a minha indisposiçom; nela demonstravas estar mui impressionada. também o doutor Cisternini me dixo que recebeu umha carta em que te mostravas mui impressionada107. Nom gostei disso, porque me parece que nom havia razom para ficares impressionada. deves saber que já morrim umha vez e que ressuscitei, o qual demonstra que sempre tivem a pele dura. Quando era criança, com 4 anos, tivem hemorragias durante três dias seguidos. as hemorragias dessangrárom-me comple-
107               Na madrugada de 3 de agosto, G. vomitou sangue pola primeira vez. seu irmao Carlo e Piero sraffa acudírom a turi para visitá-lo, mas este nom pudo conseguir a autorizaçom. G., numha carta de 17 de agosto (nom incluida na presente seleçom), descreve para tatiana «da maneira mais mais objetiva possível» a sua «indisposiçom», à qual trata de tirar importáncia.
tamente e fôrom acompanhadas de convulsons. o médico já me dera por morto e até cerca de 1914 minha mae conservou o pequeno ataúde e o pequeno fato especial que deviam utilizar para o meu enterro; umha tia afirmava que ressuscitara assim que me untou os pequenos pés com o azeite de umha candeia dedicada à virgem e por isso, quando me negava a cumprir com os atos religiosos, renhia-me asperamente, lembrando que devia a vida à virgem, cousa que me impressionava pouco, a dizer verdade. dali em diante, embora nunca fosse mui forte, nom tivem nengum mal-estar grave, fora dos esgotamentos nervosos e das dispepsias. Nom me enfadei pola tua carta arquicientífica, porque simplesmente me fijo sorrir e lembrar um romance francês que nom che conto, para que nom te enfades de verdade. respeitei sempre os médicos e a medicina, embora respeite mais os veterinários, que curam animais que nom falam e nom podem descrever os sintomas do seu mal; isso obriga-os a ser muito cuidadosos (os animais custam dinheiro, enquanto os homens nom custam nada, enquanto umha parte dos homens som valores negativos) enquanto os médicos nem sempre reparam em que a língua serve também para que os homens digam mentiras ou polo menos para exprimir impressons falazes.
entom, estou bastante reposto (a propósito, nunca me demorei na cama nem meia hora mais do habitual e saim sempre passear): a média da febre desceu e raramente atinge já os 37,2. Certamente, está relacionada (polo menos empiricamente, nom sei se cientificamente) com a digestom. Por exemplo, desde há alguns dias, como de manhá 200 ou 300 gramas de uva; pois bem, se depois de erguer-me tenho umha temperatura de 36,2, depois de comer a uva a temperatura sobe depressa para 36,9. a minha impressom é que estou muito melhor e que me reporei bem depressa.
Gostaria de responder a algumhas cousas da tua carta de 28 de agosto, na qual mencionas algo do meu trabalho sobre os «intelectuais italianos». É claro que falache com Piero, porque certas cousas só chas pudo dizer ele108. Mas a situaçom era diferente. em dez anos de jornalismo escrevim tantas linhas como para poder editar 15 ou 20 volumes de 400 páginas, mas escreviam-se dia por dia e deviam, em minha opiniom, morrer no fim do dia. Neguei-me sempre a fazer coletáneas, mesmo se pequenas. No 18, o professor Cosmo queria que lhe permitisse fazer umha escolha de certos artigos breves que escrevia a diário para um jornal de turim109; ele teria-os publicado para mim com um prefácio mui benévolo e mui honroso, mas nom quigem permiti-lo. em novembro de 20 deixei-me convencer por Giuseppe Prezzolini para publicar na sua editora umha coletánea de artigos que na realidade foram escritos conforme um plano orgánico, mas em janeiro do 21 preferim pagar os custos de umha parte da composiçom já
108               Piero sraffa. G. refere-se ao seguinte fragmento da carta de tatiana de 28 de agosto de 1931: «... com certeza, para fazer umha história perfeita dos intelectuais deve dispor-se de umha grande biblioteca. Mas, porque nom fazê-la imperfeita, para já, para depois perfeccioná-la, quando tiveres livre acesso às bibliotecas? antes censuravas a Piero o excesso de escrúpulos científicos que lhe impediam escrever qualquer cousa; parece que ele ainda nom curou deste mal; mas, é possível que dez anos de jornalismo nom te curassem? Há alguns anos, numha carta, davas ótimos conselhos para um amigo preso, explicando-lhe que com vontade e método de estudo se pode utilizar mesmo o material mais inadequado, e indicavas-lhe que uso fazer da biblioteca do cárcere...». tatiana, no curso da carta, sugeria a G., algumhas leituras científicas, e comentava: «é um facto curioso que na cultura de todos os italianos haja um grande vazio: a ignoráncia das ciências naturais. Croce é um caso extremo mas típico».
109               trata-se dos artigos aparecidos na seçom «Sotto la Mole», na ediçom turinesa de Avanti!, entre 1916 e 1920, reunidos hoje em Sotto la Mole, turim, 1960. Umberto Cosmo (1868-1944), especialista em literatura italiana. deu aulas na Universidade de turim, frequentadas por G., quem se figera amigo seu.
feita, e retirei o manuscrito110. ainda no 24 o honorável Franco Ciarlantini propujo-me escrever um livro sobre o movimento do Ordine Nuovo que ele publicaria numha coleçom sua, na qual saíram já livros de Mac donald, de Gomperz, etc.111, comprometendo-se a nom modificar nem umha vírgula e a nom colar ao meu livro nengum prefácio ou apostila polémica. ter publicado um livro numha editora fascista nestas condiçons era mui atraente, e no entanto neguei-me: talvez, penso agora, teria feito melhor em aceitar. Para Piero a questom era diferente; qualquer escrito seu de ciência económica era mui apreciado e encetava discussons nas revistas especializadas. Lim num artigo do senador einaudi que Piero está a preparar umha ediçom crítica do economista inglês david ricardo112; einaudi louva muito a iniciativa e eu estou mes-
110               trata-se, se calhar, de artigos escritos para o semanário L’Ordine Nuovo. Na imediata pós-guerra, em roma, Giuseppe Prezzolini devolvera a vida por pouco tempo à livraria de «La voce». em 1919, em Florença, conheceu Piero Gobetti, através do qual é possível que contatasse G. e o grupo de L’Ordine Nuovo, e daí o episódio citado por G.
111               J. ramsay Macdonald (1866-1937), homem político inglês, formou em 1923 o primeiro governo laborista e reestabeleceu as relaçons diplomáticas com a Uniom soviética. Gomperz é certamente samuel Gompers (1850-1924), sindicalista americano de direitas, presidente desde 1986 da American Federation of Labor. a coleçom dirigida por Franco Ciarlantini é a «Biblioteca de cultura italiana», publicada a partir de 1924 pola editora alpi de Milám, e na qual aparecêrom também obras de G. Baldesi, a. solmi, r. Murri.
112               Crf. a resenha de Luigi einaudi à «Nuova collana di economisti», dirigida por Giuseppe Bottai e Celestino arena, para a UTET de turim, em La riforma sociale, XXXVIII, julho-agosto, 1931, onde se alude à ediçom das obras de david ricardo preparada por sraffa. Com o ensaio «The Laws of returns under competitive conditions» (Economic Journal, dezembro de 1926, trad. it., 1936), Piero sraffa iniciara um movimento de revisom da teoria económica, relativamente às formas de mercado. a ediçom crítica de ricardo a cargo de sraffa, em colaboraçom com M. H. dobb, está ainda em curso de publicaçom (the works and Correspondance of David Ricardo, Cambridge University Press, 1951, e ss.).
mo mui contente. aguardo ser capaz de ler facilmente o inglês quando esta ediçom for publicada e poder ler ricardo no texto original. o estudo que figem sobre os intelectuais como plano é mui vasto e na realidade nom acho que existam em Itália livros sobre este tema. existe, com certeza, muito material erudito, mas disperso num número infinito de revistas e arquivos históricos locais. de resto, amplio muito a noçom de intelectual e nom me limito à noçom corrente que se refere aos grandes intelectuais. este estudo leva também a certas determinaçons do conceito de estado, que é entendido habitualmente como sociedade política (ou até como aparato coercitivo para enquadrar a massa popular, segundo o tipo de produçom e a economia de um momento dado) e nom como um equilíbrio da sociedade política com a sociedade civil (ou hegemonia de um grupo social sobre a inteira sociedade nacional, exercida através das organizaçons chamadas privadas, como a igreja, os sindicatos, as escolas etc.) e precisamente na sociedade civil, nomeadamente, operam os intelectuais (Benedetto Croce, por exemplo, é umha espécie de papa laico e é um instrumento mui eficaz de hegemonia, mesmo se de quando em vez pode nom concordar com este ou aquele governo etc.). a partir desta conceiçom do papel dos intelectuais, em minha opiniom, esclarece-se a razom, ou umha das razons, da queda das comunas medievais, isto é, do governo de umha classe económica, que nom soubo criar-se a própria categoria de intelectuais e portanto exercer umha hegemonia, mais do que umha ditadura; os intelectuais italianos nom tinham um caráter popular-nacional, mas cosmopolita, como o modelo da Igreja, e a Leonardo era-lhe indiferente vender ao duque Valentino os desenhos das fortificaçons de Florença. as comunas fôrom portanto um estado corporativo, que nom conseguiu superar esta fase, nem se converteu num estado integral, como reclamava em vam Machiavelli, que através da organizaçom do exército queria organizar a hegemonia da cidade sobre o campo, e que por isso pode ser chamado o primeiro jacobino italiano (o segundo foi Carlo Cattaneo, mesmo apesar de ter demasiadas quimeras na cabeça). desta forma, como consequência disso, o renascimento deve ser considerado um movimento reacionário e repressivo, em comparaçom com o desenvolvimento das Comunas, etc. Fago-che estes comentários para convencer-te de que cada período da história acontecido na Itália, do Império romano até o Risorgimento, deve ser observado deste ponto de vista monográfico. além disso, se tiver vontade e o permitirem as autoridades superiores, farei um programa da matéria, que terá nom menos de 50 páginas e que hei de enviar-che; porque, naturalmente, estarei contente tendo livros que me ajudem no trabalho e que me estimulem a pensar. Igualmente, também che resumirei numha das próximas cartas o tema de um ensaio sobre o Canto décimo do Inferno dantesco, para que fagas chegar o roteiro ao professor Cosmo, quem como especialista em dante, saberá dizer-me se figem umha falsa descoberta ou se merece realmente a pena escrever um contributo, umha migalha para engadir aos milhons e milhons de notas semelhantes que já fôrom escritas. Nom penses que nom continuo a estudar, ou que me envileço, porque a um certo ponto nom poda continuar as minhas pesquisas. ainda nom perdim umha certa capacidade inventiva, no sentido de que qualquer cousa importante que leia me estimula a pensar: como poderia construir um artigo sobre este tema? Imagino umha introduçom e umha conclusom perspicazes e umha série de temas irresistíveis para mim, como muitas punhadas no olho, e desta maneira divirto-me comigo mesmo. Naturalmente, nom escrevo essas diabruras: limito-me a escrever sobre temas filológicos e filosóficos, sobre aqueles dos que Heine escreveu: eram tam aborrecidos que adormecim, mas o aborrecimento foi tal que me obrigou a acordar. abraço-te com tenrura. antonio

(Carta 84)

13 de setembro de 1931 Queridíssima tatiana,
recebim o pacote das medicinas e agradeço-cho. Nom sei para que me podem servir os cigarros e o pó de abissínia contra a asma. ataques de asma nunca os tivem, também nom nestas últimas circunstáncias: podo estar de tanto em tanto um pouco arquejante, e certamente nom podo correr ou estar demasiado tempo inclinado para varrer, etc., mas nom por isso me parece necessário tomar qualquer cousa especial. de resto, fago as inalaçons de trementina, que me fam tossir, mas nom me provocam qualquer tipo de expetoraçom; na realidade, nom tenho expetoraçons, mas sim umha abundante e insólita salivaçom. Nom sei por que te surpreende que nom estivesse nem um dia na cama. Quer dizer que nom acreditache nas minhas cartas. Na realidade, sofrim um pouco de debilidade, mas nom mui notável; nom há comparaçom com a debilidade que me golpeou após o ataque de ácido úrico de dezembro de 28; na altura nom pudem caminhar durante quase três messes, e passava as horas do passeio sempre sentado, ou passeava um pouco do braço de outro preso; igualmente, sinto-me mais débil em cada início de Primavera. esta semana ainda melhorei, porque o sedobrol me fai dormir um pouco. Porém, tenho sempre um pouco de temperatura: de manhá tenho 36,1 ou 2. depois de comer um pouco de uva a temperatura sobe para 36,9 e depois de tomar meio litro de leite, sobe para 37,2. alguns dias que comim uva e algumhas bolachas e confitura, a temperatura subiu para 37,6, isto é, 1 grau e ½ desde a manhá. a temperatura decresce após a última comida, que agora fago às 5, e por vezes desce a 36,6, ou no máximo a 36,9. tomarei os fermentos lácteos com tanto mais prazer, porquanto a brochura explica que se trata de iogurte ou de Gioddu, e nom menciona o pam (quer dizer, o lévedo de cerveja) para prepará-lo. o pam, ou lévedo de cerveja, dá ao leite umha fermentaçom pútrida e nom antipútrida, e toda as tuas recomendaçons para fazer calhar o leite nom som outra cousa que a superstiçom e o empirismo de umha mocinha, e nom «ciência»! — Num postal teu, esse em que me falas das tuas visitas ao cinematógrafo e nomeadamente na do filme Dous Mundos113 certas afirmaçons tuas surpreendêrom-me. Como podes acreditar em que existam esses dous mundos? essa é umha maneira de pensar digno das Centúrias Negras114, ou do Klu-klux-klan americano, ou das suásticas alemás. e como podes dizê-lo precisamente tu, que tiveche o vivo exemplo na casa: existiu algumha vez umha fratura deste tipo entre teu pai e tua mae, ou nom estám eles ainda unidos de maneira estreita?115 o filme, certamente, é de origem austríaca, do antisemitismo do pós-guerra. em Viena morava
113    o filme Dous mundos, dirigido polo alemám a. e. dupont em 1930, foi projetado na Itália no ano seguinte. representava alguns aspetos do antisemitismo na Polónia durante a Primeira Guerra Mundial.
114    organizaçom terrorista russa aparecida em começos do século XIX para reprimir, coa ajuda da polícia, o movimento revolucionário e para fomentar progromos antijudeus.
115    a mae de tatiana era de origem judia.
com umha velha pequeno-burguesa supersticiosa116, que antes de me admitir como inquilino perguntou se era judeu ou católico romano; ela sobrevivia com o aluguer de dous quartos, especulando com o facto de que no 18, no breve período soviético, fora promulgada umha lei que nom reconhecia a inflaçom no pagamento aos proprietários de casas117; eu pagava 3 milhons e ½ de coroas por mês (quer dizer 350 liras), enquanto a pensionista pagava no máximo 1.000 das mesmas coroas ao dono da casa; quando partim, um secretário da embaixada, cuja mulher devia ficar em Viena pola escarlatina do filho, pediu-me que conseguisse um quarto para a mulher; na tarde falei com a senhora, que o permitiu. Na manhá cedo, a senhora petou na minha porta e dixo: «ontem esquecimme de perguntar se a nova inquilina é judia, porque nom alugo a judeus». a nova inquilina era precisamente umha judia ucraniana. Como havia de fazer? Falei disso com um francês118, que me explicou que só havia umha hipótese: dizer à pensionista que honestamente nom podia perguntar à nova inquilina se era judia, mas que sabia que era umha secretária de embaixada, porque os pequeno-burgueses odeiam tanto os judeus quanto se arrastam perante a diplomacia. e com efeito foi assim: a senhora escuitou-me e respondeu: «se for diplomata, dou-lhe o quarto com certeza, porque aos diplomatas
116    G. viviu em Viena de novembro de 1923 até maio de 1924 e morou durante uns messes em dous quartos mobiliados, com a dona, no número 5 de Floriangasse, no distrito VII (Josefstadt) da cidade.
117    a lei sobre o bloqueio dos alugueres, promulgada na áustria contra o fim da guerra, fora conservada pola socialdemocracia dentro do quadro da sua política de reconstruçom de edifícios em Viena nos anos do pós-guerra.
118    trata-se, provavelmente, de Victor serge (1890-1947), que se encontrava naqueles messes em Viena, como colaborador da Internationale Presse-Korrespondenz.
nom se lhes pode perguntar se som judeus ou nom». Gostarias agora de afirmar que partilhas o mesmo mundo com esta vienense? abraço-te com tenrura. antonio

(Carta 85)

20 de setembro de 1931 Queridíssima tatiana,
escreverei-che brevemente sobre assuntos pessoais, porque hoje queria tentar fazer o esquema sobre o Canto X para enviar e ter os conselhos do meu velho professor de Universidade119; se nom o figer hoje nom o farei mais. as minhas condiçons de saúde estabilizam-se: a febre nom subiu nesta semana a mais de 37,2, mas houvo já um dia inteiro em que nom ultrapassou 36,9: em geral, a temperatura marca esta curva parabólica: 36,2 de manhá, 36,9 às 11, 37,2 às 14, 36,9 às 16, 36,8 e também 36,7 às 18. o máximo é sempre por volta das 2. É curioso que diminuisse a média da temperatura enquanto voltava o mal de cabeça, que desaparecera completamente quando a temperatura era mais alta. Nom penses que poda ter abusado algumha vez do sedobrol: comecei por um comprimido, e de dous passei para três (sempre umha única vez por dia, por volta das 7 e ½ da tarde) para voltar descer para dous. as indicaçons dim que de umha única vez se podem tomar dous ou três comprimidos, e cinco durante todo o
119    Umberto Cosmo. trata-se do Canto X do Inferno.
dia. de outra parte, dentro de alguns dias deixarei de tomá-lo de vez (ficarám 60 comprimidos) porque o efeito, após um mês e meio de tratamento, dura mesmo dous ou três messes. recebim as fotografias, mas nom cho escrevim, porque nom gostei da de delio e Giuliano e a outra está demasiado descolorida, apesar de que bem se vê que deveu ser mui bonita. sabes o que devias fazer? devias fazer umha ampliaçom da tua figura no grupo de estudantes universitários de medicina: na minha opiniom, a tua figura estava bastante isolada no grupo como para podê-la reproduzir de maneira independente. Pido-che que escrevas para Carlo que recebim a sua carta e que lhe responderei a próxima vez: os dous livros que quer comprar para os seus estudos, mesmo se mal traduzidos, som úteis. Procurarei resumir-che agora o célebre esquema.
Cavalcanti e Farinata.
1.     de sanctis, no seu ensaio sobre Farinata repara na aspereza que carateriza o canto décimo do Inferno dantesco, polo facto de Farinata, depois de ter sido representado de maneira heróica na primeira parte do episódio, se converter num pedagogo na última parte, isto é, por dizê-lo com termos crocianos: Farinata, de poesia, torna-se estrutura. tradicionalmente, o canto décimo é o canto de Farinata, por isso a aspereza observada por de sanctis é sempre plausível. eu afirmo que no canto décimo estám representados dous dramas, o de Farinata e o de Cavalcanti, e nom apenas o drama de Farinata.
2.     É estranho que a hermenêutica dantesca, apesar de ser tam minuciosa e bizantina, nom reparasse nunca em que Cavalcanti é o verdadeiro castigado entre os epicúreos das tumbas afogueadas, e digo castigado de maneira imediata e individualizada, e que Farinata participa de maneira estreita nesse castigo, até neste caso «como se figesse um grande desprezo ao céu»120. a lei do taliom em Cavalcanti e em Farinata é esta: por ter querido ver o futuro (teoricamente) som privados do conhecimento das cousas da terra durante um determinado tempo, isto é, vivem num cono de sombra, desde cujo centro vem o passado além de um certo limite, e vem o futuro além de outro limite semelhante. Quando dante se aproxima deles, a posiçom de Cavalcanti e de Farinata é esta: no passado vem Guido vivo, mas no futuro vem-no morto. Mas nesse momento Guido é morto ou vivo? Veja-se a diferença entre Cavalcanti e Farinata: Farinata, quando sente falar em florentino, volta a ser o homem de partido, o herói guibelino; Cavalcanti, polo contrário, só pensa em Guido e, quando sente falar em florentino, ergue-se para saber se Guido está vivo ou morto nesse momento (eles podem informar-se através dos recém chegados121). o drama vivido por Cavalcanti é rapidíssimo, embora de umha intensidade inefável. ele pergunta depressa por Guido e aguarda que esteja com dante, mas quando ouve do poeta, que nom está informado com exatitude da pena, o «tivo» 122, o verbo no passado, depois de um grito dilacerante «de costas recaia, e novamente nom mostrou-se fora».
3.     Na primeira parte do episódio, o «desprezo de Guido» converte-se no centro das pesquisas de todos os fabricantes de hipóteses e contributos; na segunda parte, igualmente, a previdência de Farinata sobre o exílio de dante atirou toda a
120    o texto do Canto X di: «ed ei [Farinata] s’ergea col petto e con la fronte/ com’avesse lo inferno in gran dispitto»; o «inferno» e nom «o ceu», como parafraseia Gramsci. 121 dante e Virgílio.
122               Cavalcanti perguntou dante polo seu filho Guido e por que nom está consigo. e dante responde-lhe: «...perto me aguarda quem meus passos guia, vosso Guido talvez teve-o em desdenho» (ebbe a disdegno). [traduçom de José Pedro Xavier Pinheiro].
atençom. em minha opiniom, a importáncia da segunda parte consiste nomeadamente no facto de ela iluminar o drama de Cavalcanti, dando todos os elementos essenciais para que o leitor o reviva. será por isso umha poesia do inefável, do nom expressado? acho que nom. dante nom renuncia a representar o drama de maneira direta, porque essa é justamente a sua maneira de representá-lo. trata-se de umha «forma de expressom» e acho que as «formas de expressom» podem mudar no tempo, assim como muda a língua propriamente dita. (somente Bertoni acredita ser crociano ao recuperar a velha teoria das palavras bonitas e das palavras feias, como umha novidade lingüística deduzida da estética crociana).
Lembro que no 1912, quando frequëntava o curso de História da arte do professor toesca123 conhecim a reproduçom do quadro pompeiano, em que Medea assiste à morte dos filhos que tivera com Jasom; assiste com os olhos vendados e parece-me lembrar que toesca dizia que esse era umha maneira de se expressar dos antigos, e que Lessing no Laocoonte (cito aquelas aulas de memória) nom o considerava um artifício de impotentes, mas antes a melhor maneira de dar a impressom da infinita dor de um pai, que representada de maneira material teria cristalizado num trejeito. a mesma expressom de Ugolino: «da fome mais que a dor, pôde a agonia»124 pertence a esta linguagem e o povo entendeu-no como um pano deitado sobre o pai que devora o filho. Nada de comum entre estas maneiras de expressar-se de dante e as de Manzoni. Quando renzo pensa em Lucia, depois de ter
123               Pietro toesca (1877-1962) ensinou História da arte medieval e moderna na Universidade de turim de 1907 a 1914.
124               Inferno, XXXIII, 75. traduçom de José Pedro Xavier Pinheiro, disponível na Wikipedia em língua portuguesa.
cruzado a fronteira véneta, Manzoni escreve: «Nom tentaremos dizer o que ele sentia: o leitor conhece as circunstáncias: imagine-o». Mas Manzoni já declarara que para representar a nossa reverenciada espécie, já havia suficiente amor como para que se tivesse que falar dele também nos livros. Na realidade, Manzoni renunciava a representar o amor por motivos práticos e ideológicos. além disso, que o tratado de Farinata está estreitamente ligado ao drama de Cavalcanti é cousa que di o próprio dante, quando conclui: «dize — replico — à sombra, a quem falava, que o filho ainda entre os vivos tem morada»125 (também no caso da filha de Farinata, que contudo —dado que estava completamente absorto polas luitas de partido—, nom deu sinais de turvaçom pola notícia extraída do «tivo», isto é, que Guido morrera; na sua opiniom, Cavalcanti era o mais castigado, e o «tivo» significava o fim da angústia da dúvida sobre se Guido estava nesse momento vivo ou morto).
4. acho que esta interpretaçom ataca de maneira fulcral a tese de Croce sobre a poesia e a estrutura da Divina Comédia. sem a estrutura nom existiria a poesia e portanto a estrutura também nom teria um valor poético.
a questom está ligada a estoutra: que importáncia artística tenhem as didascálias nas obras teatrais? as últimas inovaçons introduzidas nas artes teatrais, por meio da concessom de umha maior importáncia ao diretor do espectáculo, colocam a questom de maneira cada vez mais áspera. o autor do drama luita com os autores e com o diretor do espetáculo por meio das didascálias, que lhe permitem caraterizar melhor as personagens: o autor quer que a sua divisom seja respei-
125               Inferno X, 110-111. traduçom de José Pedro Xavier Pinheiro (vide nota anterior).
tada e que a interpretaçom do drama por parte dos atores e do diretor (que traduzem umha arte para outra, ao mesmo tempo que som os seus críticos) adira à sua visom. No Don Giovanni de G. B. shaw, o autor fornece também no apêndice um manualinho escrito por John tanner, o protagonista, para concretizar melhor a figura do protagonista e obter do ator umha maior fidelidade à sua imagem126. Umha obra de teatro sem didascálias é mais lírica do que umha representaçom de pessoas vivas num choque dramático; a didascália incorporou em parte os velhos monólogos, etc. se no teatro a obra de arte é o resultado da colaboraçom do escritor e dos atores unidos na estética polo diretor do espectáculo, a didascália tem no processo criativo umha importáncia essencial, entanto que limita o arbítrio do ator e do diretor. toda a estrutura da Divina Comédia tem esta altíssima funçom e se é justo pola distinçom127, é preciso sermos mui cautos de cada vez. (escrevim de um só jacto, tendo comigo apenas a ediçom de bolso de dante da Hoepli). tenho os ensaios de de sanctis e o Dante de Croce. Lim na Leonardo do ano 28 umha parte do estudo de Luigi russo publicado na revista de Barbi e que menciona (na parte que lim) a tese de Croce. tenho o número de Critica com a resposta de Croce128. Mas nom vejo este material desde há muito tempo, quer dizer, desde antes de que concebesse o núcleo principal deste esquema, porque está no fundo de umha caixa conservada no depósito. o professor
126               G. B. shaw, Man and Superman, ato III. o título do manual de John tanner é The Revolutionnist’s Handbook and Pocket Companion. 127      trata-se da distinçom crociana entre estrutura e poesia.
128 o estudo de russo, citado por G., aparecera com o título de Crítica dantesca no Leonardo, III, 12, 20 de dezembro de 1927. Para a resposta de Croce, cfr.
La Critica, XXVI, 2, 20 de março de 1928, pp. 122-125.
Cosmo poderia dizer-me se se trata de umha nova descoberta da pólvora, ou se há no esquema algum ponto que pode ser desenvolvido numha notinha, para passar o tempo.
acabo de receber agora mesmo a tua longa carta de 19 de
setembro. acho que devias ter entendido há tempo que quando nom trato certos temas, ou nom che respondo a propósito, é assim que quero fazer e nom quero gerar polémicas. achas sempre que o cárcere é umha espécie de pensom para orfanzinhas; porém, é mesmo um cárcere e mais nada. Quanto o médico me dixo e prescreveu, contei-cho com detalhe. também no 28-29 soubeche do meu mal-estar, dado que estavas aqui pola conversa de dezembro, justo quando eu estava mal. seja como for, tem a certeza de que tenho em conta os teus conselhos e que se che escrevo sobre «ciência», etc., o fago para fazer-che raivar inutilmente, já que nom queres convencer-te de que aquilo que escrevo o quero escrever para nom escrever outras cousas. abraço-te com tenrura. antonio

(Carta 86)

5 de outubro de 1931 Queridíssima tania,
nom gostei muito da fotografia de delio e Giuliano, pola mesma razom pola que che pedira a tua fotografia de estudante. acho que é claro: umha única fotografia fornece umha imagem fixada umha vez para sempre. Umha série de fotografias permite reconstruir, dentro de certos limites, umha personalidade em desenvolvimento, isto é, a personalidade real. a fotografia das crianças nom se «insere» nas anteriores, além de ser tecnicamente infeliz, quer dizer, mal feita desde duas perspetivas: como arte, isto é, como escolha da postura que representa melhor, no momento dado, a personalidade, e como técnica material. Com isto nom quero dizer que nom seja justo e obrigado louvar e encorajar Volia, antes polo contrário. entendo que nomeadamente no caso das crianças é preciso um fotógrafo especialista: mas a realidade nom muda, e a minha impressom permanece.
os matizes que introduziche à polémica por ti levantada,
a dos chamados «dous mundos», nom altera o erro fundamental do teu ponto de vista, nem tira qualquer valor à minha afirmaçom, que se trata de umha ideologia que pertence, mesmo se de maneira marginal, à das Centúrias Negras, etc. entendo mui bem que nom participarias num pogrom; contudo, para que um pogrom poda acontecer é necessário que se difunda bem a ideologia dos «dous mundos» impenetráveis, das raças etc. Isso forma a atmosfera imponderável que as Centúrias Negras aproveitam, fazendo que se encontre umha criança dessangrada e acusando os judeus de tê-la assassinado para um sacrifício ritual. o estourado da guerra mundial demonstrou como as classes e os grupos dirigentes sabem aproveitar estas ideologias, aparentemente inócuas, para determinarem as ondas de opiniom pública. No teu caso, a cousa parece-me tam surpreendente, que havia de parecer que nom te quero se nom procurasse libertar-te completamente de qualquer preocupaçom pola questom mesma.
Que queres dizer com a expressom «dous mundos»? Que se trata como de duas terras que nom podem aproximar-se e entrar em comunicaçom entre si? se nom quigeres dizer isto, e se se tratar de umha expressom metafórica e relativa, tem pouco significado, porque metaforicamente os «mundos» som inúmeros, até nisso que exprime o provérbio camponês: «o que longe vai casar, trampa leva ou trampa vai buscar». a quantas sociedades pertence cada indivíduo? e cada um de nós, nom fai continuados esforços para unificar a própria conceiçom do mundo, na qual continuam a subsistir pedaços heterogéneos de mundos culturais fossilizados? e nom existe um processo histórico geral que tende a unificar continuamente todo o género humano? Nós os dous, ao escrever-nos, nom descobrimos entom, de maneira continuada, motivos de discórdia? e polo contrário, nom será que afinal conseguimos encontrar-nos ou concordar em certas questons? e cada grupo ou partido, ou seita, ou religiom, nom tende também a criar um «conformismo» de seu (nom entendido em sentido gregário e passivo)?
o que importa na nossa discussom é que os judeus fôrom liberados do gueto somente no 48 e que ficárom no gueto, ou segregados de algumha maneira pola sociedade europeia durante quase dous milénios, e nom pola sua vontade, mas por imposiçom externa. do 48 em diante o processo de assimilaçom nos países ocidentais foi tam rápido e profundo, como para fazer pensar que só umha segregaçom imposta impediu a sua completa assimilaçom em vários países, se até a revoluçom francesa a religiom cristá nom tivesse sido a única «cultura estatal», que pedia precisamente a segregaçom dos judeus religiosamente irredutíveis (naquela época; agora já nom, porque do judaísmo passam para o deísmo puro e simples, ou para o ateísmo). em qualquer caso, é preciso observar que muitos carateres que passam por serem devidos à raça, som devidos antes à vida do gueto, imposta em diferentes formas nos vários países, polo qual um judeu inglês nom tem quase nada em comum com um judeu da Galizia. Hoje parece que Gandhi representa a ideologia hinduísta; mas os hinduístas reduzírom ao estado de párias aos dravida, que antes habitavam a índia, fôrom um povo belicoso e só após a invasom mongol e a conquista inglesa, pudérom expressar-se num homem como Gandhi. os judeus nom tenhem um estado territorial, umha unidade de língua, de cultura, de vida económica, desde há dous milénios; como se poderia encontrar neles umha agressividade, etc.? Mas também os árabes som semitas, irmaos carnais dos judeus e tivérom o seu período de agressividade e de tentativa de império mundial. entanto que os judeus som, por outra parte, banqueiros e detentores do capital financeiro, como se pode dizer que nom participam na agressividade dos estados imperialistas?
recebo neste momento a tua carta de 2 de outubro e re-
paro em que figem mal continuando esta discussom, que só se poderia fazer numha conversa em que o tom de voz e a possibilidade de corrigir e esclarecer de maneira imediata aquilo que se di, impedem confusons e asperezas. de resto, nom quero nom escrever-che esta semana, e por isso che envio a carta tal qual está. Porém, quero esclarecer um pequeno facto. Parece que estás convencida de que em 28-29 tivem quem sabe que males e que chos ocultei. tivem a crise polos dias do Natal de 28, e justo o dia de Natal, e ainda duas vezes a seguir tivem a conversa contigo. Nom estivem na cama. sofrim umha prolongada debilidade, polo qual durante o passeio preferia ficar sentado, e caminhar apenas 15-20 minutos, porque caminhar me cansava. É possível que nom che escrevesse estes detalhes, porque nom lhes concedia nengumha importáncia ou porque estavas informada por meio das conversas mantidas. Naturalmente é algo que passará mais vezes, porque nom quero transformar as minhas cartas em boletins médicos (!) cheios de extravagáncias e de asneiras. Quando nom escrevo nada sobre a saúde, quer dizer que tudo é normal dentro do ámbito carcerário. Certamente, nom vou estudar patologia geral ou outra ciência médica. sei isto: que nom existem doenças, mas doentes, e que num doente todos os órgaos som solidários quando um deles está doente. Chega-me para entender que o médico deve ser umha espécie de artista, isto é, que na sua arte tem muita importáncia algo semelhante à intuiçom, para além do conhecimento científico. Portanto, qualquer leitura parcial nom serve de nada, mesmo se nom chega a ser perigosa como os manuais populares sobre o «Médico para todos» e as «Curas em caso de urgência».
abraço-te com tenrura antonio
acho que podes assinar por mim o Corriere della Sera, de 1 de outubro até 31 de dezembro, para o receber diretamente em turi, naturalmente. terei de fazer ainda amanhá esta pequena petiçom e caso nom me for concedida, porque nom se me considerar merecente, poderás sempre mudar a assinatura no teu favor.

(Carta 87)

12 de outubro de 1931 Queridíssima tania,
recebim o teu postal de 10 de outubro, que nom atenuou em absoluto o efeito causado pola tua carta do 2. esta carta nom foi para mim áspera, mas ofensiva. Que poderia significar que jogo contigo à «cabra-cega» e que procuro «encurralar-te»? deveria responder com palavras duras, mas acho que é melhor evitar no futuro qualquer repetiçom destes incidentes desagradáveis, por nom dizer qualquer cousa pior. de maneira que a tua alusom anterior à minha qualidade de ex-jornalista é, por empregar umha expressom pomposa, imbelle telum sine ictu. Nunca fum um jornalista profissional, que vende a sua caneta ao melhor postor e que deve mentir exageradamente, dado que a mentira vai com a profissom. Fum um jornalista mui independente, com umha única opiniom sempre, e nunca devim ocultar as minhas profundas convicçons para agradar patrons ou cúmplices. escreves que nom che agradou que eu escrevesse que a tua opiniom sobre os judeus foi matizada. tés razons, já que nada matizache, pois nesta opiniom tua há um pouco de tudo; ora bem, cada cousa numha carta diferente. Havia num princípio um ponto de vista que conduzia direito para o antisemitismo; depois, umha conceiçom própria de um nacionalista judeu e de um sionista e, finalmente, pontos de vista que seriam compartilhados polos velhos rabinos que se opugérom à destruiçom dos guetos, prevendo que a falta dessas comunidades com território segregado acabaria por desnaturalizar a «raça» e por alentar os vínculos religiosos que mantinham a sua personalidade. Com certeza, figem mal em discutir; teria sido melhor brincar com isto, contrapondo a teoria da «flema» británica, da «fúria» francesa, da «fidelidade» germánica, da «grandeza» espanhola, do «sentido da improvisaçom» italiano e, finalmente, da «fascinaçom» eslava, todas elas cousas bem úteis para escrever romances de folhetim ou filmes populares. ou poderia ter levantado a questom de saber qual é o «verdadeiro» judeu ou o judeu «em geral» e até o homem «em geral», que nom penso se encontre em nengum museu antropológico ou sociológico. e também o que significa hoje para os judeus a sua conceiçom de deus como «deus dos exércitos» e toda a linguagem da Bíblia sobre o «povo escolhido» e a missom do povo judeu que se parece com a linguagem de Guilhermom129 antes da guerra. Marx escreveu que a questom judia nom existe desde que os cristaos se convertêrom em judeus, assimilando o que fora a essência do judaísmo, a especulaçom, ou seja que a soluçom da questom judia dará-se quando toda a europa seja libertada da especulaçom, quer dizer, do judaísmo em geral. acho que é a única maneira de propor a questom geral, à parte do reconhecimento do direito das comunidades judaicas à autonomia cultural (de língua, de escola, etc.) e também à autonomia nacional, caso algumha comunidade judaica conseguisse, de umha ou de outra maneira, habitar um território definido. todo o mais, parece-me misticismo de péssima qualidade, bom para os pequenos intelectuais judeus do sionismo, como a questom da «raça», entendida noutro sentido que nom seja o puramente antropológico; já no tempo de Cristo os judeus nom falavam mais a sua língua, reduzida a umha língua litúrgica, e falavam o aramaico. Umha «raça» que esqueceu a sua antiga língua perdeu já a maior parte da herança do passado, da primitiva conceiçom do mundo e absorveu a cultura (junto com a língua) de um povo conquistador; consequentemente, que mais pode significar «raça» neste caso? trata-se evidentemente de umha comunidade nova, moderna, que recebeu a pegada passiva ou até negativa do gueto e no quadro desta nova situaçom social refijo umha nova «natureza».
É estranho que nom utilizes o historicismo para a questom geral, e depois queiras de mim umha explicaçom historizante do facto de alguns grupos de cosacos acreditarem que os judeus tinham cauda. tratava-se de umha brincadeira que me contou um judeu, comissário político de umha divisom
129     Guilherme II.
de assalto dos cosacos de oremburg130 durante a guerra russopolonesa de 1920. estes cosacos nom tinham judeus no seu território e concebiam-nos conforme a propaganda oficial e clerical como seres monstruosos que mataram deus. Nom queriam acreditar que o comissário político fosse judeu: «tu és dos nossos, — diziam-lhe, — nom és um judeu, estás cheio de cicatrizes das feridas causadas polas lanças polacas, combates ao pé de nós; os judeus som-che outra cousa». também em sardenha o judeu é concebido de várias maneiras: existe a expressom arbeu, que equivale com um monstro de fealdade e de maldade, lendário; existe o «judeu» que matou Jesus Cristo, e existe ainda o bom e o mau judeu, porque o piedoso Nicodemo ajudou Maria a descender o filho da cruz. Mas para o sardo, «os judeus» nom estám ligados ao tempo atual; se lhe dim que um tipo é judeu, pergunta se é como Nicodemo, mas em geral acredita que significa ser um cristao ruim, como os que quigérom a morte de Cristo. e existe ainda o termo marranu da expressom marrano, que na espanha se dava aos judeus que fingirom converter-se, e que em sardo tem um sentido genericamente injurioso. ao contrário dos cosacos, os sardos, que nom fôrom objeto da propaganda, nom distinguem os judeus dos outros homens.
desta maneira liquidei, pola minha conta, a polémica e nom vou deixar-me persuadir a iniciar outras. a questom das raças, fora da antropologia e dos estudos pré-históricos, nom me interessa. (Igualmente, nom tem valor a tua alusom à importáncia dos sepulcros, no relativo às culturas; isso é verdade só para as épocas mais antigas, quando os sepulcros eram o
130     antiga fortaleza de fronteira assediada polos cosacos de Pugachov em 1733-1734; de 1918 a 1925 foi capital da república soviética dos Kirguizes. em 1938 adoptou o nome de Chkalov.
único monumento nom destruído polo tempo e porque dentro dos sepulcros, junto com o defunto, colocavam os objetos da vida quotidiana. seja como for, estes sepulcros dam-nos um aspeto mui limitado dos tempos em que fôrom construídos: da história do costume ou de umha parte dos ritos religiosos. e eles referem-se ainda às classes altas e ricas, e amiúde aos dominadores estrangeiros do país, nom ao povo). eu mesmo nom som de nengumha raça: meu pai é de origem albanês recente (a família escapou do Épiro após ou durante as guerras de 1821 e italianizou-se rapidamente); minha avó era umha González e descendia de algumha família ítalo-espanhola da Itália meridional (como tantas que permanecêrom após o fim do domínio espanhol); minha mae é sarda polo pai e pola mae, e sardenha uniu-se ao Piemonte só em 1847, depois de ter sido um feudo pessoal e um património dos príncipes piemonteses, que a obtivérom em troca por sicília, que estava demasiado longe e era menos defendível. Contudo, a minha cultura é fundamentalmente italiana e este é o meu mundo: nom cheguei a sentir-me nunca dilacerado entre dous mundos, embora isso fosse escrito no Giornale d’Italia de março de 1920, onde num artigo de duas colunas se explicava a minha atividade política em turim, entre outras cousas, por ser eu sardo e nom piemontês ou siciliano, etc. Que fosse oriundo albanês nom foi colocado em jogo, porque também Crispi131 era albanês, educado num colégio albanês e falava o albanês. de resto, na Itália estas questons nunca fôrom colocadas, e na
Ligúria ninguém se espanta se um marinheiro leva para a vila
131     Francesco Crispi (1819-1901), político monárquico italiano. Partidário de umha estreita aliança com a alemanha e netamente hostil à França. Propugnou também umha política colonialista de prestígio. Foi o promotor da megalómana empresa de abisínia, que se saldou em 1896 com a desfeita de ádua.
umha mulher preta. Nom vam tocá-la com um dedo insalivado para ver se o preto lhe sai, nem acreditam que os lençóis vaiam ficar tingidos de preto.
escreveche que querias enviar-me medicinas. Pido-che
no entanto que nom me envies mais Mugolio nem pó de abissínia. acho que a única cousa verdadeiramente útil som os fermentos lácteos, que quase acabei; tenho ainda para quatro dias. Pido-che por favor que fagas assim. abraço-te com tenrura. antonio
Igualmente, fijo-me bem a Uricedina stroschein; enviaras-me duas amostras há muito tempo e tomei-nas recentemente: regulou bastante bem as funçons intestinais.

(Carta 88)

26 de outubro de 1931 Queridíssima tania,
hoje nom vou poder escrever com muito vagar. erguim-me da cama com febre e ainda me dura; fijo (ainda fai) um par de dias de vento do sul que deixou tudo húmido. Mas aguardo escrever o indispensável. Convencim-me mesmo de que todo este mal-estar está causado por moléstias intestinais convertidas em crónicas e que se nom consigo vencê-las ou a atenuálas, nom me vam beneficiar em absoluto reconstituintes ou outras cousas do género. aquilo que me fai passar por completo a temperatura é nom comer nada, mas nom é esta umha cura que poda persistir muito tempo. Qualquer alimento, depois de poucos dias, reproduz estas mesmas manifestaçons.
Há depois algumhas complicaçons de outro género, causadas polo meu organismo: o certo é que as dores nos órgaos do sistema respiratório estám causadas pola pressom dos órgaos do sistema digestivo, que incham, coma o que se comer; o leite é mesmo o alimento que mais inchaçom produz. Penso que, no mínimo, é preciso isolar este fenómeno, e é por isso que me obcecara com a Urecidina que, mesmo em pequenas doses, melhorava a digestom. a acidez demostra, certamente, em minha opiniom, que o ácido úrico tem responsabilidade polas moléstias e que a Uricedina é mesmo adequada para este fim. Contém 42% de sulfato de sódio. tomei purgantes de 30 gramas de sulfato de sódio, receitados polo médico, que me ajudárom apenas durante 12 horas, para além da debilidade que o purgante causa. Umha colher de café de Uricedina, tomada às 4 da tarde, garantia-me umha digestom nocturna normal e, portanto, um certo bem-estar. de resto, acho que os purgantes arruinam os presos que abusam deles com demasiada freqüência, e até agora evitara-os sempre de maneira sistemática. acreditava que me beneficiava a cura da uva, mas: 1°, a uva nom podia conseguir-se todos os dias e 2°, nom é de mesa, mas de vinho; pode lavar-se só daquela maneira; para comer ½ kg fai falta um dia de trabalho, se se deitarem a pele e as pevides, e umha vez, por ser esse dia azeda ou por outra razom, deu-me 38,5 de temperatura. de maneira que decidim nom fadigar-me mais com os muitos remédios que me deixam pior do que antes e também que me envies a Uricedina: penso que se combato a uricemia com ela, somado à dieta que sigo agora, poderei, quando menos, isolar a causa, quer seja a principal ou apenas umha causa secundária.
o teu último postal de 23 de outubro fijo-me sorrir um pouco. dás-me a razom demasiadas vezes e isso fijo com que pensasse que me julgas excessivamente irritado, ou até amuado e alporiçado contigo. Porém, como vejo que dis nom lembrar ter-me escrito nada desagradável, quero citar um trecho da tua carta de 2 de outubro:
«...devo repetir que o acréscimo feito à tua última [carta], para me fazeres ver que nom era umha afirmaçom gratuita lembrar que no 28 estivem em turi, durante o Natal, etc., [...] sinto-me inclinada a declarar que da minha parte considero esta notícia um ardil de advogado (mas como pode ser umha notícia um ardil? será verdadeira ou falsa, nom achas?) e supreende-me só que voltasses ao tema, quando deverias ter entendido o inoportuno que no fundo é o tom de pouca sinceridade, que deve ser usado por vezes para tratar determinados assuntos; portanto, se che repreendia por ter-me ocultado as tuas verdadeiras condiçons, podes também estar certa de que independentemente de todo o que me podas escrever a propósito, neste tema serei sempre da mesma opiniom».
ora vejamos: aborrece-che o tom de pouca sincerida-
de. Que quer dizer? a primeira carta que che escrevim, mal cheguei a Milám no 1927132, foi retida polo juiz instrutor porque era demasiado sincera: contudo, o juiz dixo-me que nom passaria para os autos, mas que seria retida por ele a título pessoal. Isso em fevereiro: porém, em setembro seguinte o advogado militar tei pediu para o juiz instrutor que a carta constasse nos autos contra mim e, de facto, ela encontra-se no meu fascículo pessoal do julgamento, com o intercámbio de cartas entre o juiz e o advogado militar. Podia ter agravado a minha situaçom. Fum «sincero» e nom recebeche a carta. Foche sempre sincera comigo, penso eu. Mas tenho várias cartas tuas meio apagadas pola censura carcerária. a tua sincerida-
132 Cfr. Carta 10, de 12 de fevereiro dirigida a tania e Giulia.
de nom me beneficiou em absoluto, porque o que escrevias permaneceu desconhecido para mim. Que quer dizer entom «sinceridade» e que quer dizer que te «aborrece»? também eu me aborreço desde há 5 anos por estar no cárcere, talvez mais do que tu aborreceche por esta classe de pouca sinceridade. Querida tania, que significaria isso de que nom podes mudar as tuas opinions sobre um tema, seja o que ele for? significa que nom há nada mais sobre o qual escrever, enfim, que é melhor cessar toda forma de correspondência? em minha opiniom, já estamos bastante atormentados por aborrecimentos de todo o tipo como para acrescentarmos outros de maneira recíproca. Quigem só documentar-che os factos. Para além disso, nom estou nem irritado nem zangado, e acredito mesmo que nom querias ofender-me.
abraço-te com tenrura. antonio

(Carta 89)

9 de novembro de 1931 Queridíssima tania,
escrevo-che justo no quinto aniversário do meu encarceramento. Cinco anos som mesmo um bom lote de anos e ademais, som cinco anos da idade mais produtiva e mais importante na vida de um homem. de outra parte, agora passados estám e nom tenho nengumha vontade de fazer um balanço dos benefícios e das perdas, nem de chorar amargamente pola boa parte da existência ida para o diabo. No entanto, acho que coincidem largamente com um período determinado da minha vida fisiológica, isto é, que fôrom necessários para reduzir o organismo às condiçons carcerárias. o mal-estar que sinto de três meses a esta parte é, com certeza, o início de um período em que a vida carcerária se fará sentir mais duramente, como algo sempre atual, que obra permanentemente para destruir as minhas forças.
Penso que o pacote de medicinas que me escreves ter enviado chegou já, e que dentro de alguns dias poderei ter o seu conteúdo. Visto que se renovou o vento do sul, tivem novamente manifestaçons agudas de dor e aguardo, portanto, ter ao meu dispor medicinas que ao menos me aliviem. esquecera escrever que me envies novamente as mortalhas para cigarros. se calhar, surpreendes-te porque consumo tantas mortalhas, quando che escrevim que reduzira muito o consumo de tabaco; nom há contradiçom entre os dous factos, antes polo contrário, som estreitamente dependentes um do outro. apreendim que reduzindo as mortalhas, isto é, recortando-as em altura e largura, se podem fazer muitos cigarros pequenos (três em lugar de um) e, portanto, pode fumar-se três vezes um pouquinho, o suficiente para tirar a necessidade, em lugar de umha única vez, com a mesma quantidade de tabaco fresco. os presos fumam três vezes o mesmo cigarro (fumamno por partes) e depois utilizam novamente as beatas; este costume repugna-me e prefiro a minha soluçom, que exige, contudo, muitas mortalhas, mais das que se podem comprar com o tabaco e com os fósforos. Para os fósforos chega a prática carcerária de separar, com umha agulha, cada fósforo em duas partes, reduplicando-os. Na realidade, desde julho até hoje, nom só me habituei a fumar apenas 40% do tabaco que fumava antes (imediatamente antes, porque já reduzira anteriormente) mas acho que tenho a hipótese de fazer outras reduçons. acho que conseguirei fumar mui pouco, mesmo até deixá-lo completamente, dentro de algum outro tempo.
Porém, é verdade que o fumar pouco está ligado também ao grau de intensidade de trabalho intelectual; leio pouco e penso menos, isto é, nom fago senom poucos esforços intelectuais e por isso podo fumar pouco. Nom me dou concentrado num tema; sinto-me intelectualmente desfeito, assim como o estou fisicamente. acho que este estado de cousas vai durar todo o inverno, quando menos, quer dizer, neste período o meu esforço mal será suficiente para nom piorar, nom para me recuperar.
No teu último postal nem me mencionas as tuas condiçons de saúde: nom me escreves se saíche da cama após a angina. espero bem que sim.
abraço-te com tenrura. antonio

(Carta 90)

16 de novembro de 1931 Querida teresina,
obrigado por me teres escrito. Nom recebia notícias desde havia mais de um mês. aguardo a carta da mae que me anuncias.
se tio Zaccaria133 vinhesse visitar-me, receberei-no com muito prazer, mas acho que nom vai vir. Há quanto tempo nom o vejo? Já nem me lembro dele. tenho dele lembranças muito vagas, de quando ele era um moço e eu um rapaz: acho
133     Primo da mae de G.
que agora deve parecer-se muito com o tio achille134, se calhar um pouco mais civilizado e polido pola vida da cidade, mas nom sei se tam simpático.
Mas quem pode fazer hoje o pam na casa? Nossa mae nom; tu também nom, porque terás muito trabalho no escritório; Grazietta nom se poderá bastar para todo; nom som capaz de imaginar como é a vossa vida em concreto.
a frase: «Um barco que sai do porto, bailando com passo escocês, é o mesmo que apanhar um morto e pagá-lo no fim de mês» nom é umha adivinha, mas umha estranheza sem significado, que serve para se mofar daqueles tipos que embrulham palavras sem sentido, julgando que dim quem sabe que cousas profundas e de misterioso significado. assim acontecia a muitos paisanos da aldeia (lembras o senhor Camedda?) que para fazer ostentaçom de cultura, apanhavam grandes frases dos romances populares e depois faziam-nas entrar a torto e a direito na conversa para pasmar os labregos. da mesma maneira, as beatas repetem o latim das oraçons contidas no devocionário: lembras que tia Grazia acreditava em que existira umha «dona Bisodia» mui pia, tanto que o seu nome era sempre repetido no Pater noster? era a dona nobis hodie que ela, como muitas outras, lia donna Bisodia e personificava numha dama do tempo passado, quando todos iam à Igreja, e ainda havia um pouco de religiom neste mundo.
Poderia-se escrever um conto sobre esta «dona Bisodia» imaginária que se adotava como modelo: quantas vezes tia Grazia terá dito para Grazietta, para emma e talvez também para ti: «ah, é claro que nom és como dona Bisodia!» quando nom queríades ir confessar pola obriga pascoal. agora tu po-
134     outro primo da mae de G.
derás contar aos teus filhos esta história: nom esqueças logo a história da esmolante de Mogoro, da musca maghedda135 e dos cavalos brancos e pretos que aguardamos tanto tempo.
Querida teresina, abraço-te afetuosamente. antonio

(Carta 91)

30 de novembro de 1931 Queridíssima Iulca,
recebim a tua carta de 13 de novembro. respondera a tua carta anterior de 13 de agosto, mas a minha resposta perdeu-se. Poderia ter-che escrito noutras ocasions (desde 1° de julho podo escrever umha carta por semana em vez de cada 15 dias) mas é preciso que che diga a verdade: cada vez acho mais difícil escrever-che, cada vez mais difícil e também mais penoso. se eu tivesse que reler as minhas cartas algumhas semanas mais tarde, penso que ia sentir um certo desgosto, porque me pareceriam abstratas, fora do tempo e do espaço, como se fossem o resultado de meia hora de esforço puramente intelectual e nervoso, de um esforço que me parece obrigado, de ordem burocrático, diria. Pola tua última carta acho que também tu sentes que há qualquer cousa que nom presta nesta correspondência nossa irregular, aos poucos, a saltos de meses e meses. o pior é que nom consigo encontrar a maneira de mudar o curso das cousas. Nos longos intervalos do teu silêncio reflexiono sobre esta situaçom que se foi formando, tam diferente do que pensava há cinco anos, após o meu arresto. acredita-
135 em sardo «mosca mágica».
va que seria ainda possível umha certa comunhom na nossa vida, que me ajudarias a nom perder por completo o contato com a vida do mundo; quando menos com a tua vida e com a das crianças. Porém, considero (e digo-o mesmo se che causo um grande desgosto), que tés contribuido para agravar o meu isolamento, fazendo com que o sentisse de maneira mais amarga. tu insistes amiúde, nas tuas cartas, em que nós «estamos mais fortemente unidos, que somos mais fortes», mas precisamente é isso o que me parece cada vez mais falso, e acho que tu mesma o duvidas e luitas com a tua dúvida, no mesmo momento em que repetes essa afirmaçom. acho que no curso destes cinco anos nos convertemos cada vez mais em fantasmas, em seres irreais um para o outro. Como podem uns fantasmas estar mais unidos, e serem mais fortes? Umha vez, há muito tempo, escrevêrom-me que o teu bolso estava cheio de cartas tuas para mim, começadas e nom acabadas: este facto afetou-me mais do que qualquer outra cousa, porque o seu significado nom é agradável. Quer dizer que nom consegues escrever-me, que há algo que se interpom e che impede comunicar-te comigo. de facto, nom sei nada de ti: nem sei se retomache a tua atividade laboral. as tuas cartas som extremamente vagas. Nom som capaz de imaginar nada da tua vida. Muitas vezes procurei dialogar contigo: levantei questons, indiquei-che aquilo que seria para mim de sumo interesse. Nom conseguim obter nengum resultado e justamente entrei neste estado de ánimo polo qual escrever-che é para mim mais difícil e penoso.
esta carta é umha nova tentativa que fago para retomar
as nossas vidas; penso que ainda há umha maneira e um tempo. Com certeza, nom esquecim a Iulca de um tempo; porém, nom consigo fazê-la reviver na Giulia de hoje; nem dou imaginado a Giulia atual de umha maneira concreta, de umha maneira viva. Gostaria de poder turvar-te fortemente, violentamente, mesmo a custo de ser injusto e ruim contigo, mais ainda do que é a minha vontade. Gostaria de fazer que sentisses a minha ansiedade e a minha dor.
abraço-te com tenrura antonio

(Carta 92)

7 de dezembro de 1931
Querida Iulca,
poucos dias depois de ter-che escrito a última carta, tania enviou-me a traduçom de umha carta tua para ela. de primeiras, ao ler esta carta tua, quase me pesou ter-che escrito na maneira em que che escrevim. Mas pensando-o melhor, concluim que antes que tivera tanta mais razom em escrever como escrevera. de facto, por que nom informar-me também das tuas condiçons de saúde? e para além disso, podem sequer estas condiçons explicar ou quando menos justificar que escrevas tam pouco e que as tuas cartas para mim sejam tam vagas e abstratas? de outra parte, isso que escreves sobre a tua doutora pode interpretar-se de maneira extensiva: se ela se alegra quando lhe contas que tiveche episódios de cólera, de desabafo manifestados em palavras azedas, pode deduzirse que é útil provocar em ti estes momentos, atormentandote sem descanso. a personalidade e a vontade som produtos dialéticos de umha luita interior que pode e deve ser exteriorizada, quando o antagonista é asfixiado internamente por um processo doentio; seria importante que nesse «tormento» nom houvesse um tormento abstrato, mas um aguilhom concreto da consciência, mexido e agitado de maneira racional. a motivaçom racional parece que seria esta: nós estamos unidos por vínculos nom só de afeto, mas de solidariedade; esses vínculos , por sua vez, podem ser os mais fortes e reativos? o afeto é um sentimento espontáneo que nom cria obrigas, porque está fora da esfera da moralidade. Pode ser suscitado irracionalmente e poderia sê-lo, por exemplo, se eu, pola minha parte, che escrevesse cartas apaixonadas. Poderia escrevê-las, naturalmente, com toda a sinceridade, mas nom quero; as minhas cartas som «públicas», nom reservadas a nós os dous, e a consciência disto obriga-me firmemente a limitar a explosom dos meus sentimentos, entanto que se exprimem em palavras escritas nestas cartas. existem, pois, os vínculos de solidariedade, aos quais se pode e se deve fazer apelo, e agora penso que nunca deveria ter deixado de atormentar-te neste sentido. teria devido colocar-te amiúde face a um dever teu objetivo, e digo objetivo precisamente porque depende apenas dos vínculos de solidariedade. Quero dar-che o exemplo da igreja e da religiom. Para a igreja, a crença em deus deveria ser para cada homem a fonte de máxima consolaçom e a base inabálavel da vida moral, mas parece que a igreja nom confia demasiado nesta inabalabilidade e na firmeza desta consolaçom serena, porque leva os fieis a criarem instituiçons humanas que venham com meios humanos no auxílio dos afligidos e lhes impidam duvidar e abalar a sua fé. Parece por consequência que a igreja mesma entende de maneira implícita que deus nom é outra cousa que umha metáfora para indicar o conjunto de homens organizados para a ajuda mútua. Mas se a igreja, organismo espiritualista por excelência, recorre aos meios humanos para manter viva a fé nas forças sobrenaturais, que deveria dizer-se dos organismos laicos, realistas por excelência, que nom recorrem aos meios humanos para se susterem? e de facto nom acontece: acontece que cada um dos pertencentes a estes organismos descuidam nalgumhas ocasions os seus deveres a propósito, nom obstante pertençam formalmente a instituiçons especializadas em ajudar os aflitos, escusando-se, de forma farisaica, com o pensamento de que o aflito deve ser tam forte como para suster com meios próprios as suas forças morais. No entanto, mesmo se isso acontecer, e acontece certamente, o dever cumpre-se por umha única parte e é preciso um chamamento à outra parte. Naturalmente, eu gostaria de fazer que passasses por um episódio de cólera, conseguindo assim que fosses louvada pola doutora. Querida Iulca, abraçote forte.
antonio


http://estaleiroeditora.blogaliza.org/files/2011/08/cartas_do_carcere_gramsci_pant.pdf