(Carta 93)
14 de dezembro de 1931 Queridíssima tania,
só na quinta-feira recebim a tua carta de 3 de dezembro,
que chegou taxada, nom sei por que razom, mas provavelmente por excesso de
peso. das tuas fotografias, no conjunto, gostei muitíssimo; no entanto,
gostaria de ter algumha mais recente, como me tinhas prometido, porque nom nos
vemos desde há já perto de um ano e meio, e gostaria de ter noçom das tuas
condiçons de saúde atuais. Porém, nom penses que poda haver nisto umha petiçom
implícita para vires no Natal a turi, como escreves que che propujo Carlo.
Penso que farias mal em fazer essa viagem longa e incómoda e, portanto, se for
possível, seria bom que dissuadisses o Carlo. Naturalmente, estaria mui
contente de te ver, como podes imaginar, mas nom acho prudente gastar tanto e
submeter-se a tantas fadigas por meia hora de conversa. Por vezes, estas
conversas deixam mais umha sequela de amargura do que a breve felicidade de se
ver. espero que a esta hora tenhas recebido o resto das minhas cartas;
escrevim-che cada semana pontualmente e escrevim também para Giulia. se calhar
nom gostas das minhas cartas a Giulia; nem sequer eu gostei delas, mas tenho a
impressom de que se figera necessário escrever o que escrevim, o que
corresponde perfeitamente com a verdade (a verdade dos meus sentimentos, do meu
estado de ánimo). tu escreves, por exemplo, que nom me dirija às crianças, etc.
Na verdade, som mesmo incapaz, de um ponto de vista psicológico, de me
relacionar com elas, porque nom conheço nada concreto da sua vida e do seu
desenvolvimento. Com certeza, conheço melhor os filhos de teresina, que me
escrevêrom algumhas vezes e sobre os quais teresina me informa bastante, para
que eu, conhecendo o quadro geral da sua vida por experiência direta, poda
manter umha correspondência. No entanto, imagino que para delio e Giuliano devo
ser umha espécie de holandês voador, que por razons impenetráveis nom pudo
ocupar-se deles e participar da sua vida: como poderia escrever o holandês
voador? e além disso, repugna-me o ofício de fantasma.
Querida tania, há
algumhas encomendas que pido para me fazeres com muita exatitude e precisom.
Chegou a resposta à instáncia que figera ao Chefe do Governo, a propósito das
revistas e de umha série de livros. a resposta nom é completa. di que podo ler,
para já, as revistas italianas que assinei, mais duas que nom assinei —L’Educazione Fascista e La Cultura—, mas que pugera na listagem,
porque de quando em vez recebia algum número delas, hipótese que queria
conservar. Com respeito às revistas estrangeiras e para os livros, a resposta
nom menciona nada; isto faria supor, para já, um suplemento de resposta ao
respeito, que poderia ser favorável, mas que poderia também nom sê-lo. Nestas
condiçons é preciso advertir à livraria: 1° que é necessário renovar a
assinatura só para as revistas italianas já em curso; — 2° que nom é preciso
mandar, nem como amostra, números de revistas italianas e ainda menos
estrangeiras, que de todas maneiras nom me seriam entregues. 3° que, quando
menos de forma provisória, seria melhor nom mandar-me sequer livros nom
italianos.
Lembra, se ainda nom o
figeche, que nom recebim o fascículo de Pegaso
do passado novembro, e fai que mandem os fascículos de novembro e dezembro de L’Educazione Fascista, onde se publicou
o balanço do Congresso dos Institutos Fascistas de Cultura que quero ler.
Manda, por favor, a carta registada. se me forem concedidas as revistas
estrangeiras, haverá tempo para assinar: na dúvida é melhor abster-se.
Mando-che o módulo do
serviço das contas correntes postais do Corriere
della Sera para renovares a assinatura que caduca em 31 de dezembro: podes
renová-la para três messes ou para seis, mas nom mais de seis messes. Querida
tania, abraço-te afetuosamente antonio
Podes mandar para Giulia também esta parte da carta, para
além da sua parte.
•
(Carta 94)
14 de dezembro [de 1931]
Queridíssima Iulca,
recebim a tua breve carta de 21 de novembro. tania falou-me
da carta que lhe escreveche e dessa maneira a tua breve carta adquiriu maior
sentido, perdendo a sua abstracçom e vaguidade. Numha carta anterior,
mencionavas que querias começar a estudar, e que pediras a opiniom à doutora,
que nom tinha sido favorável. Permite que, com umha certa pedanteria, che faga
umha proposta prática, que che apresente, por assim dizer, algumhas das minhas
«reivindicaçons» (penso que no caso de um preso pode falar-se em
«reivindicaçons», nas relaçons com as pessoas livres, dado que a condiçom do
preso, historicamente, se relaciona com a escravitude do período clássico; na
Itália, galera e ergastolo, empregadas por cárcere, indicam esta filiaçom de umha
maneira evidente). Visto que tencionas estudar, podo entender algumhas cousas:
que queres aprofundar num tema especializado qualquer, ou que queres adquirir o
«hábito científico», isto é, estudares para dominar a metodologia geral e a
ciência epistemológica (olha que palavras pedantes!). Por que nom ias poder
entom estudar algo que justamente também me interessa a mim, chegando a ser a
minha correspondente em matérias de interesse para ambos, visto que som o
reflexo da atual vida intelectual de delio e Giuliano? em resumo, desejaria (—a
modo geral de primeira reivindicaçom—) ser informado sistematicamente do quadro
científico em que se desenvolve a escola ou as escolas frequëntadas por
Giuliano e delio, para ser capaz de compreender e valorizar as escassas mençons
que fás por vezes. a questom escolástica interessa-me muitíssimo e
interessa-che muito também a ti, porque escreves que 60% das vossas conversas
giram em volta da escola das crianças. expores de maneira ordenada e coerente
as tuas impressons propositadamente é «estudar»: porá-che novamente em
condiçons de readquirir, após a doença, o domínio da tua vontade científica e
das tuas faculdades de análise e de crítica. Naturalmente, deverias fazer um
autêntico trabalho, e nom só escrever cartas: quer dizer, começar um inquérito,
tomar apontamentos, organizar o material recolhido e expor os resultados com
ordem e coerência. seria mui feliz, com umha felicidade própria de pedantes, é
verdade, mas nom por isso desprezável.
É muito interessante,
por exemplo, saber como foi incluido no programa da escola primária o princípio
das brigadas de assalto e dos «recantos especializados», e qual é o fim
pedagógico que se propom atingir. Pode criar dúvidas sobre se isso acelera de
maneira artificial a orientaçom profissional e disfarça as inclinaçons das
crianças, fazendo perder de vista o fim da escola única: conduzir as crianças
para um desenvolvimento harmónico de todas as atividades, até que a
personalidade formada ponha em relevo as inclinaçons mais profundas e
permanentes, nascidas no nível superior de desenvolvimento de todas as forças
vitais, etc., etc. Poderia, por exemplo, contar para delio as minhas
experiências infantis sobre os seres vivos: ou parecerám-lhe contos que tenho
visto as lebres a dançar (ou a saltar, embora o povo veja nisso umha dança) baixo
a lua, ou a família do ouriço (ouriço, «ouriça» e «ouricinhos») ir na procura
de provisons de maçás no luar outonal? Que significado tem o recantinho dos
animais136? Lim que 70% das crianças das grandes cidades americanas
nom sabem o que
136 Cfr. nota
de rodapé nº 142.
é umha vaca e que levam de passeio as vacas numha gaiola,
como antano os ursos e os símios na Itália: terá nas escolas americanas a vaca
num recantinho?
Querida
Iulca, abraço-te forte forte junto às crianças.
antonio
•
(Carta 95)
28 de dezembro de 1931 Queridíssima tania,
recebim a tua carta de 23 de dezembro, onde me informas da
tua correspondência com Carlo a propósito da nossa viagem a turi. acho que
figeche mal ao acabares de persuadir o Carlo para que viajasse: seria demasiado
longo, e também algo difícil e embaraçoso, explicar-che todos os motivos desta
afirmaçom. assim, é absurdo que venhas a turi precisamente neste Inverno. se
esta carta che chegasse com tempo, pido-che mesmo de coraçom que interrompas
qualquer preparativo, que escrevas para Carlo para fazer que renuncie ao seu
propósito e que aguarde outra ocasiom em que a viagem se poda fazer com mais
comodidade.
Figeche bem em assinar
novamente o Corriere della Sera. da Gazzetta del Popolo é inútil ocupar-se;
assinar dous jornais acho que nom se pode, ou quando menos penso que seria
necessário fazer umha petiçom ao Ministério, algo que nom quero fazer, tendo
ainda umha petiçom em pendência. Para além disso, convencim-me de que assinar
dous jornais seria perfeitamente ocioso. Pode ser que a Gazzetta del Popolo melhorasse, é tudo relativo: deveu melhorar
especialmente no relativo à colaboraçom literária e de variedade; no entanto,
do ponto de vista do equipamento jornalístico (serviços, informaçons, etc.),
nom é, certamente, superior ao Corriere,
cujos defeitos devem ser umha doença orgánica de todo o jornalismo atual. a
falta de organicidade nas informaçons, falar em acontecimentos fazendo
referência a antecedentes que já fôrom fornecidos, como se o leitor devesse
conhecê-los (isto é, supor que o leitor lê vários jornais, ou que lê jornais
estrangeiros), a ausência de comentários dos feitos de maior importáncia, como
a transformaçom da Banca Comercial ou a criaçom de Crédito Mobiliário137,
limitando-se a reproduzir os comentários e as informaçons dos jornais
estrangeiros, nom podem ser apenas deficiências do Corriere. de que serviria entom ter um outro jornal, que nom seria
senom umha cópia piorada e incorreta do Corriere?
só para ler alguns artigos da terceira página? Nom valeria a pena.
sinto
nom poder escrever para a minha mae. ela anun-
ciara-me que para a vigília de Natal receberia um pacote
polo trem, mas o pacote nem deu chegado sequer hoje, apesar de estarmos já a
28. e digo-che que quando lim que se pugeram a sério e que queriam fazer as
cousas à grande e que mesmo se lhes metera nos miolos que havia chegar para a
véspera de Natal, pensei que já nom chegaria a tempo. Na verdade, devias
conhecer como som os da minha casa: fam sempre um feixe de projetos, de
cábalas, de grandes preparativos, e depois esquecem algo essencial que malogra todos
os projetos bem pensados. Isso até nas pequenas cousas; fala-se com vagar e com
muita antecedência, tudo é analisado de maneira ideal,
137 o Istituto
Mobiliare Italiano. o estado adquiriu a totalidade da carteira de açons
industriais do Banco Comercial Italiano. o I.M.I., criado em novembro de 1931,
é umha entidade financeira destinada a salvar empresas industriais em perigo.
sopesado, discutido como se tratasse de negócios de estado,
pedem-se opinions, consultam-se horários, catálogos, etc. Quando era um rapaz
divertia-me mofando-me desta maneira de fazer e de obrar, e irritava a todos:
acabava por litigar com todos. Poderia-che contar histórias bem simpáticas. o
meu pai e os meus irmaos pensavam que tinham grandes capacidades comerciais
para os negócios; faziam sempre grandes castelos no ar e criticavam a falta de
espírito de iniciativa do resto de sardos. Naturalmente, nengumha das suas
iniciativas corria bem, e a culpa era sempre dos outros, como se estes «outros»
nom tivessem existido também antes e nom devessem ter sido tomados em
consideraçom antes de começar. No entanto, lamento nom poder escrever que
recebim o pacote o dia de Natal; se tivesse sabido o que continha, teria
escrito que o recebim e que gostei muito disto e daquilo, estou certo de que os
faria mui felizes, podo imaginar-me a cena. Quem sabe como se desiludirá a mae
quando souber que o seu plano nom tivo sucesso. tanto mais quando eu che pedira
que renunciasses e lhes deixasses fazer a eles por esta vez. Queridíssima
tania, abraço-te com tenrura.
antonio
•
(Carta 96)
8 de janeiro de 1932 Queridíssima teresina,
recebim a tua carta de 14, com a carta de Franco, os seus
desenhos a cores e a cartinha de diddi e Mima. agradeço-lho a todas as crianças
e nem sei imaginar que cousa podo fazer para demonstrar-lhes o meu afeto.
Pensarei-no e procurarei inventar para eles algo feito por mim, porque de outra
maneira nom seria justo e nom teria nengum significado. talvez faga assim:
traduzim do alemám, como exercício, umha série de contos populares138,
justamente como aqueles de que gostávamos tanto quando éramos crianças, e que
realmente se parecem em parte com eles, visto que a origem é a mesma. som um
pouco antiquados, próprios da aldeia, mas a vida moderna, com a rádio, o
aeroplano, o cinema sonoro, Carnera, etc., nom penetrou ainda o suficiente em
Ghilarza como para que o gosto das crianças de agora seja mui diferente do
nosso por aquela época. tentarei copiá-los novamente num caderno e enviá-los,
se me for permitido, como um contributo meu para o desenvolvimento da fantasia
dos miúdos. talvez o leitor deva pôr um chisco de ironia e de compaixom quando
as apresente aos ouvintes, como homenagem à modernidade. Mas como é que esta se
apresenta? Haverá cabelos à la garçonne,
imagino, e cantará-se a «Valencia» e às mantilhas das mulheres madrilenas, mas
subsistirám ainda tipos à antiga, como tia alene e Corroncu, e os contos terám
ainda um ambiente adequado. Para além disso, nom sei se o lembras: eu dizia
sempre, quando criança, que teria gostado de ver a tia alene em bicicleta, o
que demonstra que nos divertíamos contrastando os trogloditas
138 trata-se
de nove contos dos irmaos Grimm.
com
a modernidade relativa de entom, o qual, mesmo estando para além do nosso
ambiente, aquilo nom deixava de resultarnos simpático e de causar sensaçons
agradáveis em nós.
Manda-me mais notícias
da mae, que abraçaria tanto, junto a todos os da casa. antonio
•
(Carta 97)
8 de fevereiro de 1932 Queridíssima tania,
recebim a tua registada de dia 2, com as cartas de Giulia.
responderei para a Giulia na próxima segunda-feira. espero receber entretanto a
tua traduçom da carta de delio; em relaçom a isto, quereria advertir-che de que
ponhas, entre parênteses, o nome russo dos passarinhos e dos peixinhos de que
ele fala, para que nom aconteça nas minhas cartas o que aconteceu com a carta
de delio, isto é, que Giulia nom saiba traduzir por sua vez os termos
italianos. Nom se deve excluir, também, que se trate de variedades locais, com
nome intraduzível para outras línguas; por isso, que os dicionários nom te
confundam demasiado, e contenta-te, quando a encontrares, com a indicaçom
genérica da espécie; o importante é nom confundires as ordens no tamanho, quer
dizer, falar de umha carriça como se fosse umha águia e vice-versa. estou
ansioso por ler a carta de delio: conseguirá estabelecer umha correspondência
constante, incluindo-me entre os interesses concretos e vivos da sua
existência?
Lim com interesse o
trecho de Piero sobre a nossa discussom, um pouco incoerente e pouco delicada,
sobre os chamados «dous Mundos»139 (fai-me lembrar o Herói dos dous
Mundos e aproximaçons semelhantes do período romántico oitocentista: mesmo a Revista dos Dous Mundos foi fundada em
1830!). Já que lhe mostrei as minhas cartas e que o informei entom dos termos
gerais da nossa controvérsia, agradecia-che que me figesses saber da sua
opiniom a propósito disso. Nom acredito que concorde nem com os velhos rabinos
nem com os jovens sionistas, mas penso que aceita a existência, polo menos até
certos limites, dos famosos «dous Mundos». as suas observaçons, embora
objetivamente interessantes, nom me parecem completamente exatas. Nom creio que
esteja justificada a inferência pola qual existe «de maneira evidente» a
tendência para «fazer novamente dos judeus umha comunidade isolada»; esta
tendência parece que é antes «subjetiva» dos velhos rabinos e dos jovens
sionistas. os judeus, a seguir à concordata, venhem a encontrar-se
objetivamente na situaçom dos protestantes, mas existe, ou existirá, umha
139
Cfr.
Cartas 86 e 87. Na sua carta de 2 de fevereiro de 1932, tatiana transcrevera
para G. o seguinte trecho de umha carta que lhe mandara sraffa algum tempo
antes: «Quanto à questom dos dous Mundos, sem voltar a colocá-la em seu nome,
você poderia dizer-lhe que lim a sua carta e que aquilo que ele di sobre os
judeus na Itália nom é inteiramente exato a dia de hoje. Por umha parte, após a
concordata, obtivérom certas vantagens como comunidades religiosas, sob a forma
de certo reconhecimento jurídico das universidades israelitas, com poder para
imporem contribuiçons aos seus membros, etc.; todos os velhos rabinos e os
jovens sionistas estám mui satisfeitos com isso. de outra parte, veem-se
excluídos, de facto, se nom de iure, de certos ofícios; por exemplo,
é notório que os judeus nom entram na academia da Itália (alguns fascistas, com
sona internacional, fôrom excluídos); e também fôrom excluídos da Cámara dos
deputados, onde o único judeu é olivetti, secretário da Confederaçom da
Indústria; e acho que desde há muitos anos nom som nomeados senadores, embora
se diga que proximamente se fará umha exceçom com Monpurgo, das Assicurazioni Generali, por motivos
especiais. Umha e outra tendência, mesmo se aparantemente opostas,
encaminham-se evidentemente a converter de novo os judeus numha comunidade
isolada.»
categoria social que se encontrará numha situaçom bem
triste, em comparaçom com os judeus e os protestantes, e será (ou é já) a dos
padres despadrados e a dos frades desfradados, que serám excluídos por isso dos
empregos estatais, quer dizer, serám degradados como cidadaos: que fosse
possível instituir juridicamente umha categoria tal de marginados sociais,
penso que é bem mais importante que nom a situaçom jurídica dos judeus e dos
protestantes, a quem concedêrom prerrogativas jurídicas tudo o contrário de
degradantes, no espírito da lei. Nom excluo que umha tendência antisemita poda
nascer ainda; nom vejo que exista hoje. as indicaçons contrárias podem
explicar-se por outras razons, e de resto, equilibram-se com outros factos nom
menos significativos. Mas em minha opiniom o facto importante é este: que umha
parte dos judeus aprova determinadas medidas contra outros judeus. o professor
Levi-Civita, da Universidade de roma, tivo desgostos porque nom frequëntava as
solenidades religiosas oficiais, mas os desgostos procurou-lhos o reitor del
Vecchio, também ele judeu: tratava-se pois, nom de umha questom de raça, mas de
umha questom política: um membro da classe dominante deve render homenagem ao
catolicismo instrumentum regni, sem
importar a fé que ele tenha. desta sorte, nom é conclusiva a amostra tomada da
academia ou do Parlamento: estám fora e ficarám fora cientistas de fama mundial
nom judeus. em minha opiniom, a posiçom assumida por teodoro Mayer no Crédito
Mobiliário140 é também ela significativa. em muitos casos, julgo que
nom é o judaísmo o que conta, mas o judaísmo-maçonaria, isto é, o facto de que
a maçona-
140
teodoro
Mayer (1860-1942), de origem judeu, fundador em 1881 de «Il Piccolo» de trieste, além de senador e ministro de estado, foi
nomeado em novembro de 1931 presidente do Istituto
Mobiliare Italiano.
ria era certamente umha instituiçom em que havia muitos
judeus.
Queridíssima, abraço-te com tenrura.
antonio
•
(Carta 98)
15 de fevereiro de 1932 Queridíssima tania,
recebim um postal teu de dia 12, mas nom recebim o outro
postal que mencionas. também nom escrevo esta semana para Giulia, por várias
razons: porque nom me sinto mui bem e nom dou juntado como gostaria o curso dos
meus pensamentos e porque nom dou encontrado a atitude mais oportuna e a mais
proveitosa no que di respeito à sua posiçom e o seu estado psicológico. acho
isto tudo terrivelmente difícil e complexo; procuro o fio à meada, mas nom sei
apanhá-lo, e nom tenho a certeza de o achar. Quero falar um pouco contigo
destas cousas, para que tentes ajudar-me. Certamente, deveria escrever-che um
volume inteiro para recolher todos os elementos necessários (extraídos,
contudo, apenas em base às minhas impressons e às minhas experiências, que só
podem ser parciais), mas fará-se o que se puder. a minha impressom central é
esta: que o sintoma mais grave das condiçons de desequilíbrio psíquico da
Giulia nom som os factos, mui vagos, que ela refere, e que seriam a razom do
tratamento psicanalítico, quanto o facto de ela recorrer a este tratamento e
que confie tanto nele. Nom tenho, é claro, conhecimentos vastos e precisos da
psicanálise, mas polo pouco que estudei julgo que podo chegar a conclusons, ao
menos nalguns pontos que podem considerar-se firmemente assumidos pola teoria
psicanalítica, depois de ser desfolhada de todos os elementos fantasmagóricos e
mesmo da bruxaria. acho o ponto mais importante é este: o tratamento
psicanalítico pode aproveitar só àquela parte da sociedade que a literatura
romántica chamava de «humilhados e ofendidos», muito mais numerosos e variados
do que parece tradicionalmente, isto é, aproveita àquelas pessoas que, presas
polos duros contrastes da vida moderna (por falar apenas na atualidade, mas
todo tempo tivo umha modernidade em oposiçom a um passado), nom conseguem
encontrar polos próprios meios umha razom aos contrastes mesmos, nem conseguem
portanto superá-los, como nom alcançam umha nova serenidade e tranquilidade
moral, isto é, um equilíbrio entre os impulsos da vontade e as metas a atingir.
em determinados momentos históricos e em determinados ambientes, a situaçom
chega a ser dramática, como quando o ambiente é sobreaquecido até umha tensom
extrema, desencadeando-se forças colectivas gigantescas que pressionam a cada
indivíduo até o espasmo, obtendo dele o máximo rendimento de impulso volitivo
para a criaçom. estas situaçons chegam a ser desastrosas para os temperamentos
mui sensíveis e refinados, enquanto som necessárias e indispensáveis para os
elementos sociais atrasados, por exemplo os labregos, cujos nervos robustos
podem distender-se e vibrar a um diapasom mais alto sem se consumirem.
se
calhar contei-che algumha vez a surpresa experimen-
tada no sanatório de serebriani Bor, onde conhecim Genia e
Giulia, a causa do espectáculo de doentes que chegavam em condiçons de extremo
deperecimento, e que após 3 ou 4 messes de umha nutriçom medíocre, mas superior
ao nível normal da sua existência, e de repouso, aumentavam de 16 a
18 quilos de peso, renasciam, voltavam a ser capazes de
umha nova e alta tensom vital. No entanto, estas pessoas nom tinham em si nem
umha réstia de fanatismo romántico, ou polo menos de umha certa classe de
fanatismo romántico: estavam moralmente saos e equilibrados, nom se colocavam
problemas insolúveis para desesperarem mais tarde por nom poder resolvê-los,
desesperando-se consigo mesmos e desesperando das próprias forças, ao se
julgarem ineptos, abúlicos, sem personalidade, em soma «cuspindo-se encima»,
como se di na Itália. em minha opiniom, Giulia, especialmente, sofre «problemas
insolúveis», irreais, combate contra fantasmas criados pola sua fantasia
desordenada e febril, e dado que, como é natural, nom pode resolver por si
mesma aquilo que nom tem soluçom possível para ninguém, necessita apoiar-se numha
autoridade externa, num bruxo ou num médico psicanalítico. Portanto, acho que
umha pessoa com cultura (no sentido alemao da palavra), um elemento ativo da
sociedade, como é certamente Giulia, e nom apenas por razons oficiais, porque
no seu saquinho tenha um cartom que a supom socialmente ativa, deve ser e é o
único e melhor médico psicanalítico de si próprio. Que significa, por exemplo,
o que ela escreve, ou seja, que deve estudar, etc.? todas as pessoas devem
estudar, sempre, e melhorarem-se a si próprias, teoricamente e
profissionalmente, mediante o exercício de umha atividade produtiva; por que
acreditar que isto é um problema pessoal, um sinal da própria inferioridade?
todas as pessoas elaboram e desfazem o novelo cada dia da própria personalidade
e o próprio carácter, luitam com instintos, impulsos, tendências inferiores e
antisociais e conformam-se a um nível colectivo de vida sempre superior. Nom há
nisso nada de excecional, de individualmente trágico. todas as pessoas
apreendem dos seus próximos e afins, cedem e vencem, perdem e ganham, esquecem
e acumulam noçons, traços e costumes. Giulia escreve que hoje nom se defenderia
mais de um possível influxo intelectual e moral meu, e por isso sente-se mais
unida a mim. Mas eu também nom acredito que no passado se defendesse na medida
e do jeito dramático que ela pensa. e, de resto, sei que nom me defendim eu do
seu influxo e, ao mesmo tempo, nom melhorei e nom mudei eu mesmo em contato com
a sua personalidade? Nunca teorizei e nom me angustiei por este processo em mim
próprio, mas nom por isso o processo se verificou no meu benefício.
Querida tania, nom
divago mais. seja como for, acho que che dei algum elemento para escrever e
para me ajudares a encontrar um fio. se achares oportuno, podes mandar esta carta
para Giulia; talvez poda ser umha primeira resposta, de maneira indireta.
recebim há pouco a tua carta de dia 12, com a traduçom da carta de delio.
responderei na próxima segunda-feira. Gosto da carta.
abraço-te antonio
•
(Carta 99)
22 de fevereiro de 1932 Queridíssima tania,
recebim as tuas duas cartas de 12 e de 16 de fevereiro141.
respondo também para a delio, como vês. se calhar, estendimme a mais: tenho de
elaborar um estilo para lhe escrever, para nom cansar-me.
141
da
carta de tatiana de 16 de fevereiro de 1932: «transmitim a Piero as tuas
últimas observaçons sobre a nossa controvérsia. de resto, devo lembrar-che
Visto que a Critica Fascista, que continuei a
receber directamente de roma, nom foi enviada por conta da Livraria, terei de
fazer que a devolvam. de facto, recebim também o exemplar da Livraria junto com
as outras revistas. Quem sabe como se fijo este envio: se calhar, algum redator
da Critica Fascista fai parte da
secretaria do Chefe do Governo e ao ter visto a minha instáncia, pensou em fazer-me
mandar a revista, já que pedia poder assiná-la.
Isso que escreves sobre
o meu esquema a respeito do canto de Farinata, fijo-me lembrar que de facto
pudem ter falado disso com alguém em passados anos. Lembro agora que a primeira
vez que pensei nessa interpretaçom foi ao ler o difícil trabalho de Isidoro del
Lungo sobre a Cronaca fiorentina de
dino Compagni142, onde del Lungo estabelecia pola primeira vez a
data da morte de Guido Cavalcanti. Mais recentemente, e doutro ponto de vista,
repensei essa ideia, ao ler o livro de Croce sobre a Poesia di Dante, onde o episódio de Cavalcanti é mencionado de umha
maneira tal que se entende que nom tivesse em conta o «contraponto» de
Farinata. Lembro também que Calosso escreveu um estudo sobre o Canto décimo do Inferno, publicado no Giornale dantesco143, mas já nom lembro
que agora que
mandache o esquema do teu trabalho sobre Farinata, deverias pôr-te a escrever o
esquema (nom menos de 50 páginas!) da tua história dos intelectuais italianos.
e se 50 páginas forem demasiadas, começa por mandarnos umha primeira entrega de
10 páginas. o professor nom respondeu ainda a propósito do teu estudo dantesco.
ao teu continho de «dona Bisódia», derivada de dona nobis hodie, Piero sraffa acrescenta um comentário, sugerido
por um amigo piemontês: em Piemonte dim bisódia
por beata, evidentemente com a mesma origem.»
142
del
Lungo, Dino Compagni e la sua cronica,
I-III, Le Monnier, Florença, 1879-1887, vol. I, pp. 187-188, 1111-1115, II, p.
98.
143
Umberto
Calosso, «Guido Cavalcanti nel X Canto dell’Inferno», Il Giornale dantesco, vol. XXIII, 1915, pp. 236-252.
o seu conteúdo; porém, parece-me que podo excluir que ali
se aludisse à ideia por mim mencionada. No entanto, reparei em que tenho
esquecido algumhas cousas que a tua carta me tornou à memória. além disso, a
cousa nom tem muita importáncia, dado que nunca pensei em converter-me num
«dantista» nem em fazer grandes descobertas hermenêuticas neste campo. Contudo,
é algo que me serve como um teste: é evidente que nom devo confiar demasiado na
memória, na qual se manifestárom tantas lacunas.
relativamente
às notinhas que escrevim sobre os intelec-
tuais italianos, nom sei mesmo por que parte começar: estám
espalhadas por um feixe de cadernos, misturadas com outras notas várias, e em primeiro
lugar deveria reuni-las todas juntas para ordená-las. este trabalho pesa-me
muito, porque mui frequentemente tenho hemicrânias que nom me permitem a
necessária concentraçom: na prática, a cousa é também mui fadigosa polo jeito e
as restriçons em que é preciso trabalhar. se puderes, manda-me cadernos, mas
nom esses que me enviache há algum tempo, que som incómodos e grandes a mais:
deverias escolher cadernos de formato normal, como esses escolares, e com
poucas páginas, no máximo 40 ou 50, de maneira que nom se transformem
necessariamente em complicadas misceláneas, cada vez mais confusas.
Precisamente, gostaria de ter esses caderninhos para reordenar as notas,
dividindo-as por tema, e desta maneira arrumá-las; isto fará com que me passe o
tempo e pessoalmente vai-me ser útil para conseguir umha certa ordem
intelectual.
Nestes últimos tempos
tivem fortes dores, mas nom se manifestou nengumha inflamaçom mais, nem tivem
saltos de temperatura. Nevou muito por aqui (40 cm.) e fijo muito frio, mas com
respeito às dores, apesar de tudo, safei-me bastante
bem. abraço-te com tenrura. antonio
(Carta 100)
22 de fevereiro de 1932 Querido delio,
gostei do teu recantinho para os animais144, com
os tentilhons e os peixinhos. se os tentilhons escapassem algumha vez da
gaiola, nom deves agarrá-los polas asas ou polas patas, porque som delicadas e
podem partir ou deslocar-se; é preciso apanhar o corpo inteiro com o punho, sem
apertar. eu, quando rapaz, adestrei muitos pássaros e também outros animais:
falcons, corujas, cucos, pegas, gralhas, pintassilgos, canários, tentilhons,
cotovias, etc.; adestrei umha culebrinha, umha doninha, ouriços-cachos e
tartarugas. eis como vim os ouriçoscachos fazerem a colheita das maças. Umha
tarde de outono, quando já escurecera mas a lua brilhava luminosa, fum com
outro rapaz amigo meu a um campo cheio de árvores frutais, principalmente
macieiras. ocultamo-nos numha bouça, contra o vento. aparecem entom os
ouriços-cachos, cinco, dous mais grandes e três pequeninhos. em fila indiana
fôrom-se para as macieiras, jogárom na erva e em seguida se pugérom a trabalhar:
com a ajuda dos focinhos e das patinhas, faziam rolar as maçás que o vento
tirara das árvores e apanhavamnas numha clareira, bem perto umha da outra. Mas
vê-se que nom chegavam com as maçás ciscadas na terra; o ouriço-cacho maior,
com o focinho ao ar, olhou à sua volta, escolheu umha árvore mui combada e
trepou por ela, seguido da companheira. Pousárom num galho carregado de fruta e
começárom a balouçar ritmicamente; os seus movimentos comuni-
144 «recantinho vivo» seria
a traduçom literal da expressom russa Zivoi
ugolot, para indicar um quarto, ou umha parte dele, reservada para alguns
animais domésticos (pássaros, peixes, tartarugas, etc.).
cárom-se ao galho, que oscilou com abalos bruscos, cada vez
com maior frequência, e muitas maçás mais caírom ao chao. assim que juntárom
estas ao pé das outras, todos os ouriçoscachos, grandes e pequenos,
enrolárom-se com os aguilhons eriçados e deitárom-se sobre as frutas, que
enfiárom: uns tinham poucas maçás enfiadas (os ouricinhos), mas o pai e a mae
conseguírom enfiar sete ou oito maçás cada um. Quando voltavam para o seu
covil, saímos do esconderijo, apanhámos os ouriços-cachos num saquinho e
levámo-los para a casa. eu fiquei com o pai e dous ouricinhos e tivem-nos
muitos messes, livres, no pátio; caçavam todos os animalinhos, baratas,
bezouros, etc. e comiam fruta e folhas de alface. Gostavam muito das folhas
frescas e desta maneira pudem domesticá-los um pouco; já nom se faziam umha
bola quando viam pessoas. tinham muito medo dos cans. eu divertia-me levando ao
pátio serpes vivas, para ver como as caçavam. Mal o ouriço-cacho se apercebia
da serpe, saltava bem ligeiro sobre as quatro patas e atacava com muita
coragem. a serpe erguia a testa com a língua de fora, e assobiava; o
ouriço-cacho dava um leve chio, segurava a serpe com as patinhas de diante,
mordia-lhe a nuca e depois comia-a, pedaço a pedaço. Um dia, estes
ouriços-cachos desaparecêrom: com certeza, alguém os apanhara para os comer.
tataniska145
comprou umha linda chaleira grande, de por-
celana branca e colocou-lhe a boneca; leva agora no pescoço
um cachecol quente, porque fai muito frio: também na Itália nevou muito. deves
escrever-lhe mais umha vez que coma mais um pouco, porque a mim nom quer fazer
caso. acho que os teus tentilhons comem mais do que tataniska. encanta-me
145 Tatianiska, diminutivo russo de tatiana.
que gostasses dos postais. Hei-che de escrever novamente
sobre a dança das lebres e sobre outros animais: quero-che contar outras cousas
que vim e escuitei quando rapaz: a história do poldrinho, do raposo e do cavalo
que tinha a cauda apenas nos feriados, a história do pardal e do kulak146, do kulak e do burrinho, do pássaro tecedor
e do urso, etc. Parece-me que conheces a história de Kim; conheces também os
Contos da selva e principalmente conheces o da foca branca e de
rikkitikki-tawi? e Giuliano, também ele é um udarnik147? em que atividade? Beijo-te — papai. — Beija
da minha parte Giuliano e tua mae Iulca.
•
(Carta 101)
7 de março de 1932 Queridíssima tania,
recebim o postal de 3 de março. Por ele parece que
escreveche com anterioridade, mas nom é certo. tu dis: «Já che escrevim a
propósito da autorizaçom que querias ter para a leitura das revistas
estrangeiras, etc.». Nom me escreveche sobre isso nos últimos tempos; lembro
apenas umha alusom, mas muito fugaz e vaga. tratará-se entom de algumha das
últimas cartas ou postais teus que se extraviárom? tu esperas que a questom se
resolva favoravelmente, mas eu tenho poucas esperanças. de qualquer maneira, se
a decisom for favorável, pido-che que esperes pelas minhas instruçons antes de
escreveres para a li-
146 Kulak, «camponês rico», em russo.
147 Udarnik, «trabalhador escolhido», «de vanguarda», em
russo.
vraria para fazer as encomendas. enviei-che há algum tempo
umha listagem de livros para encomendares; entre outras cousas, havia também a
reclamaçom do fascículo de setembrooutubro de Riforma Sociale, que foi extraviado. Nom me mencionache até agora
este assunto: escreveche? ou nom pudeche escrever, por umha razom qualquer?
seja como for, pido-che que me mantenhas informado, para eu saber como
guiar-me. Quereria ter-che escrito já que assinasses também a La Cultura (soc. editora La Cultura, Via
Cappellini, 14, Milám), para a qual tenho a autorizaçom, mas nom cho escrevim
até agora, precisamente porque nom tivera resposta às encomendas que
mencionava. se se tratar apenas de um esquecimento teu, podes escrever agora.
Quero precisar melhor
umha afirmaçom minha a propósito da psicanálise, que nom expliquei
suficientemente, visto que causou um equívoco, como parece pola tua carta de 23
de fevereiro. eu nom dixem que estivesse demostrado que o tratamento
psicanalítico se adapte somente aos casos de elementos chamados «humilhados e
ofendidos»; nom sei nada a propósito e nom sei se alguém até agora colocou a
questom nesses termos. som algumhas reflexons pessoais minhas, nom verificadas
pola crítica mais fidedigna e gerada cientificamente da psicanálise, que che
apresentei para explicar a minha atitude em relaçom à doença de Giulia: esta
atitude nom é pois tam pessimista como che pareceu e nomeadamente nom foi
baseada em fenómenos de ordem tam primitiva e tam baixa como che levou a crer a
expressom «humilhados e ofendidos», que empreguei pola sua brevidade e apenas
como umha referência genérica. eis o meu ponto de vista: creio que todo aquilo
que de real e concreto se pode salvar do échaffaudage
[sic] psicanalítico pode e deve restringir-se a isto, à observaçom da
devastaçom que causa em muitas consciências a contradiçom entre o que parece
necessário de umha maneira categórica e as tendências reais fundamentadas na
sedimentaçom de velhos usos e velhas maneiras de pensar. esta contradiçom
apresenta-se numha multiplicidade inumerável de manifestaçons, até assumir um
caráter estreitamente singular em cada indivíduo. em cada momento da história,
nom apenas o ideal moral, mas o «tipo» de cidadao fixado polo direito público,
é superior à média dos homens vivos num estado dado. esta distáncia torna-se
mais pronunciada nos momentos de crise, como é este do após-guerra, seja porque
o nível de «moralidade» desce, seja porque se coloca mais alta a meta a alcançar
e que ela se exprime numha nova lei e numha nova moralidade. Num caso e no
outro, a coerçom estatal sobre os indivíduos aumenta, aumenta a pressom e o
controlo de umha parte sobre o todo e do todo sobre cada um dos seus
componentes moleculares. Muitos resolvem a questom facilmente: superam a
contradiçom por meio do vulgar cepticismo. outros seguem em aparência a letra
das leis. Mas para muitos a questom resolve-se somente de maneira catastrófica,
já que tem derivaçons doentias de umha paixom reprimida, que a necessária
«hipocrisia» social (quer dizer, seguir a fria letra da lei) nom fai senom
aprofundar e turvar.
este
é o núcleo central das minhas reflexons, que eu mes-
mo percebo quam abstrato e impreciso é se se tomar assim,
literalmente: porém, trata-se apenas de um esquema, de umha orientaçom geral, e
entendido assim parece-me avondo claro e evidente. Como dixem, é preciso
distinguir, para cada indivíduo e para os vários estratos culturais, gradaçons
muito complexas e numerosas. aquilo que nos romances de dostoievski é indicado
com o termo de «humilhados e ofendidos» é a gradaçom mais baixa, a relaçom
própria de umha sociedade em que a pressom estatal e social é das mais
mecánicas e exteriores, em que o contraste entre o direito estatal e direito «natural»
(por usar esta equívoca expressom) é dos mais profundos, a causa da ausência de
umha mediaçom, como aquela que em ocidente oferecérom os intelectuais
dependentes do estado; dostoievski, certamente, nom mediava no direito estatal,
mas era ele próprio um «humilhado e ofendido».
deves compreender deste
ponto de vista o que pretendo dizer quando aludo a «falsos problemas», etc.
Penso que sem cair no cepticismo vulgar ou sem assentar numha cómoda
«hipocrisia», no sentido do provérbio que di «a hipocrisia é umha homenagem
rendida à virtude», pode encontrar-se a serenidade, mesmo no agromar das mais
absurdas contradiçons e sob a pressom das mais implacáveis necessidades, se se
conseguir pensar «historicamente», dialeticamente, e identificar com sobriedade
intelectual o próprio dever, ou um dever próprio bem definido e limitado. Neste
sentido, para esta categoria de doenças psíquicas é possível, e portanto é
preciso, sermos «médicos de nós mesmos».
Nom sei se me consigo
explicar. em minha opiniom, a cousa é bem clara. seria necessária umha
exposiçom mais minuciosa e analítica, compreensiva, para comunicar esta
clareza, mas isso é-me impossível em todo momento, dado o pouco tempo
disponível para escrever, e o pouco espaço. seja como for, deves ter o cuidado
de nom me interpretar demasiado literalmente.
Quero-che fazer outra
advertência a propósito do conceito de ciência neste tipo de factos psíquicos e
é que me parece mui difícil aceitar, a este respeito, o conceito demasiado
rígido das ciências naturais e experimentais. seria preciso, por isso, dar
muita importáncia ao chamado atavismo, à mneme
como memória da matéria orgánica, etc. Considero que se atribui ao atavismo e à
mneme muitíssimo do que é meramente
histórico e já adquirido na vida social que, é preciso lembrar, começa
imediatamente, logo que se sai ao mundo desde o ventre materno, mal se abrem os
olhos e os sentidos começam a sentir. Quem poderia indicar onde começa na
consciência ou na subconsciência a atividade intensa das primeiras percepçons
do homem-meninho, já organizado para lembrar aquilo que vê e sente? e como
distinguir e precisar entom aquilo que se atribui ao atavismo e à mneme?
Queridíssima, nom deves
achar que me sentisse ou me sinta mui mal: realmente, safei-me bastante bem
este Inverno, nom tivem, por exemplo, nengumha dor nos rins, que nos invernos
anteriores me figeram sofrer muito.
abraço-te com tenrura. antonio
•
(Carta 102)
14 de março de 1932 Queridíssima mae,
recebim a carta de Grazietta de 3 de março. escrevim-che já
há algum tempo, por meio de tatiana: nom lembro exatamente quando, mas nom me
parece que fosse há demasiado tempo. Nom gostaria de que esta carta minha se
tivesse extraviado. as minhas condiçons continuam a ser as mesmas. o In-
verno
aqui foi mui frio, nevou muito, mas passei-no bastante bem. recentemente
recebim notícias de Giulia e das crianças e também neste apartado nom há
novidades mui importantes. Nom che escrevim sempre sobre Giulia e as crianças
porque umha vez teresina me escreveu que recebíades notícias através de
tatiana.
Compreendo que
Grazietta tem muito para fazer e que portanto nem sempre pode escrever-me;
porém, acho que com um pouquinho de boa vontade poderia escrever-me um pouco
mais amiúde. Gostaria de conhecer com exatitude o programa escolástico do curso
que frequënta Mea; depois, se for possível, e acho se poderá conseguir
recorrendo a algum docente, homem ou mulher, gostaria de ter a cópia do
programa dos três anos do ciclo de formaçom comercial. di a Franco que me
escreva sobre o seu meccano e as construçons que fai. estou convencido de que
chegará a ser um grande matemático e engenheiro. esperemos que este mau tempo,
verdadeiramente excecional, tenha passado já e que dês recobrado um pouco as
forças. abraço-te com tenrura, junto a todos os da casa. antonio
•
(Carta 103)
21 de março de 1932 Queridíssima tania,
tenho diante de mim quatro escritos teus: a carta de 9 de
março, o postal de 13, as cartas de 14 e de 18. Um autêntico recorde, com
grande alegria minha, embora me desgoste que a minha alegria esteja, neste
caso, ligada ao teu cansaço. Procurarei responder ordenadamente, para nom
esquecer nada essencial.
Lim as observaçons do
prof. Cosmo a propósito do Canto do
Inferno dantesco148. agradeço-lhe as sugestons e as indica-
148 a
carta de Cosmo, dirigida a sraffa a 29 de dezembro de 1931, chegara a
G., como de costume, através de tatiana. G. transcreveu-na
mais tarde numha
çons bibliográficas. Porém, nom considero que pague a pena
adquirir os fascículos da revista que ele indica: para quê? se quigesse
escrever um ensaio para publicar, estes escritos nom seriam suficientes (ou
polo menos nom me pareceriam suficientes, causando um estado de ánimo de freio
e de insatisfaçom); e para escrever algo pola minha conta, para passar o tempo,
nom vale a pena incomodar tam solenes monumentos como os Studi danteschi de Michele Barbi, que, depois, quando se leem, nom
dam nengumha ideia necessária ou indiretamente útil. em minha opiniom, a
literatura dantesca é tam pletórica e prolixa, que a única justificaçom para
escrever algo relativo a ela é a de dizer algo verdadeiramente novo, com a
maior precisom e com o mínimo de palavras possíveis. Parece-me que o mesmo
prof. Cosmo sofre um pouco a doença profissional dos dantistas: se as sugestons
fossem seguidas à letra, faria falta escrever um volume inteiro. estou
satisfeito de saber que a interpretaçom do Canto que esbocei é relativamente
nova e digna de tratamento; para a minha humanidade de preso isto é suficiente
para me fazer destilar algumhas páginas de apontamentos que a priori nom me
pareçam umha redundáncia.
Lim também, com
interesse bem justificado, as últimas notas sobre a questom dos «dous mundos»,
quer dizer, do «leom de Caprera»149. Colocada a questom como se
depreende
grande parte num dos seus Cadernos do Cárcere. Para a transcriçom do texto na íntegra, ver na
pág. 437
149 sraffa propugera chamar à discussom sobre os «dous
mundos» a discussom do «Leom de Caprera». Na carta de tatiana a G. de 18 de
março transcrevese, entre outras cousas, o seguinte trecho de sraffa: «Quanto
aos dous Mundos, nom, nom acredito neles; e os factos que citavam tinham apenas
a finalidade de informar sobre certas mudanças que se produzírom ou que se
procura fazer que se produzam, nos últimos anos. alguns deles som factos
certos, e nom
delas, isto é, nos seus justos limites, e esterilizada de
qualquer bacilo de romantismo racista e de sionismo mais ou menos confuso, a
cousa é digna de atençom. e os dados que me oferecem som interessantes, porque
os desconhecia totalmente. aquilo que me importava estabelecer é que em Itália,
desde há uns tempos, nom existe um antisemitismo popular (que é o antisemitismo
clássico, aquele que provocou e provoca tragédias e tem umha importáncia na
história da civilizaçom) e que os judeus nom representam em nengum sentido umha
cultura especial, nom tenhem qualquer missom histórica particular no mundo
moderno e que nom som, em si mesmos, um fermento de desenvolvimento no processo
histórico. esta foi a origem do nosso debate e é preciso lembrá-lo, porque
agora se fala de outras cousas. Nom me parece que os casos particulares de
judeus italianos relativamente sacrificados em comparaçom com os «cristaos»
podam constituir umha «questom» de relevo. Casos análogos poderiam ser citados
em virtude doutras diferenciaçons histórico-sociais: por
podem explicar-se completamente «por outras razons» (o
judaísmo-maçonaria é umha razom, sim, mas esta é precisamente umha das formas
do judaísmo na Itália; nom quererás dizer que, por exemplo, na Polónia, o facto
de os judeus serem comerciantes ou usurários, ou nom camponeses, é outra razom
de hostilidade contra os judeus, como se a «autêntica razom» estivesse nas
diferenças teológicas ou antropológicas). Mas, por voltar aos factos, o
episódio de del Vecchio; o professor Foà (fisiólogo, filho do senador),
fascista desde há muitos anos, conspirou com todas as suas forças para se
converter no reitor da Universidade de Milám, e nom o conseguiu. É certo que um
velho costume de muitos judeus, quando pola sua ineptitude nom conseguem obter
um resultado, é botar-lhe a culpa a um imaginário antisemitismo. Mas o que
dixem sobre a academia nom o baseava apenas em choromicadas de algum velho
judeu desiludido. e ademais é preciso distinguir entre o antisemitismo e os dous
Mundos; a concessom de certos privilégios às Universidades Israelitas (isto é,
às comunidades religiosas) nom tem nada a ver com um ato de antisemitismo; no
entanto, tende na medida do possível para criar umha distinçom neta.
exemplo, em setembro de 1920 foi publicada umha circular
secreta da associaçom dos industriais metalúrgicos piemonteses pola qual se
dispunha que durante a guerra nom fossem contratados nas fábricas os nascidos
«a sul de Florença», isto é, da Itália meridional e central150.
Porém, nom me parece que
os velhos rabinos e os jovens sionistas (entre parênteses,
o entusiasmo destes últimos diminuiu muito nos últimos cinco ou seis anos, a
julgar polos poucos que conheço) estám encantados com isso; e, como
contrapartida, nengum judeu pode queixar-se de ser perseguido como tal; como
muito, algum ambicioso fica insatisfeito. Quem polo contrário tenhem problemas
(mais cómicos que trágicos, na realidade) som justamente os judeus que se saem
ou tendem para se saírem silenciosamente do judaísmo e a se fundirem com os
outros italianos, passando para o ateísmo ou ao deísmo genérico. estes
encontram-se perante um dilema ineludível, justamente eles que queriam deixar
as cousas na dúvida, remitindo ao tempo a soluçom. Cito dous casos. as
universidades Israelitas tenhem direito a impor umha taxa a todos os judeus;
quem assim o quer pode ver-se isento dela, mas deve fazer um ato de abjuraçom,
por escrito, explicitamente. Isto foi um problema mui difícil de resolver para
infinidade de judeus, ou semijudeus; justamente o que queriam evitar era o
«salto». Mas hoje, ou um é judeu ou nom o é —nom há vias intermédias. o outro
caso é o do ensino religioso nas escolas: se os padres declaram que a criança é
de religiom judia, fica isenta sem a menor dificuldade; mas se dim que é «livre-pensador»
ou «sem religiom», entom criam-lhe problemas. Isto levou a muitos a declarar
«judeus» os seus filhos, embora o nom forem em absoluto, e muitos cristaos
«livre-pensadores» invejam dos judeus esta cómoda escapatória. e também isso
acentua a distinçom. (acho que os cristaos livre-pensadores enviam na grande
maioria dos casos os filhos ao catecismo com diversos pretextos hipócritas,
como «nom se deve prejudicar as crianças ao impor-lhes as opinions dos pais»,
ou «os ateus saírom sempre dos colégios dos jesuítas», etc.). Nom sei como
explicar estes factos, e quigera conhecer a tua opiniom; provavelmente haveria
que compreender as relaçons do estado com a Igreja Católica na Itália, e depois
dessa explicaçom deduziria-se «logicamente» a atitude do estado com as igrejas
menores; no caso dos judeus, essa atitude poderia tingir-se do exemplo dos
países estrangeiros, nomeadamente dos nazis e «movimentos análogos».
150 o episódio remonta-se ao período da ocupaçom das
fábricas. No dia 6 de setembro de 1920 a ediçom turinesa do avanti! anunciou a descoberta de
documentos, achados na sede da Fiat, que continham «listas negras» de operários
subversivos e umha série de medidas discriminadoras a respeito dos
trabalhadores.
poda comparar-se o «judaísmo-maçonaria» com o facto de na
Polónia os judeus serem comerciantes ou usurários ou nom camponeses. Na Geórgia
os usurários eram os arménios e os arménios eram os «judeus» da Georgia. em
Nápoles, quando sopra vento de revolta, a polícia vigia as casas de penhores
populares, porque é contra elas que se dirige a fúria do povinho: se estas
casas forem regentadas por judeus, e nom por fiéis de sam Genaro, em Nápoles
haveria antisemitismo, como há numha parte do Casalese, da Lomellina e do
alessandrino, onde os judeus som mercadores de terra e aparecem sempre quando
numha família acontece umha «desgraça» e é preciso vender, ou vender mal, ao
desbarato. Mas também aqui, onde ninguém se interessa em acirrar, estes
sentimentos nom ultrapassam limites modestos.
Na tua carta de 14
fás-me toda umha série de perguntas, às quais nom tenho vontade de responder de
forma pormenorizada. avonda dizer que no meu estado de ánimo nom há nada de
dramático ou de hipertenso. antes polo contrário. Portanto, nom deves
preocupar-te por nada.
recebim os cadernos: os
melhores som os dous pequenos (por número de páginas) que mandache no segundo
pacote, o registado. os blocos de notas nom podem ser usados.
Nom che sei dizer para
quanto tempo me dura umha caixa de sais de Hunt porque nunca reparei neste
pormenor: porém, acredito que chega para um mês, mais ou menos, dado que nem
todos os dias os tomo. Figérom-me mui bem. a minha dieta é bem simples: tomo
500 gr. de leite de manhá e 700 de tarde como ceia, com uns 250 gr. de pam
repartido em duas vezes. a meio-dia como uns 80 gr. de massa com manteiga e
queixo, ou dous ovos com manteiga. a dose é algo mais, mas nom a dou consumido
toda. aliás, de tanto em tanto, como algumha cousa mais (um pouco de confitura,
de mel, de ovomaltina151, que recebim polos correios). os anos
anteriores comia mais: consumia toda a dose e por vezes ainda ficava com fome.
No entanto, nom me sinto mais débil, em absoluto: de resto, um já vai velho e
tem menos necessidade de comer. recebim o pacote da Páscoa e agradeço-cho. Com
certeza, comerei tudo quanto me enviache, embora lentamente. Figeche bem em nom
enviar chocolate, que nom o podo digerir, nem cacau, que é como o chocolate.
Mas por que me enviache os doces sardos que che enviaram a ti? deves ter
desconfiado, eh?, di a verdade! som pesadíssimos, de facto. sabias que nom lhe
dei os parabéns a minha mae, nem polo seu santo nem pola Páscoa?. este ano nom
tenho nengum calendário e é por isso que nom pudem ver a tempo que o dia de s.
José se aproximava a grandes passos; aliás, este ano já nom tenho a carta
extraordinária por Páscoa e é por isso que fiquei sem margem. Procurarei
excusar-me a próxima vez.
Para
Giulia escreverei a próxima vez; se calhar, é melhor aguardar que ela mesma
escreva outra vez ou que delio responda. dou-che muitos parabéns e abraço-te
com tenrura. antonio
No teu postal de dia 13 escreves, a propósito do que che
escrevim sobre a psicanálise: «nom sei porque pensas que Giulia está tam
doente. eu nom sei nada disso!». Naturalmente eu também nom sei nada preciso,
mas essa é a minha impressom, formada por todo um cúmulo de pequenos factos e
de lembranças do passado, cada umha das quais, tomada à parte, pareceria umha
frivolidade. acho entom que che foi impos-
151 Bebida de origem suíça a base de malte de cevada, leite
sem gordura, cacau, ovos e lêvedo (N. do T.).
sível perceber certas cousas, porque che falta por completo
a experiência do ambiente concreto. de outra parte, a cousa é mais complexa do
que parece polo meu esquema simplificador e mui genérico. seja como for, podes
entender porque dei tanta importáncia às alusons de Giulia aos «estudos» por
fazer e à procura de umha «personalidade» que ela julga nom ter-se criado
antes. Querida, abraço-te
a.
Já comim duas laranjas das tuas, que tenhem um sabor e um
cheiro extraordinários.
•
(Carta 104)
28 de março de 1932 Querida Iulca,
recebim no seu tempo a tua carta de janeiro e há alguns
dias a de 16 de março. Nom che escrevim antes porque, como já mencionei noutra
ocasiom, sinto um certo embaraço, umha certa reserva quando procuro pôr-me em
comunicaçom contigo. Fôrom vários elementos os que suscitárom este estado de
ánimo; pode que um dos mais importantes seja a especial psicologia gerada
durante um longo encarceramento e um longo isolamento a respeito de qualquer forma
de sociedade análoga ao próprio temperamento, mas é certo que também predominam
outros dous elementos: 1° o temor de fazer-che mal, interferindo de maneira
desajeitada no teu método de cura; 2° a consciência que eu próprio tenho de ter
chegado a ser, nestes anos, mais «livresco», de ter assumido por vezes um tom
de pregador e de mestre de Primária, que me fai rir de mim próprio, com a
consequëncia desagradável de que essa autocrítica parece que me leva a dizer
parvoíces. Isso significa que percebo um certo marasmo e me sinto reprimido.
Para além disso, polas
tuas cartas parece que algumhas observaçons minhas fôrom além do limite e
tivérom «demasiado sucesso», quer dizer, tivêrom um efeito nocivo. Insistes
demasiado em lembrar as minhas observaçons a respeito da tua personalidade,
ainda nom desenvolvida, da necessidade que tens de descobrires o teu verdadeiro
ser, etc. Com certeza, tomache ao pé da letra as minhas observaçons e nom as
colocache na sua justa dimensom. Um elemento que com certeza che escapou é como
eu próprio tenho insistido para te induzir a dedicares umha parte do teu tempo
à musica (acho che causou umha má impressom que umha vez eu quigera ir-me
embora ou mostrasse, de algumha maneira, nom poder aturar a tua música: e
certamente, aquela vez sofria realmente, mas estava numhas condiçons nervosas
deploráveis, e a música enerva-me de umha maneira tal que me provocava
convulsons). sempre acreditei que a tua personalidade se desenvolveu em grande
parte ao redor da atividade artística e que sofreu como umha amputaçom a
orientaçom meramente prática e de interesses imediatos que deche à tua vida.
diria que na tua vida houvo um erro «metafísico», com a consequëncia de
desarmonias e desequilíbrios psico-físicos. Umha vez afirmei, com certo
escándalo pola tua parte, que os cientistas, na sua atividade, som
«desinteressados». tu retrucache, de forma mui breve, que eles som sempre
«interessados». Naturalmente, eu falava em termos «italianos» e da cultura
italiana tinha presente as teorias filosóficas do prof. Loria, que interpretou
o termo e a noçom de «interesse» num certo sentido, inferior, que nas Teses sobre Feuerbach é qualificado como schmutzig jüdisch, sordidamente judaico152. Pois bem,
parece-me que orientache a tua vida neste sentido «sordidamente judaico», sem
estar intimamente convencida dele, como nom podias está-lo, e com justiça.
Precisamente, a tua personalidade, para mim, tinha necessidade de sair desta
«fase» primordial, de se descobrir, de desnovelar muitos elementos da tua
anterior existência de artista «desinteressada» (que nom quer dizer sustentados
nas nuvens, evidentemente), ou seja «interessada» no sentido nom imediato e
mecánico da palavra. Nom quero deixar-me levar a um sermom livresco. Querida,
espero que sintas que és e podes ser cada vez mais livre para me manifestares
todos os teus pensamentos e sentimentos. desde há muito tempo nom recebo umha
fotografia tua: acho seria mui útil (além de desejada) para julgar as tuas
condiçons físicas; deverias também escrever-me o teu peso. Igualmente, no caso
de delio e Giuliano deverias enviar-me fotografias melhores que as últimas que
recebim, com os dados da estatura e do peso. abraço-te com tenrura. antonio
N. B.: aguardo nom interpretes mal a expressom
«sordidamente judaico» que empreguei mais acima. observo isto porque
recentemente mantivem com tania umha discussom epistolar sobre o sionismo e nom
gostaria de que me tivesses por «antisemita» devido a estas palavras. Nom era
judeu o autor delas?
152 G. refere-se a Marx, 1ª tese sobre Feuerbach, e
nomeadamente ao seguinte fragmento: «...na Essência
do Cristianismo considera apenas (o modo de agir) teorético como
declaradamente humano, enquanto a praxe é concibida (e estabelecida) apenas na
sua representaçom (sordidamente) judaica. Portanto, nom concebe a importáncia da atividade
«revolucionária», da atividade práticocrítica».
(Carta 105)
4 de abril de 1932 Queridíssima tania,
recebim ontem a tua carta de 31 de março; pensava que esta
semana nom ia receber escritos teus e achava que te sentias algo mal. recebim
os medicamentos que me enviache, os quais, devo dizê-lo, nom me vam ser mui
úteis. Compreendeche à primeira umha alusom contida numha carta anterior e
pensache depressa em enviar-me aqueles seis ou sete pacotes de flocos de aveia,
massas com glúten, etc. Como queres que as utilize? e em tanta quantidade?
deveriam-me chegar para sete ou oito anos, polo menos, quer dizer, terám todo o
tempo para se estragarem, já que, talvez sim, talvez nom, poda mandar que me
preparem umhas pouquinhas cada quinze ou vinte dias. também o somatose nom o
vou tomar para já, nom o necessito para nada; mas é possível que me seja útil
quando comece a calor e o apetite diminua outra vez. Polo contrário, será-me
útil esse extrato peptonizado preparado pola sociedade para o leite condensado
lombardo: provei a meter umha ponta de colher na pasta e melhorou-na muito.
Nom desejo ter tabaco,
nem «macedónia» nem de outro tipo: conseguim, como che escrevim noutra ocasiom,
diminuir o consumo de maneira notável; estabelecim um pacote de tabaco
«macedónia» cada cinco dias, mas depois de ter consolidado esta quota,
procurarei diminui-la ainda de maneira progressiva.
Igualmente, nom
necessito em absoluto o café sem cafeína: nom podo tomá-lo. Por vezes podemos
ter água quente, mas é boa só para lavar os pés, nom potável, porque se utiliza
para quentar grandes caldeiras ao banho-maria, e nom certamente em ebuliçom,
mas somente a 60 ou 70 graus. Como che escrevim outras vezes, és mui dada a
fazer castelos no ar com demasiada facilidade.
Lamento e entristece-me
muito que Giacomo153 morrera; a nossa amizade era bem mais grande e
intensa do que pudesses ter ocasiom de perceber, também porque Giacomo
exteriormente era pouco expansivo e de poucas palavras. era um homem raro,
asseguro-cho, embora nos últimos anos estivesse mui cambiado e deteriorado de
umha maneira inacreditável. Quando o conhecim, no após-guerra, era de umha
força hercúlea (era um sargento de artilharia de montanha e levava nas costas
peças de canhom de peso considerável) e de umha coragem temerária, embora sem
arrogáncia. e todavia era de umha sensibilidade sentimental incrível, que
chegava até extremos melodramáticos, que no entanto eram sinceros, nom de pose.
sabia de cor umha grande quantidade de versos, mas todos dessa literatura
romántica inferior de que tanto gosta a gente (do tipo libretos de ópera,
escritos na maioria dos casos num estilo barroco curiosíssimo e com denguices
patéticas repugnantes, mas de que gostam também de maneira surpreendente) e
gostava de recitá-los, embora corasse como umha criança surpreendida em falta
cada vez que me metia entre o público para o escuitar154. esta
lembrança, que se me repete insistentemente, é o traço mais vivo do seu
carácter: este homem gigantesco, que declama, com sincera paixom, versos de mau
gosto, mas que exprimem sentimentos elementares,
153
Giacomo
Bernolfo, operário turinês destinado aos serviços de vigilância e defesa de L’Ordine nuovo. Ligado a G. por um fundo
afeto, escoltava-o polas ruas de turim para o defender de possíveis agressons
fascistas. em 1923 emigrou para a Uniom soviética.
154
G.
refere-se à Stampa lirica, um típico
local popular de turim, onde entre umha consumiçom e umha outra, os fregueses
exibiam livremente os seus dotes de cantantes e, por vezes, de recitadores.
robustos e impetuosos e que se interrompe e cora quando é
escuitado por um «intelectual», mesmo se for um amigo.
abraço-te.
antonio
•
(Carta 106)
11 de abril de 1932 Querida Iulca,
quero acrescentar ainda algumhas observaçons à minha carta
anterior155, que se calhar che pareceu um pouco incoerente, e nom
mui conclusiva. Imagino que isso pode acontecer, porque as minhas cartas me
produzem essa impressom a mim próprio, assim que as escrevo. devo escrever num
horário fixo, num dia determinado: a obsessom de que nom chega o tempo para
escrever tudo quanto gostaria, resulta em que acabo por escrever de maneira
elíptica, por alusons, juntando os pensamentos que germinam quando os fixo por
escrito no esboço da carta, pensados antes de me pôr a escrever, tendo assim
como resultado um pot-pourri, polo
menos na minha impressom.
aquilo
que che queria escrever é isto: que as tuas preo-
cupaçons me parecem injustificadas, por toda umha série de
aspetos relativos à questom que colocache, e que é especialmente injustificado,
por mal interpretado, o meu testemunho ao respeito. Quando te valorizas a ti
própria e o teu contributo à vida, nom levas em conta que a um certo ponto
deche à
155 Cfr.
Carta 104.
tua personalidade umha determinada orientaçom novidosa,
abandonando a atividade artística por umha atividade mais imediatamente
prática. Para além disso, acho deche sempre ao conceito e ao facto da
«utilidade» e da «praticidade» um conteúdo demasiado limitado e mesquinho (erro
teórico que definim com a expressom de «sordidamente judaico»), tirando a
consequëncia obsessiva de seres demasiado pouco «útil» e «incapaz», a seres
«útil», como erroneamente pensas que se deveria ser. a mim deu-me a impressom
de que aí está o germe da tua doença, do «complexo de inferioridade» que
debilita a tua sensibilidade, afinada polos acontecimentos destes últimos seis
anos, mas que já era excecionalmente aguda antes. de resto, agora considero que
eu também som responsável, polo menos em parte, por estas condiçons tuas, dado
que no passado, de forma inconsciente, me divertia a irritar-te e a
provocar-te, achando que assim conseguiria conhecer-te melhor. Comecei em 1922,
pouco depois de que nos conhecêssemos e figem que chorasses, de um jeito tam
estúpido que só agora sinto remorsos, porque só agora percebo que nom se
tratava de umha cousa superficial, mas que para ti tinha umha importáncia maior
da que eu pensara: e nom tivem a coragem de enxugar-che as lágrimas, como até
me sentia movido a fazer, porque te amava e é verdade que certas maldades
fam-se só a quem se ama. Queridíssima, aperto-te forte forte. antonio
•
(Carta 107)
18 de abril de 1932 Queridíssima tania,
agradeço
que me transcreveras a carta em que Giulia che deu mais informaçons detalhadas
sobre as condiçons de saúde de delio.
o somatose vou-no
tomar, como já che escrevim: nom é necessário que mo vendas durante tanto
tempo, porque já estou convencido, polo menos tudo o necessário para o tomar.
Quando tenha lido o
livro de Croce estarei mui contente de ser-che útil escrevendo algumhas notas
críticas ao respeito e nom umha resenha completa, como desejas, porque seria
difícil escrevê-la dessa maneira, improvisada. além disso, lim já os capítulos
introdutórios do livro, porque apareceram num opúsculo independente, há alguns
messes156, e já podo começar desde hoje a fixar-che alguns pontos
que poderám ser-che úteis para fazeres pesquisas e para te informares melhor,
se quigeres dar ao teu trabalho umha certa organicidade e algum alcanço. em
minha opiniom, a primeira questom a colocar poderia ser esta: quais som os
interesses culturais hoje predominantes na atividade literária e filosófica de
Croce, se som de caráter imediato, se tenhem um alcanço mais geral e se
respondem a exigências mais profundas que nom sejam as nascidas das paixons do
momento. a resposta nom tem dúvida; a atividade de Croce tem origens longínquas
e mais exatamente do tempo da guerra. Para compreender os seus últimos
trabalhos é preciso rever os seus escritos sobre a guerra, recolhidos em dous
volumes (Pagine sulla guerra – 2ª ed.
aumentada). Nom tenho estes dous volumes, mas lim es-
156 trata-se da Storia d’Europa, aparecida no ano
seguinte.
tes escritos na medida que fôrom publicados. o seu conteúdo
essencial pode resumir-se brevemente da seguinte forma: luita contra a focagem
dada à guerra, sob a influência da propaganda francesa e maçónica, segundo a
qual a guerra se convertera numha guerra de civilizaçom, umha guerra tipo
«Cruzadas», com o desencadeamento de paixons populares, com um caráter de
fanatismo religioso. após a guerra vem a paz, isto é, ao conflito deve suceder
nom só umha nova colaboraçom dos povos, senom que às alianças bélicas ham de
suceder alianças de paz, e nom quer dizer que as duas coincidam. Porém, como
poderia dar-se esta nova colaboraçom geral e particular, se um critério
imediato de política real se converte em princípio universal e categórico? É
preciso pois que os intelectuais resistam estas formas irracionais de
propaganda e, mesmo sem debilitar o seu país em guerra, resistam à demagogia e
salvem o futuro. Croce vê sempre no momento da paz o momento da guerra, e no
momento da guerra o da paz, e dirige a sua laboriosidade a impedir que se
destrua qualquer hipótese de mediaçom e de compromisso entre os dous momentos.
Na prática, a posiçom
de Croce permitiu os intelectuais italianos retomarem as relaçons com os
intelectuais alemáns, o que nom foi nem é fácil para franceses e alemáns;
portanto, a atividade crociana foi útil para o estado italiano no apósguerra,
quando os motivos mais profundos da história nacional levárom ao cessamento da
aliança militar franco-italiana e a umha deslocaçom da política contra a França
pola reconciliaçom com a alemanha. desta maneira Croce, que nunca se ocupou de
política militante num sentido partidário, converteu-se em ministro da educaçom
no governo Giolitti de 1920-21.
Mas acabou a guerra? e
o erro de elevar de forma indevida critérios particulares de política imediata
a princípios gerais, de dilatar as ideologias até filosofias e religions? Nom,
certamente; portanto, a luita intelectual e moral continua, os interesses
permanecem ainda vivos e atuais e nom é preciso abandonar a palestra.
a segunda questom é a
da posiçom ocupada por Croce no campo da cultura mundial. Croce ocupava, já
antes da guerra, um posto mui alto na estima dos grupos intelectuais de todos
os países. o que é interessante é que, nom obstante a opiniom comum, a sua fama
era maior nos países anglosaxons do que nos germánicos: as ediçons dos seus
livros, traduzidos para inglês, som inúmeras, mais do que para alemám e mais do
que em italiano. Croce, como se depreende dos seus escritos, tem um alto
conceito desta posiçom sua de líder da cultura mundial e da responsabilidade e
dos deveres que ela leva consigo. É evidente que os seus escritos pressuponhem
um público mundial de elite.
É preciso lembrar que
nos últimos anos do século passado os escritos crocianos de teoria da história
dérom as armas intelectuais aos dous máximos movimentos de «revisionismo» do
tempo, de eduardo Bernstein na alemanha e de sorel na França. Bernstein
escreveu ele próprio que fora induzido a reelaborar todo o seu pensamento
filosófico e económico depois de ler os ensaios de Croce157. o
íntimo vínculo de sorel com Croce era conhecido, mas até que ponto era profundo
e firme evidenciou-se especialmente com a publicaçom das cartas de sorel158,
quem se mostra com fre-
157 o trecho em que se
apoia G. é a carta de 9 de setembro de 1899 de G. sorel a Croce, na qual, entre
outras cousas, se lê: «Bernstein vient de m’ecrire qu’il a indiqué dans la «Neue Zeit», n. 46, qu’il avait été
inspiré, en une certaine mesure, par vos travaux» (La Critica, XXV, 5. 20 de setembro de 1927, p. 311). 158 Umha presa
de cartas dirigidas por sorel a Croce entre dezembro de 1895
quência intelectualmente subordinado a Croce de maneira
surpreendente.
todavia,
Croce levou ainda mais para além a sua ativida-
de revisionista, isso durante a guerra, e nomeadamente após
1917. a nova série de ensaios sobre a teoria da história começa após 1910 com a
memória Cronache, storie e false storie e
chega até os últimos capítulos da Storia
della storiografia italiana nel secolo XIX, aos ensaios sobre ciência
política e às últimas manifestaçons literárias, entre as quais a Storia dell’Europa, como se depreende
polo menos dos capítulos que lim. acho que Croce fai questom mais do que nada
nesta posiçom sua de líder do revisionismo e que entende que isso é o melhor da
sua obra atual. Numha breve carta escrita para o prof. Corrado Barbagallo e
publicada na Nuova Rivista Storica de
1928 ou 29159 (nom lembro com exatitude) di de forma explícita que
toda a elaboraçom da sua teoria da história como história ético-política (quer
dizer, toda ou quase toda a sua atividade de pensador em 20 anos) é dirigida a
aprofundar o seu revisionismo de há quarenta anos.
Queridíssima tania, se
noçons como estas podem ser úteis para o teu trabalho, di-mo e tentarei
desenvolvê-las algo mais. abraço-te com tenrura. antonio
•
e agosto de 1921, aparecêrom em La Critica, de 20 de janeiro de 1927 a 20 de maio de 1930.
159 as cartas som
duas: cfr. Nuova rivista storica,
XII, 1928, pp. 626-629; XIII, 1929, p. 130-133.
(Carta 108)
25 de abril de 1932 Queridíssima tania,
recebim os teus postais de 17 e de 22 de abril. recebim
também alguns livros, como me anunciaras. e entom, como che véu a tosse? aqui o
tempo continua a ser mui variável; se calhar estivo assim também em roma e
cuidarias pouco da tua saúde. estou contente com que a minha carta lhe chegasse
a delio; veremos se responde e se é possível, mesmo com tantas peripécias,
estabelecermos umha correspondência. ainda nom sei se as notas que escrevim
sobre Croce fôrom do teu interesse e se som conformes às necessidades do teu
trabalho: penso que deves dizir-mo e assim poderei guiar-me melhor. Para além
disso, considera que se trata de esboços e de ideias que teriam de ser
desenvolvidas e completadas. escrevo-che um parágrafo também desta vez; mais
tarde darás-lhe um jeito, da maneira que achares mais oportuna. em minha
opiniom, umha questom mui interessante é a referida às razons do grande sucesso
que tivo a obra de Croce, algo que nom acontece habitualmente aos filósofos
enquanto vivem e que nomeadamente nom se produz com muita frequência fora do
círculo académico. acho que umha das razons deve procurar-se no estilo. tem-se
dito que Croce é o maior prosador italiano após Manzoni160. acho que
a afirmaçom é verdade, com este matiz: que a prosa de Croce nom deriva da de
Manzoni, mas polo contrário dos grandes escritores de prosa científica, e
nomeadamente de Galilei. a novidade de
Croce, quanto ao estilo, está no campo da prosa científica,
na
160 Cfr. Benjamin Crémieux, Panorama de la littérature italienne contemporaine, Kra, Paris,
1928, pp. 190-191.
sua capacidade de exprimir com grande simplicidade e com
grande génio ao mesmo tempo, umha matéria que habitualmente, nos outros
escritores, se apresenta de maneira confusa, obscura, forçada, prolixa. o
estilo literário exprime um estilo adequado na vida moral, umha atitude que se
pode chamar goethiana, de serenidade, sobriedade, segurança imperturbável.
enquanto tanta gente perde a cabeça e abana entre sentimentos apocalípticos de
pánico intelectual, Croce converte-se num ponto de referência para atingir a
força interior, pola sua inabalável certeza de que o mal, do ponto de vista
metafísico, nom pode prevalecer e que a história é racionalidade. Cumpre
considerar, aliás, que para muitos o pensamento de Croce nom se apresenta como
um sistema filosófico denso e de difícil assimilaçom como tal. acho que a maior
qualidade de Croce foi sempre esta: fazer que circulasse, de umha maneira nom
pedante, a sua conceçom do mundo por meio de toda umha série de breves escritos
nos quais a filosofia se apresenta de maneira imediata e é assimilada como
bom-senso e sentido comum. desta maneira, as soluçons para tantas questons
acabam por circular convertidas em anónimas, penetram nos jornais, na vida
quotidiana e existe umha grande quantidade de «crocianos» que nom sabem que o
som e que talvez nem saibam que Croce existe. Igualmente, penetrou nos
escritores católicos umha certa soma de elementos idealistas, da qual procuram
libertar-se, mas sem consegui-lo, na tentativa de apresentarem o tomismo como
umha visom auto-suficiente e suficiente para as exigências intelectuais do
mundo moderno.
abraço-te com tenrura antonio
•
(Carta 109)
2 de maio de 1932 Queridíssima tania,
recebim três cartas, de 23, de 25 e de 27 de abril. Lim e
relim a carta de teu pai e as tuas extensas consideraçons, que em geral fôrom
exatas, em minha opiniom. existem, é claro, outros elementos da questom que che
escapam por necessidade, e que talvez sejam predominantes e decisivos na hora
de determinar o estado de confusom e de dolorosa impotência em que todas as
pessoas se debatem um pouco. Mas a maior dificuldade consiste no facto de nom
se saber por que parte começar para reagir com energia à situaçom e melhorá-la.
tu falas em energia, mais energia, sempre energia. Mas em roma, agora que o
penso, aplicando inclusivamente toda a tua energia, que poderias ter
conseguido? acharias-te nom com algo sólido e bem assente que se pode derrubar
claramente, ma sim com um estado de cousas gelatinoso, por assim dizer, que nom
resiste, mas que volta formar-se continuamente e é invencível. Umha vez
botache-me na cara em roma nom ter-che colocado a questom e nom ter procurado,
por assim dizer, fazer umha aliança entre nós para unirmos forças. se calhar
levavas razom e esse deveria ter sido o meu dever. Mas nom lhe dava entom a
mesma importáncia a muitas cousas a que agora lha dou, e depois acontecia-me
como a quem está no meio de um bosque, que só vê a árvore e nom o conjunto.
Muitas cousas pareciam-me mais traços pitorescos, interessantes do ponto de
vista estético, do que sintomas de um estado doentio. Vês que som mui sincero
contigo, e dou-che os elementos para me julgares de umha maneira também severa.
acho tenho atenuantes, no entanto, e o mais importante, para mim, é que vivim
sempre isolado, longe da família e polo contrário sentim sempre umha certa
intoleráncia pola vida familiar. Igualmente, estava convencido de ser um
hipercrítico, de ver a palha no olho do próximo e nom a trave no próprio e que
era portanto necessário da minha parte nom intervir, mas deixar que cada quem
desenvolvesse a sua vida de forma independente. agora nom sei o que fazer e por
que parte começar. agradeço-che por isso que me escrevesses, porque polo menos podo
orientar-me de maneira concreta, o que até agora nom era possível. Polo menos
de agora em diante nom hei de atirar pedras à toa, o que se calhar tem passado
nestes últimos tempos.
Nom sei se che darei
enviado o esquema prometido sobre os «intelectuais italianos». o ponto de vista
do qual observo a questom muda por momentos: talvez ainda seja cedo para
resumir e sintetizar. trata-se de umha matéria ainda em estado líquido, que
deverá submeter-se a umha elaboraçom posterior. Nom te metas na cabeça copiar
outra vez o «programa» para a publicaçom sobre italianos no estrangeiro: nom
penso que valha a pena, tanto mais que o Marzocco
já deu um resumo avondo preciso161. se puderes conseguir um
exemplar, bem; senom, paciência. Igualmente, nom tenho necessidade, certamente,
das obras de William Petty para o tema sobre as ideias económicas de
Machiavelli. a chamada é interessante, mas chega com a chamada162.
Polo contrário, dentro de algum
161 Cfr. Il Marzocco, XXXVII, 10, 6 de Marzo de
1932.
162 tatiana a G. no dia 27
de abril de 1932: «... Piero escreve que nom sabe absolutamente nada sobre o
pensamento económico de Machiavelli; o pouco que apreendera lendo o artigo de
arias indicado por ti parece confirmar, na opiniom dele, quanto digeche. Piero
acha que há grandes analogias com um economista inglês do XVII, William Petty,
a quem Marx chama o «fundador da economia clássica». as suas obras som
impossíveis de encontrar mas, se o desejares, talvez poda ser encontrada nas
livrarias a traduçom francesa das suas obras completas. Figemos que che
enviassem o artigo de arias, e que a
tempo, hei de pedir-che as obras completas do próprio
Machiavelli que, talvez lembres, che pedira quando ainda estava em Milám, mas a
publicaçom ainda nom saíra.
Podo estabelecer ainda
alguns pontos de orientaçom para um trabalho sobre o livro de Croce (que ainda
nom lim em livro); mesmo se estas notas forem um pouco desconexas, acho que che
poderám ser úteis na mesma. Pensa depois tu em organizá-las pola tua conta, em
funçom dos objetivos do teu trabalho.
aludim já à grande
importáncia que Croce concede à sua atividade teórica de revisionista e como,
com a sua aprovaçom explícita, toda a sua intensa obra pensador-ensaística
nestes últimos vinte anos estivo guiada polo objetivo de completar a revisom,
até convertê-la em liquidaçom. Como revisionista, contribuiu para suscitar a
corrente da história económico-jurídica (que, de maneira matizada, está
especialmente representada ainda hoje polo académico Gioachino Volpe); hoje deu
forma literária a essa história que ele chama de ético-política, da qual a Storia d’Europa deveria ser e converter-se em paradigma. em que
consiste a inovaçom fornecida por Croce, tem esse significado que ele lhe
atribui e especialmente, tem esse valor «liquidador» que ele pretende?
Concretamente, pode dizer-se que Croce, na atividade histórico-política, frisa
unicamente o momento que em política se chama da «hegemonia», do consenso, da
direçom cultural, para distingui-lo do momento da força, da coerçom, da
intervençom legislativa e estatal ou policial. Na verdade, nom se entende por
que Cro-
livraria che procure um livro de tangorra (citado por
arias) que contém um ensaio sobre M. economista. Parece que nom há mais (a
única chamada que se encontrou está em schmoller, Lineamenti di economia nazionale, trad. ital., vol.
I, p. 129, que alude a Machiavelli como a um
mercantilista)».
ce acredita na capacidade da sua versom da teoria da
história para liquidar definitivamente qualquer filosofia da praxe.
até
se deu que no mesmo período em que Croce ela-
borava a sua suposta maça, a filosofia da praxe, na obra
dos maiores especialistas modernos na matéria se trabalhava no mesmo sentido e
o momento da «hegemonia» ou da direçom cultural era revalorizada de um modo
preciso e sistemático, em oposiçom às visons mecanicistas e fatalistas do
economicismo. Pudo-se afirmar, polo contrário, que o traço essencial da mais
moderna filosofia da praxe consiste precisamente no conceito histórico-político
de «hegemonia». Por isso, penso que Croce nom está up to date com as pesquisas e com a bibliografia dos seus estudos
preferidos, ou que perdeu a sua capacidade de orientaçom crítica. Polo que
parece, as suas informaçons baseiam-se especialmente num célebre livro de um
jornalista vienense, Fülöp-Miller163. este ponto deveria ser
desenvolvido de maneira ampla e analítica, mas entom seria necessário um ensaio
mui extenso. Para o que che pode interessar, considero que chega com estas
noçons, que nom me seria fácil desenvolver de forma ampla.
Querida, abraço-te com tenrura. antonio
•
163 G. alude ao livro de r. Fülöp-Miller, Geist und Gesicht des Bolschevismus,
Darstellung und Kritik del kulturellen Lebens in Sowiet-Russland, amalthea
Verlag, Viena, 1926, do qual Croce resenhou em La Critica, XXIV, 5, 20 de setembro de 1926, pp. 289-291.
(Carta 110)
9 de maio de 1932
Queridíssima tania,
recebim um postal teu de 30 de abril e umha carta de 6 de
maio. Nom recebim o fascículo da Riforma
Sociale de setembro-outubro de 1931; igualmente, nom recebim nengum dos
livros encomendados na altura. Chegárom-me de forma sucessiva quatro volumes: a
ediçom do Principe de Machiavelli,
preparada por Luigi russo, a Autobiografia
escrita por Gandhi, com o prefácio
do senador Gentile, a Storia d’Europa, do
senador Croce, e um pequeno volume de história local genovesa, de Mario
Bettinotti, mas deles até agora só me entregárom o Principe.
o livro de Benco é a Storia del Piccolo di Trieste, editado
por treves-treccani-tuminelli — de emilio Zanella: Dalla barbarie alla civiltà nel Polesine, editado por «Problemi del Lavoro». dos outros
livros, avisa que nom enviem absolutamente nengum. de agora em diante, é
preciso ater-se absolutamente a esta norma; se necessitar algum livro,
indicarei-no eu próprio. Nestes últimos tempos, nom me entregárom os livros
enviados; para cada um deles devia fazer umha instáncia ao Ministério, cousa
absurda, para além de tediosa. Nom achas? escrevera-che que assinasses a Cultura, para o qual já obtivera a
licença; nom sei se assinache. Vim que agora se publica em 4 fascículos por ano
e que o primeiro fascículo de 1932 já saiu. Nom recebo notícias da casa desde
há mais de um mês e meio: recebim há quinze dias um postal de teresina com os
seus cumprimentos.
Visto que ainda nom lim
a Storia d’Europa nom che podo dar
nengumha ideia sobre o seu conteúdo real. Porém, podo ainda escrever-che
algumha observaçom superficial só em aparência, como verás. escrevim-che já que
todo o trabalho historiográfico de Croce nos últimos vinte anos foi dirigido a
elaborar umha teoria da história como história ético-política, em contraposiçom
à história económico-jurídica representada pola teoria derivada do materialismo
histórico, após o processo revisionista sofrido por ele, por obra do próprio
Croce. Mas a história de Croce é entom ético-política? em minha opiniom, a
história de Croce só pode ser chamada de história «especulativa» ou
«filosófica» e nom ético-política, e neste caráter seu, e nom no ser
ético-política, está a sua oposiçom ao materialismo histórico. Umha história
ético-política nom está excluída do materialismo histórico, na medida em que
ela é a história do momento «hegemónico», enquanto que está excluída a história
«especulativa», como qualquer filosofia «especulativa». Na sua elaboraçom
filosófica, Croce di ter querido libertar o pensamento moderno de qualquer
pegada de transcendência, de teologia, e portanto de metafísica num sentido
tradicional; seguindo esta linha, até chegou a negar a filosofia como sistema,
precisamente porque na ideia de sistema há um resíduo teológico. Mas a sua
filosofia é umha filosofia «especulativa», e como tal dá plena continuidade à
transcendência e à teologia com umha linguagem historicista. Croce está tam
imerso no seu método e na sua linguagem especulativa que só pode julgar em
funçom deles; quando escreve que na filosofia da praxe a estrutura é como um
deus oculto, isso seria verdadeiro se a filosofia da praxe fosse umha filosofia
especulativa e nom um historicismo absoluto, libertado certamente e nom apenas
de palavra, de qualquer resíduo transcendental e teólogico.
Ligada a este ponto
está outra observaçom que atinge mais de perto a conceçom e a composiçom da Storia d’Europa. Pode pensar-se umha
história unitária de europa que se inicie a partir de 1815, isto é, a partir da
restauraçom? se pode escrever-se umha história da europa como formaçom de um
bloco histórico, nom pode excluir a revoluçom francesa e as guerras
napoleónicas, que som a premissa «económica-jurídica» do bloco histórico
europeu, o momento da força e da luita. Croce assume o momento seguinte, no
qual as forças desencadeadas com anterioridade fôrom equilibradas,
«catartizadas», por assim dizer; deste momento fai um facto em si e construi o
seu paradigma histórico. o mesmo figera com a Storia d’Italia: ao começar a partir de 1870, ela desleixava o
momento da luita, o momento económico, para ser a apologética do momento puro
ético-politico, como se este tivesse caído do céu. Croce, naturalmente com
todas as sagacidades e a habilidade da linguagem crítica moderna, fijo nascer
umha nova forma de história retórica; a sua forma atual é precisamente a
História especulativa. Isso vê-se ainda melhor se for examinado o conceito
«histórico» que está no centro do livro de Croce, isto é, do conceito de
«liberdade»; Croce, em contradiçom consigo mesmo, confunde «liberdade» como
princípio filosófico ou conceito especulativo e liberdade como ideologia, quer
dizer, instrumento prático de governo, elemento de unidade moral hegemónica. se
toda a história é história da liberdade, quer dizer, do espírito que se cria a
si próprio (e nesta linguagem liberdade é igual a espírito, espírito é igual a
história e história é igual a liberdade), por quê a história europeia do século
XIX seria só história da liberdade? Nom será, por consequëncia, história da
liberdade em sentido filosófico, mas da autoconsciência desta liberdade e da
difusom desta autoconsciência sob a forma de umha religiom nas camadas
intelectuais e de umha superstiçom nas camadas populares que se sentem unidos a
esses intelectuais, que se sentem participantes num bloco político do qual
esses intelectuais som os porta-bandeira e os sacerdotes. trata-se portanto de
umha ideologia, isto é, de um instrumento prático de governo, e será preciso
estudar o nexo prático sobre o qual foi fundado. a «liberdade», como conceito
histórico, é a dialética mesma da história e nom tem «representantes» práticos
separados e caraterizados. a história era liberdade até nas satrapias orientais,
tanto é verdade que inclusivamente entom havia «movimento» histórico e aquelas
satrapias desabárom. em soma, considero que as palavras mudam, as palavras som
até bem ditas, mas as cousas nem sequer som rabunhadas.
Parece-me que a Critica fascista escreveu num artigo,
mesmo se nom de maneira explícita, a crítica justa, observando que dentro de
vinte anos Croce, ao ver o presente em perspetiva, poderá encontrar a sua
justificaçom histórica como processo de liberdade164. além disso, se
lembrares o primeiro ponto que escrevim para ti, isto é, as observaçons sobre a
atitude de Croce durante a guerra, compreenderás melhor o seu ponto de vista:
como «sacerdote» da moderna religiom historicista, Croce vive a tese e a antítese
do processo histórico e insiste numha ou noutra por «razons práticas», dado que
vê o porvir no presente e preocupa-se dele quanto do presente. a cada um a sua
parte: aos «sacerdotes» a de salvaguardar o amanhá. No fundo, há umha bela dose
de cinismo moral nesta conceçom «ético-política»; é a forma atual do
maquiavelismo.
abraço-te com tenrura. antonio
•
164 G. alude à resenha de Ugo d’andrea sobre a «storia
d’europa nel secolo XIX», aparecida na Critica
Fascista, X, 9, 1 de maio de 1932, pp. 166-169, intitulado La storia e la libertà.
(Carta 111)
23 de maio de 1932 Queridíssima tania,
recebim o teu postal de 17 e a carta de 19. as notícias que
che deu Carlo sobre as minhas condiçons de saúde som pouco claras; nom tivem
ataques graves de ácido úrico, mesmo se é claro que a persistência do catarro
intestinal deve estar relacionada com um excesso de acidez. Mas desde há algum
tempo sofria de insónia, se se pode dizer assim; mais exatamente, nom durmo;
nom porque nom tenha sono, mas porque o sono é interrompido por causas externas165,
e isso produziume um estado de grande cansaço e esgotamento, que se mostrava
mesmo exteriormente, se é que Carlo reparou nele. a questom é complexa, e
poderei-che falar dela se vires à conversa. sobre a data da tua chegada, nom
tenho particulares desejos; deves escolher tu o momento que che convenha de
qualquer ponto de vista. Lim com grande interesse a carta de teu pai: é mui
aliciante e cheia de observaçons estimulantes para a reflexom. Quanto ao que
dis de que podia escrever-lhe, nom opino como tu. seria-me difícil explicar-che
exaustivamente o porqué; nom gosto de escrever certas cousas numha carta do
carcere.
Nom me dixeche a tua
opiniom sobre as notas escritas a propósito de Croce; em conjunto, fôrom-che
úteis? seja como for, deves ter presente que nom podem ser completas e
165
«G.
ocupava a primeira cela do corredor do primeiro andar, aquela por onde passava,
de dia e de noite, toda a gente para as outras seçons. somente quando estava de
serviço algum guarda menos zeloso que os demais se limitava um pouco o
tránsito, era menos barulhento, e Gramsci tinha menos problemas.» Cfr. Giovanni
Lay, «Colloqui con Gramsci nel carcere di turi», Rinascita, núm., 20 de fevereiro de 1965.
nom podiam tocar alguns pontos que também seria necessário
tratar; e que, mesmo assim como estám, sofrêrom umha mutilaçom voluntária.
afinal recebim os livros encomendados há tanto tempo. Porém, nom recebim o
número da Riforma Sociale de
setembro-outubro de 1931; igualmente, faltou-me o número de abril de 1932 dos Problemi del Lavoro, que me farás o
favor de reclamar. (Nem recebim o 1° fascículo do ano da Cultura). se che coincidir de escrever a Piero, conta-lhe que num
trecho de um capítulo do recente livro de silvio d’amico, Certezze166, num capítulo dedicado a spielberg fala-se
numha petiçom de clemência enviada por Federico Confalonieri ao imperador de
áustria, conservada precisamente no Museu italiano do mesmo spielberg. d’amico
nom reimprime esta súplica, mas fai alusons indirectas a ela, como a do escrito
de um homem reduzido ao máximo grau de desánimo e de depressom. talvez Piero
saiba se este escrito de Confalonieri foi já imprimido nalgumha publicaçom
sobre Confalonieri167. acho que nunca ouvim mencioná-lo.
Queridíssima, podes enviar-me mais umha vez sais de Hunt? Já nom podo passar
sem tomá-los e quase esgotei as reservas. experimentei a interromper o uso, mas
as moléstias reproduzírom-se depressa.
abraço-te com tenrura. antonio
166
Cfr.
o capítulo «Visita a spielberg» no citado livro de d’amico. Na página 212, está
a alusom à «suplica dirigida ao próprio Francisco I polo conde Confalonieri de
Milám»; «...este escreve ao emperador como um homem roto, pedindo graça e
piedade». G. pretende com esta chamada fazer entender que se nega completamente
a dirigir umha petiçom de clemência às autoridades, a fim de obter a
excarceraçom.
167
as
três súplicas de Confalonieri fôrom publicadas apenas em 1942, em ediçom de
renzo U. Montini, na Rassegna storica del
Rissorgimento, XXIX, I, janeiro-fevereiro de 1942, pp. 83-90.
(Carta 112)
6 de junho de 1932
Queridíssima tania,
recebim
a tua carta de 30 de maio. Conseguim também o pacote que continha as amostras
dos medicamentos. tomei já o sedosine, mas devo dizer que nom me produz nengum
efeito relevante. tomei algumha vez o somatose, mas ainda nom de maneira
regular: realmente, nom sei como fazer, porque o alimento que recebo nom se
presta a ser misturado com um preparado assim. Procurarei engoli-lo diluído
simplesmente em água fria, mas nom tenho a certeza de que dessa maneira seja
eficaz: por acaso, é necessário introduzi-lo em líquidos quentes?
asseguro-che
que nom tenho nengum escrúpulo em cha-
mar as cousas polo seu nome: chamo-as
como sei e podo. o catarro intestinal nom sei chamá-lo de outro jeito que
assim. desta maneira, é justo que nom seja insónia «orgánica» o que nom me
deixa dormir; acho nom ter dormido, mesmo se se chamar «insónia», nom deve
tratar-se sempre como insónia. acho é melhor nom obstinar-se nas palavras; o
importante é entender e penso que entendeche de que se trata. — Pido-che
também para este trimestre que começa no primeiro de julho que
assines Il Corriere della Sera.
Porém, desta vez pido-che que envies 17 liras, em lugar de 14,50, e que
especifiques que se deseja também o número da segunda-feira. Lendo
melhor a brochura das assinaturas que me enviárom, com vista ao vencimento
trimestral, vim que se pode assinar também o número da segunda-feira, o
qual nom aparecia no cabeçalho do jornal. envio-che o impresso do talom
da conta corrente, com o qual se pode enviar desde roma a soma sem os
custos dos portes.
Procurarei responder as
outras questons que me colocas a propósito de Croce, embora nom entenda bem a
importáncia disso e até creio ter-lhes dado já resposta nas notas anteriores.
relê o ponto em que mencionas a atitude mantida por Croce durante a guerra e
olha se de maneira implícita nom se contém a resposta a umha parte das tuas
perguntas atuais. a rutura com Gentile produziu-se em 1912, e é Gentile quem se
separou de Croce, procurando tornar-se filosoficamente independente. Nom penso
que Croce mudasse a orientaçom desde aquele tempo em diante, embora definisse
melhor as suas doutrinas; umha mudança mais notável é a acontecida desde 1900 a
1910. a chamada «religiom da liberdade» nom é um achado destes anos, é o resumo
numha fórmula drástica do seu pensamento de sempre, desde o momento em que
abandonou o catolicismo, como ele mesmo escreve na sua autobiografia
intelectual (Contributo alla critica di
me stesso). Nem sequer nisto vejo que Gentile nom concorde com Croce. acho
que dás umha interpretaçom inexata à formula «religiom da liberdade» já que lhe
concedes um conteúdo místico (igualmente, poderia acreditar-se polo facto que
mencionas um «refúgio» nesta religiom e portanto numha espécie de «fuga» do
mundo, etc.). Nada disso. religiom da liberdade significa simplesmente fé na
civilizaçom moderna, que nom precisa transcendências e revelaçons, mas que
contém em si própria a própria racionalidade e a própria origem. É, portanto,
umha fórmula antimística e, se quigeres, antirreligiosa. Para Croce, qualquer
visom do mundo, qualquer filosofia, em tanto se converte numha norma de vida,
numha moral, é «religiom». as religions no sentido confessional som também elas
«religions», mas «mitológicas», portanto num certo sentido «inferiores»,
primitivas, quase correspondentes com umha infáncia histórica do género humano.
as origens de semelhante doutrina estám já em Hegel e em Vico e som património
comum de toda a filosofia idealista italiana, quer de Croce quer de Gentile.
sobre esta doutrina assenta a reforma escolar gentiliana, nomeadamente ao
ensino religioso nas escolas e que também Gentile queria que estivesse limitado
unicamente às escolas infantis (a verdadeira infáncia) e que em qualquer caso,
nem sequer o Governo quijo que fosse introduzida no ensino superior.
Igualmente, creio que
talvez exageres a posiçom de Croce no momento presente, considerando-o mais
isolado de quanto esteja. Nom é preciso deixar-se enganar pola efervescência
polémica de escritores mais ou menos inexperientes e irresponsáveis. Croce expujo
umha boa parte das suas atuais conceçons na revista Política, dirigida por Coppola e polo ministro rocco, e nom apenas
Coppola, acho eu, mas muitos outros estám convencidos da utilidade da posiçom
adotada por Croce, que confiava que a situaçom fazia possível a adequaçom real
à vida estatal dos novos grupos dirigentes emergidos no após-guerra. se
estudares toda a história italiana de 1815 em diante, verás que um pequeno
grupo dirigente conseguiu absorver metodicamente no seu círculo todo o pessoal
político que os movimentos de massa, de origem subversiva, expressavam. de 60
ao 76, o Partido de açom, mazziniano e garibaldino, foi absorvido pola
Monarquia, deixando um resíduo insignificante que sobreviveu como Partido
republicano, mas que tinha um significado mais folclorístico do que
histórico-político. o fenómeno foi chamado de «transformismo», mas nom se
tratava de um fenómeno isolado; era um processo orgánico que substituía, na
formaçom da classe dirigente, o que na França acontecera na revoluçom e com
Napoleom, e na Inglaterra com Cromwell. Com efeito, também após 1876 o processo
continua, de forma capilar. adquire um alcanço imponente no após-guerra, quando
parece que o grupo dirigente tradicional nom é capaz de assimilar e digerir as
novas forças expressadas polos acontecimentos. Mas este grupo dirigente é mais malin e capaz do que se podia pensar: a
absorçom é difícil e gravosa, mas acontece contudo, por muitas vias e com
diferentes métodos. a atividade de Croce é umha destas vias e destes métodos; o
seu ensino talvez produza a maior quantidade de «sucos gástricos» aptos à obra
de digestom. situada numha perspetiva histórica, da história italiana,
naturalmente, a laboriosidade de Croce apresenta-se como a mais potente máquina
para «conciliar» as forças novas com os interesses vitais (nom apenas
imediatos, mas também futuros) que o grupo dominante possui e que eu penso que
aprecia justamente, apesar de algumha aparência superficial. Quando se fusionam
corpos diferentes, dos quais se deseja obter umha liga, a efervescência
superficial indica precisamente que a liga se está a formar, e nom ao
contrário. Para além disso, nestes feitos humanos a concórdia apresenta-se
sempre como discors [sic]168, como umha luita e umha discussom e nom
como um abraço teatral longo e repetido. Mas é sempre concórdia e da mais
íntima e factual.
Queridíssima, abraço-te com tenrura. antonio
Fum eu que risquei a parte relativa ao jornal. suspende a
assinatura, isto é, nom a renoves em absoluto.
•
168 discórdia.
[N. do T.]
(Carta 113)
27 de junho de 1932
Queridíssima Iulca,
recebim os teus folhetos, datados em messes e dias
diferentes. as tuas cartas lembrárom-me um conto de um escritor francês pouco
conhecido, Lucien Jean, acho, que era um pequeno funcionário numha
administraçom municipal de Paris. o conto intitulava-se Un uomo in un fosso169. tento lembrarme dele. Um homem
bebera muito umha noite: talvez bebera demasiado, se calhar a visom continuada
de lindas mulheres o alucinara um pouco. depois de sair do local de encontro,
depois de ter caminhado um pouco em zigue-zague polo caminho, caiu num fosso.
estava mui obscuro, o corpo ficou-lhe preso entre pedras e silvas; estava um
pouco assustado e nom se moveu, por medo a cair ainda mais para o fundo. as
silvas recompugérom-se sobre ele, as lesmas passavam-lhe por cima
esbranquiçando-o (até um sapo se lhe pousou sobre o coraçom, sentindo o batido;
na realidade, porque o considerava ainda vivo). Passárom as horas; chegou a
manhá e as primeiras luzes do abrente, começou a passar gente. o homem pujo-se
a pedir ajuda. achegou-se um senhor de óculos; era um cientista que tornava a
casa, depois de ter trabalhado no seu laboratório experimental. Que tem o
senhor? perguntou. — Queria sair do fosso, respondeu o homem. — ah, ah! Querias
sair do fosso! e que sabes tu da vontade, do livre arbítrio, do servo arbítrio!
Querias, querias! sempre a idêntica ignoráncia. sabes apenas umha cousa: que
estavas de pé por causa das leis da
169 o conto de Lucien Jean (pseudónimo de Lucien
dieudonné), 1870-1908, fora publicada por G. no semanário L’Ordine Nuovo, 6-13 de dezembro de 1919.
Lucien Jean pertence à chamada «escola proletária» da
literatura francesa.
estática, e que caíche por causa das leis da cinemática.
Que ignoráncia, que ignoráncia! — e afastou-se abanando a cabeça, todo
indignado. — sentírom-se outros passos. Novas invocaçons do homem. achegou-se
um labrego, que levava da trela um porco para a feira, e fumava o cachimbo: ai,
ai. Caíche no fosso, eh? Bebeche avondo, passache-lo bem e caíche no fosso. e
por quê nom foche dormir, como figem eu? — e afastou-se, com o passo compassado
polo cuinhar do porco. e mais tarde passou um artista, que se lamentava porque
o homem queria sair do fosso: estava tam lindo, todo esbranquiçado polas
lesmas, com umha auréola de ervas e flores silvestres baixo a cabeça, era tam patético!
e passou um ministro de deus, que se puxo a imprecar contra a depravaçom da
cidade que se divertia ou dormia quando um irmao caíra no fosso. exaltou-se e
saiu às carreiras para fazer um terrível sermom na próxima missa. desta
maneira, o homem permaneceu no fosso até que nom enxergou ao seu redor, viu com
exatitude onde caíra, torceu-se, curvou-se, fijo palanca com os braços e com as
pernas, pujo-se em pé, e saiu do fosso com as suas únicas forças.
Nom sei se gostache do
conto nem se é mui ajeitado. Mas polo menos em parte penso que sim: tu mesma
escreves que nom lhe dás a razom a nengum dos dous médicos que consultache
recentemente, e que se até agora deixavas decidir aos outros, agora queres ser
mais forte. Nem sequer considero que haja um pouco de desespero nestes
sentimentos: penso que som bem sensatos. É preciso queimar todo o passado e
reconstruir toda umha vida nova: nom é preciso deixar-se esmagar pola vida
vivida até agora, ou polo menos é preciso conservar dela apenas aquilo que foi
construtivo e mesmo bonito. É preciso sair do fosso e deitar fora o sapo do
coraçom.
Cara Iulca, abraço-te com tenrura.
antonio
(Carta 114)
18 de julho de 1932
Queridíssima Iulca,
tivem duas cartas tuas, de 24 de junho e de 3 de julho. Nom
estivem mui bem nos últimos tempos (de um ano a esta parte, isto acontece um
pouco mais amiúde do que antes) e nom tenho a disposiçom para escrever-che com
um pouco mais de vagar. No entanto, quero dizer-che que as tuas últimas cartas
me dérom um pouco de felicidade: até opino que te figeche mais forte e mais
segura de ti mesma. estou contente também porque já nom estás obcecada com o
tratamento psicanalítico, que até onde podo opinar, em base aos meus
conhecimentos, me parece demasiado imbuído de charlatanaria e capaz, sempre que
o médico assistente consiga vencer em pouco tempo a resistência do sujeito e
que com a sua autoridade o arranque à depressom, de agravar as doenças nervosas
em lugar de curálas, sugerindo ao doente motivos de novas inquietudes e de
redobrado marasmo psíquico. Querida, penso que a tua mae, ao expressar que
devias «chegar a ser um elefante», demonstrou ser o médico mais seguro e mais
fiável. Fai-me feliz o que me escreves sobre Giuliano e das suas perguntas
sobre o meu conto, mas isso fai-me pensar ainda nisso que che escrevim noutra
ocasiom, que para as crianças devo ser um pai misterioso, que sempre lhes está
longe e que nunca se ocupa com elas, a diferença do que fam os outros. apesar
de tudo, penso que isso deve lançar um certo véu de sombra no seu ánimo,
nomeadamente no de Giuliano, se ele for algo tímido e fechado como tu o
descreves. abraço-te com tenrura. antonio
•
(Carta 115)
1 de agosto de 1932 Queridíssima Iulca,
recebim a tua carta de 15 de julho. agradeço o teu escrever
frequente. recebim as fotografias dos meninhos e de ti, que me ajudam a
imaginar de umha forma algo mais concreta a vossa vida e a fantasiar menos. a
tua última carta deu-me também umha prova de que as tuas condiçons de saúde
melhorárom; quigem relê-la, mesmo como um «relatório»... médico e constatei que
nom há nem um erro de ortografia e de língua em geral. Isso quer dizer que o
teu italiano é ainda sólido e que o teu processo de formaçom das ideias voltou
a ser límpido e claro, sem dúvidas, arrependimentos ou indecisons, como nom
parecia ser dantes, polo menos algumhas vezes.
Lembras-te ainda de
quando che contara a história dos sapos que se pousam sobre o coraçom dos
adormecidos no campo? Fai precisamente aproximadamente 10 anos: quantas
patranhas che tenho contado naquele mês passado no sanatório! Quando escrevia o
continho do homem no fosso, tornoume à memória improvisadamente, e lembrei-me
de que che ficara impresso na altura com um acompanhamento de sensaçons
cómicas.
também
o que escreves sobre delio e Giuliano e das suas
inclinaçons fijo com que lembrasse que alguns anos atrás
acreditavas que delio tinha muita inclinaçom pola engenharia construtiva,
enquanto hoje parece que essa é a inclinaçom de Giuliano, e delio dirige-se
antes à literatura e à construçom... poética. Na verdade, digo-che que nom
acredito nestas inclinaçons genéricas tam precozes e que tenho pouca confiança
na tua capacidade de observar as suas tendências para umha orientaçom
profissional. acho que em cada um deles subsistem todas as tendências, como em todas
as crianças, quer seja para a prática quer para a teoria ou a fantasia, e que
seria justo, nesse sentido, guiá-los polo contrário para umha temperança
harmoniosa de todas as faculdades intelectuais e práticas, que já terám maneira
de se especializarem ao seu tempo, sobre a base de umha personalidade
vigorosamente assente, num sentido unánime e integral. o homem moderno deveria
ser umha síntese daqueles que som... hipostasiados como carateres nacionais: o
engenheiro americano, o filósofo alemao, o político francês, os quais recriam,
por assim dizer, o homem italiano do renascimento, o tipo moderno de Leonardo
da Vinci convertido em homem-massa ou homem coletivo, mesmo se mantenhem a sua
forte personalidade e originalidade individual. Umha cousa de nada, como vês.
tu querias chamar Leo a delio; por quê nom pensamos em chamá-lo Leonardo?
Pensas que o sistema educativo dalton170 pode produzir Leonardos,
nem que seja como síntese coletiva? abraço-te. antonio
•
(Carta 116)
22 de agosto de 1932
Queridíssima mae,
Ha muito tempo que ninguém me escreve e por isso nom tenho
notícias tuas. Há algumhas semanas, tatiana fijo-me chegar algumhas fotografias
dos filhos de teresina, das quais gos-
170 o sistema educativo
dalton, que toma o nome da homónima cidade americana, é um método pedagógico
ideado por Helen Parkhurts e difundido principalmente na Inglaterra. Conforme
este método, a escola divide-se em obradoiros, onde cada aluno pode trabalhar
livremente de acordo com os seus gostos (talha, cerámica, carpintaria, etc.).
tei muito. É verdade que Mimma se parece muito com emma
quando era pequena. Para além disso, é surpreendente como estas crianças tenhem
as feiçons da família (também delio e Giuliano tenhem muito marcadas estas
feiçons); parece que vejo rostos já vistos tantas vezes e que afloram na
lembrança a tantos anos de distáncia. diddi parece-me que se parece muito com a
teresina, tal como era quando morávamos ainda em sorgono171 e íamos
à escola infantil das monjas; porém, nom é crespo e loiro como era teresina. a
última fotografia de delio que recebim deu-me a impressom de ver outra vez o
Mario quando tinha oito anos; igualmente, Giuliano tem umha carinha que me
lembra nas feiçons generais de Nannaro e nomeadamente as do tio alfredo172,
que para dizer a verdade, nom me foi nunca mui simpático, embora se pareça
tanto aos da casa (a diferença de tio Cesare que parecia de outra família). Mas
talvez sejam impressons superficiais devidas à sugestom, mais do que a outra
cousa. Mas por que nom deixaches que se retratasse no grupo das crianças a
outra figura? devia tratarse de Paolo, penso. espero as tuas notícias. anima a
teresina e Grazietta a que me escrevam.
abraço-te afetuosamente. antonio
•
171 Vila de sardenha onde a
família de G. morou durante certo tempo e onde nascérom Mario, teresina e
Carlo.
172 tio alfredo, e mais
adiante tio Cesare, eram irmaos do pai de G.
(Carta 117)
29 de agosto de 1932 Queridíssima tania,
recebim a tua carta de 24 com a carta de Giulia.
reflexionei muito no que escreveche a propósito da hipótese de conseguires para
mim umha visita exaustiva por um médico de confiança. acho que em linhas gerais
as tuas consideraçons som justas, e que o projeto é digno de tomar em
consideraçom. eis o meu ponto de vista: cheguei a um ponto tal que as minhas
forças de resistência estám para desabar completamente, nom sei com quais
consequências. Nestes dias sinto-me tam mal como nunca estivem; desde há mais
de oito dias nom durmo mais de três quartos de hora por noite, e durante noites
inteiras nom fecho olho. É bem certo que se a insónia forçada nom é causa em si
mesma de alguns males específicos, agrava-os de tal maneira e acompanha-os com
tais mal-estares concomitantes, que o conjunto da existência chega a ser
insuportável, e qualquer saída, mesmo a mais perigosa e acidentada chega a ser
preferível à continuaçom do estado presente. todavia, antes de entrar no
caminho por ti proposto, quero ainda fazer umha tentativa perante o senhor
diretor do cárcere e se for necessário perante o senhor juiz de vigiláncia,
para ver se é possível obter que sejam retiradas as condiçons que causam o
atual estado de cousas. Isso nom é absolutamente impossível, e preferiria-o
para evitar as despesas notáveis que a visita de um médico de confiança leva
consigo. de resto, mesmo um médico assim nom poderia nom chegar à conclusom de
as minhas condiçons desastrosas serem devidas em grande parte à falta de sono,
polo qual a questom se apresentaria nestes termos e neles seria preciso
resolvê-la, polo menos inicialmente. tratase de adiar, na pior das hipóteses, a
realizaçom da tua proposta para o mês de setembro. em finais de setembro terei
de chegar forçosamente a umha conclusom, se nom quiger tolear, ou entrar numha
fase que nem eu mesmo sei imaginar, tam exausto como estou. acredita que nom
podo mesmo mais, e assustame o feito de estar a perder o controlo dos meus
impulsos e dos instintos elementares do caráter. Por isso, a tua proposta é
para ser considerada: podes aperfeiçoá-la, fixando os seus pormenores e dando,
se calhar, os passos necessários para ver quanto se há de gastar e quem pode
ser o médico para escolher, porque acho que na instáncia em que se pida a
autorizaçom para a visita será preciso incluir o nome com todos os seus dados.
Queridíssima, abraço-te com tenrura. antonio
•
(Carta
118)
5 de setembro de 1932 Queridíssima Iulca,
retomo a tua carta de 14 de agosto. Isso que escreves sobre
Leonardo da Vinci nom me parece nem justo nem exato; provavelmente, tiveche bem
poucas ocasions de ver o Leonardo como artista e ainda menos de o conhecer como
o escritor e como cientista. Mas é inexato, com certeza, o juízo que me
atribuis, segundo o qual «ter amor por um escritor ou outro artista nom é o
mesmo que estimá-lo». Nunca pudem escrever semelhante... banalidade; teria-me
afastado dela, se nom outra cousa, a lembrança de um certo número de obras
teatrais inspiradas polo filisteísmo universal, em que estes temas do «amor sem
estima» e da «estima sem amor» encontrárom toda umha série de aplicaçons à vida
conjugal. se calhar, distinguim o prazer estético e o juízo positivo da beleza
artística, isto é, o estado de ánimo de entusiasmo pola obra de arte como tal,
do entusiasmo moral, isto é, da participaçom no mundo ideológico do artista,
distinçom que me parece criticamente justa e necessária. Podo admirar
esteticamente Guerra e Paz de tolstoi
e nom partilhar a substáncia ideológica do livro; se os dous factos
coincidissem, tolstoi seria o meu vademecum, le livre de chevet. o mesmo pode dizer-se de shakespeare, de Goethe
e mesmo de dante. Nom seria exato dizer o mesmo de Leopardi, apesar do seu pessimismo.
em Leopardi encontra-se, em forma extremamente dramática, a crise de transiçom
para o homem moderno; o abandono crítico das velhas concepçons transcendentes
sem que se encontrasse ainda um novo ubi
consistam moral e intelectual, que desse a mesma certeza do que se
abandonou.
relativamente
à próxima recuperaçom da tua atividade,
os conselhos que che podo dar som bem escassos e genéricos.
todavia, julgo que podem ser de algumha utilidade, se te decidires a segui-los.
Penso que se nom trata de leres este ou aquele livro, quanto de teres um rumo e
portanto de te propores determinados objetivos. os objetivos que poderias e
deverias propor-te, para utilizares umha parte nom indiferente das tuas
atividades no passado, em minha opiniom, seriam estes: chegares a ser umha
tradutora de italiano cada vez mais qualificada. eis o que entendo eu por
tradutora qualificada: nom apenas a capacidade elementar e primitiva de
traduzir a prosa da correspondência comercial ou de outras manifestaçons
literárias que se podem ressumir no tipo de prosa jornalística, mas a
capacidade de traduzires qualquer autor, seja literato, ou político, ou
historiador ou filósofo, das origens até hoje, e portanto a aprendizagem das
linguagens especializadas e científicas e dos significados das palavras
técnicas segundo as diversas épocas. e nom chega ainda: um tradutor qualificado
deveria ser capaz nom apenas de traduzir literalmente, mas de traduzir os
termos, também concetuais, de umha determinada cultura nacional para os termos
de umha outra cultura nacional, isto é, um tradutor assim deveria conhecer
criticamente duas culturas e ser capaz de fazer conhecer umha à outra,
servindo-se da linguagem historicamente determinada dessa cultura à qual
fornece o material de informaçom. Nom sei se me expliquei com clareza
suficiente. No entanto, penso que um trabalho semelhante mereceria ser feito,
ou melhor, mereceria empenhar nele as forças todas. acrescento que seria mui
feliz se te dedicasses a ele de maneira sistemática e continua, com a finalidade
de atingires o máximo de qualificaçom, a especializaçom. Queridíssima Iulca,
abraço-te com tenrura. antonio
•
(Carta 119)
12 de setembro de 1932 Queridíssima mae,
recebim umha carta de Grazietta de 24 de agosto com
notícias sobre a colheita e sobre a casa nova para a que foi morar teresina.
Lembro mui bem o pátio, onde eu jogava com Luciano, e a pia onde fazia manobrar
as minhas grandes frotas de papel, de cana, de férula e de cortiço, e onde
depois as destruía a golpes de schizzaloru173.
Lembras quanta habilidade tinha para reproduzir a partir das ilustraçons os
grandes navios a vela e
173 Schiazzaloru,
em sardo, é um rudimentário fuzil de ar comprimido, construído com umha póla de
sabugueiro.
como conhecia toda o vocabulário marinheiro? Falava sempre
em brigues, xavecos, três mastros, schooners,
em amuradas e em velachos, conhecia todas as fases das batalhas navais do
Corsário Vermelho e dos tigres de Mompracem174, etc. só lamentava
que Luciano possuísse umha simples robusta barquinha de lata pesada que em
quatro movimentos afundia e batia com o esporom os meus galeons mais elaborados
e com todo um complicado aparelho de pontes e de velas. todavia, orgulhava-me
muito da minha capacidade construtiva, e quando o latoeiro que tinha a loja na
esquina onde começavam as casas baixas do lado da igreja, me pediu que lhe
figesse um modelo de grande veleiro para o reproduzir em lata em série,
orgulhei-me mesmo de colaborar como engenheiro em semelhante construçom.
Queridíssima mae,
sempre esqueço pedir-che informaçons sobre o filho do geómetra Porcelli,
Giacomino, que de rapazinho era tam afeiçoado a mim e ao meu falcom e queria
estar sempre na minha companhia. Há um Giacomo Porcelli175, católico
mui combativo, que escreve livros e artigos sobre a literatura francesa; é o
mesmo? Com certeza, seus tios ham de saber. Mas quem sobrevive de toda a
família Corrias?
Fai que escrevam um
pouco mais amiúde. Por que teresina nom me enviou a carta tantas vezes
prometida?
abraço-te afetuosamente junto a todos os da
casa. antonio
174 Personagens dos
romances de aventuras de emilio salgari.
175 Giacomo Porcelli, uns
dez anos mais jovem que G., ia por volta de 1906 onda os Gramsci jogar com os
rapazes. entre 1925 e 1926 escreveu, com efeito, alguns artigos e resenhas de
livros de escritores católicos e publicou um volume sobre La letteratura italiana nella critica francese durante la Monarchia di
Luglio (1830-1848), Vallecchi, Florença, 1926.
Um beijo especial para Franco, que na carta de Grazietta
engadiu os seus cumprimentos.
•
(Carta 120)
3 de outubro de 1932 Querida tatiana,
recebim o teu postal de 29 de setembro. Nom me satisfijo em
absoluto. até há algum tempo, esperar cartas e correspondência era a minha
maior felicidade. em todos este anos, foche a minha correspondente mais assídua
e diligente: estava sempre seguro de que cada semana, polo menos, nom havia
faltar um postal teu. Mas agora quase que tenho medo de receber a tua
correspondência. Há alguns messes, e precisamente na primeira quinzena de
julho, escrevim-che umha série de cartas mui breves e recomendei-che que
tratasses só nas tuas cartas assuntos familiares. Certamente nom reflexionache
sobre este facto e nom foche capaz de tirar dele nengumha conclusom para o teu
comportamento. repensando nestes dias as cousas passadas, convencim-me de que
quando Giulia me escrevia duas ou três cartas por ano, sempre iguais,
estereotipadas e nas quais se sentia o embaraço e o esforço, devia-se só
parcialmente à sua doença; devia-se certamente a umha proposta que lhe figeras
em relaçom a mim, que era desonrosa para mim e que ela tinha todas as razons
para julgar que se devia à minha iniciativa. Como explicar de outra maneira
certas expressons suas recentes, sibilinas, em que reconhece que fora injusta
nas suas opinions sobre mim? Querida tatiana, querote muito, e sei que nestes
anos me ajudache como ninguém a superar as crises periódicas que o cárcere,
agravando a minha neurasténia habitual, me fijo atravessar. Mas devo dizer que
a tua atitude, relativamente à vida de todos estes anos, áspera e dura, é a
atitude que se pode extrair da leitura da Biblioteca rosa de Madame de ségur;
és de um otimismo assombroso, as tuas hipóteses som sempre aquelas que
gostarias que se realizassem e conservache umha ingenuidade e umha frescura
sentimentais encantadoras e que enternecem; enternecêromme também a mim nos
anos que passamos amiúde juntos, conversando e discutindo, apesar de ter sempre
acreditado, pola experiência da infáncia, que estava imunizado contra tais
«debilidades». todavia, apesar de todo isto, apesar de a minha tenrura por ti
ser imutável, devo pedir-che que modifiques completamente as nossas relaçons,
visto que queres continuálas nestas condiçons. Nom deves interessar-te mais, de
maneira nengumha, pola minha vida no cárcere e deves modificar consequentemente
a tua correspondência neste sentido, se a nom quigeres interromper de todo.
Pido-che que nom discutas este desejo meu, porque me veria forçado a devolver
as tuas cartas ou postais. e pido-che também que nom tenhas a mal quanto che escrevo.
se um dia podemos voltar-nos a ver em condiçons de igualdade, quer dizer, sendo
eu livre, acho talvez que che farei chorar; mas nom penso que a hipótese seja
mui provável. Já sei o que vas objetar-me; é perfeitamente inútil que me fagas
o catálogo das tuas boas intençons; como di o provérbio «de bons propósitos
está o inferno cheio». Para além disso, nom deves acreditar que tenha intençom
de suicidar-me ou de abandonar-me, como um peixe morto, ao fio da corrente. som
responsável por mim mesmo desde há muito tempo e som-no desde criança. Comecei
a trabalhar aos onze anos, ganhando bem 9 liras por mês (o que por outro lado
significava um quilo de pam por dia) por dez horas de trabalho cada dia,
incluída a manhá do domingo, e passava o dia a remover montes de papel que
pesavam mais do que eu e muitas noites chorava às agachadas porque me doía todo
o corpo. Quase sempre conhecim apenas o aspeto mais brutal da vida e safei-me
sempre, bem ou mal. Nem minha mae conhece a minha vida toda e as adversidades
que passei: a ela lembro algumhas vezes a pequena parte que em perspetiva
parece agora cheia de felicidade e de despreocupaçom. adoçam-lhe agora a
velhice porque lhe fam esquecer as adversidades bem mais graves e as amarguras
bem mais profundas polas que ela passou na mesma época. se ela souber que eu
conheço todo o que conheço e que aqueles acontecimentos me deixárom cicatrizes,
envenenaria-lhe estes anos de vida nos quais é bom que esqueça e que, vendo a
vida alegre dos netinhos que tem à volta, confunda as perspectivas e pense
realmente que as duas épocas da sua vida som umha e a mesma. Querida tatiana,
abraço-te afetuosamente. antonio
•
(Carta 121)
10 de outubro de 1932 Queridíssimo delio,
soubem que estiveche na praia e que viche cousas bem
bonitas. eu gostava de que me escrevesses umha carta para descrever-me essas
belezas. Conheceche daquela algum novo ser vivo? Perto do mar existe todo um
fervilhar de seres: caranguejos, medusas, estrelas-do-mar, etc. Há muito tempo
prometera-che escrever algumhas histórias sobre os animais que conhecim quando
criança, mas depois nom pudem. agora vou tentar contar-che algumha: —1° Por
exemplo, a história da raposa e do poldrinho. sei que a raposa sabe quando vai
nascer um poldrinho, e anda à espreita. e a égua sabe que a raposa anda à
espreita. É por isso que, assim que o poldrinho nasce, a mae se pom a correr em
círculo em volta do pequeno, que nom pode mover-se nem escapar no caso que
algum animal selvagem o ataque. Contudo, algumhas vezes som vistos polos
caminhos da sardenha cavalos sem cauda e sem orelhas. Por quê? Porque, assim
que nascêrom, a raposa, de umha maneira ou de outra, conseguiu achegar-se e
comeu-lhes a cauda e as orelhas, ainda mui tenros. Quando era criança um cavalo
destes trabalhava para um velho vendedor de azeite para candeias e de petróleo,
o qual ia de aldeia em aldeia vendendo a sua mercadoria (nom havia entom
cooperativas nem outras maneiras de distribuir as mercadorias), mas aos
domingos, para que os fedelhos nom se mofassem, o vendedor punha ao seu cavalo
cauda e orelhas postiças. —2° agora vou-che contar como vim a raposa pola
primeira vez. Com meus irmaos fum um dia a um campo de umha tia, onde havia
dous enormes carvalhos e algumhas árvores frutais; tínhamos que fazer a
colheita das landras para dar de comer a um bacorinho. o campo nom estava longe
da aldeia, mas na redonda todo estava deserto e havia que descer até o vale.
Mal entrámos no campo, eis que baixo umha árvore estava tranquilamente sentada
umha raposa grande, com a linda cauda erguida como umha bandeira. Nom se
assustou em absoluto; reganhou os dentes, mas parecia que risse, nom que
ameaçasse. Nós crianças encolerizavamo-nos com a raposa, porque nom nos tinha
medo; nom tinha nengum medo. Guindamos-lhe pedras, mas ela pouco se apartava e
recomeçava a olhar-nos burlona e sorrateira. Punhamo-nos bastons às costas e
fazíamos todos juntos: bum!, como se fossem tiros de espingarda, mas a raposa
reganhava os dentes sem incomodar-se demasiado. de repente, sentírom-se tiros
de espingarda a sério, disparados por alguém nas proximidades. só entom a
raposa deu um chimpo e escapou rapidamente. Parece-me vê-la ainda, tam amarela,
correr como um lóstrego sobre um valado, sempre com a cauda erguida,
desaparecendo numha bouça. Queridíssimo delio, conta-me agora as tuas viagens e
as novidades que viche. Beijo-te junto a Giuliano e a mamae Iulca. antonio
•
(Carta 122)
17 de outubro de 1932 Queridíssima Grazietta,
o postal de Mea do 9 calmou um pouco a impressom que me
causara a tua carta de dia 7. Mas nom tivem entretanto mais notícias.
Pediria-che que me mandasses um postal cada dous ou três dias. Mesmo se Carlo
me escreveu há algum tempo tempo para avisar-me da sua viagem a Ghilarza e se
me pujo em guarda contra o teu pessimismo e alarmismo exagerados, a tua carta
deu-me a impressom de que se trata de algo mui sério e mui perigoso. Querida
Grazietta, sabes que nunca fum mui expansivo com ninguém. Gostava por isso de
que nom te enganasses nem sobre os meus sentimentos nem sobre a sua força. a
ideia de que nossa mae poda estar moribunda176 enquanto nom podo
saber nada preciso e já nom podo voltar a vê-la, obceca-me e persegue-me em
todo momento, dia e noite. Lembro-a nos seus momentos de maior energia e força,
176 a mae de G. morrerá no dia 30 de dezembro, mas
ocultarám-lhe a notícia durante muito tempo.
vejo novamente com nitidez tantas cenas da nossa vida
familiar de outrora, e nom me dou convencido de que poda estar acabada como tu
escreves, e que ela mesma sinta que está para nos deixar. Nem sei sequer se
poderás fazer-lhe sentir o muito que a quigem sempre, e como umha das maiores
amarguras da minha vida, a qual tivo tanta importáncia na formaçom do meu
caráter, fosse precisamente ver como a sua existência nom tivo nunca sossego,
como a sua vida estivo privada de satisfaçons e de paz duradoiras. escreve-me
depressa. abraçote fraternalmente. antonio
•
(Carta 123)
24 de outubro de 1932 Queridíssima Iulca,
recebim as tuas cartas de 5 e de 12 de outubro, com a
cartinha de Julik e as três fotografias, das quais gostei muito. acho é a
primeira vez que dou reparado no físico de Giuliano, embora as fotografias nom
sejam tecnicamente satisfatórias. e acho que Giuliano é um meninho bem lindo,
mesmo de umha maneira objetiva: isso parece, em minha opiniom, principalmente
naquela onde está retratado em grupo, perto de ti, que porém nom saiche bem.
alegra-me que quigesse escrever-me; nom sei que responder-lhe, no que di
respeito à minha fotografia. Nom terás por acaso umha fotografia minha? É
verdade que desde entom mudei muito, e acho que dar-lhe umha fotografia de há
dez anos é enganar o meninho. agora tenho muitos cabelos brancos e a falta dos
dentes deve ter modificado muito as minhas feiçons (nom podo julgar com
certeza, porque desde há 4 anos e meio nom me vejo no espelho e precisamente
nestes anos devo ter mudado muito). Interessoume o que escreveche sobre o delio
estudante, da sua seriedade interior, que nom está separada de um certo amor
pola alegria. sinto com pungente pesar ter sido privado da participaçom no desenvolvimento
da personalidade e da vida das crianças; contudo, tornaria-me amigo das
crianças depressa e conseguiria interessar-lhes. Lembro-me sempre da netinha da
minha senhoria em roma; tinha 4 anos e tinha um nome bem difícil, tomado da
onomástica turca. Nom abria a porta do meu quarto, aonde se achegava às
escondidas, porque a avó lhe dixera que nom devia incomodar-me, já que sempre
estava a escrever. Petava mui devagar, timidamente, e quando eu perguntava:
«Quem é?» respondia: «Escleves?
Queres jogar?», depois entrava, punha a bochecha para que a beijasse, e queria
que lhe figesse passarinhos ou desenhos estranhos obtidos a partir das pingas
de tinta lançadas a caso sobre o papel. Queridíssima, abraço-te forte. antonio
•
http://estaleiroeditora.blogaliza.org/files/2011/08/cartas_do_carcere_gramsci_pant.pdf