Cartas do Cárcere 93 a 123

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(Carta 93)

14 de dezembro de 1931 Queridíssima tania,
só na quinta-feira recebim a tua carta de 3 de dezembro, que chegou taxada, nom sei por que razom, mas provavelmente por excesso de peso. das tuas fotografias, no conjunto, gostei muitíssimo; no entanto, gostaria de ter algumha mais recente, como me tinhas prometido, porque nom nos vemos desde há já perto de um ano e meio, e gostaria de ter noçom das tuas condiçons de saúde atuais. Porém, nom penses que poda haver nisto umha petiçom implícita para vires no Natal a turi, como escreves que che propujo Carlo. Penso que farias mal em fazer essa viagem longa e incómoda e, portanto, se for possível, seria bom que dissuadisses o Carlo. Naturalmente, estaria mui contente de te ver, como podes imaginar, mas nom acho prudente gastar tanto e submeter-se a tantas fadigas por meia hora de conversa. Por vezes, estas conversas deixam mais umha sequela de amargura do que a breve felicidade de se ver. espero que a esta hora tenhas recebido o resto das minhas cartas; escrevim-che cada semana pontualmente e escrevim também para Giulia. se calhar nom gostas das minhas cartas a Giulia; nem sequer eu gostei delas, mas tenho a impressom de que se figera necessário escrever o que escrevim, o que corresponde perfeitamente com a verdade (a verdade dos meus sentimentos, do meu estado de ánimo). tu escreves, por exemplo, que nom me dirija às crianças, etc. Na verdade, som mesmo incapaz, de um ponto de vista psicológico, de me relacionar com elas, porque nom conheço nada concreto da sua vida e do seu desenvolvimento. Com certeza, conheço melhor os filhos de teresina, que me escrevêrom algumhas vezes e sobre os quais teresina me informa bastante, para que eu, conhecendo o quadro geral da sua vida por experiência direta, poda manter umha correspondência. No entanto, imagino que para delio e Giuliano devo ser umha espécie de holandês voador, que por razons impenetráveis nom pudo ocupar-se deles e participar da sua vida: como poderia escrever o holandês voador? e além disso, repugna-me o ofício de fantasma.
Querida tania, há algumhas encomendas que pido para me fazeres com muita exatitude e precisom. Chegou a resposta à instáncia que figera ao Chefe do Governo, a propósito das revistas e de umha série de livros. a resposta nom é completa. di que podo ler, para já, as revistas italianas que assinei, mais duas que nom assinei —L’Educazione Fascista e La Cultura—, mas que pugera na listagem, porque de quando em vez recebia algum número delas, hipótese que queria conservar. Com respeito às revistas estrangeiras e para os livros, a resposta nom menciona nada; isto faria supor, para já, um suplemento de resposta ao respeito, que poderia ser favorável, mas que poderia também nom sê-lo. Nestas condiçons é preciso advertir à livraria: 1° que é necessário renovar a assinatura só para as revistas italianas já em curso; — 2° que nom é preciso mandar, nem como amostra, números de revistas italianas e ainda menos estrangeiras, que de todas maneiras nom me seriam entregues. 3° que, quando menos de forma provisória, seria melhor nom mandar-me sequer livros nom italianos.
Lembra, se ainda nom o figeche, que nom recebim o fascículo de Pegaso do passado novembro, e fai que mandem os fascículos de novembro e dezembro de L’Educazione Fascista, onde se publicou o balanço do Congresso dos Institutos Fascistas de Cultura que quero ler. Manda, por favor, a carta registada. se me forem concedidas as revistas estrangeiras, haverá tempo para assinar: na dúvida é melhor abster-se.
Mando-che o módulo do serviço das contas correntes postais do Corriere della Sera para renovares a assinatura que caduca em 31 de dezembro: podes renová-la para três messes ou para seis, mas nom mais de seis messes. Querida tania, abraço-te afetuosamente antonio
Podes mandar para Giulia também esta parte da carta, para além da sua parte.

(Carta 94)

14 de dezembro [de 1931]
Queridíssima Iulca,
recebim a tua breve carta de 21 de novembro. tania falou-me da carta que lhe escreveche e dessa maneira a tua breve carta adquiriu maior sentido, perdendo a sua abstracçom e vaguidade. Numha carta anterior, mencionavas que querias começar a estudar, e que pediras a opiniom à doutora, que nom tinha sido favorável. Permite que, com umha certa pedanteria, che faga umha proposta prática, que che apresente, por assim dizer, algumhas das minhas «reivindicaçons» (penso que no caso de um preso pode falar-se em «reivindicaçons», nas relaçons com as pessoas livres, dado que a condiçom do preso, historicamente, se relaciona com a escravitude do período clássico; na Itália, galera e ergastolo, empregadas por cárcere, indicam esta filiaçom de umha maneira evidente). Visto que tencionas estudar, podo entender algumhas cousas: que queres aprofundar num tema especializado qualquer, ou que queres adquirir o «hábito científico», isto é, estudares para dominar a metodologia geral e a ciência epistemológica (olha que palavras pedantes!). Por que nom ias poder entom estudar algo que justamente também me interessa a mim, chegando a ser a minha correspondente em matérias de interesse para ambos, visto que som o reflexo da atual vida intelectual de delio e Giuliano? em resumo, desejaria (—a modo geral de primeira reivindicaçom—) ser informado sistematicamente do quadro científico em que se desenvolve a escola ou as escolas frequëntadas por Giuliano e delio, para ser capaz de compreender e valorizar as escassas mençons que fás por vezes. a questom escolástica interessa-me muitíssimo e interessa-che muito também a ti, porque escreves que 60% das vossas conversas giram em volta da escola das crianças. expores de maneira ordenada e coerente as tuas impressons propositadamente é «estudar»: porá-che novamente em condiçons de readquirir, após a doença, o domínio da tua vontade científica e das tuas faculdades de análise e de crítica. Naturalmente, deverias fazer um autêntico trabalho, e nom só escrever cartas: quer dizer, começar um inquérito, tomar apontamentos, organizar o material recolhido e expor os resultados com ordem e coerência. seria mui feliz, com umha felicidade própria de pedantes, é verdade, mas nom por isso desprezável.
É muito interessante, por exemplo, saber como foi incluido no programa da escola primária o princípio das brigadas de assalto e dos «recantos especializados», e qual é o fim pedagógico que se propom atingir. Pode criar dúvidas sobre se isso acelera de maneira artificial a orientaçom profissional e disfarça as inclinaçons das crianças, fazendo perder de vista o fim da escola única: conduzir as crianças para um desenvolvimento harmónico de todas as atividades, até que a personalidade formada ponha em relevo as inclinaçons mais profundas e permanentes, nascidas no nível superior de desenvolvimento de todas as forças vitais, etc., etc. Poderia, por exemplo, contar para delio as minhas experiências infantis sobre os seres vivos: ou parecerám-lhe contos que tenho visto as lebres a dançar (ou a saltar, embora o povo veja nisso umha dança) baixo a lua, ou a família do ouriço (ouriço, «ouriça» e «ouricinhos») ir na procura de provisons de maçás no luar outonal? Que significado tem o recantinho dos animais136? Lim que 70% das crianças das grandes cidades americanas nom sabem o que
136 Cfr. nota de rodapé nº 142.
é umha vaca e que levam de passeio as vacas numha gaiola, como antano os ursos e os símios na Itália: terá nas escolas americanas a vaca num recantinho?
Querida Iulca, abraço-te forte forte junto às crianças.
antonio

(Carta 95)

28 de dezembro de 1931 Queridíssima tania,
recebim a tua carta de 23 de dezembro, onde me informas da tua correspondência com Carlo a propósito da nossa viagem a turi. acho que figeche mal ao acabares de persuadir o Carlo para que viajasse: seria demasiado longo, e também algo difícil e embaraçoso, explicar-che todos os motivos desta afirmaçom. assim, é absurdo que venhas a turi precisamente neste Inverno. se esta carta che chegasse com tempo, pido-che mesmo de coraçom que interrompas qualquer preparativo, que escrevas para Carlo para fazer que renuncie ao seu propósito e que aguarde outra ocasiom em que a viagem se poda fazer com mais comodidade.
Figeche bem em assinar novamente o Corriere della Sera. da Gazzetta del Popolo é inútil ocupar-se; assinar dous jornais acho que nom se pode, ou quando menos penso que seria necessário fazer umha petiçom ao Ministério, algo que nom quero fazer, tendo ainda umha petiçom em pendência. Para além disso, convencim-me de que assinar dous jornais seria perfeitamente ocioso. Pode ser que a Gazzetta del Popolo melhorasse, é tudo relativo: deveu melhorar especialmente no relativo à colaboraçom literária e de variedade; no entanto, do ponto de vista do equipamento jornalístico (serviços, informaçons, etc.), nom é, certamente, superior ao Corriere, cujos defeitos devem ser umha doença orgánica de todo o jornalismo atual. a falta de organicidade nas informaçons, falar em acontecimentos fazendo referência a antecedentes que já fôrom fornecidos, como se o leitor devesse conhecê-los (isto é, supor que o leitor lê vários jornais, ou que lê jornais estrangeiros), a ausência de comentários dos feitos de maior importáncia, como a transformaçom da Banca Comercial ou a criaçom de Crédito Mobiliário137, limitando-se a reproduzir os comentários e as informaçons dos jornais estrangeiros, nom podem ser apenas deficiências do Corriere. de que serviria entom ter um outro jornal, que nom seria senom umha cópia piorada e incorreta do Corriere? só para ler alguns artigos da terceira página? Nom valeria a pena.
sinto nom poder escrever para a minha mae. ela anun-
ciara-me que para a vigília de Natal receberia um pacote polo trem, mas o pacote nem deu chegado sequer hoje, apesar de estarmos já a 28. e digo-che que quando lim que se pugeram a sério e que queriam fazer as cousas à grande e que mesmo se lhes metera nos miolos que havia chegar para a véspera de Natal, pensei que já nom chegaria a tempo. Na verdade, devias conhecer como som os da minha casa: fam sempre um feixe de projetos, de cábalas, de grandes preparativos, e depois esquecem algo essencial que malogra todos os projetos bem pensados. Isso até nas pequenas cousas; fala-se com vagar e com muita antecedência, tudo é analisado de maneira ideal,
137 o Istituto Mobiliare Italiano. o estado adquiriu a totalidade da carteira de açons industriais do Banco Comercial Italiano. o I.M.I., criado em novembro de 1931, é umha entidade financeira destinada a salvar empresas industriais em perigo.
sopesado, discutido como se tratasse de negócios de estado, pedem-se opinions, consultam-se horários, catálogos, etc. Quando era um rapaz divertia-me mofando-me desta maneira de fazer e de obrar, e irritava a todos: acabava por litigar com todos. Poderia-che contar histórias bem simpáticas. o meu pai e os meus irmaos pensavam que tinham grandes capacidades comerciais para os negócios; faziam sempre grandes castelos no ar e criticavam a falta de espírito de iniciativa do resto de sardos. Naturalmente, nengumha das suas iniciativas corria bem, e a culpa era sempre dos outros, como se estes «outros» nom tivessem existido também antes e nom devessem ter sido tomados em consideraçom antes de começar. No entanto, lamento nom poder escrever que recebim o pacote o dia de Natal; se tivesse sabido o que continha, teria escrito que o recebim e que gostei muito disto e daquilo, estou certo de que os faria mui felizes, podo imaginar-me a cena. Quem sabe como se desiludirá a mae quando souber que o seu plano nom tivo sucesso. tanto mais quando eu che pedira que renunciasses e lhes deixasses fazer a eles por esta vez. Queridíssima tania, abraço-te com tenrura.
antonio

(Carta 96)

8 de janeiro de 1932 Queridíssima teresina,
recebim a tua carta de 14, com a carta de Franco, os seus desenhos a cores e a cartinha de diddi e Mima. agradeço-lho a todas as crianças e nem sei imaginar que cousa podo fazer para demonstrar-lhes o meu afeto. Pensarei-no e procurarei inventar para eles algo feito por mim, porque de outra maneira nom seria justo e nom teria nengum significado. talvez faga assim: traduzim do alemám, como exercício, umha série de contos populares138, justamente como aqueles de que gostávamos tanto quando éramos crianças, e que realmente se parecem em parte com eles, visto que a origem é a mesma. som um pouco antiquados, próprios da aldeia, mas a vida moderna, com a rádio, o aeroplano, o cinema sonoro, Carnera, etc., nom penetrou ainda o suficiente em Ghilarza como para que o gosto das crianças de agora seja mui diferente do nosso por aquela época. tentarei copiá-los novamente num caderno e enviá-los, se me for permitido, como um contributo meu para o desenvolvimento da fantasia dos miúdos. talvez o leitor deva pôr um chisco de ironia e de compaixom quando as apresente aos ouvintes, como homenagem à modernidade. Mas como é que esta se apresenta? Haverá cabelos à la garçonne, imagino, e cantará-se a «Valencia» e às mantilhas das mulheres madrilenas, mas subsistirám ainda tipos à antiga, como tia alene e Corroncu, e os contos terám ainda um ambiente adequado. Para além disso, nom sei se o lembras: eu dizia sempre, quando criança, que teria gostado de ver a tia alene em bicicleta, o que demonstra que nos divertíamos contrastando os trogloditas
138 trata-se de nove contos dos irmaos Grimm.
com a modernidade relativa de entom, o qual, mesmo estando para além do nosso ambiente, aquilo nom deixava de resultarnos simpático e de causar sensaçons agradáveis em nós.
Manda-me mais notícias da mae, que abraçaria tanto, junto a todos os da casa. antonio

(Carta 97)

8 de fevereiro de 1932 Queridíssima tania,
recebim a tua registada de dia 2, com as cartas de Giulia. responderei para a Giulia na próxima segunda-feira. espero receber entretanto a tua traduçom da carta de delio; em relaçom a isto, quereria advertir-che de que ponhas, entre parênteses, o nome russo dos passarinhos e dos peixinhos de que ele fala, para que nom aconteça nas minhas cartas o que aconteceu com a carta de delio, isto é, que Giulia nom saiba traduzir por sua vez os termos italianos. Nom se deve excluir, também, que se trate de variedades locais, com nome intraduzível para outras línguas; por isso, que os dicionários nom te confundam demasiado, e contenta-te, quando a encontrares, com a indicaçom genérica da espécie; o importante é nom confundires as ordens no tamanho, quer dizer, falar de umha carriça como se fosse umha águia e vice-versa. estou ansioso por ler a carta de delio: conseguirá estabelecer umha correspondência constante, incluindo-me entre os interesses concretos e vivos da sua existência?
Lim com interesse o trecho de Piero sobre a nossa discussom, um pouco incoerente e pouco delicada, sobre os chamados «dous Mundos»139 (fai-me lembrar o Herói dos dous Mundos e aproximaçons semelhantes do período romántico oitocentista: mesmo a Revista dos Dous Mundos foi fundada em 1830!). Já que lhe mostrei as minhas cartas e que o informei entom dos termos gerais da nossa controvérsia, agradecia-che que me figesses saber da sua opiniom a propósito disso. Nom acredito que concorde nem com os velhos rabinos nem com os jovens sionistas, mas penso que aceita a existência, polo menos até certos limites, dos famosos «dous Mundos». as suas observaçons, embora objetivamente interessantes, nom me parecem completamente exatas. Nom creio que esteja justificada a inferência pola qual existe «de maneira evidente» a tendência para «fazer novamente dos judeus umha comunidade isolada»; esta tendência parece que é antes «subjetiva» dos velhos rabinos e dos jovens sionistas. os judeus, a seguir à concordata, venhem a encontrar-se objetivamente na situaçom dos protestantes, mas existe, ou existirá, umha
139               Cfr. Cartas 86 e 87. Na sua carta de 2 de fevereiro de 1932, tatiana transcrevera para G. o seguinte trecho de umha carta que lhe mandara sraffa algum tempo antes: «Quanto à questom dos dous Mundos, sem voltar a colocá-la em seu nome, você poderia dizer-lhe que lim a sua carta e que aquilo que ele di sobre os judeus na Itália nom é inteiramente exato a dia de hoje. Por umha parte, após a concordata, obtivérom certas vantagens como comunidades religiosas, sob a forma de certo reconhecimento jurídico das universidades israelitas, com poder para imporem contribuiçons aos seus membros, etc.; todos os velhos rabinos e os jovens sionistas estám mui satisfeitos com isso. de outra parte, veem-se excluídos, de facto, se nom de iure, de certos ofícios; por exemplo, é notório que os judeus nom entram na academia da Itália (alguns fascistas, com sona internacional, fôrom excluídos); e também fôrom excluídos da Cámara dos deputados, onde o único judeu é olivetti, secretário da Confederaçom da Indústria; e acho que desde há muitos anos nom som nomeados senadores, embora se diga que proximamente se fará umha exceçom com Monpurgo, das Assicurazioni Generali, por motivos especiais. Umha e outra tendência, mesmo se aparantemente opostas, encaminham-se evidentemente a converter de novo os judeus numha comunidade isolada.»
categoria social que se encontrará numha situaçom bem triste, em comparaçom com os judeus e os protestantes, e será (ou é já) a dos padres despadrados e a dos frades desfradados, que serám excluídos por isso dos empregos estatais, quer dizer, serám degradados como cidadaos: que fosse possível instituir juridicamente umha categoria tal de marginados sociais, penso que é bem mais importante que nom a situaçom jurídica dos judeus e dos protestantes, a quem concedêrom prerrogativas jurídicas tudo o contrário de degradantes, no espírito da lei. Nom excluo que umha tendência antisemita poda nascer ainda; nom vejo que exista hoje. as indicaçons contrárias podem explicar-se por outras razons, e de resto, equilibram-se com outros factos nom menos significativos. Mas em minha opiniom o facto importante é este: que umha parte dos judeus aprova determinadas medidas contra outros judeus. o professor Levi-Civita, da Universidade de roma, tivo desgostos porque nom frequëntava as solenidades religiosas oficiais, mas os desgostos procurou-lhos o reitor del Vecchio, também ele judeu: tratava-se pois, nom de umha questom de raça, mas de umha questom política: um membro da classe dominante deve render homenagem ao catolicismo instrumentum regni, sem importar a fé que ele tenha. desta sorte, nom é conclusiva a amostra tomada da academia ou do Parlamento: estám fora e ficarám fora cientistas de fama mundial nom judeus. em minha opiniom, a posiçom assumida por teodoro Mayer no Crédito Mobiliário140 é também ela significativa. em muitos casos, julgo que nom é o judaísmo o que conta, mas o judaísmo-maçonaria, isto é, o facto de que a maçona-
140               teodoro Mayer (1860-1942), de origem judeu, fundador em 1881 de «Il Piccolo» de trieste, além de senador e ministro de estado, foi nomeado em novembro de 1931 presidente do Istituto Mobiliare Italiano.
ria era certamente umha instituiçom em que havia muitos judeus.
Queridíssima, abraço-te com tenrura.
antonio

(Carta 98)

15 de fevereiro de 1932 Queridíssima tania,
recebim um postal teu de dia 12, mas nom recebim o outro postal que mencionas. também nom escrevo esta semana para Giulia, por várias razons: porque nom me sinto mui bem e nom dou juntado como gostaria o curso dos meus pensamentos e porque nom dou encontrado a atitude mais oportuna e a mais proveitosa no que di respeito à sua posiçom e o seu estado psicológico. acho isto tudo terrivelmente difícil e complexo; procuro o fio à meada, mas nom sei apanhá-lo, e nom tenho a certeza de o achar. Quero falar um pouco contigo destas cousas, para que tentes ajudar-me. Certamente, deveria escrever-che um volume inteiro para recolher todos os elementos necessários (extraídos, contudo, apenas em base às minhas impressons e às minhas experiências, que só podem ser parciais), mas fará-se o que se puder. a minha impressom central é esta: que o sintoma mais grave das condiçons de desequilíbrio psíquico da Giulia nom som os factos, mui vagos, que ela refere, e que seriam a razom do tratamento psicanalítico, quanto o facto de ela recorrer a este tratamento e que confie tanto nele. Nom tenho, é claro, conhecimentos vastos e precisos da psicanálise, mas polo pouco que estudei julgo que podo chegar a conclusons, ao menos nalguns pontos que podem considerar-se firmemente assumidos pola teoria psicanalítica, depois de ser desfolhada de todos os elementos fantasmagóricos e mesmo da bruxaria. acho o ponto mais importante é este: o tratamento psicanalítico pode aproveitar só àquela parte da sociedade que a literatura romántica chamava de «humilhados e ofendidos», muito mais numerosos e variados do que parece tradicionalmente, isto é, aproveita àquelas pessoas que, presas polos duros contrastes da vida moderna (por falar apenas na atualidade, mas todo tempo tivo umha modernidade em oposiçom a um passado), nom conseguem encontrar polos próprios meios umha razom aos contrastes mesmos, nem conseguem portanto superá-los, como nom alcançam umha nova serenidade e tranquilidade moral, isto é, um equilíbrio entre os impulsos da vontade e as metas a atingir. em determinados momentos históricos e em determinados ambientes, a situaçom chega a ser dramática, como quando o ambiente é sobreaquecido até umha tensom extrema, desencadeando-se forças colectivas gigantescas que pressionam a cada indivíduo até o espasmo, obtendo dele o máximo rendimento de impulso volitivo para a criaçom. estas situaçons chegam a ser desastrosas para os temperamentos mui sensíveis e refinados, enquanto som necessárias e indispensáveis para os elementos sociais atrasados, por exemplo os labregos, cujos nervos robustos podem distender-se e vibrar a um diapasom mais alto sem se consumirem.
se calhar contei-che algumha vez a surpresa experimen-
tada no sanatório de serebriani Bor, onde conhecim Genia e Giulia, a causa do espectáculo de doentes que chegavam em condiçons de extremo deperecimento, e que após 3 ou 4 messes de umha nutriçom medíocre, mas superior ao nível normal da sua existência, e de repouso, aumentavam de 16 a
18 quilos de peso, renasciam, voltavam a ser capazes de umha nova e alta tensom vital. No entanto, estas pessoas nom tinham em si nem umha réstia de fanatismo romántico, ou polo menos de umha certa classe de fanatismo romántico: estavam moralmente saos e equilibrados, nom se colocavam problemas insolúveis para desesperarem mais tarde por nom poder resolvê-los, desesperando-se consigo mesmos e desesperando das próprias forças, ao se julgarem ineptos, abúlicos, sem personalidade, em soma «cuspindo-se encima», como se di na Itália. em minha opiniom, Giulia, especialmente, sofre «problemas insolúveis», irreais, combate contra fantasmas criados pola sua fantasia desordenada e febril, e dado que, como é natural, nom pode resolver por si mesma aquilo que nom tem soluçom possível para ninguém, necessita apoiar-se numha autoridade externa, num bruxo ou num médico psicanalítico. Portanto, acho que umha pessoa com cultura (no sentido alemao da palavra), um elemento ativo da sociedade, como é certamente Giulia, e nom apenas por razons oficiais, porque no seu saquinho tenha um cartom que a supom socialmente ativa, deve ser e é o único e melhor médico psicanalítico de si próprio. Que significa, por exemplo, o que ela escreve, ou seja, que deve estudar, etc.? todas as pessoas devem estudar, sempre, e melhorarem-se a si próprias, teoricamente e profissionalmente, mediante o exercício de umha atividade produtiva; por que acreditar que isto é um problema pessoal, um sinal da própria inferioridade? todas as pessoas elaboram e desfazem o novelo cada dia da própria personalidade e o próprio carácter, luitam com instintos, impulsos, tendências inferiores e antisociais e conformam-se a um nível colectivo de vida sempre superior. Nom há nisso nada de excecional, de individualmente trágico. todas as pessoas apreendem dos seus próximos e afins, cedem e vencem, perdem e ganham, esquecem e acumulam noçons, traços e costumes. Giulia escreve que hoje nom se defenderia mais de um possível influxo intelectual e moral meu, e por isso sente-se mais unida a mim. Mas eu também nom acredito que no passado se defendesse na medida e do jeito dramático que ela pensa. e, de resto, sei que nom me defendim eu do seu influxo e, ao mesmo tempo, nom melhorei e nom mudei eu mesmo em contato com a sua personalidade? Nunca teorizei e nom me angustiei por este processo em mim próprio, mas nom por isso o processo se verificou no meu benefício.
Querida tania, nom divago mais. seja como for, acho que che dei algum elemento para escrever e para me ajudares a encontrar um fio. se achares oportuno, podes mandar esta carta para Giulia; talvez poda ser umha primeira resposta, de maneira indireta. recebim há pouco a tua carta de dia 12, com a traduçom da carta de delio. responderei na próxima segunda-feira. Gosto da carta.
abraço-te antonio

(Carta 99)

22 de fevereiro de 1932 Queridíssima tania,
recebim as tuas duas cartas de 12 e de 16 de fevereiro141. respondo também para a delio, como vês. se calhar, estendimme a mais: tenho de elaborar um estilo para lhe escrever, para nom cansar-me.
141               da carta de tatiana de 16 de fevereiro de 1932: «transmitim a Piero as tuas últimas observaçons sobre a nossa controvérsia. de resto, devo lembrar-che
Visto que a Critica Fascista, que continuei a receber directamente de roma, nom foi enviada por conta da Livraria, terei de fazer que a devolvam. de facto, recebim também o exemplar da Livraria junto com as outras revistas. Quem sabe como se fijo este envio: se calhar, algum redator da Critica Fascista fai parte da secretaria do Chefe do Governo e ao ter visto a minha instáncia, pensou em fazer-me mandar a revista, já que pedia poder assiná-la.
Isso que escreves sobre o meu esquema a respeito do canto de Farinata, fijo-me lembrar que de facto pudem ter falado disso com alguém em passados anos. Lembro agora que a primeira vez que pensei nessa interpretaçom foi ao ler o difícil trabalho de Isidoro del Lungo sobre a Cronaca fiorentina de dino Compagni142, onde del Lungo estabelecia pola primeira vez a data da morte de Guido Cavalcanti. Mais recentemente, e doutro ponto de vista, repensei essa ideia, ao ler o livro de Croce sobre a Poesia di Dante, onde o episódio de Cavalcanti é mencionado de umha maneira tal que se entende que nom tivesse em conta o «contraponto» de Farinata. Lembro também que Calosso escreveu um estudo sobre o Canto décimo do Inferno, publicado no Giornale dantesco143, mas já nom lembro
 que agora que mandache o esquema do teu trabalho sobre Farinata, deverias pôr-te a escrever o esquema (nom menos de 50 páginas!) da tua história dos intelectuais italianos. e se 50 páginas forem demasiadas, começa por mandarnos umha primeira entrega de 10 páginas. o professor nom respondeu ainda a propósito do teu estudo dantesco. ao teu continho de «dona Bisódia», derivada de dona nobis hodie, Piero sraffa acrescenta um comentário, sugerido por um amigo piemontês: em Piemonte dim bisódia por beata, evidentemente com a mesma origem.»
142               del Lungo, Dino Compagni e la sua cronica, I-III, Le Monnier, Florença, 1879-1887, vol. I, pp. 187-188, 1111-1115, II, p. 98.
143               Umberto Calosso, «Guido Cavalcanti nel X Canto dell’Inferno», Il Giornale dantesco, vol. XXIII, 1915, pp. 236-252.
o seu conteúdo; porém, parece-me que podo excluir que ali se aludisse à ideia por mim mencionada. No entanto, reparei em que tenho esquecido algumhas cousas que a tua carta me tornou à memória. além disso, a cousa nom tem muita importáncia, dado que nunca pensei em converter-me num «dantista» nem em fazer grandes descobertas hermenêuticas neste campo. Contudo, é algo que me serve como um teste: é evidente que nom devo confiar demasiado na memória, na qual se manifestárom tantas lacunas.
relativamente às notinhas que escrevim sobre os intelec-
tuais italianos, nom sei mesmo por que parte começar: estám espalhadas por um feixe de cadernos, misturadas com outras notas várias, e em primeiro lugar deveria reuni-las todas juntas para ordená-las. este trabalho pesa-me muito, porque mui frequentemente tenho hemicrânias que nom me permitem a necessária concentraçom: na prática, a cousa é também mui fadigosa polo jeito e as restriçons em que é preciso trabalhar. se puderes, manda-me cadernos, mas nom esses que me enviache há algum tempo, que som incómodos e grandes a mais: deverias escolher cadernos de formato normal, como esses escolares, e com poucas páginas, no máximo 40 ou 50, de maneira que nom se transformem necessariamente em complicadas misceláneas, cada vez mais confusas. Precisamente, gostaria de ter esses caderninhos para reordenar as notas, dividindo-as por tema, e desta maneira arrumá-las; isto fará com que me passe o tempo e pessoalmente vai-me ser útil para conseguir umha certa ordem intelectual.
Nestes últimos tempos tivem fortes dores, mas nom se manifestou nengumha inflamaçom mais, nem tivem saltos de temperatura. Nevou muito por aqui (40 cm.) e fijo muito frio, mas com respeito às dores, apesar de tudo, safei-me bastante
bem. abraço-te com tenrura. antonio

(Carta 100)

22 de fevereiro de 1932 Querido delio,
gostei do teu recantinho para os animais144, com os tentilhons e os peixinhos. se os tentilhons escapassem algumha vez da gaiola, nom deves agarrá-los polas asas ou polas patas, porque som delicadas e podem partir ou deslocar-se; é preciso apanhar o corpo inteiro com o punho, sem apertar. eu, quando rapaz, adestrei muitos pássaros e também outros animais: falcons, corujas, cucos, pegas, gralhas, pintassilgos, canários, tentilhons, cotovias, etc.; adestrei umha culebrinha, umha doninha, ouriços-cachos e tartarugas. eis como vim os ouriçoscachos fazerem a colheita das maças. Umha tarde de outono, quando já escurecera mas a lua brilhava luminosa, fum com outro rapaz amigo meu a um campo cheio de árvores frutais, principalmente macieiras. ocultamo-nos numha bouça, contra o vento. aparecem entom os ouriços-cachos, cinco, dous mais grandes e três pequeninhos. em fila indiana fôrom-se para as macieiras, jogárom na erva e em seguida se pugérom a trabalhar: com a ajuda dos focinhos e das patinhas, faziam rolar as maçás que o vento tirara das árvores e apanhavamnas numha clareira, bem perto umha da outra. Mas vê-se que nom chegavam com as maçás ciscadas na terra; o ouriço-cacho maior, com o focinho ao ar, olhou à sua volta, escolheu umha árvore mui combada e trepou por ela, seguido da companheira. Pousárom num galho carregado de fruta e começárom a balouçar ritmicamente; os seus movimentos comuni-
144     «recantinho vivo» seria a traduçom literal da expressom russa Zivoi ugolot, para indicar um quarto, ou umha parte dele, reservada para alguns animais domésticos (pássaros, peixes, tartarugas, etc.).
cárom-se ao galho, que oscilou com abalos bruscos, cada vez com maior frequência, e muitas maçás mais caírom ao chao. assim que juntárom estas ao pé das outras, todos os ouriçoscachos, grandes e pequenos, enrolárom-se com os aguilhons eriçados e deitárom-se sobre as frutas, que enfiárom: uns tinham poucas maçás enfiadas (os ouricinhos), mas o pai e a mae conseguírom enfiar sete ou oito maçás cada um. Quando voltavam para o seu covil, saímos do esconderijo, apanhámos os ouriços-cachos num saquinho e levámo-los para a casa. eu fiquei com o pai e dous ouricinhos e tivem-nos muitos messes, livres, no pátio; caçavam todos os animalinhos, baratas, bezouros, etc. e comiam fruta e folhas de alface. Gostavam muito das folhas frescas e desta maneira pudem domesticá-los um pouco; já nom se faziam umha bola quando viam pessoas. tinham muito medo dos cans. eu divertia-me levando ao pátio serpes vivas, para ver como as caçavam. Mal o ouriço-cacho se apercebia da serpe, saltava bem ligeiro sobre as quatro patas e atacava com muita coragem. a serpe erguia a testa com a língua de fora, e assobiava; o ouriço-cacho dava um leve chio, segurava a serpe com as patinhas de diante, mordia-lhe a nuca e depois comia-a, pedaço a pedaço. Um dia, estes ouriços-cachos desaparecêrom: com certeza, alguém os apanhara para os comer.
tataniska145 comprou umha linda chaleira grande, de por-
celana branca e colocou-lhe a boneca; leva agora no pescoço um cachecol quente, porque fai muito frio: também na Itália nevou muito. deves escrever-lhe mais umha vez que coma mais um pouco, porque a mim nom quer fazer caso. acho que os teus tentilhons comem mais do que tataniska. encanta-me
145     Tatianiska, diminutivo russo de tatiana.
que gostasses dos postais. Hei-che de escrever novamente sobre a dança das lebres e sobre outros animais: quero-che contar outras cousas que vim e escuitei quando rapaz: a história do poldrinho, do raposo e do cavalo que tinha a cauda apenas nos feriados, a história do pardal e do kulak146, do kulak e do burrinho, do pássaro tecedor e do urso, etc. Parece-me que conheces a história de Kim; conheces também os Contos da selva e principalmente conheces o da foca branca e de rikkitikki-tawi? e Giuliano, também ele é um udarnik147? em que atividade? Beijo-te — papai. — Beija da minha parte Giuliano e tua mae Iulca.

(Carta 101)

7 de março de 1932 Queridíssima tania,
recebim o postal de 3 de março. Por ele parece que escreveche com anterioridade, mas nom é certo. tu dis: «Já che escrevim a propósito da autorizaçom que querias ter para a leitura das revistas estrangeiras, etc.». Nom me escreveche sobre isso nos últimos tempos; lembro apenas umha alusom, mas muito fugaz e vaga. tratará-se entom de algumha das últimas cartas ou postais teus que se extraviárom? tu esperas que a questom se resolva favoravelmente, mas eu tenho poucas esperanças. de qualquer maneira, se a decisom for favorável, pido-che que esperes pelas minhas instruçons antes de escreveres para a li-
146     Kulak, «camponês rico», em russo.
147     Udarnik, «trabalhador escolhido», «de vanguarda», em russo.
vraria para fazer as encomendas. enviei-che há algum tempo umha listagem de livros para encomendares; entre outras cousas, havia também a reclamaçom do fascículo de setembrooutubro de Riforma Sociale, que foi extraviado. Nom me mencionache até agora este assunto: escreveche? ou nom pudeche escrever, por umha razom qualquer? seja como for, pido-che que me mantenhas informado, para eu saber como guiar-me. Quereria ter-che escrito já que assinasses também a La Cultura (soc. editora La Cultura, Via Cappellini, 14, Milám), para a qual tenho a autorizaçom, mas nom cho escrevim até agora, precisamente porque nom tivera resposta às encomendas que mencionava. se se tratar apenas de um esquecimento teu, podes escrever agora.
Quero precisar melhor umha afirmaçom minha a propósito da psicanálise, que nom expliquei suficientemente, visto que causou um equívoco, como parece pola tua carta de 23 de fevereiro. eu nom dixem que estivesse demostrado que o tratamento psicanalítico se adapte somente aos casos de elementos chamados «humilhados e ofendidos»; nom sei nada a propósito e nom sei se alguém até agora colocou a questom nesses termos. som algumhas reflexons pessoais minhas, nom verificadas pola crítica mais fidedigna e gerada cientificamente da psicanálise, que che apresentei para explicar a minha atitude em relaçom à doença de Giulia: esta atitude nom é pois tam pessimista como che pareceu e nomeadamente nom foi baseada em fenómenos de ordem tam primitiva e tam baixa como che levou a crer a expressom «humilhados e ofendidos», que empreguei pola sua brevidade e apenas como umha referência genérica. eis o meu ponto de vista: creio que todo aquilo que de real e concreto se pode salvar do échaffaudage [sic] psicanalítico pode e deve restringir-se a isto, à observaçom da devastaçom que causa em muitas consciências a contradiçom entre o que parece necessário de umha maneira categórica e as tendências reais fundamentadas na sedimentaçom de velhos usos e velhas maneiras de pensar. esta contradiçom apresenta-se numha multiplicidade inumerável de manifestaçons, até assumir um caráter estreitamente singular em cada indivíduo. em cada momento da história, nom apenas o ideal moral, mas o «tipo» de cidadao fixado polo direito público, é superior à média dos homens vivos num estado dado. esta distáncia torna-se mais pronunciada nos momentos de crise, como é este do após-guerra, seja porque o nível de «moralidade» desce, seja porque se coloca mais alta a meta a alcançar e que ela se exprime numha nova lei e numha nova moralidade. Num caso e no outro, a coerçom estatal sobre os indivíduos aumenta, aumenta a pressom e o controlo de umha parte sobre o todo e do todo sobre cada um dos seus componentes moleculares. Muitos resolvem a questom facilmente: superam a contradiçom por meio do vulgar cepticismo. outros seguem em aparência a letra das leis. Mas para muitos a questom resolve-se somente de maneira catastrófica, já que tem derivaçons doentias de umha paixom reprimida, que a necessária «hipocrisia» social (quer dizer, seguir a fria letra da lei) nom fai senom aprofundar e turvar.
este é o núcleo central das minhas reflexons, que eu mes-
mo percebo quam abstrato e impreciso é se se tomar assim, literalmente: porém, trata-se apenas de um esquema, de umha orientaçom geral, e entendido assim parece-me avondo claro e evidente. Como dixem, é preciso distinguir, para cada indivíduo e para os vários estratos culturais, gradaçons muito complexas e numerosas. aquilo que nos romances de dostoievski é indicado com o termo de «humilhados e ofendidos» é a gradaçom mais baixa, a relaçom própria de umha sociedade em que a pressom estatal e social é das mais mecánicas e exteriores, em que o contraste entre o direito estatal e direito «natural» (por usar esta equívoca expressom) é dos mais profundos, a causa da ausência de umha mediaçom, como aquela que em ocidente oferecérom os intelectuais dependentes do estado; dostoievski, certamente, nom mediava no direito estatal, mas era ele próprio um «humilhado e ofendido».
deves compreender deste ponto de vista o que pretendo dizer quando aludo a «falsos problemas», etc. Penso que sem cair no cepticismo vulgar ou sem assentar numha cómoda «hipocrisia», no sentido do provérbio que di «a hipocrisia é umha homenagem rendida à virtude», pode encontrar-se a serenidade, mesmo no agromar das mais absurdas contradiçons e sob a pressom das mais implacáveis necessidades, se se conseguir pensar «historicamente», dialeticamente, e identificar com sobriedade intelectual o próprio dever, ou um dever próprio bem definido e limitado. Neste sentido, para esta categoria de doenças psíquicas é possível, e portanto é preciso, sermos «médicos de nós mesmos».
Nom sei se me consigo explicar. em minha opiniom, a cousa é bem clara. seria necessária umha exposiçom mais minuciosa e analítica, compreensiva, para comunicar esta clareza, mas isso é-me impossível em todo momento, dado o pouco tempo disponível para escrever, e o pouco espaço. seja como for, deves ter o cuidado de nom me interpretar demasiado literalmente.
Quero-che fazer outra advertência a propósito do conceito de ciência neste tipo de factos psíquicos e é que me parece mui difícil aceitar, a este respeito, o conceito demasiado rígido das ciências naturais e experimentais. seria preciso, por isso, dar muita importáncia ao chamado atavismo, à mneme como memória da matéria orgánica, etc. Considero que se atribui ao atavismo e à mneme muitíssimo do que é meramente histórico e já adquirido na vida social que, é preciso lembrar, começa imediatamente, logo que se sai ao mundo desde o ventre materno, mal se abrem os olhos e os sentidos começam a sentir. Quem poderia indicar onde começa na consciência ou na subconsciência a atividade intensa das primeiras percepçons do homem-meninho, já organizado para lembrar aquilo que vê e sente? e como distinguir e precisar entom aquilo que se atribui ao atavismo e à mneme?
Queridíssima, nom deves achar que me sentisse ou me sinta mui mal: realmente, safei-me bastante bem este Inverno, nom tivem, por exemplo, nengumha dor nos rins, que nos invernos anteriores me figeram sofrer muito.
abraço-te com tenrura. antonio

(Carta 102)

14 de março de 1932 Queridíssima mae,
recebim a carta de Grazietta de 3 de março. escrevim-che já há algum tempo, por meio de tatiana: nom lembro exatamente quando, mas nom me parece que fosse há demasiado tempo. Nom gostaria de que esta carta minha se tivesse extraviado. as minhas condiçons continuam a ser as mesmas. o In-
verno aqui foi mui frio, nevou muito, mas passei-no bastante bem. recentemente recebim notícias de Giulia e das crianças e também neste apartado nom há novidades mui importantes. Nom che escrevim sempre sobre Giulia e as crianças porque umha vez teresina me escreveu que recebíades notícias através de tatiana.
Compreendo que Grazietta tem muito para fazer e que portanto nem sempre pode escrever-me; porém, acho que com um pouquinho de boa vontade poderia escrever-me um pouco mais amiúde. Gostaria de conhecer com exatitude o programa escolástico do curso que frequënta Mea; depois, se for possível, e acho se poderá conseguir recorrendo a algum docente, homem ou mulher, gostaria de ter a cópia do programa dos três anos do ciclo de formaçom comercial. di a Franco que me escreva sobre o seu meccano e as construçons que fai. estou convencido de que chegará a ser um grande matemático e engenheiro. esperemos que este mau tempo, verdadeiramente excecional, tenha passado já e que dês recobrado um pouco as forças. abraço-te com tenrura, junto a todos os da casa. antonio

(Carta 103)

21 de março de 1932 Queridíssima tania,
tenho diante de mim quatro escritos teus: a carta de 9 de março, o postal de 13, as cartas de 14 e de 18. Um autêntico recorde, com grande alegria minha, embora me desgoste que a minha alegria esteja, neste caso, ligada ao teu cansaço. Procurarei responder ordenadamente, para nom esquecer nada essencial.
Lim as observaçons do prof. Cosmo a propósito do Canto do Inferno dantesco148. agradeço-lhe as sugestons e as indica-
148 a carta de Cosmo, dirigida a sraffa a 29 de dezembro de 1931, chegara a
G., como de costume, através de tatiana. G. transcreveu-na mais tarde numha
çons bibliográficas. Porém, nom considero que pague a pena adquirir os fascículos da revista que ele indica: para quê? se quigesse escrever um ensaio para publicar, estes escritos nom seriam suficientes (ou polo menos nom me pareceriam suficientes, causando um estado de ánimo de freio e de insatisfaçom); e para escrever algo pola minha conta, para passar o tempo, nom vale a pena incomodar tam solenes monumentos como os Studi danteschi de Michele Barbi, que, depois, quando se leem, nom dam nengumha ideia necessária ou indiretamente útil. em minha opiniom, a literatura dantesca é tam pletórica e prolixa, que a única justificaçom para escrever algo relativo a ela é a de dizer algo verdadeiramente novo, com a maior precisom e com o mínimo de palavras possíveis. Parece-me que o mesmo prof. Cosmo sofre um pouco a doença profissional dos dantistas: se as sugestons fossem seguidas à letra, faria falta escrever um volume inteiro. estou satisfeito de saber que a interpretaçom do Canto que esbocei é relativamente nova e digna de tratamento; para a minha humanidade de preso isto é suficiente para me fazer destilar algumhas páginas de apontamentos que a priori nom me pareçam umha redundáncia.
Lim também, com interesse bem justificado, as últimas notas sobre a questom dos «dous mundos», quer dizer, do «leom de Caprera»149. Colocada a questom como se depreende
grande parte num dos seus Cadernos do Cárcere. Para a transcriçom do texto na íntegra, ver na pág. 437
149 sraffa propugera chamar à discussom sobre os «dous mundos» a discussom do «Leom de Caprera». Na carta de tatiana a G. de 18 de março transcrevese, entre outras cousas, o seguinte trecho de sraffa: «Quanto aos dous Mundos, nom, nom acredito neles; e os factos que citavam tinham apenas a finalidade de informar sobre certas mudanças que se produzírom ou que se procura fazer que se produzam, nos últimos anos. alguns deles som factos certos, e nom
delas, isto é, nos seus justos limites, e esterilizada de qualquer bacilo de romantismo racista e de sionismo mais ou menos confuso, a cousa é digna de atençom. e os dados que me oferecem som interessantes, porque os desconhecia totalmente. aquilo que me importava estabelecer é que em Itália, desde há uns tempos, nom existe um antisemitismo popular (que é o antisemitismo clássico, aquele que provocou e provoca tragédias e tem umha importáncia na história da civilizaçom) e que os judeus nom representam em nengum sentido umha cultura especial, nom tenhem qualquer missom histórica particular no mundo moderno e que nom som, em si mesmos, um fermento de desenvolvimento no processo histórico. esta foi a origem do nosso debate e é preciso lembrá-lo, porque agora se fala de outras cousas. Nom me parece que os casos particulares de judeus italianos relativamente sacrificados em comparaçom com os «cristaos» podam constituir umha «questom» de relevo. Casos análogos poderiam ser citados em virtude doutras diferenciaçons histórico-sociais: por
podem explicar-se completamente «por outras razons» (o judaísmo-maçonaria é umha razom, sim, mas esta é precisamente umha das formas do judaísmo na Itália; nom quererás dizer que, por exemplo, na Polónia, o facto de os judeus serem comerciantes ou usurários, ou nom camponeses, é outra razom de hostilidade contra os judeus, como se a «autêntica razom» estivesse nas diferenças teológicas ou antropológicas). Mas, por voltar aos factos, o episódio de del Vecchio; o professor Foà (fisiólogo, filho do senador), fascista desde há muitos anos, conspirou com todas as suas forças para se converter no reitor da Universidade de Milám, e nom o conseguiu. É certo que um velho costume de muitos judeus, quando pola sua ineptitude nom conseguem obter um resultado, é botar-lhe a culpa a um imaginário antisemitismo. Mas o que dixem sobre a academia nom o baseava apenas em choromicadas de algum velho judeu desiludido. e ademais é preciso distinguir entre o antisemitismo e os dous Mundos; a concessom de certos privilégios às Universidades Israelitas (isto é, às comunidades religiosas) nom tem nada a ver com um ato de antisemitismo; no entanto, tende na medida do possível para criar umha distinçom neta.
exemplo, em setembro de 1920 foi publicada umha circular secreta da associaçom dos industriais metalúrgicos piemonteses pola qual se dispunha que durante a guerra nom fossem contratados nas fábricas os nascidos «a sul de Florença», isto é, da Itália meridional e central150. Porém, nom me parece que
os velhos rabinos e os jovens sionistas (entre parênteses, o entusiasmo destes últimos diminuiu muito nos últimos cinco ou seis anos, a julgar polos poucos que conheço) estám encantados com isso; e, como contrapartida, nengum judeu pode queixar-se de ser perseguido como tal; como muito, algum ambicioso fica insatisfeito. Quem polo contrário tenhem problemas (mais cómicos que trágicos, na realidade) som justamente os judeus que se saem ou tendem para se saírem silenciosamente do judaísmo e a se fundirem com os outros italianos, passando para o ateísmo ou ao deísmo genérico. estes encontram-se perante um dilema ineludível, justamente eles que queriam deixar as cousas na dúvida, remitindo ao tempo a soluçom. Cito dous casos. as universidades Israelitas tenhem direito a impor umha taxa a todos os judeus; quem assim o quer pode ver-se isento dela, mas deve fazer um ato de abjuraçom, por escrito, explicitamente. Isto foi um problema mui difícil de resolver para infinidade de judeus, ou semijudeus; justamente o que queriam evitar era o «salto». Mas hoje, ou um é judeu ou nom o é —nom há vias intermédias. o outro caso é o do ensino religioso nas escolas: se os padres declaram que a criança é de religiom judia, fica isenta sem a menor dificuldade; mas se dim que é «livre-pensador» ou «sem religiom», entom criam-lhe problemas. Isto levou a muitos a declarar «judeus» os seus filhos, embora o nom forem em absoluto, e muitos cristaos «livre-pensadores» invejam dos judeus esta cómoda escapatória. e também isso acentua a distinçom. (acho que os cristaos livre-pensadores enviam na grande maioria dos casos os filhos ao catecismo com diversos pretextos hipócritas, como «nom se deve prejudicar as crianças ao impor-lhes as opinions dos pais», ou «os ateus saírom sempre dos colégios dos jesuítas», etc.). Nom sei como explicar estes factos, e quigera conhecer a tua opiniom; provavelmente haveria que compreender as relaçons do estado com a Igreja Católica na Itália, e depois dessa explicaçom deduziria-se «logicamente» a atitude do estado com as igrejas menores; no caso dos judeus, essa atitude poderia tingir-se do exemplo dos países estrangeiros, nomeadamente dos nazis e «movimentos análogos».
150 o episódio remonta-se ao período da ocupaçom das fábricas. No dia 6 de setembro de 1920 a ediçom turinesa do avanti! anunciou a descoberta de documentos, achados na sede da Fiat, que continham «listas negras» de operários subversivos e umha série de medidas discriminadoras a respeito dos trabalhadores.
poda comparar-se o «judaísmo-maçonaria» com o facto de na Polónia os judeus serem comerciantes ou usurários ou nom camponeses. Na Geórgia os usurários eram os arménios e os arménios eram os «judeus» da Georgia. em Nápoles, quando sopra vento de revolta, a polícia vigia as casas de penhores populares, porque é contra elas que se dirige a fúria do povinho: se estas casas forem regentadas por judeus, e nom por fiéis de sam Genaro, em Nápoles haveria antisemitismo, como há numha parte do Casalese, da Lomellina e do alessandrino, onde os judeus som mercadores de terra e aparecem sempre quando numha família acontece umha «desgraça» e é preciso vender, ou vender mal, ao desbarato. Mas também aqui, onde ninguém se interessa em acirrar, estes sentimentos nom ultrapassam limites modestos.
Na tua carta de 14 fás-me toda umha série de perguntas, às quais nom tenho vontade de responder de forma pormenorizada. avonda dizer que no meu estado de ánimo nom há nada de dramático ou de hipertenso. antes polo contrário. Portanto, nom deves preocupar-te por nada.
recebim os cadernos: os melhores som os dous pequenos (por número de páginas) que mandache no segundo pacote, o registado. os blocos de notas nom podem ser usados.
Nom che sei dizer para quanto tempo me dura umha caixa de sais de Hunt porque nunca reparei neste pormenor: porém, acredito que chega para um mês, mais ou menos, dado que nem todos os dias os tomo. Figérom-me mui bem. a minha dieta é bem simples: tomo 500 gr. de leite de manhá e 700 de tarde como ceia, com uns 250 gr. de pam repartido em duas vezes. a meio-dia como uns 80 gr. de massa com manteiga e queixo, ou dous ovos com manteiga. a dose é algo mais, mas nom a dou consumido toda. aliás, de tanto em tanto, como algumha cousa mais (um pouco de confitura, de mel, de ovomaltina151, que recebim polos correios). os anos anteriores comia mais: consumia toda a dose e por vezes ainda ficava com fome. No entanto, nom me sinto mais débil, em absoluto: de resto, um já vai velho e tem menos necessidade de comer. recebim o pacote da Páscoa e agradeço-cho. Com certeza, comerei tudo quanto me enviache, embora lentamente. Figeche bem em nom enviar chocolate, que nom o podo digerir, nem cacau, que é como o chocolate. Mas por que me enviache os doces sardos que che enviaram a ti? deves ter desconfiado, eh?, di a verdade! som pesadíssimos, de facto. sabias que nom lhe dei os parabéns a minha mae, nem polo seu santo nem pola Páscoa?. este ano nom tenho nengum calendário e é por isso que nom pudem ver a tempo que o dia de s. José se aproximava a grandes passos; aliás, este ano já nom tenho a carta extraordinária por Páscoa e é por isso que fiquei sem margem. Procurarei excusar-me a próxima vez.
Para Giulia escreverei a próxima vez; se calhar, é melhor aguardar que ela mesma escreva outra vez ou que delio responda. dou-che muitos parabéns e abraço-te com tenrura. antonio
No teu postal de dia 13 escreves, a propósito do que che escrevim sobre a psicanálise: «nom sei porque pensas que Giulia está tam doente. eu nom sei nada disso!». Naturalmente eu também nom sei nada preciso, mas essa é a minha impressom, formada por todo um cúmulo de pequenos factos e de lembranças do passado, cada umha das quais, tomada à parte, pareceria umha frivolidade. acho entom que che foi impos-
151 Bebida de origem suíça a base de malte de cevada, leite sem gordura, cacau, ovos e lêvedo (N. do T.).
sível perceber certas cousas, porque che falta por completo a experiência do ambiente concreto. de outra parte, a cousa é mais complexa do que parece polo meu esquema simplificador e mui genérico. seja como for, podes entender porque dei tanta importáncia às alusons de Giulia aos «estudos» por fazer e à procura de umha «personalidade» que ela julga nom ter-se criado antes. Querida, abraço-te
a.
Já comim duas laranjas das tuas, que tenhem um sabor e um cheiro extraordinários.

(Carta 104)

28 de março de 1932 Querida Iulca,
recebim no seu tempo a tua carta de janeiro e há alguns dias a de 16 de março. Nom che escrevim antes porque, como já mencionei noutra ocasiom, sinto um certo embaraço, umha certa reserva quando procuro pôr-me em comunicaçom contigo. Fôrom vários elementos os que suscitárom este estado de ánimo; pode que um dos mais importantes seja a especial psicologia gerada durante um longo encarceramento e um longo isolamento a respeito de qualquer forma de sociedade análoga ao próprio temperamento, mas é certo que também predominam outros dous elementos: 1° o temor de fazer-che mal, interferindo de maneira desajeitada no teu método de cura; 2° a consciência que eu próprio tenho de ter chegado a ser, nestes anos, mais «livresco», de ter assumido por vezes um tom de pregador e de mestre de Primária, que me fai rir de mim próprio, com a consequëncia desagradável de que essa autocrítica parece que me leva a dizer parvoíces. Isso significa que percebo um certo marasmo e me sinto reprimido.
Para além disso, polas tuas cartas parece que algumhas observaçons minhas fôrom além do limite e tivérom «demasiado sucesso», quer dizer, tivêrom um efeito nocivo. Insistes demasiado em lembrar as minhas observaçons a respeito da tua personalidade, ainda nom desenvolvida, da necessidade que tens de descobrires o teu verdadeiro ser, etc. Com certeza, tomache ao pé da letra as minhas observaçons e nom as colocache na sua justa dimensom. Um elemento que com certeza che escapou é como eu próprio tenho insistido para te induzir a dedicares umha parte do teu tempo à musica (acho che causou umha má impressom que umha vez eu quigera ir-me embora ou mostrasse, de algumha maneira, nom poder aturar a tua música: e certamente, aquela vez sofria realmente, mas estava numhas condiçons nervosas deploráveis, e a música enerva-me de umha maneira tal que me provocava convulsons). sempre acreditei que a tua personalidade se desenvolveu em grande parte ao redor da atividade artística e que sofreu como umha amputaçom a orientaçom meramente prática e de interesses imediatos que deche à tua vida. diria que na tua vida houvo um erro «metafísico», com a consequëncia de desarmonias e desequilíbrios psico-físicos. Umha vez afirmei, com certo escándalo pola tua parte, que os cientistas, na sua atividade, som «desinteressados». tu retrucache, de forma mui breve, que eles som sempre «interessados». Naturalmente, eu falava em termos «italianos» e da cultura italiana tinha presente as teorias filosóficas do prof. Loria, que interpretou o termo e a noçom de «interesse» num certo sentido, inferior, que nas Teses sobre Feuerbach é qualificado como schmutzig jüdisch, sordidamente judaico152. Pois bem, parece-me que orientache a tua vida neste sentido «sordidamente judaico», sem estar intimamente convencida dele, como nom podias está-lo, e com justiça. Precisamente, a tua personalidade, para mim, tinha necessidade de sair desta «fase» primordial, de se descobrir, de desnovelar muitos elementos da tua anterior existência de artista «desinteressada» (que nom quer dizer sustentados nas nuvens, evidentemente), ou seja «interessada» no sentido nom imediato e mecánico da palavra. Nom quero deixar-me levar a um sermom livresco. Querida, espero que sintas que és e podes ser cada vez mais livre para me manifestares todos os teus pensamentos e sentimentos. desde há muito tempo nom recebo umha fotografia tua: acho seria mui útil (além de desejada) para julgar as tuas condiçons físicas; deverias também escrever-me o teu peso. Igualmente, no caso de delio e Giuliano deverias enviar-me fotografias melhores que as últimas que recebim, com os dados da estatura e do peso. abraço-te com tenrura. antonio
N. B.: aguardo nom interpretes mal a expressom «sordidamente judaico» que empreguei mais acima. observo isto porque recentemente mantivem com tania umha discussom epistolar sobre o sionismo e nom gostaria de que me tivesses por «antisemita» devido a estas palavras. Nom era judeu o autor delas?
152 G. refere-se a Marx, 1ª tese sobre Feuerbach, e nomeadamente ao seguinte fragmento: «...na Essência do Cristianismo considera apenas (o modo de agir) teorético como declaradamente humano, enquanto a praxe é concibida (e estabelecida) apenas na sua representaçom (sordidamente) judaica. Portanto, nom concebe a importáncia da atividade «revolucionária», da atividade práticocrítica».

(Carta 105)

4 de abril de 1932 Queridíssima tania,
recebim ontem a tua carta de 31 de março; pensava que esta semana nom ia receber escritos teus e achava que te sentias algo mal. recebim os medicamentos que me enviache, os quais, devo dizê-lo, nom me vam ser mui úteis. Compreendeche à primeira umha alusom contida numha carta anterior e pensache depressa em enviar-me aqueles seis ou sete pacotes de flocos de aveia, massas com glúten, etc. Como queres que as utilize? e em tanta quantidade? deveriam-me chegar para sete ou oito anos, polo menos, quer dizer, terám todo o tempo para se estragarem, já que, talvez sim, talvez nom, poda mandar que me preparem umhas pouquinhas cada quinze ou vinte dias. também o somatose nom o vou tomar para já, nom o necessito para nada; mas é possível que me seja útil quando comece a calor e o apetite diminua outra vez. Polo contrário, será-me útil esse extrato peptonizado preparado pola sociedade para o leite condensado lombardo: provei a meter umha ponta de colher na pasta e melhorou-na muito.
Nom desejo ter tabaco, nem «macedónia» nem de outro tipo: conseguim, como che escrevim noutra ocasiom, diminuir o consumo de maneira notável; estabelecim um pacote de tabaco «macedónia» cada cinco dias, mas depois de ter consolidado esta quota, procurarei diminui-la ainda de maneira progressiva.
Igualmente, nom necessito em absoluto o café sem cafeína: nom podo tomá-lo. Por vezes podemos ter água quente, mas é boa só para lavar os pés, nom potável, porque se utiliza para quentar grandes caldeiras ao banho-maria, e nom certamente em ebuliçom, mas somente a 60 ou 70 graus. Como che escrevim outras vezes, és mui dada a fazer castelos no ar com demasiada facilidade.
Lamento e entristece-me muito que Giacomo153 morrera; a nossa amizade era bem mais grande e intensa do que pudesses ter ocasiom de perceber, também porque Giacomo exteriormente era pouco expansivo e de poucas palavras. era um homem raro, asseguro-cho, embora nos últimos anos estivesse mui cambiado e deteriorado de umha maneira inacreditável. Quando o conhecim, no após-guerra, era de umha força hercúlea (era um sargento de artilharia de montanha e levava nas costas peças de canhom de peso considerável) e de umha coragem temerária, embora sem arrogáncia. e todavia era de umha sensibilidade sentimental incrível, que chegava até extremos melodramáticos, que no entanto eram sinceros, nom de pose. sabia de cor umha grande quantidade de versos, mas todos dessa literatura romántica inferior de que tanto gosta a gente (do tipo libretos de ópera, escritos na maioria dos casos num estilo barroco curiosíssimo e com denguices patéticas repugnantes, mas de que gostam também de maneira surpreendente) e gostava de recitá-los, embora corasse como umha criança surpreendida em falta cada vez que me metia entre o público para o escuitar154. esta lembrança, que se me repete insistentemente, é o traço mais vivo do seu carácter: este homem gigantesco, que declama, com sincera paixom, versos de mau gosto, mas que exprimem sentimentos elementares,
153               Giacomo Bernolfo, operário turinês destinado aos serviços de vigilância e defesa de L’Ordine nuovo. Ligado a G. por um fundo afeto, escoltava-o polas ruas de turim para o defender de possíveis agressons fascistas. em 1923 emigrou para a Uniom soviética.
154               G. refere-se à Stampa lirica, um típico local popular de turim, onde entre umha consumiçom e umha outra, os fregueses exibiam livremente os seus dotes de cantantes e, por vezes, de recitadores.
robustos e impetuosos e que se interrompe e cora quando é escuitado por um «intelectual», mesmo se for um amigo.
abraço-te.
antonio

(Carta 106)

11 de abril de 1932 Querida Iulca,
quero acrescentar ainda algumhas observaçons à minha carta anterior155, que se calhar che pareceu um pouco incoerente, e nom mui conclusiva. Imagino que isso pode acontecer, porque as minhas cartas me produzem essa impressom a mim próprio, assim que as escrevo. devo escrever num horário fixo, num dia determinado: a obsessom de que nom chega o tempo para escrever tudo quanto gostaria, resulta em que acabo por escrever de maneira elíptica, por alusons, juntando os pensamentos que germinam quando os fixo por escrito no esboço da carta, pensados antes de me pôr a escrever, tendo assim como resultado um pot-pourri, polo menos na minha impressom.
aquilo que che queria escrever é isto: que as tuas preo-
cupaçons me parecem injustificadas, por toda umha série de aspetos relativos à questom que colocache, e que é especialmente injustificado, por mal interpretado, o meu testemunho ao respeito. Quando te valorizas a ti própria e o teu contributo à vida, nom levas em conta que a um certo ponto deche à
155 Cfr. Carta 104.
tua personalidade umha determinada orientaçom novidosa, abandonando a atividade artística por umha atividade mais imediatamente prática. Para além disso, acho deche sempre ao conceito e ao facto da «utilidade» e da «praticidade» um conteúdo demasiado limitado e mesquinho (erro teórico que definim com a expressom de «sordidamente judaico»), tirando a consequëncia obsessiva de seres demasiado pouco «útil» e «incapaz», a seres «útil», como erroneamente pensas que se deveria ser. a mim deu-me a impressom de que aí está o germe da tua doença, do «complexo de inferioridade» que debilita a tua sensibilidade, afinada polos acontecimentos destes últimos seis anos, mas que já era excecionalmente aguda antes. de resto, agora considero que eu também som responsável, polo menos em parte, por estas condiçons tuas, dado que no passado, de forma inconsciente, me divertia a irritar-te e a provocar-te, achando que assim conseguiria conhecer-te melhor. Comecei em 1922, pouco depois de que nos conhecêssemos e figem que chorasses, de um jeito tam estúpido que só agora sinto remorsos, porque só agora percebo que nom se tratava de umha cousa superficial, mas que para ti tinha umha importáncia maior da que eu pensara: e nom tivem a coragem de enxugar-che as lágrimas, como até me sentia movido a fazer, porque te amava e é verdade que certas maldades fam-se só a quem se ama. Queridíssima, aperto-te forte forte. antonio

(Carta 107)

18 de abril de 1932 Queridíssima tania,
agradeço que me transcreveras a carta em que Giulia che deu mais informaçons detalhadas sobre as condiçons de saúde de delio.
o somatose vou-no tomar, como já che escrevim: nom é necessário que mo vendas durante tanto tempo, porque já estou convencido, polo menos tudo o necessário para o tomar.
Quando tenha lido o livro de Croce estarei mui contente de ser-che útil escrevendo algumhas notas críticas ao respeito e nom umha resenha completa, como desejas, porque seria difícil escrevê-la dessa maneira, improvisada. além disso, lim já os capítulos introdutórios do livro, porque apareceram num opúsculo independente, há alguns messes156, e já podo começar desde hoje a fixar-che alguns pontos que poderám ser-che úteis para fazeres pesquisas e para te informares melhor, se quigeres dar ao teu trabalho umha certa organicidade e algum alcanço. em minha opiniom, a primeira questom a colocar poderia ser esta: quais som os interesses culturais hoje predominantes na atividade literária e filosófica de Croce, se som de caráter imediato, se tenhem um alcanço mais geral e se respondem a exigências mais profundas que nom sejam as nascidas das paixons do momento. a resposta nom tem dúvida; a atividade de Croce tem origens longínquas e mais exatamente do tempo da guerra. Para compreender os seus últimos trabalhos é preciso rever os seus escritos sobre a guerra, recolhidos em dous volumes (Pagine sulla guerra – 2ª ed. aumentada). Nom tenho estes dous volumes, mas lim es-
156     trata-se da Storia d’Europa, aparecida no ano seguinte.
tes escritos na medida que fôrom publicados. o seu conteúdo essencial pode resumir-se brevemente da seguinte forma: luita contra a focagem dada à guerra, sob a influência da propaganda francesa e maçónica, segundo a qual a guerra se convertera numha guerra de civilizaçom, umha guerra tipo «Cruzadas», com o desencadeamento de paixons populares, com um caráter de fanatismo religioso. após a guerra vem a paz, isto é, ao conflito deve suceder nom só umha nova colaboraçom dos povos, senom que às alianças bélicas ham de suceder alianças de paz, e nom quer dizer que as duas coincidam. Porém, como poderia dar-se esta nova colaboraçom geral e particular, se um critério imediato de política real se converte em princípio universal e categórico? É preciso pois que os intelectuais resistam estas formas irracionais de propaganda e, mesmo sem debilitar o seu país em guerra, resistam à demagogia e salvem o futuro. Croce vê sempre no momento da paz o momento da guerra, e no momento da guerra o da paz, e dirige a sua laboriosidade a impedir que se destrua qualquer hipótese de mediaçom e de compromisso entre os dous momentos.
Na prática, a posiçom de Croce permitiu os intelectuais italianos retomarem as relaçons com os intelectuais alemáns, o que nom foi nem é fácil para franceses e alemáns; portanto, a atividade crociana foi útil para o estado italiano no apósguerra, quando os motivos mais profundos da história nacional levárom ao cessamento da aliança militar franco-italiana e a umha deslocaçom da política contra a França pola reconciliaçom com a alemanha. desta maneira Croce, que nunca se ocupou de política militante num sentido partidário, converteu-se em ministro da educaçom no governo Giolitti de 1920-21.
Mas acabou a guerra? e o erro de elevar de forma indevida critérios particulares de política imediata a princípios gerais, de dilatar as ideologias até filosofias e religions? Nom, certamente; portanto, a luita intelectual e moral continua, os interesses permanecem ainda vivos e atuais e nom é preciso abandonar a palestra.
a segunda questom é a da posiçom ocupada por Croce no campo da cultura mundial. Croce ocupava, já antes da guerra, um posto mui alto na estima dos grupos intelectuais de todos os países. o que é interessante é que, nom obstante a opiniom comum, a sua fama era maior nos países anglosaxons do que nos germánicos: as ediçons dos seus livros, traduzidos para inglês, som inúmeras, mais do que para alemám e mais do que em italiano. Croce, como se depreende dos seus escritos, tem um alto conceito desta posiçom sua de líder da cultura mundial e da responsabilidade e dos deveres que ela leva consigo. É evidente que os seus escritos pressuponhem um público mundial de elite.
É preciso lembrar que nos últimos anos do século passado os escritos crocianos de teoria da história dérom as armas intelectuais aos dous máximos movimentos de «revisionismo» do tempo, de eduardo Bernstein na alemanha e de sorel na França. Bernstein escreveu ele próprio que fora induzido a reelaborar todo o seu pensamento filosófico e económico depois de ler os ensaios de Croce157. o íntimo vínculo de sorel com Croce era conhecido, mas até que ponto era profundo e firme evidenciou-se especialmente com a publicaçom das cartas de sorel158, quem se mostra com fre-
157     o trecho em que se apoia G. é a carta de 9 de setembro de 1899 de G. sorel a Croce, na qual, entre outras cousas, se lê: «Bernstein vient de m’ecrire qu’il a indiqué dans la «Neue Zeit», n. 46, qu’il avait été inspiré, en une certaine mesure, par vos travaux» (La Critica, XXV, 5. 20 de setembro de 1927, p. 311). 158 Umha presa de cartas dirigidas por sorel a Croce entre dezembro de 1895
quência intelectualmente subordinado a Croce de maneira surpreendente.
todavia, Croce levou ainda mais para além a sua ativida-
de revisionista, isso durante a guerra, e nomeadamente após 1917. a nova série de ensaios sobre a teoria da história começa após 1910 com a memória Cronache, storie e false storie e chega até os últimos capítulos da Storia della storiografia italiana nel secolo XIX, aos ensaios sobre ciência política e às últimas manifestaçons literárias, entre as quais a Storia dell’Europa, como se depreende polo menos dos capítulos que lim. acho que Croce fai questom mais do que nada nesta posiçom sua de líder do revisionismo e que entende que isso é o melhor da sua obra atual. Numha breve carta escrita para o prof. Corrado Barbagallo e publicada na Nuova Rivista Storica de 1928 ou 29159 (nom lembro com exatitude) di de forma explícita que toda a elaboraçom da sua teoria da história como história ético-política (quer dizer, toda ou quase toda a sua atividade de pensador em 20 anos) é dirigida a aprofundar o seu revisionismo de há quarenta anos.
Queridíssima tania, se noçons como estas podem ser úteis para o teu trabalho, di-mo e tentarei desenvolvê-las algo mais. abraço-te com tenrura. antonio
e agosto de 1921, aparecêrom em La Critica, de 20 de janeiro de 1927 a 20 de maio de 1930.
159     as cartas som duas: cfr. Nuova rivista storica, XII, 1928, pp. 626-629; XIII, 1929, p. 130-133.

(Carta 108)

25 de abril de 1932 Queridíssima tania,
recebim os teus postais de 17 e de 22 de abril. recebim também alguns livros, como me anunciaras. e entom, como che véu a tosse? aqui o tempo continua a ser mui variável; se calhar estivo assim também em roma e cuidarias pouco da tua saúde. estou contente com que a minha carta lhe chegasse a delio; veremos se responde e se é possível, mesmo com tantas peripécias, estabelecermos umha correspondência. ainda nom sei se as notas que escrevim sobre Croce fôrom do teu interesse e se som conformes às necessidades do teu trabalho: penso que deves dizir-mo e assim poderei guiar-me melhor. Para além disso, considera que se trata de esboços e de ideias que teriam de ser desenvolvidas e completadas. escrevo-che um parágrafo também desta vez; mais tarde darás-lhe um jeito, da maneira que achares mais oportuna. em minha opiniom, umha questom mui interessante é a referida às razons do grande sucesso que tivo a obra de Croce, algo que nom acontece habitualmente aos filósofos enquanto vivem e que nomeadamente nom se produz com muita frequência fora do círculo académico. acho que umha das razons deve procurar-se no estilo. tem-se dito que Croce é o maior prosador italiano após Manzoni160. acho que a afirmaçom é verdade, com este matiz: que a prosa de Croce nom deriva da de Manzoni, mas polo contrário dos grandes escritores de prosa científica, e nomeadamente de Galilei. a novidade de
Croce, quanto ao estilo, está no campo da prosa científica, na
160 Cfr. Benjamin Crémieux, Panorama de la littérature italienne contemporaine, Kra, Paris, 1928, pp. 190-191.
sua capacidade de exprimir com grande simplicidade e com grande génio ao mesmo tempo, umha matéria que habitualmente, nos outros escritores, se apresenta de maneira confusa, obscura, forçada, prolixa. o estilo literário exprime um estilo adequado na vida moral, umha atitude que se pode chamar goethiana, de serenidade, sobriedade, segurança imperturbável. enquanto tanta gente perde a cabeça e abana entre sentimentos apocalípticos de pánico intelectual, Croce converte-se num ponto de referência para atingir a força interior, pola sua inabalável certeza de que o mal, do ponto de vista metafísico, nom pode prevalecer e que a história é racionalidade. Cumpre considerar, aliás, que para muitos o pensamento de Croce nom se apresenta como um sistema filosófico denso e de difícil assimilaçom como tal. acho que a maior qualidade de Croce foi sempre esta: fazer que circulasse, de umha maneira nom pedante, a sua conceçom do mundo por meio de toda umha série de breves escritos nos quais a filosofia se apresenta de maneira imediata e é assimilada como bom-senso e sentido comum. desta maneira, as soluçons para tantas questons acabam por circular convertidas em anónimas, penetram nos jornais, na vida quotidiana e existe umha grande quantidade de «crocianos» que nom sabem que o som e que talvez nem saibam que Croce existe. Igualmente, penetrou nos escritores católicos umha certa soma de elementos idealistas, da qual procuram libertar-se, mas sem consegui-lo, na tentativa de apresentarem o tomismo como umha visom auto-suficiente e suficiente para as exigências intelectuais do mundo moderno.
abraço-te com tenrura antonio

(Carta 109)

2 de maio de 1932 Queridíssima tania,
recebim três cartas, de 23, de 25 e de 27 de abril. Lim e relim a carta de teu pai e as tuas extensas consideraçons, que em geral fôrom exatas, em minha opiniom. existem, é claro, outros elementos da questom que che escapam por necessidade, e que talvez sejam predominantes e decisivos na hora de determinar o estado de confusom e de dolorosa impotência em que todas as pessoas se debatem um pouco. Mas a maior dificuldade consiste no facto de nom se saber por que parte começar para reagir com energia à situaçom e melhorá-la. tu falas em energia, mais energia, sempre energia. Mas em roma, agora que o penso, aplicando inclusivamente toda a tua energia, que poderias ter conseguido? acharias-te nom com algo sólido e bem assente que se pode derrubar claramente, ma sim com um estado de cousas gelatinoso, por assim dizer, que nom resiste, mas que volta formar-se continuamente e é invencível. Umha vez botache-me na cara em roma nom ter-che colocado a questom e nom ter procurado, por assim dizer, fazer umha aliança entre nós para unirmos forças. se calhar levavas razom e esse deveria ter sido o meu dever. Mas nom lhe dava entom a mesma importáncia a muitas cousas a que agora lha dou, e depois acontecia-me como a quem está no meio de um bosque, que só vê a árvore e nom o conjunto. Muitas cousas pareciam-me mais traços pitorescos, interessantes do ponto de vista estético, do que sintomas de um estado doentio. Vês que som mui sincero contigo, e dou-che os elementos para me julgares de umha maneira também severa. acho tenho atenuantes, no entanto, e o mais importante, para mim, é que vivim sempre isolado, longe da família e polo contrário sentim sempre umha certa intoleráncia pola vida familiar. Igualmente, estava convencido de ser um hipercrítico, de ver a palha no olho do próximo e nom a trave no próprio e que era portanto necessário da minha parte nom intervir, mas deixar que cada quem desenvolvesse a sua vida de forma independente. agora nom sei o que fazer e por que parte começar. agradeço-che por isso que me escrevesses, porque polo menos podo orientar-me de maneira concreta, o que até agora nom era possível. Polo menos de agora em diante nom hei de atirar pedras à toa, o que se calhar tem passado nestes últimos tempos.
Nom sei se che darei enviado o esquema prometido sobre os «intelectuais italianos». o ponto de vista do qual observo a questom muda por momentos: talvez ainda seja cedo para resumir e sintetizar. trata-se de umha matéria ainda em estado líquido, que deverá submeter-se a umha elaboraçom posterior. Nom te metas na cabeça copiar outra vez o «programa» para a publicaçom sobre italianos no estrangeiro: nom penso que valha a pena, tanto mais que o Marzocco já deu um resumo avondo preciso161. se puderes conseguir um exemplar, bem; senom, paciência. Igualmente, nom tenho necessidade, certamente, das obras de William Petty para o tema sobre as ideias económicas de Machiavelli. a chamada é interessante, mas chega com a chamada162. Polo contrário, dentro de algum
161    Cfr. Il Marzocco, XXXVII, 10, 6 de Marzo de 1932.
162    tatiana a G. no dia 27 de abril de 1932: «... Piero escreve que nom sabe absolutamente nada sobre o pensamento económico de Machiavelli; o pouco que apreendera lendo o artigo de arias indicado por ti parece confirmar, na opiniom dele, quanto digeche. Piero acha que há grandes analogias com um economista inglês do XVII, William Petty, a quem Marx chama o «fundador da economia clássica». as suas obras som impossíveis de encontrar mas, se o desejares, talvez poda ser encontrada nas livrarias a traduçom francesa das suas obras completas. Figemos que che enviassem o artigo de arias, e que a
tempo, hei de pedir-che as obras completas do próprio Machiavelli que, talvez lembres, che pedira quando ainda estava em Milám, mas a publicaçom ainda nom saíra.
Podo estabelecer ainda alguns pontos de orientaçom para um trabalho sobre o livro de Croce (que ainda nom lim em livro); mesmo se estas notas forem um pouco desconexas, acho que che poderám ser úteis na mesma. Pensa depois tu em organizá-las pola tua conta, em funçom dos objetivos do teu trabalho.
aludim já à grande importáncia que Croce concede à sua atividade teórica de revisionista e como, com a sua aprovaçom explícita, toda a sua intensa obra pensador-ensaística nestes últimos vinte anos estivo guiada polo objetivo de completar a revisom, até convertê-la em liquidaçom. Como revisionista, contribuiu para suscitar a corrente da história económico-jurídica (que, de maneira matizada, está especialmente representada ainda hoje polo académico Gioachino Volpe); hoje deu forma literária a essa história que ele chama de ético-política, da qual a Storia d’Europa deveria ser e converter-se em paradigma. em que consiste a inovaçom fornecida por Croce, tem esse significado que ele lhe atribui e especialmente, tem esse valor «liquidador» que ele pretende? Concretamente, pode dizer-se que Croce, na atividade histórico-política, frisa unicamente o momento que em política se chama da «hegemonia», do consenso, da direçom cultural, para distingui-lo do momento da força, da coerçom, da intervençom legislativa e estatal ou policial. Na verdade, nom se entende por que Cro-
livraria che procure um livro de tangorra (citado por arias) que contém um ensaio sobre M. economista. Parece que nom há mais (a única chamada que se encontrou está em schmoller, Lineamenti di economia nazionale, trad. ital., vol.
I, p. 129, que alude a Machiavelli como a um mercantilista)».
ce acredita na capacidade da sua versom da teoria da história para liquidar definitivamente qualquer filosofia da praxe.
até se deu que no mesmo período em que Croce ela-
borava a sua suposta maça, a filosofia da praxe, na obra dos maiores especialistas modernos na matéria se trabalhava no mesmo sentido e o momento da «hegemonia» ou da direçom cultural era revalorizada de um modo preciso e sistemático, em oposiçom às visons mecanicistas e fatalistas do economicismo. Pudo-se afirmar, polo contrário, que o traço essencial da mais moderna filosofia da praxe consiste precisamente no conceito histórico-político de «hegemonia». Por isso, penso que Croce nom está up to date com as pesquisas e com a bibliografia dos seus estudos preferidos, ou que perdeu a sua capacidade de orientaçom crítica. Polo que parece, as suas informaçons baseiam-se especialmente num célebre livro de um jornalista vienense, Fülöp-Miller163. este ponto deveria ser desenvolvido de maneira ampla e analítica, mas entom seria necessário um ensaio mui extenso. Para o que che pode interessar, considero que chega com estas noçons, que nom me seria fácil desenvolver de forma ampla.
Querida, abraço-te com tenrura. antonio
163 G. alude ao livro de r. Fülöp-Miller, Geist und Gesicht des Bolschevismus, Darstellung und Kritik del kulturellen Lebens in Sowiet-Russland, amalthea Verlag, Viena, 1926, do qual Croce resenhou em La Critica, XXIV, 5, 20 de setembro de 1926, pp. 289-291.

(Carta 110)

9 de maio de 1932
Queridíssima tania,
recebim um postal teu de 30 de abril e umha carta de 6 de maio. Nom recebim o fascículo da Riforma Sociale de setembro-outubro de 1931; igualmente, nom recebim nengum dos livros encomendados na altura. Chegárom-me de forma sucessiva quatro volumes: a ediçom do Principe de Machiavelli, preparada por Luigi russo, a Autobiografia escrita por Gandhi, com o prefácio do senador Gentile, a Storia d’Europa, do senador Croce, e um pequeno volume de história local genovesa, de Mario Bettinotti, mas deles até agora só me entregárom o Principe.
o livro de Benco é a Storia del Piccolo di Trieste, editado por treves-treccani-tuminelli — de emilio Zanella: Dalla barbarie alla civiltà nel Polesine, editado por «Problemi del Lavoro». dos outros livros, avisa que nom enviem absolutamente nengum. de agora em diante, é preciso ater-se absolutamente a esta norma; se necessitar algum livro, indicarei-no eu próprio. Nestes últimos tempos, nom me entregárom os livros enviados; para cada um deles devia fazer umha instáncia ao Ministério, cousa absurda, para além de tediosa. Nom achas? escrevera-che que assinasses a Cultura, para o qual já obtivera a licença; nom sei se assinache. Vim que agora se publica em 4 fascículos por ano e que o primeiro fascículo de 1932 já saiu. Nom recebo notícias da casa desde há mais de um mês e meio: recebim há quinze dias um postal de teresina com os seus cumprimentos.
Visto que ainda nom lim a Storia d’Europa nom che podo dar nengumha ideia sobre o seu conteúdo real. Porém, podo ainda escrever-che algumha observaçom superficial só em aparência, como verás. escrevim-che já que todo o trabalho historiográfico de Croce nos últimos vinte anos foi dirigido a elaborar umha teoria da história como história ético-política, em contraposiçom à história económico-jurídica representada pola teoria derivada do materialismo histórico, após o processo revisionista sofrido por ele, por obra do próprio Croce. Mas a história de Croce é entom ético-política? em minha opiniom, a história de Croce só pode ser chamada de história «especulativa» ou «filosófica» e nom ético-política, e neste caráter seu, e nom no ser ético-política, está a sua oposiçom ao materialismo histórico. Umha história ético-política nom está excluída do materialismo histórico, na medida em que ela é a história do momento «hegemónico», enquanto que está excluída a história «especulativa», como qualquer filosofia «especulativa». Na sua elaboraçom filosófica, Croce di ter querido libertar o pensamento moderno de qualquer pegada de transcendência, de teologia, e portanto de metafísica num sentido tradicional; seguindo esta linha, até chegou a negar a filosofia como sistema, precisamente porque na ideia de sistema há um resíduo teológico. Mas a sua filosofia é umha filosofia «especulativa», e como tal dá plena continuidade à transcendência e à teologia com umha linguagem historicista. Croce está tam imerso no seu método e na sua linguagem especulativa que só pode julgar em funçom deles; quando escreve que na filosofia da praxe a estrutura é como um deus oculto, isso seria verdadeiro se a filosofia da praxe fosse umha filosofia especulativa e nom um historicismo absoluto, libertado certamente e nom apenas de palavra, de qualquer resíduo transcendental e teólogico.
Ligada a este ponto está outra observaçom que atinge mais de perto a conceçom e a composiçom da Storia d’Europa. Pode pensar-se umha história unitária de europa que se inicie a partir de 1815, isto é, a partir da restauraçom? se pode escrever-se umha história da europa como formaçom de um bloco histórico, nom pode excluir a revoluçom francesa e as guerras napoleónicas, que som a premissa «económica-jurídica» do bloco histórico europeu, o momento da força e da luita. Croce assume o momento seguinte, no qual as forças desencadeadas com anterioridade fôrom equilibradas, «catartizadas», por assim dizer; deste momento fai um facto em si e construi o seu paradigma histórico. o mesmo figera com a Storia d’Italia: ao começar a partir de 1870, ela desleixava o momento da luita, o momento económico, para ser a apologética do momento puro ético-politico, como se este tivesse caído do céu. Croce, naturalmente com todas as sagacidades e a habilidade da linguagem crítica moderna, fijo nascer umha nova forma de história retórica; a sua forma atual é precisamente a História especulativa. Isso vê-se ainda melhor se for examinado o conceito «histórico» que está no centro do livro de Croce, isto é, do conceito de «liberdade»; Croce, em contradiçom consigo mesmo, confunde «liberdade» como princípio filosófico ou conceito especulativo e liberdade como ideologia, quer dizer, instrumento prático de governo, elemento de unidade moral hegemónica. se toda a história é história da liberdade, quer dizer, do espírito que se cria a si próprio (e nesta linguagem liberdade é igual a espírito, espírito é igual a história e história é igual a liberdade), por quê a história europeia do século XIX seria só história da liberdade? Nom será, por consequëncia, história da liberdade em sentido filosófico, mas da autoconsciência desta liberdade e da difusom desta autoconsciência sob a forma de umha religiom nas camadas intelectuais e de umha superstiçom nas camadas populares que se sentem unidos a esses intelectuais, que se sentem participantes num bloco político do qual esses intelectuais som os porta-bandeira e os sacerdotes. trata-se portanto de umha ideologia, isto é, de um instrumento prático de governo, e será preciso estudar o nexo prático sobre o qual foi fundado. a «liberdade», como conceito histórico, é a dialética mesma da história e nom tem «representantes» práticos separados e caraterizados. a história era liberdade até nas satrapias orientais, tanto é verdade que inclusivamente entom havia «movimento» histórico e aquelas satrapias desabárom. em soma, considero que as palavras mudam, as palavras som até bem ditas, mas as cousas nem sequer som rabunhadas.
Parece-me que a Critica fascista escreveu num artigo, mesmo se nom de maneira explícita, a crítica justa, observando que dentro de vinte anos Croce, ao ver o presente em perspetiva, poderá encontrar a sua justificaçom histórica como processo de liberdade164. além disso, se lembrares o primeiro ponto que escrevim para ti, isto é, as observaçons sobre a atitude de Croce durante a guerra, compreenderás melhor o seu ponto de vista: como «sacerdote» da moderna religiom historicista, Croce vive a tese e a antítese do processo histórico e insiste numha ou noutra por «razons práticas», dado que vê o porvir no presente e preocupa-se dele quanto do presente. a cada um a sua parte: aos «sacerdotes» a de salvaguardar o amanhá. No fundo, há umha bela dose de cinismo moral nesta conceçom «ético-política»; é a forma atual do maquiavelismo.
abraço-te com tenrura. antonio
164 G. alude à resenha de Ugo d’andrea sobre a «storia d’europa nel secolo XIX», aparecida na Critica Fascista, X, 9, 1 de maio de 1932, pp. 166-169, intitulado La storia e la libertà.

(Carta 111)

23 de maio de 1932 Queridíssima tania,
recebim o teu postal de 17 e a carta de 19. as notícias que che deu Carlo sobre as minhas condiçons de saúde som pouco claras; nom tivem ataques graves de ácido úrico, mesmo se é claro que a persistência do catarro intestinal deve estar relacionada com um excesso de acidez. Mas desde há algum tempo sofria de insónia, se se pode dizer assim; mais exatamente, nom durmo; nom porque nom tenha sono, mas porque o sono é interrompido por causas externas165, e isso produziume um estado de grande cansaço e esgotamento, que se mostrava mesmo exteriormente, se é que Carlo reparou nele. a questom é complexa, e poderei-che falar dela se vires à conversa. sobre a data da tua chegada, nom tenho particulares desejos; deves escolher tu o momento que che convenha de qualquer ponto de vista. Lim com grande interesse a carta de teu pai: é mui aliciante e cheia de observaçons estimulantes para a reflexom. Quanto ao que dis de que podia escrever-lhe, nom opino como tu. seria-me difícil explicar-che exaustivamente o porqué; nom gosto de escrever certas cousas numha carta do carcere.
Nom me dixeche a tua opiniom sobre as notas escritas a propósito de Croce; em conjunto, fôrom-che úteis? seja como for, deves ter presente que nom podem ser completas e
165               «G. ocupava a primeira cela do corredor do primeiro andar, aquela por onde passava, de dia e de noite, toda a gente para as outras seçons. somente quando estava de serviço algum guarda menos zeloso que os demais se limitava um pouco o tránsito, era menos barulhento, e Gramsci tinha menos problemas.» Cfr. Giovanni Lay, «Colloqui con Gramsci nel carcere di turi», Rinascita, núm., 20 de fevereiro de 1965.
nom podiam tocar alguns pontos que também seria necessário tratar; e que, mesmo assim como estám, sofrêrom umha mutilaçom voluntária. afinal recebim os livros encomendados há tanto tempo. Porém, nom recebim o número da Riforma Sociale de setembro-outubro de 1931; igualmente, faltou-me o número de abril de 1932 dos Problemi del Lavoro, que me farás o favor de reclamar. (Nem recebim o 1° fascículo do ano da Cultura). se che coincidir de escrever a Piero, conta-lhe que num trecho de um capítulo do recente livro de silvio d’amico, Certezze166, num capítulo dedicado a spielberg fala-se numha petiçom de clemência enviada por Federico Confalonieri ao imperador de áustria, conservada precisamente no Museu italiano do mesmo spielberg. d’amico nom reimprime esta súplica, mas fai alusons indirectas a ela, como a do escrito de um homem reduzido ao máximo grau de desánimo e de depressom. talvez Piero saiba se este escrito de Confalonieri foi já imprimido nalgumha publicaçom sobre Confalonieri167. acho que nunca ouvim mencioná-lo. Queridíssima, podes enviar-me mais umha vez sais de Hunt? Já nom podo passar sem tomá-los e quase esgotei as reservas. experimentei a interromper o uso, mas as moléstias reproduzírom-se depressa.
abraço-te com tenrura. antonio
166               Cfr. o capítulo «Visita a spielberg» no citado livro de d’amico. Na página 212, está a alusom à «suplica dirigida ao próprio Francisco I polo conde Confalonieri de Milám»; «...este escreve ao emperador como um homem roto, pedindo graça e piedade». G. pretende com esta chamada fazer entender que se nega completamente a dirigir umha petiçom de clemência às autoridades, a fim de obter a excarceraçom.
167               as três súplicas de Confalonieri fôrom publicadas apenas em 1942, em ediçom de renzo U. Montini, na Rassegna storica del Rissorgimento, XXIX, I, janeiro-fevereiro de 1942, pp. 83-90.

(Carta 112)

6 de junho de 1932
Queridíssima tania,
recebim a tua carta de 30 de maio. Conseguim também o pacote que continha as amostras dos medicamentos. tomei já o sedosine, mas devo dizer que nom me produz nengum efeito relevante. tomei algumha vez o somatose, mas ainda nom de maneira regular: realmente, nom sei como fazer, porque o alimento que recebo nom se presta a ser misturado com um preparado assim. Procurarei engoli-lo diluído simplesmente em água fria, mas nom tenho a certeza de que dessa maneira seja eficaz: por acaso, é necessário introduzi-lo em líquidos quentes?
asseguro-che que nom tenho nengum escrúpulo em cha-
mar as cousas polo seu nome: chamo-as como sei e podo. o catarro intestinal nom sei chamá-lo de outro jeito que assim. desta maneira, é justo que nom seja insónia «orgánica» o que nom me deixa dormir; acho nom ter dormido, mesmo se se chamar «insónia», nom deve tratar-se sempre como insónia. acho é melhor nom obstinar-se nas palavras; o importante é entender e penso que entendeche de que se trata. — Pido-che também para este trimestre que começa no primeiro de julho que assines Il Corriere della Sera. Porém, desta vez pido-che que envies 17 liras, em lugar de 14,50, e que especifiques que se deseja também o número da segunda-feira. Lendo melhor a brochura das assinaturas que me enviárom, com vista ao vencimento trimestral, vim que se pode assinar também o número da segunda-feira, o qual nom aparecia no cabeçalho do jornal. envio-che o impresso do talom da conta corrente, com o qual se pode enviar desde roma a soma sem os custos dos portes.
Procurarei responder as outras questons que me colocas a propósito de Croce, embora nom entenda bem a importáncia disso e até creio ter-lhes dado já resposta nas notas anteriores. relê o ponto em que mencionas a atitude mantida por Croce durante a guerra e olha se de maneira implícita nom se contém a resposta a umha parte das tuas perguntas atuais. a rutura com Gentile produziu-se em 1912, e é Gentile quem se separou de Croce, procurando tornar-se filosoficamente independente. Nom penso que Croce mudasse a orientaçom desde aquele tempo em diante, embora definisse melhor as suas doutrinas; umha mudança mais notável é a acontecida desde 1900 a 1910. a chamada «religiom da liberdade» nom é um achado destes anos, é o resumo numha fórmula drástica do seu pensamento de sempre, desde o momento em que abandonou o catolicismo, como ele mesmo escreve na sua autobiografia intelectual (Contributo alla critica di me stesso). Nem sequer nisto vejo que Gentile nom concorde com Croce. acho que dás umha interpretaçom inexata à formula «religiom da liberdade» já que lhe concedes um conteúdo místico (igualmente, poderia acreditar-se polo facto que mencionas um «refúgio» nesta religiom e portanto numha espécie de «fuga» do mundo, etc.). Nada disso. religiom da liberdade significa simplesmente fé na civilizaçom moderna, que nom precisa transcendências e revelaçons, mas que contém em si própria a própria racionalidade e a própria origem. É, portanto, umha fórmula antimística e, se quigeres, antirreligiosa. Para Croce, qualquer visom do mundo, qualquer filosofia, em tanto se converte numha norma de vida, numha moral, é «religiom». as religions no sentido confessional som também elas «religions», mas «mitológicas», portanto num certo sentido «inferiores», primitivas, quase correspondentes com umha infáncia histórica do género humano. as origens de semelhante doutrina estám já em Hegel e em Vico e som património comum de toda a filosofia idealista italiana, quer de Croce quer de Gentile. sobre esta doutrina assenta a reforma escolar gentiliana, nomeadamente ao ensino religioso nas escolas e que também Gentile queria que estivesse limitado unicamente às escolas infantis (a verdadeira infáncia) e que em qualquer caso, nem sequer o Governo quijo que fosse introduzida no ensino superior.
Igualmente, creio que talvez exageres a posiçom de Croce no momento presente, considerando-o mais isolado de quanto esteja. Nom é preciso deixar-se enganar pola efervescência polémica de escritores mais ou menos inexperientes e irresponsáveis. Croce expujo umha boa parte das suas atuais conceçons na revista Política, dirigida por Coppola e polo ministro rocco, e nom apenas Coppola, acho eu, mas muitos outros estám convencidos da utilidade da posiçom adotada por Croce, que confiava que a situaçom fazia possível a adequaçom real à vida estatal dos novos grupos dirigentes emergidos no após-guerra. se estudares toda a história italiana de 1815 em diante, verás que um pequeno grupo dirigente conseguiu absorver metodicamente no seu círculo todo o pessoal político que os movimentos de massa, de origem subversiva, expressavam. de 60 ao 76, o Partido de açom, mazziniano e garibaldino, foi absorvido pola Monarquia, deixando um resíduo insignificante que sobreviveu como Partido republicano, mas que tinha um significado mais folclorístico do que histórico-político. o fenómeno foi chamado de «transformismo», mas nom se tratava de um fenómeno isolado; era um processo orgánico que substituía, na formaçom da classe dirigente, o que na França acontecera na revoluçom e com Napoleom, e na Inglaterra com Cromwell. Com efeito, também após 1876 o processo continua, de forma capilar. adquire um alcanço imponente no após-guerra, quando parece que o grupo dirigente tradicional nom é capaz de assimilar e digerir as novas forças expressadas polos acontecimentos. Mas este grupo dirigente é mais malin e capaz do que se podia pensar: a absorçom é difícil e gravosa, mas acontece contudo, por muitas vias e com diferentes métodos. a atividade de Croce é umha destas vias e destes métodos; o seu ensino talvez produza a maior quantidade de «sucos gástricos» aptos à obra de digestom. situada numha perspetiva histórica, da história italiana, naturalmente, a laboriosidade de Croce apresenta-se como a mais potente máquina para «conciliar» as forças novas com os interesses vitais (nom apenas imediatos, mas também futuros) que o grupo dominante possui e que eu penso que aprecia justamente, apesar de algumha aparência superficial. Quando se fusionam corpos diferentes, dos quais se deseja obter umha liga, a efervescência superficial indica precisamente que a liga se está a formar, e nom ao contrário. Para além disso, nestes feitos humanos a concórdia apresenta-se sempre como discors [sic]168, como umha luita e umha discussom e nom como um abraço teatral longo e repetido. Mas é sempre concórdia e da mais íntima e factual.
Queridíssima, abraço-te com tenrura. antonio
Fum eu que risquei a parte relativa ao jornal. suspende a assinatura, isto é, nom a renoves em absoluto.
168 discórdia. [N. do T.]

(Carta 113)

27 de junho de 1932
Queridíssima Iulca,
recebim os teus folhetos, datados em messes e dias diferentes. as tuas cartas lembrárom-me um conto de um escritor francês pouco conhecido, Lucien Jean, acho, que era um pequeno funcionário numha administraçom municipal de Paris. o conto intitulava-se Un uomo in un fosso169. tento lembrarme dele. Um homem bebera muito umha noite: talvez bebera demasiado, se calhar a visom continuada de lindas mulheres o alucinara um pouco. depois de sair do local de encontro, depois de ter caminhado um pouco em zigue-zague polo caminho, caiu num fosso. estava mui obscuro, o corpo ficou-lhe preso entre pedras e silvas; estava um pouco assustado e nom se moveu, por medo a cair ainda mais para o fundo. as silvas recompugérom-se sobre ele, as lesmas passavam-lhe por cima esbranquiçando-o (até um sapo se lhe pousou sobre o coraçom, sentindo o batido; na realidade, porque o considerava ainda vivo). Passárom as horas; chegou a manhá e as primeiras luzes do abrente, começou a passar gente. o homem pujo-se a pedir ajuda. achegou-se um senhor de óculos; era um cientista que tornava a casa, depois de ter trabalhado no seu laboratório experimental. Que tem o senhor? perguntou. — Queria sair do fosso, respondeu o homem. — ah, ah! Querias sair do fosso! e que sabes tu da vontade, do livre arbítrio, do servo arbítrio! Querias, querias! sempre a idêntica ignoráncia. sabes apenas umha cousa: que estavas de pé por causa das leis da
169 o conto de Lucien Jean (pseudónimo de Lucien dieudonné), 1870-1908, fora publicada por G. no semanário L’Ordine Nuovo, 6-13 de dezembro de 1919.
Lucien Jean pertence à chamada «escola proletária» da literatura francesa.
estática, e que caíche por causa das leis da cinemática. Que ignoráncia, que ignoráncia! — e afastou-se abanando a cabeça, todo indignado. — sentírom-se outros passos. Novas invocaçons do homem. achegou-se um labrego, que levava da trela um porco para a feira, e fumava o cachimbo: ai, ai. Caíche no fosso, eh? Bebeche avondo, passache-lo bem e caíche no fosso. e por quê nom foche dormir, como figem eu? — e afastou-se, com o passo compassado polo cuinhar do porco. e mais tarde passou um artista, que se lamentava porque o homem queria sair do fosso: estava tam lindo, todo esbranquiçado polas lesmas, com umha auréola de ervas e flores silvestres baixo a cabeça, era tam patético! e passou um ministro de deus, que se puxo a imprecar contra a depravaçom da cidade que se divertia ou dormia quando um irmao caíra no fosso. exaltou-se e saiu às carreiras para fazer um terrível sermom na próxima missa. desta maneira, o homem permaneceu no fosso até que nom enxergou ao seu redor, viu com exatitude onde caíra, torceu-se, curvou-se, fijo palanca com os braços e com as pernas, pujo-se em pé, e saiu do fosso com as suas únicas forças.
Nom sei se gostache do conto nem se é mui ajeitado. Mas polo menos em parte penso que sim: tu mesma escreves que nom lhe dás a razom a nengum dos dous médicos que consultache recentemente, e que se até agora deixavas decidir aos outros, agora queres ser mais forte. Nem sequer considero que haja um pouco de desespero nestes sentimentos: penso que som bem sensatos. É preciso queimar todo o passado e reconstruir toda umha vida nova: nom é preciso deixar-se esmagar pola vida vivida até agora, ou polo menos é preciso conservar dela apenas aquilo que foi construtivo e mesmo bonito. É preciso sair do fosso e deitar fora o sapo do coraçom.
Cara Iulca, abraço-te com tenrura.
antonio

(Carta 114)

18 de julho de 1932
Queridíssima Iulca,
tivem duas cartas tuas, de 24 de junho e de 3 de julho. Nom estivem mui bem nos últimos tempos (de um ano a esta parte, isto acontece um pouco mais amiúde do que antes) e nom tenho a disposiçom para escrever-che com um pouco mais de vagar. No entanto, quero dizer-che que as tuas últimas cartas me dérom um pouco de felicidade: até opino que te figeche mais forte e mais segura de ti mesma. estou contente também porque já nom estás obcecada com o tratamento psicanalítico, que até onde podo opinar, em base aos meus conhecimentos, me parece demasiado imbuído de charlatanaria e capaz, sempre que o médico assistente consiga vencer em pouco tempo a resistência do sujeito e que com a sua autoridade o arranque à depressom, de agravar as doenças nervosas em lugar de curálas, sugerindo ao doente motivos de novas inquietudes e de redobrado marasmo psíquico. Querida, penso que a tua mae, ao expressar que devias «chegar a ser um elefante», demonstrou ser o médico mais seguro e mais fiável. Fai-me feliz o que me escreves sobre Giuliano e das suas perguntas sobre o meu conto, mas isso fai-me pensar ainda nisso que che escrevim noutra ocasiom, que para as crianças devo ser um pai misterioso, que sempre lhes está longe e que nunca se ocupa com elas, a diferença do que fam os outros. apesar de tudo, penso que isso deve lançar um certo véu de sombra no seu ánimo, nomeadamente no de Giuliano, se ele for algo tímido e fechado como tu o descreves. abraço-te com tenrura. antonio

(Carta 115)

1 de agosto de 1932 Queridíssima Iulca,
recebim a tua carta de 15 de julho. agradeço o teu escrever frequente. recebim as fotografias dos meninhos e de ti, que me ajudam a imaginar de umha forma algo mais concreta a vossa vida e a fantasiar menos. a tua última carta deu-me também umha prova de que as tuas condiçons de saúde melhorárom; quigem relê-la, mesmo como um «relatório»... médico e constatei que nom há nem um erro de ortografia e de língua em geral. Isso quer dizer que o teu italiano é ainda sólido e que o teu processo de formaçom das ideias voltou a ser límpido e claro, sem dúvidas, arrependimentos ou indecisons, como nom parecia ser dantes, polo menos algumhas vezes.
Lembras-te ainda de quando che contara a história dos sapos que se pousam sobre o coraçom dos adormecidos no campo? Fai precisamente aproximadamente 10 anos: quantas patranhas che tenho contado naquele mês passado no sanatório! Quando escrevia o continho do homem no fosso, tornoume à memória improvisadamente, e lembrei-me de que che ficara impresso na altura com um acompanhamento de sensaçons cómicas.
também o que escreves sobre delio e Giuliano e das suas
inclinaçons fijo com que lembrasse que alguns anos atrás acreditavas que delio tinha muita inclinaçom pola engenharia construtiva, enquanto hoje parece que essa é a inclinaçom de Giuliano, e delio dirige-se antes à literatura e à construçom... poética. Na verdade, digo-che que nom acredito nestas inclinaçons genéricas tam precozes e que tenho pouca confiança na tua capacidade de observar as suas tendências para umha orientaçom profissional. acho que em cada um deles subsistem todas as tendências, como em todas as crianças, quer seja para a prática quer para a teoria ou a fantasia, e que seria justo, nesse sentido, guiá-los polo contrário para umha temperança harmoniosa de todas as faculdades intelectuais e práticas, que já terám maneira de se especializarem ao seu tempo, sobre a base de umha personalidade vigorosamente assente, num sentido unánime e integral. o homem moderno deveria ser umha síntese daqueles que som... hipostasiados como carateres nacionais: o engenheiro americano, o filósofo alemao, o político francês, os quais recriam, por assim dizer, o homem italiano do renascimento, o tipo moderno de Leonardo da Vinci convertido em homem-massa ou homem coletivo, mesmo se mantenhem a sua forte personalidade e originalidade individual. Umha cousa de nada, como vês. tu querias chamar Leo a delio; por quê nom pensamos em chamá-lo Leonardo? Pensas que o sistema educativo dalton170 pode produzir Leonardos, nem que seja como síntese coletiva? abraço-te. antonio

(Carta 116)

22 de agosto de 1932
Queridíssima mae,
Ha muito tempo que ninguém me escreve e por isso nom tenho notícias tuas. Há algumhas semanas, tatiana fijo-me chegar algumhas fotografias dos filhos de teresina, das quais gos-
170     o sistema educativo dalton, que toma o nome da homónima cidade americana, é um método pedagógico ideado por Helen Parkhurts e difundido principalmente na Inglaterra. Conforme este método, a escola divide-se em obradoiros, onde cada aluno pode trabalhar livremente de acordo com os seus gostos (talha, cerámica, carpintaria, etc.).
tei muito. É verdade que Mimma se parece muito com emma quando era pequena. Para além disso, é surpreendente como estas crianças tenhem as feiçons da família (também delio e Giuliano tenhem muito marcadas estas feiçons); parece que vejo rostos já vistos tantas vezes e que afloram na lembrança a tantos anos de distáncia. diddi parece-me que se parece muito com a teresina, tal como era quando morávamos ainda em sorgono171 e íamos à escola infantil das monjas; porém, nom é crespo e loiro como era teresina. a última fotografia de delio que recebim deu-me a impressom de ver outra vez o Mario quando tinha oito anos; igualmente, Giuliano tem umha carinha que me lembra nas feiçons generais de Nannaro e nomeadamente as do tio alfredo172, que para dizer a verdade, nom me foi nunca mui simpático, embora se pareça tanto aos da casa (a diferença de tio Cesare que parecia de outra família). Mas talvez sejam impressons superficiais devidas à sugestom, mais do que a outra cousa. Mas por que nom deixaches que se retratasse no grupo das crianças a outra figura? devia tratarse de Paolo, penso. espero as tuas notícias. anima a teresina e Grazietta a que me escrevam.
abraço-te afetuosamente. antonio
171     Vila de sardenha onde a família de G. morou durante certo tempo e onde nascérom Mario, teresina e Carlo.
172     tio alfredo, e mais adiante tio Cesare, eram irmaos do pai de G.

(Carta 117)

29 de agosto de 1932 Queridíssima tania,
recebim a tua carta de 24 com a carta de Giulia. reflexionei muito no que escreveche a propósito da hipótese de conseguires para mim umha visita exaustiva por um médico de confiança. acho que em linhas gerais as tuas consideraçons som justas, e que o projeto é digno de tomar em consideraçom. eis o meu ponto de vista: cheguei a um ponto tal que as minhas forças de resistência estám para desabar completamente, nom sei com quais consequências. Nestes dias sinto-me tam mal como nunca estivem; desde há mais de oito dias nom durmo mais de três quartos de hora por noite, e durante noites inteiras nom fecho olho. É bem certo que se a insónia forçada nom é causa em si mesma de alguns males específicos, agrava-os de tal maneira e acompanha-os com tais mal-estares concomitantes, que o conjunto da existência chega a ser insuportável, e qualquer saída, mesmo a mais perigosa e acidentada chega a ser preferível à continuaçom do estado presente. todavia, antes de entrar no caminho por ti proposto, quero ainda fazer umha tentativa perante o senhor diretor do cárcere e se for necessário perante o senhor juiz de vigiláncia, para ver se é possível obter que sejam retiradas as condiçons que causam o atual estado de cousas. Isso nom é absolutamente impossível, e preferiria-o para evitar as despesas notáveis que a visita de um médico de confiança leva consigo. de resto, mesmo um médico assim nom poderia nom chegar à conclusom de as minhas condiçons desastrosas serem devidas em grande parte à falta de sono, polo qual a questom se apresentaria nestes termos e neles seria preciso resolvê-la, polo menos inicialmente. tratase de adiar, na pior das hipóteses, a realizaçom da tua proposta para o mês de setembro. em finais de setembro terei de chegar forçosamente a umha conclusom, se nom quiger tolear, ou entrar numha fase que nem eu mesmo sei imaginar, tam exausto como estou. acredita que nom podo mesmo mais, e assustame o feito de estar a perder o controlo dos meus impulsos e dos instintos elementares do caráter. Por isso, a tua proposta é para ser considerada: podes aperfeiçoá-la, fixando os seus pormenores e dando, se calhar, os passos necessários para ver quanto se há de gastar e quem pode ser o médico para escolher, porque acho que na instáncia em que se pida a autorizaçom para a visita será preciso incluir o nome com todos os seus dados. Queridíssima, abraço-te com tenrura. antonio
(Carta 118)
5 de setembro de 1932 Queridíssima Iulca,
retomo a tua carta de 14 de agosto. Isso que escreves sobre Leonardo da Vinci nom me parece nem justo nem exato; provavelmente, tiveche bem poucas ocasions de ver o Leonardo como artista e ainda menos de o conhecer como o escritor e como cientista. Mas é inexato, com certeza, o juízo que me atribuis, segundo o qual «ter amor por um escritor ou outro artista nom é o mesmo que estimá-lo». Nunca pudem escrever semelhante... banalidade; teria-me afastado dela, se nom outra cousa, a lembrança de um certo número de obras teatrais inspiradas polo filisteísmo universal, em que estes temas do «amor sem estima» e da «estima sem amor» encontrárom toda umha série de aplicaçons à vida conjugal. se calhar, distinguim o prazer estético e o juízo positivo da beleza artística, isto é, o estado de ánimo de entusiasmo pola obra de arte como tal, do entusiasmo moral, isto é, da participaçom no mundo ideológico do artista, distinçom que me parece criticamente justa e necessária. Podo admirar esteticamente Guerra e Paz de tolstoi e nom partilhar a substáncia ideológica do livro; se os dous factos coincidissem, tolstoi seria o meu vademecum, le livre de chevet. o mesmo pode dizer-se de shakespeare, de Goethe e mesmo de dante. Nom seria exato dizer o mesmo de Leopardi, apesar do seu pessimismo. em Leopardi encontra-se, em forma extremamente dramática, a crise de transiçom para o homem moderno; o abandono crítico das velhas concepçons transcendentes sem que se encontrasse ainda um novo ubi consistam moral e intelectual, que desse a mesma certeza do que se abandonou.
relativamente à próxima recuperaçom da tua atividade,
os conselhos que che podo dar som bem escassos e genéricos. todavia, julgo que podem ser de algumha utilidade, se te decidires a segui-los. Penso que se nom trata de leres este ou aquele livro, quanto de teres um rumo e portanto de te propores determinados objetivos. os objetivos que poderias e deverias propor-te, para utilizares umha parte nom indiferente das tuas atividades no passado, em minha opiniom, seriam estes: chegares a ser umha tradutora de italiano cada vez mais qualificada. eis o que entendo eu por tradutora qualificada: nom apenas a capacidade elementar e primitiva de traduzir a prosa da correspondência comercial ou de outras manifestaçons literárias que se podem ressumir no tipo de prosa jornalística, mas a capacidade de traduzires qualquer autor, seja literato, ou político, ou historiador ou filósofo, das origens até hoje, e portanto a aprendizagem das linguagens especializadas e científicas e dos significados das palavras técnicas segundo as diversas épocas. e nom chega ainda: um tradutor qualificado deveria ser capaz nom apenas de traduzir literalmente, mas de traduzir os termos, também concetuais, de umha determinada cultura nacional para os termos de umha outra cultura nacional, isto é, um tradutor assim deveria conhecer criticamente duas culturas e ser capaz de fazer conhecer umha à outra, servindo-se da linguagem historicamente determinada dessa cultura à qual fornece o material de informaçom. Nom sei se me expliquei com clareza suficiente. No entanto, penso que um trabalho semelhante mereceria ser feito, ou melhor, mereceria empenhar nele as forças todas. acrescento que seria mui feliz se te dedicasses a ele de maneira sistemática e continua, com a finalidade de atingires o máximo de qualificaçom, a especializaçom. Queridíssima Iulca, abraço-te com tenrura. antonio

(Carta 119)

12 de setembro de 1932 Queridíssima mae,
recebim umha carta de Grazietta de 24 de agosto com notícias sobre a colheita e sobre a casa nova para a que foi morar teresina. Lembro mui bem o pátio, onde eu jogava com Luciano, e a pia onde fazia manobrar as minhas grandes frotas de papel, de cana, de férula e de cortiço, e onde depois as destruía a golpes de schizzaloru173. Lembras quanta habilidade tinha para reproduzir a partir das ilustraçons os grandes navios a vela e
173 Schiazzaloru, em sardo, é um rudimentário fuzil de ar comprimido, construído com umha póla de sabugueiro.
como conhecia toda o vocabulário marinheiro? Falava sempre em brigues, xavecos, três mastros, schooners, em amuradas e em velachos, conhecia todas as fases das batalhas navais do Corsário Vermelho e dos tigres de Mompracem174, etc. só lamentava que Luciano possuísse umha simples robusta barquinha de lata pesada que em quatro movimentos afundia e batia com o esporom os meus galeons mais elaborados e com todo um complicado aparelho de pontes e de velas. todavia, orgulhava-me muito da minha capacidade construtiva, e quando o latoeiro que tinha a loja na esquina onde começavam as casas baixas do lado da igreja, me pediu que lhe figesse um modelo de grande veleiro para o reproduzir em lata em série, orgulhei-me mesmo de colaborar como engenheiro em semelhante construçom.
Queridíssima mae, sempre esqueço pedir-che informaçons sobre o filho do geómetra Porcelli, Giacomino, que de rapazinho era tam afeiçoado a mim e ao meu falcom e queria estar sempre na minha companhia. Há um Giacomo Porcelli175, católico mui combativo, que escreve livros e artigos sobre a literatura francesa; é o mesmo? Com certeza, seus tios ham de saber. Mas quem sobrevive de toda a família Corrias?
Fai que escrevam um pouco mais amiúde. Por que teresina nom me enviou a carta tantas vezes prometida?
abraço-te afetuosamente junto a todos os da casa. antonio
174     Personagens dos romances de aventuras de emilio salgari.
175     Giacomo Porcelli, uns dez anos mais jovem que G., ia por volta de 1906 onda os Gramsci jogar com os rapazes. entre 1925 e 1926 escreveu, com efeito, alguns artigos e resenhas de livros de escritores católicos e publicou um volume sobre La letteratura italiana nella critica francese durante la Monarchia di Luglio (1830-1848), Vallecchi, Florença, 1926.
Um beijo especial para Franco, que na carta de Grazietta engadiu os seus cumprimentos.

(Carta 120)

3 de outubro de 1932 Querida tatiana,
recebim o teu postal de 29 de setembro. Nom me satisfijo em absoluto. até há algum tempo, esperar cartas e correspondência era a minha maior felicidade. em todos este anos, foche a minha correspondente mais assídua e diligente: estava sempre seguro de que cada semana, polo menos, nom havia faltar um postal teu. Mas agora quase que tenho medo de receber a tua correspondência. Há alguns messes, e precisamente na primeira quinzena de julho, escrevim-che umha série de cartas mui breves e recomendei-che que tratasses só nas tuas cartas assuntos familiares. Certamente nom reflexionache sobre este facto e nom foche capaz de tirar dele nengumha conclusom para o teu comportamento. repensando nestes dias as cousas passadas, convencim-me de que quando Giulia me escrevia duas ou três cartas por ano, sempre iguais, estereotipadas e nas quais se sentia o embaraço e o esforço, devia-se só parcialmente à sua doença; devia-se certamente a umha proposta que lhe figeras em relaçom a mim, que era desonrosa para mim e que ela tinha todas as razons para julgar que se devia à minha iniciativa. Como explicar de outra maneira certas expressons suas recentes, sibilinas, em que reconhece que fora injusta nas suas opinions sobre mim? Querida tatiana, querote muito, e sei que nestes anos me ajudache como ninguém a superar as crises periódicas que o cárcere, agravando a minha neurasténia habitual, me fijo atravessar. Mas devo dizer que a tua atitude, relativamente à vida de todos estes anos, áspera e dura, é a atitude que se pode extrair da leitura da Biblioteca rosa de Madame de ségur; és de um otimismo assombroso, as tuas hipóteses som sempre aquelas que gostarias que se realizassem e conservache umha ingenuidade e umha frescura sentimentais encantadoras e que enternecem; enternecêromme também a mim nos anos que passamos amiúde juntos, conversando e discutindo, apesar de ter sempre acreditado, pola experiência da infáncia, que estava imunizado contra tais «debilidades». todavia, apesar de todo isto, apesar de a minha tenrura por ti ser imutável, devo pedir-che que modifiques completamente as nossas relaçons, visto que queres continuálas nestas condiçons. Nom deves interessar-te mais, de maneira nengumha, pola minha vida no cárcere e deves modificar consequentemente a tua correspondência neste sentido, se a nom quigeres interromper de todo. Pido-che que nom discutas este desejo meu, porque me veria forçado a devolver as tuas cartas ou postais. e pido-che também que nom tenhas a mal quanto che escrevo. se um dia podemos voltar-nos a ver em condiçons de igualdade, quer dizer, sendo eu livre, acho talvez que che farei chorar; mas nom penso que a hipótese seja mui provável. Já sei o que vas objetar-me; é perfeitamente inútil que me fagas o catálogo das tuas boas intençons; como di o provérbio «de bons propósitos está o inferno cheio». Para além disso, nom deves acreditar que tenha intençom de suicidar-me ou de abandonar-me, como um peixe morto, ao fio da corrente. som responsável por mim mesmo desde há muito tempo e som-no desde criança. Comecei a trabalhar aos onze anos, ganhando bem 9 liras por mês (o que por outro lado significava um quilo de pam por dia) por dez horas de trabalho cada dia, incluída a manhá do domingo, e passava o dia a remover montes de papel que pesavam mais do que eu e muitas noites chorava às agachadas porque me doía todo o corpo. Quase sempre conhecim apenas o aspeto mais brutal da vida e safei-me sempre, bem ou mal. Nem minha mae conhece a minha vida toda e as adversidades que passei: a ela lembro algumhas vezes a pequena parte que em perspetiva parece agora cheia de felicidade e de despreocupaçom. adoçam-lhe agora a velhice porque lhe fam esquecer as adversidades bem mais graves e as amarguras bem mais profundas polas que ela passou na mesma época. se ela souber que eu conheço todo o que conheço e que aqueles acontecimentos me deixárom cicatrizes, envenenaria-lhe estes anos de vida nos quais é bom que esqueça e que, vendo a vida alegre dos netinhos que tem à volta, confunda as perspectivas e pense realmente que as duas épocas da sua vida som umha e a mesma. Querida tatiana, abraço-te afetuosamente. antonio

(Carta 121)

10 de outubro de 1932 Queridíssimo delio,
soubem que estiveche na praia e que viche cousas bem bonitas. eu gostava de que me escrevesses umha carta para descrever-me essas belezas. Conheceche daquela algum novo ser vivo? Perto do mar existe todo um fervilhar de seres: caranguejos, medusas, estrelas-do-mar, etc. Há muito tempo prometera-che escrever algumhas histórias sobre os animais que conhecim quando criança, mas depois nom pudem. agora vou tentar contar-che algumha: —1° Por exemplo, a história da raposa e do poldrinho. sei que a raposa sabe quando vai nascer um poldrinho, e anda à espreita. e a égua sabe que a raposa anda à espreita. É por isso que, assim que o poldrinho nasce, a mae se pom a correr em círculo em volta do pequeno, que nom pode mover-se nem escapar no caso que algum animal selvagem o ataque. Contudo, algumhas vezes som vistos polos caminhos da sardenha cavalos sem cauda e sem orelhas. Por quê? Porque, assim que nascêrom, a raposa, de umha maneira ou de outra, conseguiu achegar-se e comeu-lhes a cauda e as orelhas, ainda mui tenros. Quando era criança um cavalo destes trabalhava para um velho vendedor de azeite para candeias e de petróleo, o qual ia de aldeia em aldeia vendendo a sua mercadoria (nom havia entom cooperativas nem outras maneiras de distribuir as mercadorias), mas aos domingos, para que os fedelhos nom se mofassem, o vendedor punha ao seu cavalo cauda e orelhas postiças. —2° agora vou-che contar como vim a raposa pola primeira vez. Com meus irmaos fum um dia a um campo de umha tia, onde havia dous enormes carvalhos e algumhas árvores frutais; tínhamos que fazer a colheita das landras para dar de comer a um bacorinho. o campo nom estava longe da aldeia, mas na redonda todo estava deserto e havia que descer até o vale. Mal entrámos no campo, eis que baixo umha árvore estava tranquilamente sentada umha raposa grande, com a linda cauda erguida como umha bandeira. Nom se assustou em absoluto; reganhou os dentes, mas parecia que risse, nom que ameaçasse. Nós crianças encolerizavamo-nos com a raposa, porque nom nos tinha medo; nom tinha nengum medo. Guindamos-lhe pedras, mas ela pouco se apartava e recomeçava a olhar-nos burlona e sorrateira. Punhamo-nos bastons às costas e fazíamos todos juntos: bum!, como se fossem tiros de espingarda, mas a raposa reganhava os dentes sem incomodar-se demasiado. de repente, sentírom-se tiros de espingarda a sério, disparados por alguém nas proximidades. só entom a raposa deu um chimpo e escapou rapidamente. Parece-me vê-la ainda, tam amarela, correr como um lóstrego sobre um valado, sempre com a cauda erguida, desaparecendo numha bouça. Queridíssimo delio, conta-me agora as tuas viagens e as novidades que viche. Beijo-te junto a Giuliano e a mamae Iulca. antonio

(Carta 122)

17 de outubro de 1932 Queridíssima Grazietta,
o postal de Mea do 9 calmou um pouco a impressom que me causara a tua carta de dia 7. Mas nom tivem entretanto mais notícias. Pediria-che que me mandasses um postal cada dous ou três dias. Mesmo se Carlo me escreveu há algum tempo tempo para avisar-me da sua viagem a Ghilarza e se me pujo em guarda contra o teu pessimismo e alarmismo exagerados, a tua carta deu-me a impressom de que se trata de algo mui sério e mui perigoso. Querida Grazietta, sabes que nunca fum mui expansivo com ninguém. Gostava por isso de que nom te enganasses nem sobre os meus sentimentos nem sobre a sua força. a ideia de que nossa mae poda estar moribunda176 enquanto nom podo saber nada preciso e já nom podo voltar a vê-la, obceca-me e persegue-me em todo momento, dia e noite. Lembro-a nos seus momentos de maior energia e força,
176 a mae de G. morrerá no dia 30 de dezembro, mas ocultarám-lhe a notícia durante muito tempo.
vejo novamente com nitidez tantas cenas da nossa vida familiar de outrora, e nom me dou convencido de que poda estar acabada como tu escreves, e que ela mesma sinta que está para nos deixar. Nem sei sequer se poderás fazer-lhe sentir o muito que a quigem sempre, e como umha das maiores amarguras da minha vida, a qual tivo tanta importáncia na formaçom do meu caráter, fosse precisamente ver como a sua existência nom tivo nunca sossego, como a sua vida estivo privada de satisfaçons e de paz duradoiras. escreve-me depressa. abraçote fraternalmente. antonio

(Carta 123)

24 de outubro de 1932 Queridíssima Iulca,
recebim as tuas cartas de 5 e de 12 de outubro, com a cartinha de Julik e as três fotografias, das quais gostei muito. acho é a primeira vez que dou reparado no físico de Giuliano, embora as fotografias nom sejam tecnicamente satisfatórias. e acho que Giuliano é um meninho bem lindo, mesmo de umha maneira objetiva: isso parece, em minha opiniom, principalmente naquela onde está retratado em grupo, perto de ti, que porém nom saiche bem. alegra-me que quigesse escrever-me; nom sei que responder-lhe, no que di respeito à minha fotografia. Nom terás por acaso umha fotografia minha? É verdade que desde entom mudei muito, e acho que dar-lhe umha fotografia de há dez anos é enganar o meninho. agora tenho muitos cabelos brancos e a falta dos dentes deve ter modificado muito as minhas feiçons (nom podo julgar com certeza, porque desde há 4 anos e meio nom me vejo no espelho e precisamente nestes anos devo ter mudado muito). Interessoume o que escreveche sobre o delio estudante, da sua seriedade interior, que nom está separada de um certo amor pola alegria. sinto com pungente pesar ter sido privado da participaçom no desenvolvimento da personalidade e da vida das crianças; contudo, tornaria-me amigo das crianças depressa e conseguiria interessar-lhes. Lembro-me sempre da netinha da minha senhoria em roma; tinha 4 anos e tinha um nome bem difícil, tomado da onomástica turca. Nom abria a porta do meu quarto, aonde se achegava às escondidas, porque a avó lhe dixera que nom devia incomodar-me, já que sempre estava a escrever. Petava mui devagar, timidamente, e quando eu perguntava: «Quem é?» respondia: «Escleves? Queres jogar?», depois entrava, punha a bochecha para que a beijasse, e queria que lhe figesse passarinhos ou desenhos estranhos obtidos a partir das pingas de tinta lançadas a caso sobre o papel. Queridíssima, abraço-te forte. antonio


http://estaleiroeditora.blogaliza.org/files/2011/08/cartas_do_carcere_gramsci_pant.pdf