Luiz Fernando Rolim Bonin
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BONIN,
LFR. Educação, consciência e cidadania. SILVEIRA, AF., et al., org. Cidadania e
participação social [online]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas
Sociais, 2008. pp. 92-104. ISBN: 978-85-99662-88-5. Available from SciELO Books
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Educação,
consciência e cidadania
Luiz Fernando Rolim
Bonin[1]
A cidadania pode ser definida simplesmente como
o gozo de direitos civis e o cumprimento de deveres de acordo com as leis de
determinada sociedade. É um conceito que pode deixar certas pessoas confusas
não só pela sua complexidade, como também em relação ao seu uso, principalmente
em sociedades onde as necessidades básicas, como o alimento, nem sempre são
satisfeitas. Este é o caso da sociedade brasileira, onde esta situação pode
envergonhar muitos daqueles em que a cidadania é melhor realizada. Esta emoção
de vergonha é parte também do verdadeiro cidadão que se preocupa com a
sociedade e sente-se solidário para com aqueles que estão nesse imenso “barco
continental”.
O propósito deste trabalho é o de como pensar a
cidadania em relação à teoria histórico-cultural da aprendizagem e educação,
tentando relacionar processos e valores como meta. A pretensão é a de discutir
como poderia ser formulada uma teoria integrada à cidadania incluindo, além de
processos, também a questão dos valores da cidadania que envolva não só o
conhecimento dos direitos, e deveres mas das formas de agir e de ser crítico da
sociedade e da cultura.
Quando ainda estudante, o autor deste trabalho
utilizou o método Paulo Freire para a educação de adultos, na favela do Rio
Belém em Curitiba. A favela, que a princípio possuía uma dúzia de barracos,
transformou-se numa vila de ruas estreitas. O trabalho teve que ser
interrompido em 1964. O método de alfabetização “Paulo Freire” (que incluía o
desenvolvimento de consciência crítica) era então utilizado em pequenos grupos.
Observou-se que não é suficiente alfabetizar: é necessário dar continuidade ao
processo educacional. É necessário que o alfabetizado seja estimulado pela
leitura e escrita de textos e de outras fontes de comunicação, refletindo sua
prática.
No decorrer dos anos, o mesmo alfabetizador
estudou teorias clássicas da aprendizagem na academia e fez projetos de
extensão e pesquisa, preparando-se, há mais de uma década, lendo a obra de
Vigotsky.
Analisando a obra de Paulo Freire e a obra de
Vigotsky,[2]
é possível estabelecer uma relação entre as metas e procedimentos destes dois
pensadores sobre o processo da aprendizagem e da educação, no contexto sociocultural,
onde é possível refletir sobre os valores da cidadania.
Os dois enfoques têm vários pontos em comum,
mas também enfatizam aspectos diferentes. Por exemplo, Paulo Freire apresenta
um projeto de cidadania mais explícito, que envolve valores como o conhecimento
da realidade para a libertação das opressões e reflexões sobre o mundo
circundante. Refletiu sobre autonomia e liberdade para o exercício de uma ação
política de um verdadeiro cidadão, sendo assim necessário o conhecimento da
cultura para o desenvolvimento da autoestima. Para que isto se efetive, é
necessário também o conhecimento crítico das instituições sociais, saber se
expressar e codificar o mundo pela escrita e decodificar o que está a seu
alcance. Além disso, é necessário ainda saber como superar a consciência
mágica, adquirindo uma reflexão crítica: o pensar a própria sociedade e sua
cultura no contexto do mundo contemporâneo. Tarefa difícil mas que, com o
auxílio da análise crítica do conteúdo de outros meios de comunicação se torna
possível.
Freire procura estimular a reflexão, a partir
da realidade cotidiana, envolvendo de certa forma prática e teoria,
posicionando-se em todos os sentidos contra o autoritarismo. Vê o conhecimento,
a criatividade, a liberdade e a democracia autêntica com valores fundamentais.
Mas isto não significa que deixe de discriminar entre as diferentes formas de
poder existentes.
Um ponto subentendido que é importante
mencionar é a recusa ao que denomina modelo bancário de educação, em que só o
professor sabe e ministra o conhecimento ao aluno. Este modelo é criticado,
pois significa admitir que o aluno não tem trajetos e nem conhecimentos prévios
de muitos objetos e técnicas de sua cultura. Vigotsky e Luria mencionam o
problema e a história cultural do aprendiz. A aprendizagem e a educação se
processam não somente de maneira formal, mas também no contexto da prática do
cotidiano, a maior parte das vezes dialogando com o outro.
De início, pode-se apontar que a proposta de
Paulo Freire e da escola de Vigotsky têm em comum o fato de ambas serem da
linha históricocultural.
A teoria histórico-cultural do desenvolvimento
psicológico foi proposta inicialmente por volta de 1930 por Vigotsky (1984) e
seus colaboradores: Luria (1987) e Leontiev (1978, 1984),[3] sendo que o último
desenvolveu também a teoria da atividade que tem pontos em comum com a de
Vigotsky.
Enquanto a pesquisa do grupo de Vigotsky
concentrou-se no desenvolvimento da mente como formação social, Paulo Freire
estava interessado em pesquisar a ação para a formação do cidadão, com ideias
para a libertação do sujeito histórico, através da estimulação da consciência.
De certa forma, ambos também se complementam. Vigotsky pesquisa a construção
social do sujeito no contexto histórico-cultural, concentrando-se nas origens
do pensamento, da consciência, da comunicação em geral e, essencialmente da
linguagem (fala).
Freire concentra-se na educação social e
política para a cidadania. Esta pedagogia da libertação supõe o surgimento do
sujeito epistêmico, conhecedor consciente dos processos sociais de sua cultura
a fim de superar uma consciência ingênua. O domínio da linguagem escrita, com
seus códigos, é importante para que o sujeito registre e expresse de forma nova
seus saberes e tenha acesso às comunicações e obras escritas por outrem através
da leitura. Portanto, a mera alfabetização não é suficiente, pois importa que o
sujeito dominado perceba que ele mesmo como um analfabeto também já é um
sujeito histórico que produz cultura.
A alfabetização se dá conjuntamente com o
círculo da cultura. As palavras que vão gerar alfabetização são termos com
significado na vida destes que serão alfabetizados e servem como ponto para
desenvolver as ideias de produtor da cultura, iniciando-se, assim, a
consciência crítica. Tem por objetivo também, que o sujeito se perceba como ser
histórico, situado no espaço e no tempo, que transforma a realidade e cria a si
mesmo.
As palavras geradoras são apresentadas
juntamente com fotografias e desenhos sobre situações cotidianas que levem o
sujeito a refletir sobre si e o seu meio. Ao mesmo tempo, ligar palavras a
situações ou vivências representadas, supõe a atividade de codificação e
decodificação.
Para Freire, como para Vigotsky, a consciência
não está separada do contexto da vida e da ação transformadora do homem. A
reflexão está ligada à atividade humana (práxis).
O pedagogo Freire ainda inclui educação
política do oprimido e afirma que sua utopia é a esperança na libertação do
homem do povo (recuperando sua autoestima e valores culturais) para a
construção da verdadeira democracia.
Não se deve esquecer que, neste ponto, Vigotsky
cientista é também um humanista preocupado com a questão da educação. E que,
inspirado nos trabalhos iniciais de Piaget, procurou pesquisar o surgimento dos
conceitos científicos a partir do quotidiano e, portanto, o desenvolvimento da
consciência ou pensamento categórico ou lógico.
Seguindo as propostas de seu mestre, Luria
(1990) estudou o pensamento categórico, descentralizado. Chegou a conclusão que
a escola estimulava o uso deste pensamento que nem sempre é necessitado nos
afazeres cotidianos dos camponeses. Os trabalhos de Leontiev, também estão
direcionados à educação, mas pelo fato de ter desenvolvido uma variante
teórica, mas neste momento discuti-lo aqui seria ir além do objetivo deste
artigo.
Após esta introdução a pretensão é de
aprofundar o estudo sobre os dois pensadores em temas específicos:
O homem e o
animal
Para Luria (1987), Vigotsky (1992) e Leontiev
(1978) as diferentes espécies têm que ser estudadas em seus comportamentos
específicos. O chimpanzé tem um comportamento inteligente, pois ao resolver
problemas, utiliza instrumentos em seu habitat. Este animal consegue adquirir
hábitos através das gerações, por imitação. Bonin (1996; 1998) considera que
estes animais têm uma protocultura e o homem é um ser que domina a fala e
apropria-se por meio desta a cultura de seu grupo. O homem é um ser de relações
que tem consciência do tempo (presente, passado e futuro) e pode planejar-se e
orientar-se sobre suas próprias ações. Enfim, o homem é um ser
histórico-cultural.
Pode-se dizer que para Freire (1997), o animal
responde mais a condicionamentos (reflexos) e não faz previsões a longo prazo
(inconsequente). Não possui mediações simbólicas (representações) e não
transcende a si próprio. Tem os comportamentos limitados ao seu campo de visão,
no tempo presente.
O ser humano capta a realidade, tornando-a
objeto de seus conhecimentos. Passa a refletir sobre a realidade e a compreender
seus desafios para tentar superá-los. Não se limita a adaptar-se à realidade,
mas a transforma, e neste processo, transforma-se a si próprio. É um ser que
planeja, revisa e verifica suas ações, imaginando seus efeitos no futuro
(consequências). É também um ser que transforma sua mente e o ser “eu” nas
relações sociais. O diálogo “eu” e “você” é essencial à sua formação. O humano
é principalmente um ser de relações e em parte constituído por elas (ver Bonin,
1998).
A questão da
consciência:
Para Vigotsky (1991) e Luria (1979), a
consciência está relacionada à vida. Pode ser considerada um reflexo distorcido
da realidade, pelos motivos e objetivos do ser animal e humano.
No caso dos seres humanos, ela pode ser mediada
pela fala, e isto implica em codificação, usualmente generalização e até
abstração. É impossível, portanto, dizer que os conteúdos da consciência sejam
cópias do real. O animal pode ter sua consciência, principalmente como sensação
e percepção. No homem, ela envolve pensamento, memória e percepção mediada e
mesmo, raciocínio verbal. A consciência pode ser organizada em uma hierarquia
de conceitos. Por exemplo, falar em consciência ecológica pressupõe que o
sujeito tenha um esquema de conceitos ligados à ecologia.
Os animais podem pensar sem a fala, ao resolver
problemas de situações presentes, no campo visual. É o que Vigotsky (1984)
considera como inteligência prática. Esta inteligência seria também aquela do
bebê pré-verbal.
No homem a comunicação não é só afetiva, mas
também verbal. Esta última tem sua origem diferente do pensar, mas funde-se com
o pensamento em uma etapa do desenvolvimento, tornando-se “pensamento verbal”
ou “fala racional”. O pensamento verbal surge devido à interação da criança com
adultos de uma dada cultura. E o que no início é interpsicológico, torna-se
intrapsicológico. Por exemplo, comandos verbais de outrem, tornam-se
autocomandos. Por outro lado, o pensamento lógico científico, abstrato e
descentralizado, tem sido incentivado pela escola.
Freire (1980), interessado em uma educação
libertária e humanista para a cidadania, propõe a distinção entre outros níveis
de consciência. Principalmente a consciência ingênua e não crítica, imersa no
contexto e de caráter mágico, isto é, uma consciência que não vai além das
aparências. Não procura entender as relações de causa e efeito, que apela para
as explicações mágicas. Neste sentido, as ideias de Freire lembram a descrição
do pensamento de Piaget em determinado percurso de sua obra. Entretanto, Freire
enfatiza o lado da alienação social e política.
Neste nível de conscientização, o sujeito ainda
não é sujeito do conhecimento, que procura revelar a realidade para
transformá-la.
A consciência crítica vai além das relações
aparentes e pode ser facilitada pelo diálogo, no processo de alfabetização.
Neste ponto, é importante uma reflexão mútua sobre cultura, incluindo mitos,
instituições, etc.
Os indivíduos podem deparar-se com situações
limites, mas o sujeito percebe que pode desenvolver mais seu potencial humano,
para sentir como sujeito cidadão e criador de valores. É possível a existência
de uma consciência ingênua em transição para a crítica, quando transformações
sociais o levam a começar a duvidar das aparências.
Os humanos têm motivação potencial para
transformar a realidade com o objetivo de tornarem-se livres de dominação. A
educação pode incentivar o sujeito, através do diálogo, fazer escolhas sobre o
rumo de suas ações no espaço e tempo do contexto cultural. É importante
tornar-se consciente das suas tradições e rotinas inconscientes.
É fundamental dominar os códigos da linguagem
oral e escrita e executar movimento dialético do pensamento concreto para o
abstrato e vice-versa, para ampliar o domínio da reflexão.
Vigotsky (1979) indicou, por outro lado, que o
indivíduo pode tornarse consciente de sua própria língua quando estuda uma
língua estrangeira. Pois assim, é obrigado a estar ciente das regras sintáticas
(metalinguagem ou metacognição). Luria (1987) lembra que o bom ator de teatro,
para entender os motivos de sua personagem deve entender o subtexto que está
subjacente ao texto.
O pedagogo, citando Aldous Huxley, propõe que
através do diálogo professor e aluno possam analisar como a associação e a
diversificação de ideias ocorrem na propaganda.
Vivemos em uma época em que a comunicação,
massificadora e manipuladora, predomina em vários meios. Portanto, torna-se
necessário compreender este processo para que a consciência crítica venha à
tona, o que permitirá a libertação do indivíduo. Assim, é possível trabalhar em
direção à utopia da democracia plena e autêntica.
A reflexão não é um processo somente destinado
à adaptação do ser humano ao seu meio, mas principalmente à transformação deste
último, que por sua vez modificará o ser humano no bojo de um movimento
histórico.
Freire (1980) alerta que a consciência ingênua
não significa que ela seja fechada a transformações sociais. O problema surge à
medida que o indivíduo de consciência ingênua fica frente à ruptura visível do
tecido social, tornando-se irracional e desenvolvendo uma consciência fanática
e massificada.
Indivíduos, devido ao não uso da reflexão
crítica, podem limitar-se a ver a realidade como estática, não aceitando
contradições e ambiguidades, levados pelos simples preconceitos, ideias simples
e palavreado atraente e fácil da propaganda. Por outro lado, a consciência
crítica supõe teste de hipóteses no mundo real, conclusões provisórias e
revisões constantes. Procura aprofundar-se além das aparências, busca o diálogo
e a investigação; aceita responsabilidades. Segundo Freire, “Face ao novo não
repele o velho por ser velho, nem o novo por ser novo, mas aceita-os na medida
em que são válidos” (Freire, 1997:41).
A questão da
cultura
Freire (1980,1996) adota o conceito
antropológico de cultura, enfatizando a relação do homem com o mundo (cultura
não é uma coisa, mas uma relação) isto é, a criação grupal de objetos,
comportamentos, instrumentos, rituais, linguagens e instituições. Enfim, é a transformação
através do trabalho, da matéria ou da natureza em geral. A cultura é em parte
conservada, transformada e transmitida de geração em geração. O método Paulo
Freire procura enfatizar que os analfabetos já são, desde a infância,
produtores de cultura. Propõe o resgate da autoestima, também considerando
importante superar o sentimento de inferioridade cultural que é gerado pelo
colonialismo. Alerta contra o transplante de ideias de uma cultura para outra,
sem que haja algum tipo de diálogo cultural. Propõe ainda a ação cultural para
a liberdade, que supõe transformações internas e externas nos indivíduos,
opondo-se desta maneira, à cultura do silêncio dos oprimidos, das sociedades
fechadas. Torna-se assim importante a criação de novos espaços de invenção para
repensar e criar valores.
Vigotsky (1980) tenta mostrar que no início a
criança segue uma linha de desenvolvimento principalmente biológica, mas depois
passa a predominar o desenvolvimento cultural, que depende das relações sociais
com outros membros de seu grupo. Os indivíduos adultos ajudam o infante a
realizar tarefas que este não pode fazer sozinho. O uso de instrumento e da
fala são peças fundamentais no desenvolvimento cultural. A fala é também
instrumento do pensamento e seu uso faz com que o ser humano destaque-se dos
outros animais.
Para Vigotsky, o desenvolvimento biológico é
transformado em cultural pelo uso da linguagem, enquanto que Paulo Freire
considera o conhecimento de si e de sua cultura como um caminho para a
liberdade e valorização do cidadão. É um projeto de educação para a cidadania.
Os dois autores destacam o papel da linguagem que permite ao ser humano pensar
no presente, passado e futuro. Assim, situa-se no espaço e no tempo como ser
histórico que planeja seu próprio trajeto de vida. Para Luria (1987), a fala da
criança está presa ao contexto imediato dos objetos (simpráxica) e só depois
passa a entender o significado de termos através de outras palavras (fase
sinsemântica). É a linguagem que permite a existência do pensamento verbalizado
e portanto, do raciocínio. Luria (1987) observou que o desenvolvimento do
pensamento também modifica o significado das palavras.
Freire (1970) vê a palavra oral e escrita como
codificações do mundo, mas é a escrita que amplia a visão sobre o mundo. Este
processo abre ao alfabetizado novas formas de registros e outros horizontes.
Freire e Vigotsky também realizaram estudos interdisciplinares e ambos
enfatizaram a necessidade de estudos no contexto cultural e cotidiano.
Neste sentido, seguidores de Vygotsky tais como
Rogoff (1990), que realizou estudos do desenvolvimento cognitivo em diferentes
culturas; Cole e Scribner (1977), que também realizaram estudos sobre memória,
formas de codificação, etc. em vários contextos culturais, contribuíram para o
maior entendimento da relação educação e cultura.
Atualmente muitos educadores já se preocupam
com o papel da cultura na aprendizagem. McLaren (1997), ligado ao grupo de
Paulo Freire, realizou estudos sobre o multiculturalismo na educação, tema que
necessita de debates mais amplos em nosso país.
Comunicação
A comunicação, segundo Lima (1984), é uma
questão problemática na obra de Freire, pois o autor, apesar de falar em
comunicação, só admite o diálogo face a face como a única forma autêntica de
analisar ou avaliar. Qual então o status de outros tipos de comunicação na
pedagogia de Freire? O educador não considera a mera transmissão de
conhecimento de uma pessoa que detém conhecimento a outra que o recebe, como
uma comunicação autêntica. Esta supõe um diálogo face a face entre pares, isto
é, uma situação em que não haja dominação por parte de um dos interlocutores. O
tipo de comunicação dominadora é considerada alienante. Se um interlocutor,
considerando-se interlocutor do conhecimento, passar a informação a um receptor
passivo que acumula, tem-se o que denominou como educação bancária. A
contribuição de Freire é importante mas merece uma discussão aprofundada e mais
externa de seus temas.
Afinal, quais as vantagens e problemas
ocasionados pelos diferentes meios de comunicação? Como bem observou Vigotsky,
é através da invenção e do uso cultural de instrumentos que o próprio ser
humano se modifica, portanto, é importante estudar o impacto (prós e contras)
do uso de instrumentos e técnicas.
O educador aborda o que denomina cultura de
silêncio dos oprimidos das sociedades que são, em parte, fechadas. Nestas, o
debate é considerado uma ofensa por aquele que se considera detentor do
conhecimento.
Mas, o homem em geral tem motivação para
indagar e refletir sobre a realidade em que está imerso. Procura compreender
desafios, ter esperança de superá-los, buscando o diálogo. Não se limita a
adaptar-se à realidade, mas procura transformá-la. É basicamente um ser que, em
grande parte, é produto das relações interpessoais, daí sua intensa motivação para dialogar sobre o
mundo.
Conclusões
Vigotsky no início de sua carreira esteve
interessado nas relações entre arte e emoção. Desenvolveu uma teoria para
explicar a transição do desenvolvimento biológico para o cultural. Ele e seus
seguidores estudaram o papel da fala e da escrita no desenvolvimento humano,
principalmente a transformação dos conceitos cotidianos em científicos, ainda
desenvolvendo pesquisas ligadas a recuperação de deficiências cognitivas.
Freire viveu até a maturidade em um país que
não sofreu grandes transformações sociais violentas, mas que carrega por
séculos grandes problemas sociais. Pesquisou um método de alfabetização que
incluía o desenvolvimento da consciência e da autoestima do indivíduo em seu
contexto cultural.
Examinando as contribuições e questões
colocadas pelas duas escolas, pode-se afirmar que existem pontos comuns e
outros que podem ser complementares. A teoria histórico-cultural pretende fazer
uma psicologia não individualista e não “psicologista”, mas voltada para a
formação social do sujeito considerando a cognição e a emoção na atividade,
como construções culturais a partir de uma base biológica.
A proposta de Freire torna mais rica a reflexão
e investigação em relação à educação, pois está ligada a uma teoria e prática
relacionadas a formação do cidadão, incluindo a construção de uma visão
política necessária para uma democracia autêntica. O pedagogo nos alerta que,
se os políticos pensam sobre a educação, é importante também que os educadores
reflitam sobre as políticas do governo.
A questão da formação ou educação política é um
tema complexo, que deveria ser feita de maneira a evitar o sectarismo,
envolvendo pontos de vista diferentes ou opostos, sobre temas que despertam
interesse. É importante oferecer uma visão multipartidária sobre o tema. Os partidos
poderiam contribuir sobre esta questão, nos meios de comunicação, apresentando
um enfoque mais sério sobre os temas e suas propostas.
Infelizmente as experiências de aprendizagem
formal nesta área não têm sido recomendáveis pelo seguinte motivo: interesse em
promover as propostas e feitos governamentais, não dando oportunidade ao
desenvolvimento de uma consciência crítica através de debates ou perspectivas
inovadoras. É necessário repensar este tipo de aprendizagem, incluindo nos
programas, um olhar histórico e crítico sobre as instituições sociais, uma
análise de diferentes propostas políticas econômicas e sociais e ainda o estudo
de diferentes formas de representação política. A Análise crítica dos discursos
políticos e outros tipos de propaganda são também essenciais para o exercício
de uma democracia que vá além do consenso fabricado pela mídia.
Vigotsky demonstrou que a comunicação
linguística, a aprendizagem formal de conceitos e a escrita são importantes
para o desenvolvimento do pensamento categorial e da intersubjetividade.
Paulo Freire coloca a importância do diálogo
face a face para a formação e expansão da consciência humana. Outros meios de
comunicação não suprem esta necessidade básica. O estudo crítico e histórico
das diferentes formas de comunicação deve ser enfatizado nas escolas.
Ambos autores apresentam a noção de que a
cultura é central. O psicólogo propôs uma teoria sobre a formação cultural e
histórica dos processos mentais superiores, enfatizando o papel da linguagem.
Por outro lado, Freire considera que para desenvolver uma consciência de
cidadão, o indivíduo deve tornar-se consciente que ele é em parte, produto de
uma cultura e também criador da mesma. É também importante dar-se conta que em
um país onde convivem diferentes grupos culturais, devem ser valorizadas suas
contribuições para a educação.
Em toda perspectiva teórico prática é
importante evitar simplificações, mostrando que os processos não são lineares,
mas supõem inter-relações dialéticas.
Tanto psicólogo, como educador têm deixado uma
contribuição significativa para a humanidade, embora com contradições, erros e
acertos. Uma análise crítica sobre este legado sem simplificá-lo é de suma
importância para dar continuidade a obra destes dois pensadores.
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[1] Professor do Departamento
de Psicologia da Universidade Federal do Paraná.
[2] Vera John Steiner escreveu
um artigo sobre Vigotsky e Paulo Freire abordando, principalmente, a interação
social e a fala interna na aquisição do conhecimento e da escrita, de acordo
com GADOTTI, M et al. Paulo Freire. São Paulo: Cortez, 1996.
[3] Leontiev distingue o
significado geral do sentido pessoal. O primeiro é produzido por um grupo e
geralmente está no dicionário. O sentido pessoal é aquele que depende de
experiências pessoais de um indivíduo.
http://books.scielo.org/id/hn3q6/pdf/silveira-9788599662885-10.pdf