(Carta 1)
Cárcere de roma, 20 de novembro de 1926 Minha
queridíssima Iulca,
lembras umha das tuas últimas cartas? (era ao menos a
última carta que recebim e lim). escrevias que nós os dous somos ainda
demasiado jovens para podermos aspirar a ver crescer juntos os nossos filhos. É
preciso que tu, agora, lembres isto intensamente, que tu penses nisto
intensamente cada vez que pensas em mim e que me associes aos nossos filhos.
estou certo de que serás umha mae forte e corajosa, como sempre o foche. terás
de sê-lo ainda mais do que no passado, para que as crianças cresçam bem e sejam
completamente dignas de ti. Pensei muito, muito nestes dias. Procurei imaginar
como será toda a vossa vida no futuro, porque vou ficar, com certeza, sem
notícias vossas durante muito tempo; e voltei pensar no passado, tirando dele
razons para ter umha força e umha fé infinitas. eu som e serei forte; quero-te
e quero chegar a ver as nossas criaturinhas.
Minha querida, nom
quereria incomodar-te de nengumha maneira; estou um pouco canso, porque durmo
pouquíssimo e por isso nom consigo escrever tudo o quanto gostaria e como
gostaria. Quero fazer que sintas bem forte todo o meu amor e a minha confiança.
abraça toda a gente da tua casa; abraço-te a ti e mae às crianças com a maior
tenrura. antonio
•
(Carta 2)
roma, 20 de novembro de 1926 Queridíssima mamae: tenho andado
a pensar muito em ti nestes dias. tenho pensado nos novos desgostos que vou
causar-te, à tua idade, e depois de todos os sofrimentos que tés passado. É
preciso que sejas forte, apesar de todo, como eu som forte, e que me perdoes
com toda a tenrura do teu imenso amor e da tua bondade. saber-te forte e
paciente no sofrimento será um motivo para que eu também seja forte: pensa-o, e
quando me escrevas ao endereço que che mandarei, tranquiliza-me.
eu estou tranquilo e
sereno. Moralmente estava preparado para tudo. tentarei superar também
fisicamente as dificuldades que podam esperar-me e restar em equilíbrio.
Conheces o meu carácter e sabes que há sempre umha ponta de bom humor no seu
fundo: isso vai-me ajudar a viver.
Nom che tinha escrito
ainda que me nasceu um outro filho: chama-se Giuliano, e escrevem-me que é
forte e cresce bem. No entanto, nestas últimas semanas delio tivo a
escarlatina, embora nom fosse grave; contudo, nom conheço neste momento o seu
estado de saúde: sei que superou a fase crítica e que se está a repor. Nom
deves preocupar-te muito polos teus netinhos: sua mae é mui forte e com o seu
trabalho educará-os mui bem.
Queridíssima mae: nom
tenho mais forças para continuar. escrevim outras cartas, pensei em muitas
cousas e cansou-me um pouco nom dormir. tranquiliza toda a gente: di-lhes que
nom devem ter vergonha de mim e que devem ser superiores à estreita e mesquinha
moralidade do rural. di para o Carlo que ele, nomeadamente agora, tem o dever
de pensar em vós, de ser sério e trabalhador. Grazietta e teresina devem ser
fortes e manter-se serenas, nomeadamente teresina, se estiver esperando mais um
filho, como me escreveche. também meu pai deve ser forte. Queridíssimos todos,
neste momento tenho umha mágoa no coraçom, principalmente quando penso que nom
fum sempre afetuoso e bom convosco, como deveria ter sido e como merecíades.
Querede-me sempre, seja como for, e lembrade-me.
Um beijo para todos. e
para ti, querida mae, um abraço e um feixe de beijos.
P.S. — Um abraço para Paolo1, e que queira
sempre bem e seja sempre bom com a sua querida teresina.
e um beijo para edmea e Franco. Nino
•
(Carta 3)
Ustica, 9 de dezembro de 1926 Queridíssima
tatiana,
cheguei a Ustica2
o 7 e o dia 8 recebim a tua carta do 3. Heiche descrever noutras cartas todas
as impressons da minha viagem, na medida em que as lembranças e as diferentes
emoçons se vaiam ordenando no cérebro e me tenha recuperado
1
Paolo
Paulesu, marido de teresina. edmea e Franco, nomeados mais adiante, som
sobrinhos de G.; a primeira, filha do irmao Gennaro, o segundo, filho da irmá
teresina. Grazietta e Carlo som outros dous irmaos de G. Grazietta é a segunda
filha por ordem de nascimento, Carlo o último.
2
Lugar
de desterro para presos comuns e políticos. Gramsci deixara o cárcere de regina
Coeli no dia 25 de novembro de 1926.
do cansaço e das insónias. Para além das circunstáncias
especiais em que a viagem se tem desenvolvido (como poderás compreender, nom é
mui confortável, mesmo para um homem forte, passar horas e horas num
comboio-correio e num barco com as algemas nos pulsos e sujeito por umha cadeia
que te amarra aos pulsos dos companheiros de viagem); a viagem foi
interessantíssima e cheia de diferentes detalhes, dos shakespearianos até os
cómicos: nom sei se serei capaz, por exemplo, de reconstruir umha cena nocturna
na passagem por Nápoles, num local imenso, mui rico em exemplares zoológicos
fantasmagóricos; acho que só pode igualá-la a cena do coveiro no Hamlet. o
trecho mais difícil da viagem foi a travessia de Palermo até Ustica; tentámos
quatro vezes a viagem e três vezes tivemos de voltar ao porto de Palermo, pois
o barco nom resistia o temporal. Contudo, sabes que engordei durante este mês?
eu próprio estou surpreendido de me sentir tam bem e de ter tanta fome: acho
que em quinze dias, depois de ter repousado e dormido suficientemente, estarei
completamente livre de qualquer rasto da hemicránia e iniciarei um período
totalmente novo da minha existência molecular. a minha impressom de Ustica é
ótima de todos os pontos de vista. a ilha tem oito quilómetros e alberga umha
populaçom aproximada de 1.300 habitantes, dos quais 600 som presos comuns, isto
é, delinquentes várias vezes reincidentes. a populaçom é mui amável. ainda nom
estamos todos instalados: dormim duas noites num grande quarto comum junto com
os outros amigos; hoje encontro-me já num quartinho de hotel e se calhar amanhá
ou depois de amanhá irei morar para umha casinha que estám a mobilar para nós: somos
tratados por todos com grande correçom.
estamos completamente
separados dos presos comuns, cuja vida nom saberia descrever-che em poucas
palavras: lembras o conto de Kipling intitulado «a estranha cavalgada», no
volume francês O homem que queria ser rei?
Véu-me de repente à memória e tam vivamente que me parecia estar a vivêlo. Por
enquanto somos quinze amigos. a nossa vida é bem tranquila: estamos ocupados em
explorar a ilha, o qual me permite dar passeios bastante compridos, por volta
de nove ou dez quilómetros, com paisagens mui amenas e com vistas maravilhosas
da marinha, do abrente e do sol-pôr: cada dous dias vem o barco, que traz
notícias, jornais e novos amigos, entre os quais o homem de ortensia, a quem
tivem o grande prazer de encontrar3. Ustica é bem mais jeitosa do
que o que mostram os cartons postais que che hei mandar: é umha pequena aldeia
de tipo muçulmano, pitoresca e cheia de cor. Nom podes imaginar o contente que
estou de vagabundear de um cantinho
para o outro da ilha e de respirar o ar do mar, depois deste mês de
transferências de um cárcere para o outro, mas especialmente após os dezasseis
dias de regina Coeli, decorridos no isolamento mais absoluto. Penso que me vou
converter no campeom ustiquês de lançamento de pedra à distáncia, porque já
vencim a todos os amigos.
escrevo-che um bocado
aos saltos, assim como me vem, porque ainda estou um pouco canso. Queridíssima
tatiana, nom podes imaginar a minha emoçom quando no regina Coeli vim a tua
caligrafia na primeira garrafa de café recebida e lim o nome de Marietta4;
volvim ser, literalmente, umha
3
amadeo
Bordiga (1889-1970). Foi o primeiro líder do Partido Comunista de Itália, desde
1921 até 1924, quando Gramsci o sucedeu como secretário Geral. Bordiga, estando
na oposiçom do partido, foi detido e enviado a Ustica no fim de 1926, ficando
ali até outubro de 1927, quando o transferírom para Ponza, outra ilha para
desterrados, até o fim de 1929. em 1930 foi expulso do P.C.I.
4
Marietta
Bucciareli, amiga de tatiana schucht, quem frequëntava regularmente a casa de
Gramsci
criança. olha, neste tempo, sabendo com certeza que as
minhas cartas, segundo as disposiçons carcerárias, iam ser lidas, nasceu-me
umha espécie de pudor: nom me atrevo a escrever sobre certos sentimentos e se
trato de os atenuar para me adequar à situaçom, parece-me que me comporto como
um sacristám. Por isso vou limitar-me a escrever-che algumhas notícias sobre a
minha estadia em r.C. [regina Coeli] com respeito a tudo quanto me perguntes.
recebim o casaco de lá, que me foi extremamente útil, assim como as meias, etc.
teria passado muito frio sem elas, porque saim com o abrigo mais leve e, ao
termos saído mui cedo de manhá, quando tentávamos a travessia Palermo-Ustica
estava mui frio. recebim os pratinhos que me vira obrigado a deixar com mágoa
em roma, pois devia meter toda a minha bagagem na bolsa (que me prestou
serviços inestimáveis) e estava seguro de que os partiria. Nom recebim a
candeia, nem o chocolate nem a bica, que estám proibidos: vim-nos assinalados
na lista, mas com a advertência de que nom podiam passar; de maneira que nom
tivem a xícara para o café, ainda que me decidim a fazer um serviço de meia
dúzia com cascas de ovo, montadas extraordinariamente sobre um pedestal de
miolo de pam. Vejo que estás impressionada polo facto de as comidas serem quase
sempre frias: nom te preocupes, porque comim sempre, depois dos primeiros dias,
no mínimo, o duplo do que comera no mesom, e nom sentim a menor moléstia;
todavia, soubem que todos os amigos sofrêrom moléstias e tivérom de abusar dos
purgantes. Vou-me convencendo de que som mais forte do que nunca pudeche
imaginar, porque, a diferença de todos, saim-me bem, com um simples cansaço.
asseguro-te que, com a exceçom de umhas pouquíssimas horas de obscuridade, umha
noite em que nos tirárom a luz das celas, estivem sempre mui contente; o trasgo
que me leva a ver sempre o lado cómico e caricatural em todas as cousas estivo
sempre ativo em mim e conservou-me alegre apesar de tudo. Lim sempre, ou quase,
revistas ilustradas e jornais desportivos e estava a refazer umha biblioteca.
aqui estabelecim este programa: 1º estar bom para estar sempre melhor de saúde,
2º estudar a língua alemá e russa com método e continuidade; 3º estudar
economia e história. entre nós havemos fazer ginástica racional, etc., etc.
Cumpre que nestes primeiros dias, até acabar de me instalar, che encomende uns
trabalhos. Gostaria de ter umha bolsa de viagem, mas que seja segura, com
fechadura ou com cadeado: é melhor que qualquer mala ou cofre, ante a possibilidade,
que nom excluo, de posteriores movimentos meus polas ilhas ou para terra firme.
depois, precisaria todas essas pequenas cousas, como a gillette com láminas de
recámbio, a tesourinha para as unhas, a lima, etc., etc., que som sempre
necessárias e que nom estám à venda; queria algum tubo de aspirina, por se os
refachos me fam sangrar os dentes. Com a roupa, o abrigo e a roupa branca que
resta, acho darás feito. envia-me depressa, se puderes, a gramática alemá e
umha gramática russa; o dicionário pequeno de alemám-italiano e italiano-alemám
e algum livro (Max e Moritz5 — e a história da
literatura italiana de Vossler, se a deres encontrado entre os livros).
envia-me aquele volume grande de artigos e estudos sobre o risorgimento italiano que se intitula: Storia politica del secolo XIX e um livro intitulado: r. Ciasca, La formazione del programma dell’unità
nazionale, ou algo parecido. além disso, vê tu mesma e decide o que a ti
che pareça. Por esta vez, escreve tu a Giulia: nom consigo vencer esse sentido
do pudor de que che falava há pouco: alegrou-me muito conhecer as boas
5
Conto
para crianças escrita por Wilhelm Busch (1865).
notícias sobre delio e Giulio; espero as fotografias. o
endereço usado por ti é corretíssimo, como viche; aqui os correios funcionam de
umha maneira simples: som eu a perguntar no balcom pola posta-restante, e em
Ustica só há umha oficina postal. a propósito dos telegramas enviados, o de
roma, que anunciava a minha partida, sabia com certeza que iria chegar com
muita demora, mas queria dar a conhecer a notícia e nom excluía que pudesse ser
útil para umha conversa, caso o receptor tivesse sabido que era possível vir
até 11 da noite. de cinco que partírom unicamente Molinelli, que viajou sempre
comigo, recebeu a visita da mulher às 11 justas: os outros nada.
Queridíssima tatiana,
se nom che escrevim antes, nom deves crer nem por um instante que te esquecesse
nem que nom pensasse em ti; a tua expressom é exata, porque em cada cousa que
recebia, via em destaque o sinal das tuas queridas maos; era mais do que um
cumprimento, mais do que umha carícia afetuosa: teria gostado de ter o endereço
da Marietta; se calhar, escrevia também para a Nilde6, o que achas? Lembrará-me? Gostará dos meus
cumprimentos? escrever e receber cartas converteu-se para mim num dos momentos
mais intensos da vida.
Queridíssima tatiana,
escrevo-che de umha maneira um pouco confusa. Creio que hoje, 10, o barco nom
vai dar chegado, porque durante toda a noite houvo um vento fortíssimo que nom
me deixou dormir, apesar da suavidade da cama e dos coxins, aos quais já me
desabituara; é um vento que penetra por todas as fendas do terraço, pola janela
e polas portas, com assobios e sons de trompetes mui pitorescos, mas mui
6
Leonilde
Perilli, companheira de estudos de eugenia schucht na academia de Belas artes
de roma, e amiga dos schucht. Hospedou a tatiana na sua casa durante uns anos.
irritantes. escreve para a Giulia e di-lhe que estou bem de
verdade, de todos os pontos de vista, e que a minha permanência aqui, que por
outra parte nom creio seja tam comprida como decidiu o decreto, há de tirar do
meu corpo todos os velhos achaques: talvez um período de repouso absoluto seja
incluso umha necessidade para mim.
abraço-te
com tenrura, queridíssima, porque abraçando-
te abraço a todos aqueles a quem eu quero.
se
Nilde aprecia os meus cumprimentos, manda-me o seu
endereço.
antonio
•
(Carta 4)
Ustica, 19 XII 1926 Queridíssima tania:
escrevim-che um postal o 18 para avisar de que tinha
recebido a tua registada do 14: previamente, tinha escrito para ti umha
comprida carta ao endereço da senhora Passarge, quem cha deveu ter entregado o
11 ou o 12. resumo os principais acontecimentos de todo este tempo.
detido
o 8 às 10:30, e conduzido imediatamente ao cárce-
re, partim de roma de manhá, mui cedo, o 25 de novembro. a
permanência em regina Coeli foi o período mais difícil do arresto: 16 dias de
isolamento absoluto na cela, com umha disciplina mui rigorosa. Pudem ter um
quarto pagando, mas só nos últimos dias. decorrim os primeiros três dias numha
cela mui luminosa de dia e iluminada de noite; no entanto, a cama estava mui
suja; os lençóis estavam usados; formiguejavam nela os insectos mais variados;
nom me foi possível ter algo para ler, nem sequer a «Gazzetta dello sport»,
porque ainda nom a reservei: comim a sopa do cárcere, que estava bem boa.
Passei depois para umha nova cela, mais obscura de dia e sem iluminaçom à
noite, a diferença da outra, esta tinha sido desinfectada com chama de gasolina
e a cama tinha a roupa limpa. Comecei a comprar algumha cousa na cantina do
cárcere: as candeias de estearina para a noite, o leite para a manhá, umha sopa
com caldo de carne e um pedaço de carne cozida, queijo, vinho, maçás, cigarros,
jornais e revistas ilustradas. Passei da cela comum para a de pagamento sem
prévio aviso, polo que estivem um dia sem comer, dado que o cárcere passa a
comida somente aos ocupantes das celas comuns, enquanto os dos quartos de
pagamento devem «buscar-se as favas» (expressom carcerária) por si próprios. em
meu caso, o quarto de pagamento consistiu em que somassem ao xergom de crina um
colchom de lá e um coxim ídem e que a cela estivesse mobilada com umha bacia,
umha jarra e umha cadeira. deveria ter também ao meu dispor um talho, um
bengaleiro e um pequeno roupeiro, mas a administraçom está falta de «material
de intendência» (outra expressom carcerária): tivem também luz elétrica, mas
sem interruptor; de maneira que durante toda a noite me revirava para proteger
os olhos da luz. a vida transcorria assim: às 7 da manhá diana e limpeza do
quarto; contra as nove, o leite, que com o tempo se converteu em café com
leite, quando comecei a receber a comida da cantina. o café chegava polo geral
ainda morno; o leite, polo contrário, estava sempre frio, mas eu fazia entom
umha abundante sopa. de nove até o meio-dia tocava a hora do passeio: umha
hora, de nove até dez, ou de dez até onze, ou de onze até doze; faziam-nos sair
separados, com a proibiçom de falarmos e de saudarmos quem quer que fosse, e
íamos para um pátio circular dividido em rádios por muros de separaçom
altíssimos, com umha grade que dava para o resto do pátio. Éramos vigiados por
umha sentinela erguida sobre um terracinho que dominava os setores radiais e
por umha sentinela que passeava diante das grades; o pátio estava encaixado
entre muros altíssimos e estava dominado, num dos lados, pola chaminé baixa de
um pequeno obradoiro interno; por vezes o ar era fumo; umha vez tivemos de
permanecer por volta de meia hora baixo a tormenta. Contra o meio-dia chegava o
jantar; frequentemente, a sopa estava ainda morna, mas o resto estava sempre
frio. Às 3 havia a visita à cela, para a revisom das barras da grade; a visita
repetia-se às dez da noite e às três da manhá. dormia um bocado entre estas
duas últimas visitas: umha vez me acordava a visita das três já nom conseguia
adormecer; porém, era obrigado ficar na cama entre 7½ da tarde e o amanhecer. a
distracçom proporcionavam-na as diferentes vozes e os fragmentos das conversas
que por vezes conseguia ouvir das celas do lado ou de em frente. Nunca incorrim
em nengum castigo: Maffi7,
no entanto, estivo três dias a pam e água numha cela de castigo. Na verdade,
nunca sentim mal-estar nengum: embora nunca desse acabado toda a comida, comim
sempre com um apetite maior que o do mesom. tinha apenas umha colher de
madeira; nem garfo, nem copo. Umha jarra e umha jarrinha de barro para a água e
para o vinho; um prato grande de barro para a sopa e outra como bacia, antes da
concessom do quarto de pagamento. a 19 de novembro foi-me comunicada a
disposiçom que me condenava a 5 anos de desterro nas colónias, sem mais
explicaçom. Nos dias sucessivos chegárom-me rumores de que partiria para
somália. só na tarde do 24, e indiretamente, soubem que
7 Fabrizio
Maffi (1868-1955), médico, militante socialista e mais tarde comunista,
deputado.
cumpriria a pena de desterro numha ilha italiana: o destino
exato só me foi comunicado de maneira oficial em Palermo; podia ir para Ustica,
mas também para Favignana, para Pantelleria ou para Lampedusa; foram excluídas
as tremiti, porque de outro jeito teria viajado de Caserta a Foggia. Partim de
roma na manhá do 25, com o primeiro comboio dos correios para Nápoles, aonde
cheguei por volta de umha da tarde; viajei na companhia de Molinelli, Ferrari,
Volpi e Picelli, também eles detidos o dia 8. Ferrari, porém, foi apartado em
Caserta para as tremiti: digo «apartado», porque mesmo no vagom permanecíamos
juntos e amarrados a umha longa cadeia. de roma em diante fiquei sempre em
companhia, o qual produziu umha notável mudança no estado de ánimo: era
possível conversar e rir, embora estivéssemos amarrados à cadeia e com os dous
pulsos apertados polas algemas e se tivesse que comer e fumar com tais adornos.
Porém, a gente conseguia acender os fósforos, conseguia comer e beber; os
pulsos inchárom um pouco, mas tinha-se a noçom do perfeita que é a maquina
humana, quando pode adaptar-se a qualquer circunstáncia, por anti-natural que
ela for. No limite das disposiçons regulamentares, os guardas da escolta
tratárom-nos com grande correçom e cortesia. Ficamos em Nápoles duas noites, no
cárcere de Il Carmine, sempre juntos, e voltamos sair por mar na tarde do 27,
com um mar mui calmo. em Palermo tivemos um quartinho mui limpo e arejado, com
umha vista belíssima do monte Pellegrino; encontrámos outros amigos destinados
às ilhas, o deputado maximalista Conca, de Verona e o advogado angeloni,
republicano de Perugia. acrescentárom-se outros a seguir, entre os quais Maffi,
que fora destinado a Pantelleria, e Bordiga, destinado a Ustica. deveria ter
saído de Palermo o dia 2; porém, só conseguim partir o dia 7; três tentativas
de travessia fracassárom polo mar bravo. esta foi a pior parte da
transferência. Pensa: diana às quatro da manhá, as formalidades para a entrega
do dinheiro e das diferentes cousas deixadas em depósito, algemas e cadeia,
veículo celular até o porto, baixada à lancha para chegar ao barco, subida da
escada para subir a bordo, subida de umha escada para subir à ponte, descida de
umha outra escada para ir à seçom de terceira classe; todo isso tendo os pulsos
amarrados e estando amarrado com umha cadeia a outros três. Às sete o barco
parte, viaja durante umha hora e meia, dançando e mexendo-se como um golfinho,
depois volta para trás, porque o capitám admite que é impossível continuar a
travessia. repete-se no sentido contrário a série das escadas, etc., volta-se
para o cárcere, somos novamente registados e voltamos para a cela; entretanto,
já é meio dia, nom deu para pedir o jantar; até 5 nom se come; na manhá a
seguir ainda nom se comerá. Isto tudo por quatro vezes com o intervalo de um
dia. a Ustica chegaram já quatro amigos: Conca, o ex deputado de Perugia
sbaraglini, e dous de aquila. durante algumhas noites dormimos num sala: agora
estamos já instalados numha casa ao nosso dispor, para seis: eu, Bordiga, o
Conca, os sbaraglini e os dous de aquila. a casa compom-se de um quarto no
rês-do-chao onde dormem dous: no rês-do-chao está também a cozinha, a sanita, e
um quartinho que usamos como sala comum de toilette. No primeiro andar,
dormimos quatro em dous quartos, três num quarto bastante grande e um no
quartinho do meio; um amplo terraço está por cima do quarto maior e domina a
cala. Pagamos 100 liras por mês pola casa, e duas liras por dia pola cama, a
roupa branca da cama e os demais objetos domésticos (duas liras por cabeça). os
primeiros dias gastamos muito nas comidas; nom menos de 20 liras por dia. agora
gastamos 10 liras por dia da mazzetta
polo jantar e a ceia; estamos a organizar umha cantina comum, que nos permitirá,
se calhar, viver com as 10 liras por dia que nos adjudicou o governo; somos já
trinta desterrados e ainda há de chegar algum mais.
as
nossas obrigas som variadas e complexas; a mais sa-
lientável é a de nom sairmos da casa antes do amanhecer e a
de voltar para a casa às 8 da tarde; nom podemos ir além de determinados
limites que, em linhas gerais estám representados polo perímetro habitado. No
entanto, conseguimos licenças que nos permitem passear por todo o território da
ilha, com a obriga de voltar dentro dos limites às 5 da tarde. a populaçom em
conjunto é de perto de 1.600 habitantes, dos quais 600 som forçados, isto é,
delinquentes comuns que já cumprírom outras condenas. a populaçom indígena
compom-se de sicilianos, mui amáveis e hospitaleiros; podemos relacionar-nos
com a populaçom. os presos estám submetidos a um regime mui restritivo; a
grande maioria, dado o pequeno tamanho da ilha, nom pode ter nengum ocupaçom e
tem que viver coas 4 liras diárias que lhes adjudica o governo. Podes imaginar
o que acontece: a mazzetta (é o termo
que se utiliza para indicar a pensom do governo) gasta-se principalmente em
vinho; as comidas reduzem-se a um pouco de massa com ervas e a um pouco de pam;
a desnutriçom leva ao alcoolismo mais depravado num prazo mui breve. estes
presos som encerrados em celas especiais às cinco da tarde e estám juntos toda
a noite (entre cinco da tarde e sete da manhá), fechados desde fora: jogam às
cartas, em ocasions perdem a mazzetta
de bastantes dias e desta maneira vêem-se prisioneiros num círculo infernal que
dura até o infinito. deste ponto de vista, é um autêntico pecado que se nos
proiba ter contatos com seres reduzidos a umha vida tam excecional: acho
poderiam fazer-se observaçons de tipo psicológico e de folclore com um caráter único.
todo aquilo quanto de elementar sobrevive no homem moderno, volta à tona
irremediavelmente: estas moléculas pulverizadas agrupam-se novamente conforme
princípios que se correspondem com aquilo que de essencial existe ainda nos
estratos populares mais profundos. existem quatro divisons fundamentais: os
setentrionais, os centrais, os meridionais (com sicília) e os sardos. os sardos
vivem absolutamente afastados do resto. os setentrionais possuem umha certa
solidariedade entre eles, mas nengumha organizaçom, polo que parece;
orgulham-se porque, mesmo sendo ladrons, carteiristas, caloteiros, nom
derramárom nunca sangue. entre os do Centro, os romanos som os melhor
organizados; nem sequer denunciam aos confidentes os das outras regions,
guardando para si a desconfiança. os meridionais estám mui organizados, se
devemos julgar polo que se di, mas entre eles há subdivisons: o estado
napolitano, o estado pulhês e o estado siciliano. Para o siciliano, o motivo de
orgulho consiste, nom em ter roubado, mas em ter derramado sangue. todas estas
informaçons obtivem-nas de um preso que se encontrava no cárcere de Palermo
cumprindo condena por um crime que cometera durante o período de desterro e que
se orgulhava de ter causado conforme um plano previamente estabelecido, umha
ferida com umha profundidade de dez centímetros (medida, di ele) ao carcereiro
que o mal-tratara: planificara dez centímetros e fôrom dez centímetros, nem um
milímetro a mais. esta era a obra mestra da qual se orgulhava em extremo.
acredita que a referência ao romance de Kipling nom era exagero, ao menos
considerando as impressons do primeiro dia. a minha situaçom financeira durante
este tempo foi ótima. Fum detido com 680 liras no bolso; em roma vim somadas ao
meu favor outras 50 liras. os gastos incrementárom-se de maneira alarmante só
depois da saída de roma. em Palermo, principalmente, esfolárom-nos de maneira
literal: o hoteleiro marcou com 30 liras um pacote com umha porçom de
macarrons, ½ litro de vinho, ¼ de frango e fruta que serviam para duas comidas.
Cheguei a Ustica com 250 liras que me chegárom para os primeiros 10 dias;
depois tivem 100 liras de mazzetta
(10 liras por dia), as tuas 500 liras e 374 liras pola imunidade parlamentar,
para os dias compreendidos entre 1 e 9 de novembro.
Portanto, estivem bem
durante bastante tempo, isto é, podo tomar algum café, fumar cigarros e
completar o gasto diário para a casa e a comida, que hoje é de 14 liras por
dia, mas que diminuirá assim que tenhamos organizada a cantina. É por isso que
nom deves preocupar-te por mim: nom quero de nengumha maneira que te
sacrifiques pessoalmente por mim: se tiveres a hipótese, oferece a tua ajuda a
Giulia, que com certeza necessitará mais cousas do que eu.
Na anterior ocasiom nom
che escrevim que, recém chegado a Ustica, encontrei umha carta em que se me
assegurava que Giulia ia receber as ajudas, e que nom devia preocuparme nesse
sentido. recorrerei a ti para ter algumhas cousas que de outra maneira nom poderia
ter: porém, em geral estou decidido a fazer de maneira que poda viver com a mazzetta governamental, já que o
considero possível, depois de algum tempo de aclimataçom. Queria-che dizer
outra cousa importantíssima: o amigo sraffa escreveu-me que abriu para mim umha
conta corrente ilimitada numha livraria de Milám8, na qual poderei
encarregar jornais, revistas e livros; aliás, ofereceu-me todas a ajuda que
quiger. Como vês, podo olhar para o porvir com suficiente serenidade. se tiver
a segurança de que Giulia e as crianças nom vam sofrer qualquer privaçom,
8 a
livraria sperling & Kupfer, da qual G. se serviu sempre nos seguintes anos.
estarei realmente tranquilo: querida tatiana, este é o
único pensamento que me atormenta nos últimos tempos, e nom apenas depois do
meu arresto; sentia vir esta tormenta, de maneira imprecisa e instintiva e por
isso mais tormentosa. Lembras quando me digeche que umha amiga comum aludia à
minha superstiçom? Voltei pensar nisso algumha vez, nom para convencer-me mais
umha vez de que tinha razom e de que exagerei, nom por superstiçom, mas sim por
falta de decisom e por outros escrúpulos que intelectualmente considero de
caráter inferior, nom obstante nom fosse nem seja capaz de me libertar deles.
de facto, a análise que fazia era exata, mesmo se me parecia impossível umha
demonstraçom objetiva e pormenorizada.
olha
que escrevim com essa abundáncia que desejavas,
escrevendo também sobre cousinhas sem a mais mínima
importáncia. estás contente? sabes que te quero muito e que lamento muito
lembrar algum pequeno episódio em que por um descuido, de algumha maneira, che
figem mal. escreve tu a Giulia também em meu nome; nom tenho vontade de
mandar-che os desenhos para delio: teria que explicá-los e isso desagrada-me
enormemente. aguardo as fotografias. entre os livros que deves enviar-me inclui
os seguintes: —Hauser— Les Grandes
puissances, Le prospettive economiche
de Mortara para 1926, os dous Berlitz — alemám e russo. entre os objetos,
gostava de um pouco de sabom, um pouco de água de colónia para a barba, umha
escova de dentes com o seu vidro de protecçom, um pouco de dentífrico, umhas
poucas aspirinas e umha escova para a roupa.
Queridíssima tatiana, abraço-te afetuosamente.
antonio
•
(Carta 5)
21/XII/1926
Queridíssimo amigo9,
recebim a tua carta do 13; no entanto, nom recebim ainda os
livros que me anunciavas. agradeço-che mui cordialmente o oferecimento que me
figeche; já escrevim à Livraria sperling e figem umha encomenda bastante
aparatosa, com a certeza de nom ser indiscreto, porque conheço toda a tua
amabilidade. somos em Ustica 30 desterrados: iniciámos já toda umha série de
cursos, elementares e de cultura geral, para os diferentes grupos de
desterrados; começaremos também umha série de palestras. Bordiga dirige a seçom
científica, eu a seçom histórico-literária; eis a razom pola qual encomendei
determinados livros. esperemos que desta maneira decorra o tempo sem nos
embrutecer e sendo úteis aos outros amigos, representantes de todo o tipo de
partidos e de preparaçom cultural. Comigo estám schiavello e Fiorio10,
de Milám; dos maximalistas está também o ex deputado Conca de Milám. dos
unitários está o advogado sbaraglini, de Perusa e um magnífico tipo de camponês
de Molinella. Um republicano de Massa e 6 anarquistas de composiçom moral
complexa; o resto comunistas, isto é, a grande maioria. Há 3 ou 4 analfabetas
ou quase; o resto tem diversa preparaçom, mas com umha média geral mui baixa.
9
Piero
sraffa (1898-1983), professor de economia em Cambridge. Gramsci conheceu-no em turim
na época da universidade e ali se figérom amigos. sraffa esforçou-se durante os
anos do cárcere por ajudar a Gramsci: mantivo correspondência com tatiana
schucht, fijo viagens a Italia e mesmo pudo arranjar várias conversas com
Gramsci. Conseguiu interessar pola sua sorte a altas personalidades inglesas.
10
ernesto
schiavello (n. 1899), organizador sindical de Milám, decorreu sete anos entre
cárcere e desterro.
Porém, todos estám contentes por terem umha escola, que
frequentam com grande assiduidade e diligência.
a
situaçom financeira ainda é boa: aos desterrados dam-
nos 10 liras por dia; a mazzetta
dos presos comuns em Ustica é de 4 liras por dia, nas outras ilhas por
vezes é mesmo menor, se existirem possibilidades de trabalhar. Nós temos o
direito a morar em casas particulares; seis pessoas (eu, Bordiga, Conca,
sbaraglini e dous mais) moramos numha casinha pola qual pagamos 90 liras por
mês cada um, com todos os serviços incluídos. Contamos organizar umha cantina,
a fim de podermos satisfazer as necessidades de comida e casa com as 10 liras
diárias da mazzetta. a comida,
naturalmente, é mui pouco variada: nom se encontram ovos, por exemplo, o qual
me amola bastante, porque nom podo fazer pratos abundantes ao estilo
marinheiro. o regime que devemos seguir consiste em recolher-se em casa às 8 da
tarde e nom sair dela antes do amanhecer nem ir além dos limites habitados sem
umha licença especial.
a
ilha é pequena (8 km.) com umha populaçom de 1600
habitantes, dos quais 600, aproximadamente, som presos comuns:
existe um único grupo de vivendas. o clima é ótimo e até agora nom estivo frio;
apesar disso, os correios chegam sem regularidade, porque o barco que fai a
travessia quatro vezes por semana nem sempre pode com o vento e as ondas. Para
chegar a Ustica tivem que fazer quatro tentativas de travessia; isso cansou-me
mais do que toda a viagem de roma a Palermo. Contudo, permanecim sempre em
ótimas condiçons de saúde, para grande surpresa dos meus amigos, pois todos
tenhem sofrido mais do que eu: imagina que até engordei levemente. Porém,
nestes dias, quer polo cansaço atrasado, quer pola comida que nom se condiz com
os meus costumes e a minha constituiçom, sinto-me mui débil e esgotado. Mas
aguardo afazer-me rapidamente e dar cabo, de vez, de todos os males passados.
escreverei-che amiúde,
se quigeres, para me iludir com que me encontro ainda na tua grata companhia.
saudo-te com afeto antonio
•
(Carta 6)
2/I/1927
Queridíssimo11,
recebim os livros que me anunciavas na penúltima carta e um
primeiro pacote dos que encomendara. tenho portanto bastante para ler durante
algum tempo. agradeço a tua grande amabilidade, mas nom queria abusar. Porém,
tem a certeza de que sinceramente me dirigirei a ti sempre que precisar
qualquer cousa. Como podes imaginar, aqui nom há muito para comprar; antes polo
contrário, por vezes escasseia o que comprar, mesmo se a compra for necessária.
a
vida decorre sem novidade nem surpresas; a única pre-
ocupaçom é a chegada do barco, que nem sempre consegue
fazer os quatro trajetos semanais (segunda-feira, quarta-feira, quinta-feira e
sábado) com grande pesar para cada um de nós, que aguarda sempre com ánsia a
correspondência. somos já uns sessenta, dos quais 36 som amigos de diferentes
lugares; predominam relativamente os romanos. Já começamos a escola, dividida
em vários cursos: 1° curso (1º e 2º elementar),
11 dirige-se
a Piero sraffa.
2° curso (3º elementar), 3° curso (4º – 5º elementar),
curso complementar, dous cursos de francês (inferior e superior) e um curso de
alemám. os cursos estabelecem-se em relaçom ao nível cultural que se tem nas
matérias, que podem ser resumidas num certo conjunto de noçons delimitadas com
exatitude (gramática e matemática); nesse sentido, os alunos dos cursos
elementares frequentam as aulas de História e Geografia do curso complementar,
por exemplo. em resumo, procuramos conciliar a necessidade de umha ordem
escolástica gradual com o facto de os alunos terem, mesmo se nalguns casos
semianalfabetas, umha certa instruçom. os cursos som seguidos com grande
diligência e atençom. Graças à escola, que é frequentada também por alguns
funcionários e habitantes da ilha, evitamos os perigos da desmoralizaçom, que
som mui grandes. Nom poderias imaginar a que condiçons de embrutecimento físico
e moral tenhem chegado os presos comuns. Para poder beber venderiam até a
camisa; muitos vendêrom os sapatos e o casaco. Um bom número nom dispom já
livremente da mazzetta governamental
de quatro liras diárias, porque foi empenhada aos usurários. a usura é punida,
mas nom creio que seja possível evitá-la, porque os próprios presos comuns, que
som as suas vítimas, nom denunciam os usurários senom em casos mui excecionais.
Paga-se um juro de 3 liras por semana por 10 liras de empréstimo. os juros
arrecadam-se com extrema intransigência, já que os usurários se rodeiam de
pequenos grupos de colaboradores, que por um copo de vinho destripariam mesmo
os seus bisavós. os presos comuns, salvo raras exceçons, mostram muito respeito
e deferência por nós. a populaçom da ilha é mui educada. de resto, a nossa
chegada causou umha mudança radical no lugar e deixará amplas pegadas. está-se
a planificar a instalaçom da luz elétrica, visto que entre os desterrados há
técnicos capazes de levar a termo a iniciativa. o relógio do campanário, que
estava parado desde há seis messes, foi posto em funcionamento em dous dias:
talvez se retome o projeto de construir o cais para a entrada do barco no
porto. as nossas relaçons com as autoridades som mui corretas.
Queria escrever-che
algumhas impressons recolhidas durante a viagem, nomeadamente em Palermo e em
Nápoles. em Palermo fiquei oito dias: tentou-se quatro vezes a travessia, e em
três ocasions, após umha hora e tal de navegaçom com o mar revolto, tivemos de
voltar atrás. Foi a parte mais desconfortável de toda a viagem, a que mais me
cansou. tinha de acordar às quatro da manhá, ir até o porto com os ferros nos
pulsos; sempre amarrados e ligados com umha cadeia, descer numha lancha, subir
e descer bastantes escadas no barco, onde permanecíamos amarrados com umha
única algema, sofrer o enjôo, quer pola posiçom incómoda (estávamos amarrados,
embora com umha única cadeia e unidos aos demais por meio metro de cadeia; era,
pois, impossível deitarse) quer porque o pequeníssimo e ligeiro barco abana,
mesmo se o mar estiver em calma, para voltar atrás e repetir a manhá seguinte a
mesma história. em Palermo tínhamos um quartinho mui limpo, preparado de
propósito para nós (deputados), dado que o cárcere está superlotado e assim se
evitava pôr-nos em contato com os detidos da máfia. durante a viagem fomos
sempre tratados com grande correçom e até com cortesia.
Muito obrigado por te
tomares a moléstia de enviar os ovos. agora que passárom as festas,
encontrarei-nos mui frescos por aqui. agradecia o leite condensado suíço, se
quigeres mandar-mo. Nom saberia que pedir-che, mesmo querendo: aqui falta um
pouco de tudo e é difícil conseguir certas cosas; é preciso dar longas voltas.
Nom existe um serviço de correios com Palermo. agradecia-che que me enviasses
um pouco de sabom para o asseio e para fazer a barba, e algum medicamento de
uso geral, que sempre se pode necessitar, como a aspirina Bayer (aqui a
aspirina é umha visom do céu) e tintura de iodo e algum comprimido para a
enxaqueca. Garanto-che mais umha vez que che escreverei se for necessário:
viche quanto me prestárom os livros? de resto, confesso-te que ainda estou um
pouco atordoado, e nom acabei ainda de me orientar por completo em tantas
cousas. escreve-me amiúde: a correspondência é o que mais se agradece na minha
situaçom. Quando leias algum livro interessante como o de Lewinsohn12, envia-mo.
abraço-te fraternalmente antonio
envia-me um frasquinho de água de Colónia. Fai-me falta un
desinfetante para depois de fazer a barba.
•
(Carta 7)
7/II/1927
Queridíssima tania:
recebim a tua carta do 4 de janeiro, um pacote que continha
objetos de asseio e o bolso de viagem, mais um segundo pacote que continha panettoni13 e que deveu chegar com muito atraso. Na verdade, nom
podo aceitar o conselho de... encon-
12
richard Lewinsohn, Histoire de l’inflation. Le deplacement de
la richesse en Europe (1914-1925), Payot, Paris, 1926.
13
o
panettone é um pastel que se come
principalmente no Natal; é um biscoito mole com frutos secos. [N. do T.]
trar caprichos. Infelizmente, nas condiçons em que estou
obrigado a viver, os caprichos venhem sós: é inacreditável como as pessoas
obrigadas por forças externas a viverem de maneira excecional e artificial
desenvolvem com particular brio todos os lados negativos do seu caráter,
principalmente os intelectuais, ou, melhor dito, essa categoria de intelectuais
que em italiano coloquial som chamados de mezze
calzette14. os mais
calmos, serenos e medidos som os camponeses; depois venhem os operários, depois
os artesaos e para acabar os intelectuais, que sofrem lufadas imprevistas de
umha loucura absurda e infantil. Naturalmente, falo dos desterrados políticos,
nom dos presos comuns, cuja vida é primitiva e elementar, e cujas paixons
alcançam, com rapidez espantosa, o culmen da loucura: num mês verificárom-se
entre os presos comuns cinco ou seis crimes de sangue.
Nom seguirei, portanto,
o teu conselho de ter caprichos. e porém, tés razom: por vezes comporto-me mal
sem querer, ofendendo os meus amigos sem sabê-lo. Isso explica-se, creio,
porque sempre vivim em soidade, sem família, e tivem que recorrer a estranhos
para as minhas necessidades: é por isso que tivem sempre medo de incomodar e de
estorvar. Mas nom havia em mim nengumha falta de reconhecimento do teu afeto e
da tua bondade. recorrerei a ti sempre que for necessário, com o compromisso,
pola tua parte, de seres extremamente sincera sobre as tuas possibilidades e de
nom te procurares problemas inúteis e perigosos. a tinta que me mandache vai
mui bem; para além disso, vam bem todas as demais cousas. recebim as
fotografias: delio tivo muito sucesso e foi mui louvado. Imagina que descobrim
ter umha dose de paciência e de
14
Medíocres,
de meia-tigela. [N. do T.]
fortaleza que nom achava possuir: só Bordiga pode competir
comigo. somos os únicos em todo este período em nom sentir mal-estares de
nengumha classe, enquanto os demais, quem mais quem menos, tivo febres gripais
e moléstias intestinais, devido à mudança radical dos alimentos e à água, em
que nadam de maneira visível exemplares, magníficos pola sua agilidade, da raça
dos tritons. Nom comecei até agora nengum trabalho sério, embora tenha já à
minha disposiçom umha discreta quantidade de livros; comecei no entanto as
aulas de História do curso de cultura geral que organizáramos. Por isso nom
deves preocupar-te por enviar rapidamente os livros.
Porém, necessito um
pouco de dinheiro. achava ter o suficiente, para três messes no mínimo: tivem
de gastar para ajudar a um certo número de desterrados que chegárom sem recursos,
e tivem de antecipar dinheiro para as despesas gerais da cantina comunal que
vai começar depois de amanhá, día 9. o período das despesas imprevistas já
passou: a cantina comunitária permitirá evitarmos as grandes e pequenas
despesas a que até agora estávamos obrigados para poder comer. olha que o digo
com sinceridade: fam-me falta umhas 200 liras, e nom tenho mesmo vontade de
pedir-lhas a sraffa, que neste momento se encontra longe da sua casa.
Queridíssima tania,
gostava mesmo de saber-te tranquila e sem nengum ataque de melancolia. Porém,
deves escreverme igualmente, e confessar-te comigo: as tuas cartas som um
grande prazer para mim porque me sinto, com cada umha delas, perto de ti. sabes
que recebim um postal de Giulia com a assinatura autógrafa de delio? Parece
inacreditável: o mundo é sempre mais pequeno do que pensamos. escreverei-che
ainda umha longa carta para o correio da segunda-feira, embora exista a
probabilidade de o barco nom chegar na segundafeira. entrámos no Inverno também
em Ustica. Inverno mui suave, porque se pode ir dar umha volta sem chapéu e sem
casaco; contudo, chove amiúde e frequentemente sopram refachos mui fortes que
agitam o mar e impedem a navegaçom. Mas fora disso, que dias tam magníficos!
Nom podes imaginar as tonalidades que chegam a adquirir o mar e o céu nos dias
claros.
saúda
Giacomo e a mulher. Conhecim o amigo de Valen-
tino15, que é um ótimo rapaz. Um
abraço antonio
envia-me algum número do «Temps» e do «Journal des
débats»: podes encontrá-los na banca dos jornais do Palácio das Finanças.
os sapatos que me
descreves serám bons para a próxima Primavera, acho. os que calçava no momento
da partida, nom obstante estejam remendados (lembras?) resistem milagrosamente.
Manda-me notícias sobre
o pequeno limoeiro: cresceu? Qual é a sua altura já? É resistente? Queria
escrever-che sobre isto, mas passei por cima, por nom parecer demasiado...
infantil.
•
15
Valentino
schreider (n. 1903), estudante, comunista, filho do social-revolucionário Isaac
schreider; foi detido em abril de 1927, junto a um grupo de comunistas romanos,
sendo condenado a cinco anos de cárcere.
(Carta 8)
15/I/1927
Queridíssima tania, a última carta que me enviache tem a
data de 4 de janeiro. deixache-me onze dias sem notícias tuas. Nas condiçons em
que me encontro, é umha cousa que preocupa muito. acho que é possível acordar
as exigências recíprocas, com o compromisso pola tua parte de enviar-me polo
menos um postal cada três dias. eu já comecei a seguir este sistema. Quando nom
tenha tema para umha carta —e para mim esse é o caso mais comum—, enviarei-che
polo menos um postal, a fim de nom renunciar a nengum serviço postal: a vida
decorre aqui monótona, uniforme, sem sobressaltos. se calhar, devia
descrever-che algumha pequena cena da vida da aldeia, se estivesse com
suficiente bom humor. Por exemplo, podia descrever-che o arresto de um porco
que encontrárom polas corredoiras, livre e sem licença, e que foi conduzido
para o cárcere conforme manda o regulamento: o facto divertiu-me enormemente,
mas tenho a certeza de que nem tu nem Giulia ides acreditar; talvez acredite
delka16 quando tiver
algum ano mais e escuite a história, junto com outras do mesmo tipo (a dos
óculos verdes, etc.), igualmente autênticas e dignas de serem acreditadas sem
risinhos. também me divertiu a maneira de arrestar o porco: agarrando-o polas
patas traseiras e tirando dele como de um carrinho, enquanto ele berra como um
condenado. Nom houvo maneira de conseguir informaçons precisas sobre como se
poderia identificar o abuso do pasto e dos caminhos: acho que os vigiantes da
higiene conhecem todo o gado miúdo da aldeia. Umha outra particularidade que
16
diminutivo
russo de delio.
nunca mencionei é que nom vim ainda em toda a ilha nengum
médio de transporte a exceçom do burro, um magnífico animal, na verdade, de
grande estatura e de umha natureza doméstica notável, sinal do bom caráter dos
habitantes: na minha aldeia os burros som meio selvagens e mal deixam que se
aproximem deles os donos. ainda mais umha de animais: escutei ontem umha magnífica
história sobre cavalos, contada por um árabe aqui desterrado. o árabe falava o
italiano de maneira bem estranha e com muitas expressons incompreensíveis:
contudo, em geral a anedota estava cheia de cores e de força descritiva. Isto
lembra-me, por umha associaçom mui estranha, que soubem que era bastante fácil
encontrar o famoso trigo mourisco: uns amigos vénetos dim que é mui comum no
Véneto para fazer a polenta.
esgotei
assim um certo stok de temas para
falar. aguar-
do ter-te feito sorrir um bocado: acho que o teu prolongado
silêncio deve ser interpretado como umha consequência da melancolia e do
cansaço, e que é mesmo preciso fazer-te sorrir. Querida tania, deves
escrever-me, porque só de ti recebo cartas: quando me falta a tua
correspondência assim, durante tanto tempo, tenho a impressom de que estou
ainda mais isolado, que todas as minhas relaçons com o mundo se rompêrom.
Beijo-te, com afeto antonio
•
(Carta 9)
15/1/1927
Minha queridíssima Iulca,
quero descrever-che a minha vida quotidiana nas suas linhas
mais essenciais, para que podas acompanhá-la e captes, de tanto em tanto, algum
traço. Como sabes, porque já cho deveu escrever tania, vivo com outros quatro
amigos, entre eles o engenheiro Bordiga, de Nápoles, de quem se calhar conheces
o nome. os outros três som: um ex deputado reformista de Perusa, o advogado
sbaraglini e dous amigos do abruzzo. agora durmo num quarto com um destes
abruzzeses, Piero Ventura; antes dormíamos três, porque estava com nós o ex
deputado maximalista de Verona Paolo Conca, um exemplo simpático de operário,
que à noite nom nos deixava dormir, porque o atormentava a lembrança da mulher;
suspirava, ressoprava, acendia logo a luz e fumava uns cigarros malcheirentos.
afinal, a mulher véu também para Ustica para se reunir com o marido, e Conca
deixou-nos. Portanto, somos cinco, divididos em três dormitórios (toda a casa):
temos ao nosso dispor um lindo terraço, desde o qual admiramos o mar infinito
durante o dia e o magnífico céu durante a noite. o céu, livre de qualquer fume
urbano, permite desfrutar destas maravilhas com o máximo de intensidade. as
cores da água marinha e do firmamento som verdadeiramente extraordinárias, pola
variedade e a profundidade: vim arcos-da-velha únicos no seu género.
de
manhá, como de costume, som o primeiro em erguer-
me; o engenheiro Bordiga afirma que o meu passo tem a essa
hora caraterísticas especiais; é o passo do homem que nom tomou ainda o café e
que o aguarda com umha certa impaciência. Fago eu mesmo o café, se nom consigo
convencer o Bordiga para que o faga, dadas as suas notáveis aptitudes para a
cozinha. a seguir, começa a nossa vida: vamos à escola, como professores ou
como alunos. se for dia do serviço postal, vamos para a marinha, aguardando com
ánsia a chegada do barco: se o correio nom chega por causa do mau tempo, é um
dia perdido e umha certa melancolia se estende por todos os rostos. ao meio-dia
comemos: eu participo numha cantina comunitária e justo hoje me toca fazer de
camareiro e de ajudante de cozinheiro: nom sei ainda se terei de pelar as
batatas, preparar as lentilhas ou limpar a leituga antes de servir a mesa. a
minha estreia é aguardada com muita curiosidade: bastantes amigos queriam
substituir-me no serviço, mas fiquei inamovível na minha vontade de cumprir com
a minha parte. de tarde temos de voltar para os nossos quartos às oito. Por
vezes, há visitas de vigiláncia para comprovar se estamos verdadeiramente em
casa. a diferença dos presos comuns, nós nom estamos fechados por fora. outra
diferença consiste em que a nossa saída livre dura até as oito, e nom apenas
até as 5; poderíamos obter licenças vespertinas se fossem necessárias por algum
motivo. Na casa, jogamos cartas à noite. Nom tinha jogado nunca até agora;
Bordiga afirma que tenho madeira para chegar a ser um bom jogador científico de
scopone. reconstruim já umha certa
biblioteca e podo ler e estudar. os livros e os jornais que me chegam causárom
umha certa luita entre eu e Bordiga, quem sustenta sem razom que eu som mui
desordenado; a traiçom, ele leva a desordem às minhas cousas, com a excusa da
simetria e da arquitetura: realmente, já nom dou encontrado nada na simétrica
trapalhada que me organizou.
Queridíssima Iulca:
escreve-me muito sobre a tua vida e mais sobre as crianças. assim que podas,
manda-me a fotografia de Giuliano. delka fijo mais progressos? Cresceu-lhe mais
o cabelo? a doença tivo algumha consequência? escreve-me muito sobre Giuliano.
e Genia sanou? Um abraço mui forte antonio
•
(Carta 10)
Milám, 12 de fevereiro de 1927
Queridíssimas17,
escrevo para duas a um tempo para utilizar melhor as poucas
cartas que me permitem escrever. saim de Ustica na manhá do 20, repentinamente18:
quase que nom tivem tempo de ditar umha breve carta e de enviar um telegrama
para avisarvos. Pensava passar por roma de caminho; porém, polo que parece foi
umha interpretaçom errada do telegrama em que se comunicava o meu arresto, fum
trasladado a Milám por transferência ordinária, e nom extraordinária: assim,
andei de viagem dezanove dias. em Isernina conseguim enviar um telegrama em que
vos avisava da mudança no itinerário. esta viagem foi para mim um triplo ou
quádruplo desafio, quer do ponto de vista moral quer, e especialmente, do
físico. Nom quero descrevê-lo ainda polo miúdo, para nom assustar-vos e por nom
dar-vos a impressom de estar feito um farrapo. Nes-
17
tania
e Giulia.
18
depois
de sentenciar o desterro, o juiz enrico Macis do tribunal Militar de Milám, sob
a encomenda do tribunal especial, reabrira a instruçom relativa a G. e a 14 de
janeiro de 1927 pronunciou o mandado de arresto. após deixar Ustica a 20 de
janeiro em «transporte ordinário», G. chegou aos cárceres judiciários de Milám
na tarde de dia 7 de fevereiro de 1927. Nos dias 9 de fevereiro, 20 de março e
2 de junho foi interrogado polo juiz Macis.
tes dezanove dias «morei» nos seguintes cárceres: Palermo,
Nápoles, Caianello, Isernia, sulmona, Castellamare adriatico, ancona, Bolónia;
na noite do dia 7 cheguei a Milám. em Cajanello e em Castellamare nom há
cárceres; «dormim» nas cámaras de segurança do Quartel dos Carabineiros; fôrom
as duas noites mais cativas que tenho passado, talvez em toda a minha vida. em
Castellamare apanhei um estupendo resfriado, que neste momento já quase que me
passou.
Nas travessias
Ustica-Palermo e Palermo-Nápoles o estado do mar era péssimo; porém, nom
sofrim. a travessia Palermo-Nápoles merece ser descrita: farei-no noutra carta,
quando tiver repensado todos os detalhes e refrescado a memória. a viagem foi
em geral para mim como um filme longuíssimo: conhecim umha infinidade de tipos,
dos mais vulgares e nojentos, aos mais curiosos e ricos em caraterísticas de
interesse. entendim o difícil que é compreender a partir de sinais exteriores a
verdadeira natureza das pessoas; por exemplo, em ancona, um velhinho
bonacheirom, com face de honesto homem de províncias, perguntou-me se lhe cedia
a minha sopa, que eu decidira nom comer; figem-no com prazer, impressionado
pola serenidade dos seus olhos e pola modéstia desenvolta do seu proceder;
avisárom-me mais tarde de que era um cabrom nojento: violara a filha.
Quero-vos dar umha
visom de conjunto da viagem. Imaginai que de Palermo a Milám se arrasta um
imenso verme, que se contrai e se descontrai, que se articula e se desarticula
sem parar, deixando em cada cárcere umha parte dos seus aneis, substituindo-os
por uns novos, agitando-se à direita e à esquerda das formaçons e incorporando
as extraçons no regresso. este verme tem covis em cada cárcere, que se chamam
«tránsitos», onde ele fica entre dous e oito dias, e que acumulam, fazendo com
que calhem, a imundície e a miséria de geraçons.
Chegamos, cansos e
sujos, com os pulsos doridos polas longas horas de ferros, com a barba
comprida, com o cabelo em desordem, com os olhos encovados e cintilantes polo
ánimo exaltado e pola insónia; deitamo-nos no chao de terra sobre enxergons que
tenhem quem sabe que antiguidade, vestidos, para nom termos contato com a
porcaria, tapandonos o rostro e as maos com os mesmos panos, cobrindo-nos com
mantas insuficientes, polo menos para nom congelar-nos. Partimos novamente,
ainda mais sujos e cansos, até o novo tránsito, com os pulsos ainda mais
lívidos polo frio dos ferros e o peso das cadeias e polo cansaço de
transportar, assim arrumados, as nossas bagagens: mas, paciência, agora tudo
passou e já descansei.
estou
aqui, numha boa cela, aquecida polo sol, coberto
por umha camisola de lá que comprei assim que pudem;
finalmente tornei a friagem dos meus velhos ossos.
descreverei-vos
noutras cartas alguns dos meus compa-
nheiros de cadeia e de viagem: tenho um feixe deles avondo
interessante. reparei nomeadamente num réu condenado a cadeia perpétua, que
encontrei em Nápoles, quando estava no pátio; soubem unicamente o seu nome,
arturo, e estes detalhes: que tem 46 anos, que cumpriu já 22 anos de condena,
dos quais 10 de segregaçom (isolado) e que é sapateiro remendom.
É um homem lindo,
esbelto, de traços finos e elegantes; fala com umha precisom, umha clareza e
umha segurança de pasmar. Nom tem umha grande cultura, embora cite amiúde
Nietzsche: dizia «dies iràë», redobrando a «a-e». Vim-no em Nápoles, sereno,
sorridente, tranquilo; tinha como umha tinta de pergaminho nas tempas e nas
orelhas, quer dizer, a pele amarelenta, como curtida. Partiu de Nápoles dous
dias antes do que eu. Vim-no novamente em ancona, ao chegarmos à estaçom, sob a
chuva: obrigaram-no a fazer a linha Campobasso-Foggia, acho, e nom a de
Cajanello-Castellamare, porque sendo um condenado a cadeia perpétua teria
tentado a fuga nestes tránsitos, ainda a risco de um disparo de espingarda por
parte dos guardas. Cumprimentou-me, ao reconhecerme ao instante. Vim-no
novamente no registro do cárcere de ancona: deixaram-lhe as cadeias, porque
devia caminhar até a cela, ao ter chegado ao seu destino, e devia atravessar
uns pátios, embora internos. Mudara completamente desde Nápoles: na verdade,
lembrou-me o Farinata: o rosto duro, anguloso, os olhos pungentes e frios, o
peito para fora, o corpo todo teso, como umha mola pronta a saltar: apertou-me
a mao duas ou três vezes e desapareceu, engolido pola prisom.
Basta. Vede, laretei
como umha lercha. Para já, sabede que estou bem, que nom preciso nada, que
estou tranquilo e que aguardo notícias vossas e das crianças. Lembra-se delio
de mim algumha vez? tendes de enviar-me a fotografia de Giuliano.
Um abraço tenro para todos. antonio
•
(Carta 11)
19/II/1927
Queridíssima tania,
desde há um mês e dez dias nom recebo notícias e nom
encontro explicaçons. Como já che escrevim umha semana atrás, ao partir de
Ustica, o barco nom chegava desde havia quase dez dias: no barco que me levou a
Palermo deviam ter chegado a Ustica polo menos um par de cartas tuas, que
tinham de ter encaminhado para Milám; porém, na correspondência que recebim
aqui, de volta à ilha, ainda nom encontrei nada teu. Queridíssima, se se
tratasse de algumha cousa que depende de ti e nom já (como é possível e
provável) de algum obstáculo administrativo, deves evitar inquietar-me assim
durante tanto tempo: isolado como estou, qualquer novidade e qualquer
interrupçom da normalidade levam-me a pensamentos atormentados e penosos. as
tuas últimas cartas, recebidas em Ustica, eram verdadeiramente um pouco
preocupantes; que som essas preocupaçons sobre a minha saúde, que chegam até
fazer-che estar mal fisicamente? asseguro-che que sempre estivem bastante bem e
que tenho em mim energias físicas que nom podem esgotar-se facilmente, apesar
das aparências de fragilidade. achas que nom quer dizer nada que tivesse levado
sempre umha vida extremamente sóbria e rigorosa? reparo agora no que significa
nom ter tido nunca doenças de gravidade e nom ter inferido ao organismo
nengumha ferida fatal; podo cansar-me terrivelmente, é verdade; mas um pouco de
repouso e de alimento conseguem que recupere rapidamente a normalidade. em
resumo, nom sei o que escrever para conseguir que estejas calma e sá: tenho que
recorrer às ameaças? Poderia nom escrever-che mais, sabes?, e fazer com que
sintas também tu o que significa a completa falta de notícias.
Imagino-te séria e
sombria, sem um sorriso, nem sequer fugidio. Quereria fazer de algumha maneira
que te alegrasses outra vez. Contarei-che pequenas histórias; o que achas? Por
exemplo, quero contar-che algo, a modo de entremês na descriçom da minha viagem
neste mundo tam grande e terrível, sobre mim mesmo e a minha fama, mui
engraçado. eu nom som conhecido fora de um círculo mui restrito; por isso, o
meu nome é deturpado dos jeitos mais inverosímis: Gramasci, Granusci, Grámisci,
Granísci, Gramásci, até Garamáscon, com todos os graos intermédios mais
estranhos. em Palermo, durante certa espera para o controlo das bagagens,
estivem num depósito com um grupo de operários turineses que se dirigiam para o
desterro; junto a eles estava um tipo formidável de anarquista
ultra-individualista, conhecido com o sobrenome do «Único19», dos que se negam a confiar em ninguém, mas
principalmente na polícia e nas autoridades em geral; a sua identificaçom: «som
o Único e basta», eis a sua resposta. Na multitude que aguardava, o Único
reconheceu entre os delinquentes comuns (mafiosos) um outro arquétipo, siciliano
(o Único devia ser napolitano ou de mais abaixo), detido por motivos vários,
entre o político e o comum, e passou às apresentaçons. apresentou-me: o outro
fitou-me devagar e perguntou enseguida: «Gramsci, antonio?» sim, antonio! —
respondim. «Nom pode ser, replicou, porque antonio Gram- sci tem que ser um
gigante e nom um homem tam pequeno». Nom dixo mais nada, retirou-se a um
cantinho, sentou sobre um assento indescritível e permaneceu, como Mário sobre
as ruínas de Cartago, a meditar sobre as suas ilusons perdidas. evitou
cuidadosamente falar mais comigo durante o tempo em que ainda permanecimos na
mesma sala e nom se despediu de mim quando nos separárom.
Há um outro episódio
parecido que me aconteceu mais tarde, mas que em minha opiniom é ainda mais interessante
e complexo. estávamos para partir; os guardas das escolta pugeram-nos já os
ferros e as cadeias; fora amarrado de umha maneira nova e mui desconfortável,
já que os ferros me apertavam os pulsos de forma rígida, o osso do pulso estava
fora
19
do
título do livro do filósofo anarquista alemám Max stirner, L’Unico e la sua proprietà,
publicado na Itália em 1902.
do ferro e batia contra ele de umha maneira dolorosa.
entrou o chefe da escolta, um primeiro-sargento gigantesco, que ao fazer o
reconto se parou no meu nome e perguntou-me se era parente do «famoso deputado
Gramsci». respondim que esse homem era eu próprio e fitou-me com um olhar
compassivo, murmurando algo incompreensível. em todas as paragens sentim que
falava de mim, sempre qualificando-me como o «famoso deputado», nos grupos que
se formavam em volta do vagom celular (devo acrescentar que mandou que me colocassem
os ferros de maneira suportável), a tal ponto que, visto o vento que sopra,
pensava, ainda por cima, podia receber umha malheira de algum exaltado. Num
determinado momento, o primeiro-sargento, que viajava no segundo vagom celular,
passou àquele onde me encontrava eu e travou conversa. era um tipo
extraordinariamente interessante e estranho, cheio de «necessidades
metafísicas», como diria schopenhauer, mas que conseguia satisfazê-las da
maneira mais extravagante e desordenada que se poda imaginar. dixo-me que se
imaginara sempre a minha pessoa como «ciclópea» e que se desiludira muito deste
ponto de vista. estava a ler um livro de M. Mariani, o Equilibrio degli egoismi20,
e acabava de ler havia pouco um livro de um tal Paolo Gilles, de confutaçom do
marxismo21. tivem bom
cuidado de lhe dizer que o tal Gilles era um
20
a
obra citada por G. é de 1924 e expom um confuso projeto de reforma social.
Mario Mariani (1884-1951) foi um escritor de certo relevo na primeira
pós-guerra, autor de relatos e romances de inspiraçom erótico-social.
21
trata-se
do Abozzo di umha filosofia della dignità
umana [esboço de umha filosofia da dignidade humana], de Paul Gille, e nom
Gilles, professor do Institut de Hautes
Études de Bruxelas. a obra foi publicada na França em 1924 e a traduçom
italiana é da editora social é de 1926, como prefácio de Francesco Merlino. a
introduçom, «o sofisma anti-idealista de Marx», pp. 9-23, contém de facto umha
tentativa de refutaçom do marxismo.
anarquista francês sem qualquer educaçom científica ou de
outro tipo: gostava de escutá-lo falar com grande entusiasmo de tantas ideias e
noçons disparatadas e inconexas, como poderia falar um autodidata inteligente,
mas sem disciplina nem método. Num determinado momento começou a chamar-me de
«mestre». divertim-me muito, como podes imaginar. e assim tivem a experiência
da minha «fama». o que achas? Quase acabei a carta. Queria descrever-che polo
miúdo a minha vida aqui. Farei-no esquematicamente. acordo de manhá às seis e
meia, meia hora antes da diana. Preparo um café bem quente (aqui em Milám está
permitido o combustível «Meta», mui cómodo e útil): limpo a cela e asseio-me.
Às sete e meia recebo meio litro de leite ainda quente, que bebo imediatamente.
Às oito saio ao pátio, isto é, saio de passeio, que dura duas horas. Levo um
livro, passeio, leio, fumo algum cigarro. ao meio-dia recebo a comida de fora,
assim como à noite recebo a ceia: nom consigo comer tudo, embora coma mais do
que em roma. Às sete da noite vou para a cama e leio até as onze aproximadamente.
recebo durante o dia cinco jornais: Il
Corriere, La Stampa, Il Popolo
d’Italia, Il Giornale d’Italia e Il Secolo. subscrevim-me à biblioteca, com
dupla assinatura, e tenho direito a oito livros por semana. Compro aliás
algumha revista e Il Sole, um jornal
económico-financeiro de Milám. de maneira que sempre estou a ler. Lim já as Viagens de Nansen22 e outros livros dos quais che falarei noutra ocasiom.
Nom tivem mal-estares de importáncia, com a exceçom da friagem dos primeiros
dias. escreve-me, queridíssima, e man-
22
trata-se,
mui provavelmente, da obra do cientista e explorador norueguês Fridjof Nansen, La spedizione polare norveggese. Tra ghiacci
e tenebre [«a expediçom polar norueguesa. entre gelos e trevas»], publicado
em roma entre 1893 e 1896.
da-me
notícias de Giulia, de delio, de Giuliano, de Genia e de todos os demais: e
notícias tuas. Um abraço antonio
a carta passada e mais esta nom estám franqueadas, porque
esquecim comprar a tempo os selos.
•
(Carta 12)
26 de fevereiro de 1927 Queridíssima mae,
encontro-me em Milám desde dia 7 de fevereiro, nos cárceres
judiciários de san Vittore. saim de Ustica a 20 de janeiro e foi-me entregue
aqui umha carta tua, sem data, mas que deve ser dos primeiros dias de
fevereiro. Nom deves preocupar-te por umha mudança nas minhas condiçons; isso
agrava só até certo ponto o meu estado; trata-se apenas de um aumento das
maçadas e dos aborrecimentos, mais nada. também nom quero dizer-che polo miúdo
em que consiste a acusaçom que se me fai, pois nem eu próprio a dei
compreendido até agora; de algumha maneira, trata-se das habituais questons
políticas, polas quais já fora condenado a cinco anos de desterro em Ustica.
Fará falta paciência, e eu paciência tenho-a a toneladas, a vagons, a casas
(lembras como dizia Carlo quando era pequeno e comia algum doce saboroso?
«Quereria cem casas»; eu de paciência tenho kentu
domus e prus23).
23 expressom
sarda, «cem casas, e mais».
ora, também tu terás
que ter paciência e valor. Na tua carta, porém, penso que te me mostras num
estado de ánimo bem diferente. escreves que te sentes velha etc. Pois bem,
estou certo de que ainda és mui forte e resistente, apesar da tua idade e das
grandes penas e os grandes trabalhos polos que tiveche que passar.
Corrias,
corriazzu,
lembras24? estou certo
que ainda nos veremos todos juntos, filhos, netos e talvez, quem sabe,
bisnetos, e faremos umha comida grandíssima, com kulurzones e pardulas e zippulas e pippias de zuccuru e figu
sigada25 (nom desses
figos secos, porém, daquela famosa tia Maria de tadasuni). achas que delio
gostará dos pirichittos e das pippias de zuccuru? acho que sim, e que
também ele dirá que quer cem casas delas; nom poderias crer quanto se parece
com o Mario e com o Carlo quando era umha criança, polo que eu lembro, nomeadamente
com o Carlo, à parte do nariz, que Carlo tinha naquela época mais pequena.
algumha
vez penso em todas estas cousas e gosto de lem-
brar os feitos e as cenas da infáncia: encontro nelas
muitas dores e muitos sofrimentos, é verdade, mas também algo alegre e formoso.
e depois estás sempre tu, querida mamae, e as tuas maos sempre atarefadas por
nós, para aliviar as nossas mágoas e para tirar algum proveito de todas as
cousas. Lembras as que tramavas para arranjar um café bom, sem cevada e outras
porcarias do gênero? olha: quando penso em todas estas cousas, penso também que
edmea nom terá estas lem-
24
trocadilho
feito com o nome dos Corrias, parentes da mae de G., e coriazzu, que em sardo significa «resistente», «duro como o coiro».
25
Kulurzones som ravioli, pasta fresca recheia de queijo; pardulas e zippulas som
doces típicos sardos. Figu sigada, e
mais as pippias de zuccuru, som
pastéis em forma de boneca.
branças quando seja grande e que isso há de influenciar
muito o seu caráter, causando nela umha certa indolência e um certo
sentimentalismo, que nom som mui recomendáveis nos tempos de ferro e de fogo em
que vivemos. dado que também edmea terá que abrir-se caminho por si própria,
cumpre pensar em fazê-la mais forte do ponto de vista moral, para impedir que
continue a crescer rodeada dos costumados elementos da vida fossilizada do
rural. acho que vós tendes que explicar-lhe, com muito tato, naturalmente
(porque Nannaro nom se ocupa demasiado dela e parece que a descuida), devedes
explicar-lhe como seu pai nom pode voltar hoje do estrangeiro e como isto se
deve ao facto de que Nannaro, como eu e muitos outros, pensárom que as muitas
edmeas que vivem neste mundo deviam ter umha infáncia melhor da que nós
passámos e melhor da que ela mesma passa. e devedes dizer-lhe, sem voltas, que
eu estou em prisom, igual que seu pai está no estrangeiro. devedes, certamente,
ter em consideraçom a sua idade e o seu caráter, evitando que a pobre se
entristeça demasiado, mas devedes dizer-lhe a verdade na mesma, para que some
dessa maneira recordaçons de fortaleça, de coragem e de resistência às magoas e
às voltas que dá a vida.
Queridíssima mae, nom
deves preocupar-te por mim e nom deves pensar que eu esteja mal. Na medida do
possível, estou bem. tenho umha cela de pagamento, quer dizer, umha cama
bastante boa: tenho até um espelho para me remirar. recebo de umha cantina dous
pratos por dia; de manhá tomo meio litro de leite. tenho ao meu dispor um
pequeno aparelho para requentar os alimentos e fazer-me um café. Leio os jornais
polo dia e oito livros por semana, além das revistas ilustradas e humanísticas.
tenho cigarros «Macedonia». em resumo, do ponto de vista material, nom sofro
nengumha falta destacável. Nom podo escrever o que me parece e recibo os
correios de maneira mui irregular, isso sim. desde fai aproximadamente um mês e
meio nom tenho notícias de Giulia e dos meus filhos. Por isso nom podo
escrever-che nada sobre eles. Porém, sei que do ponto de vista material estám
bem, e que a delio e Giuliano nom lhes falta de nada.
a propósito, recebeche
umha fotografia preciosa de delio que deviam ter-che enviado? se a recebeche,
escreve-me as tuas impressons.
Queridíssima mai,
prometo escrever-che polo menos cada três semanas e ter-te contente; escreve-me
também tu e fai que me escrevam Carlo, Grazietta, teresina, meu pai, Paolo e
também edmea, quem, penso eu, deve ter feito progressos e já deve saber juntar
algumha letrinha; cada carta que recebo é para mim um grande consolo e um bom
entretenimento.
Um
abraço com tenrura para todos; para ti, queridíssima mae, o mais tenro abraço
Nino o meu endereço é agora: Cárcere judiciário – Milám.
•
(Carta 13)
19/III/1927
Queridíssima tania,
recebim esta semana dous postais teus; um de dia 9 e outro
de 11 de março: porém, nom recebim a carta que mencionas. achava que recebia a
tua correspondência, encaminhada de Ustica: na prática, chegou-me um pacote de
livros da ilha e o copista que mos entregou dixo-me que o pacote continha
também cartas sem abrir e postais que deviam passar ainda pola seçom de
revisom; espero recebê-las dentro de uns dias. agradeço-che as notícias que me
mandas sobre Giulia e
as crianças; nom consigo escrever diretamente a Giulia, à
espera de receber algumha carta sua, também com muito atraso. Imagino o seu
estado de espírito, para além do físico, por todo um conjunto de razons; essa
doença deveu ser bem angustiosa. Pobre delio; da escarlatina à gripe, em tam
pouco tempo! escreve tu à avó Lula26,
e pede-lhe que me escreva umha longa carta, em italiano ou em francês, como
puder (de resto, tu podias mandar-me só a traduçom), e que me descreva, com
todo detalhe, a vida das crianças. Convencim-me a mim mesmo de que as avós
sabem descrever as crianças e os seus movimentos melhor do que as maes, de umha
maneira real e concreta; som mais objetivas, e depois tenhem a experiência de
todo um percurso vital; acho que a tenrura das avós é mais substanciosa que a
das maes (porém, Giulia nom deve ofender-se e considerar-me pior do que som!).
Nom sei sugerir-che
mesmo nada para Giuliano; neste terreno já me equivoquei umha vez com delio. se
calhar, eu próprio poderia fabricar-lhe algumha cousa adequada, se pudesse
estar perto dele. decide tu, à vontade, e escolhe algumha cousa em meu nome.
Fabriquei nestes dias umha bola com papelom, que está acabando de secar; acho
que che será impossível enviar-lha a delio; de resto, ainda nom dei pensado
como é que lhe vou poder dar o verniz, e sem ele desfará-se facilmente por
causa da humidade.
a minha vida decorre
sempre igual de monótona. Mesmo o estudo é bem mais difícil do que me parecera.
rece-
26
diminutivo
com o que delio e Giuliano chamavam à sua avó materna, com quem moravam.
bim algum libro e a verdade é que leio muito (mais de um
volume por dia, além dos jornais), mais nom é a isto a que me refiro, senom que
tento dizer outra cousa. atormenta-me esta ideia (esta é a condiçom própria dos
presos, penso): seria necessário fazer algumha cousa «für ewig»27, segundo umha complexa
conceçom de Goethe, que lembro tem atormentado muito o nosso Pascoli. em
resumo, eu quereria, segundo um plano pré-estabelecido, ocupar-me intensa e
sistematicamente nalgum tema que me absorvesse e centralizasse a minha vida
interior. Pensei até agora em quatro temas, e isto é já umha indicaçom de que
consigo concentrar-me, a saber: 1° umha pesquisa sobre a formaçom do espírito
público na Itália do século passado; por outras palavras, umha pesquisa sobre
os intelectuais italianos, as suas origens, os seus agrupamentos por correntes
culturais, os seus diferentes modos de pensar, etc., etc. argumento sugestivo
em sumo grau, e que eu naturalmente somente poderei esboçar em grandes linhas,
dada a absoluta impossibilidade de ter à minha disposiçom a imensa mole de
material que seria necessária. Lembras o rapidíssimo e mui superficial escrito
meu sobre a Itália meridional e sobre a importáncia de B. Croce?28. Pois bem, gostaria de
desenvolver amplamente a tese que esboçara na altura, de um ponto de vista
«desinteressado», für ewig. —2° Um
estudo de lingüística comparada! Nada menos. Mas que poderia ser mais «desin-
27
«Para
a posteridade». No tocante a Pascoli, veja-se o poema «Per sempre», nos Canti di Castelvecchio.
28
trata-se
do ensaio, que ficou inacabado, Alcuni
temi della quistione meridionale, que G. escreveu em outubro de 1926, poucas
semanas antes do seu arresto. o manuscrito, que escapou aos registros da
polícia, foi recuperado e posto a salvo a começos de 1927 por Camilla ravera,
que o levou para a suíça. o ensaio foi publicado pola primeira vez na França,
na revista do P.C.I., «stato operário», ano IV (1930), pág. 9 e ss.
teressado» e für ewig
que isso? seria questom, naturalmente, de tratar apenas a parte metodológica e
puramente teórica do tema, que nom foi nunca tratada de umha maneira completa e
sistemática com o novo ponto de vista dos neolingüistas, contrário ao dos
neogramáticos. (darei-che arrepios, querida tania, com esta carta minha!). Um
dos maiores «remorsos» intelectuais da minha vida é a mágoa profunda que causei
ao meu bom professor Bartoli29,
da Universidade de turim, que estava convencido de que eu era o arcanjo
destinado a derrotar definitivamente os «neogramáticos», já que ele, da mesma
geraçom e atado por milhons de fios académicos a essa gentalha de péssimos
homens, nom queria ir, nos seus enunciados, para além duns certos limites
fixados polas conveniências e pola deferência aos velhos monumentos funerários
da erudiçom. —3° Um estudo sobre o teatro de Pirandello e sobre a transformaçom
do gosto teatral italiano que Pirandello representou e que contribui para a sua
configuraçom. sabes que eu, muito antes que adriano tilgher, descobrim e
contribuim para a popularizaçom do teatro de Pirandello? escrevim sobre
Pirandello, desde 1915 até 1920, como para juntar um pequeno volume de 200
páginas30 e na altura as
minhas afirmaçons eram originais e sem precedentes: o Pirandello era aturado
por cortesia ou era abertamente ridicularizado. —4° Um ensaio sobre romances de
folhetim e o gosto popular em literatura. a ideia véu-me lendo a notícia da
morte de serafino renzi,
29
Matteo
Giulio Bartoli (1873-1946), professor de Linguística na Universidade de turim.
30
Nas
crônicas teatrales escritas para a ediçom turinesa do Avanti! entre 1916 e 1920. [Há ediçom galega publicada pola
Universidade da Corunha e traduzida por Xesús González Gómez]. Para os estudos
de tilgher sobre o teatro de Piradello, cfr. os recolhidos nos volumes Voci del tempo, Librerie di scienze e
Lettere, roma 1921, e Studi sul teatro
contemporaneo, ibi., 1923.
diretor de dramas populares, reflexo teatral dos romances
de folhetim, ao lembrar quanto me divertira as vezes que fora vêlo, porque a
representaçom era dupla: a emoçom, as paixons desencadeadas, a intervençom do
público popular nom era, decerto, a representaçom menos interessante.
Que che parece isto
todo? No fundo, para quem observe com atençom, entre estes quatro temas existe
umha homogeneidade: a alma criativa do povo, nas suas diferentes fases e graus
de desenvolvimento, está na sua base em igual medida. escreve-me as tuas
impressons; confio muito no teu bom senso e no fundamento dos teus juízos.
aborrecim-te?.
sabes?, para mim
escrever substitui as conversas: quando che escrevo, acredito que estou a
falar-te de verdade; só que tudo se reduz a um monólogo, porque as tuas cartas,
ou nom me chegam, ou nom correspondem com a conversa iniciada. Por isso,
escreve-me cartas, com mais vagar, além dos postais; eu escreverei-che umha
carta cada sábado (podo escrever duas por semana) e será um desabafo. Nom
retomo a narraçom das minhas aventuras e impressons da viagem, nom sei se che
interessam; é certo que tenhem um valor pessoal para mim, em quanto que estám
ligadas a determinados estados de ánimo e também a determinados sofrimentos;
para fazê-las interessantes para os demais seria necessário, se calhar, expôlas
em forma literária; mas eu tenho que escrever de golpe, no pouco tempo em que
me deixam o tinteiro e a caneta.
de resto, a plantinha
do limoeiro continua a crescer? Nom me digeche nada mais. e a dona da minha
casa, como está? ou é que morreu? sempre me esqueço de perguntarcho. a
primeiros de janeiro recebim em Ustica umha carta do senhor Passarge, que
estava desesperado e achava próxima a morte da mulher; depois nom soubem mais
nada. Pobre senhora, temo que a cena do meu arresto contribuíra para acelerar o
seu mal, já que me queria bem e estava tam pálida quando me levárom!.
Um abraço, querida, quere-me e escreve-me.
antonio
•
(Carta 14)
26 de março de 1927 Queridíssima teresina,
há só poucos dias entregárom-me a carta que me enviaras a
Ustica e que continha a fotografia de Franco. Pudem ver assim, finalmente, o
teu pequeninho; dou-che todos os meus parabéns. Mandarás-me também —nom é?— a
fotografia de Mimí, e assim estarei mesmo contente. Impressionou-me muito que
Franco, polo menos na fotografia, se pareça pouquíssimo com a nossa família:
deve parecer-se com Paolo e a sua estirpe campidanesa, e se calhar até maurreddina31: e Mimí com quem se parece? deves escrever-me com
mais vagar sobre os teus filhos, se tiveres tempo, ou polo menos fai que me
escreva Carlo ou Grazietta. Franco parece-me mui esperto e inteligente: acho
que já fala bem. em que língua fala? espero que o deixedes falar em sardo e que
nom o incomodedes neste sentido. Foi um erro, para mim, nom ter deixado que
edmea, desde bem pequena, falasse em sardo com liberdade. Isso prejudicou a sua
formaçom intelectual e pujo umha camisa de força à sua fantasia. Nom deves
cometer este erro com os teus filhos. o sardo nom é um dialeto, mas umha língua
de seu, embora
31
Maurreddu: chama-se assim em
sardo a quem vive na zona de oristano e Cagliari, e em geral nas regions
meridionais de sardenha.
nom tenha umha grande literatura, e é bom que as crianças
aprendam mais línguas, se for possível. À parte que o italiano que lhe ides
ensinar, será umha língua pobre, eivada, feita dessas poucas frases e palavras
das vossas conversaçons com ele, puramente infantil; ele nom terá contato com o
ambiente geral e acabará por aprender duas gírias e nengumha língua: umha gíria
italiana para a comunicaçom oficial convosco e umha gíria sarda, aprendida aos
poucos, para falar com as outras crianças e com as pessoas que encontre pola
rua ou na praça. recomendo-te, mesmo de coraçom, que nom cometas um erro
semelhante, que deixes os teus filhos mamarem todo o sardismo que quigerem e
que se desenvolvam de maneira espontánea no ambiente natural em que nascêrom:
isso nom vai ser um obstáculo para o seu porvir, antes polo contrário. delio e
Giuliano nom estivérom bem nestes últimos tem-
pos: tivérom a gripe; escrevem-me que já se repugérom e que
estám bem. repara em delio, por exemplo: começou a falar a língua da mae, como
era natural e necessário, mas rapidamente foi aprendendo também o italiano, e
cantava ainda cançons em francês, sem que por isso confundisse ou misturasse as
palavras de umha ou de outra língua. eu queria ensinarlhe também a cantar: «Lassa sa figu, puzone»32, mas as suas tias, principalmente, opugérom-se
com energia. divertim-me muito com delio no passado agosto: estivemos juntos
umha semana no trafoi, no alto adige, numha choupana de camponeses alemáns.
delio fazia entom dous anos justos, mas estava já mui desenvolvido
intelectualmente. Cantava com muito vigor umha cançom: «abaixo os frades, abaixo
os padres» e depois cantava em italiano: «Il mio sole sta fronte a
32
«deixa
o figo, ó pássaro», em sardo.
te» e umha cançom francesa que tinha a ver com um moinho.
Convertera-se num entusiasta da procura de amorodos nos bosques e sempre queria
correr atrás dos animais. o seu amor polos os animais aproveitava-se de duas
maneiras: na música, na medida em que era capaz de reproduzir no piano-forte a
gama musical segundo as vozes dos animais, desde o tom de barítono do urso até
o agudo do pintinho, e no desenho. Cada dia, quando ia onda ele, em roma, havia
que repetir toda a série: primeiro havia que colocar o relógio de parede sobre
a mesa e fazer com que figesse todos os movimentos possíveis; depois havia que
escrever umha carta à avó materna com o debuxo dos animais que o impressionaram
durante o dia; mais tarde íamos ao piano e tocava a sua música animalesca;
depois jogávamos a diferentes cousas.
Querida teresina,
mencionache na tua carta que a primeira carta que vos enviei desde roma estava
cheia de desánimo. Nom acho ter estado nunca desanimado como pensas. aquela
carta escrevim-na num momento verdadeiramente difícil, relativamente; o dia
anterior comunicaram-me a medida de cinco anos de desterro e dixeram-me que em
poucos dias teria que partir para Giubaland, na somália. Com efeito, naquela
noite pensei bastante nas minhas possibilidades físicas e de resistência, que
na altura nom pudera medir ainda e considerava que eram poucas; é possível que
na carta houvesse um reflexo daquele estado de ánimo. seja como for, deves crer
que, embora pudesse sentir naquel momento, como tu dis, um pouco de desánimo,
passou-se rapidamente e nom se repetiu mais. Vejo tudo com muita frieza e
tranquilidade e, mesmo sem fazer-me ilusons pueris, estou firmemente convencido
de que o meu destino nom é apodrecer na cadeia. tu e os demais tendes que
procurar que mamae esteja alegre (recebim umha carta sua que nom sei como
responder) e tendes que assegurar-lhe que a minha honradez e a minha
integridade nom estám de nengum modo em questom: estou no cárcere por razons
políticas, nom por razons de honradez. acho mesmo que acontece o contrário: se
nom me importasse com a minha honradez, a minha integridade, a minha dignidade,
se, por outras palavras, fosse capaz de ter o que se chama umha «crise de
consciência» e de mudar de opiniom, nom teria sido detido nem teria ido para
Ustica, isso para começar. sobre isto devedes convencer a mamae; é mui
importante para mim. escreve-me e fai que todos me escrevam: já nom vim sequer
a assinatura de Grazietta; como está?.
Um abraço para Paolo,
com afeto; muitos beijos para ti e os teus filhos
Nino
•
(Carta 15)
4 de abril de 1927 Querida, querida tania,
a semana passada recebim dous postais teus (de 19 e de 22
de março) e a carta do 26. sinto muito ter-te magoado; acho que tampouco tu
entendeche bem o meu estado de ánimo, porque nom me expressei bem e sinto que
entre nós podam criar-se equívocos. asseguro-che que nunca, mesmo nunca, me
entrárom sequer dúvidas de que pudesses esquecer-me ou pudesses querer-me
menos; com certeza, se tivesse pensado, mesmo de longe, umha cousa assim nom
che teria escrito mais; esse foi sempre o meu caráter e por isso rompim muitas
velhas amizades no passado. só em pessoa poderia explicarche a razom do
nervosismo que se apoderou de mim, depois de dous messes sem notícias; nem
tento sequer fazê-lo por carta, para nom cair noutros equívocos igualmente
dolorosos. agora tudo passou e nom quero nem voltar pensar nisso. desde há
alguns dias mudei de cela e de rádio (o cárcere está dividido em rádios) como
indica também o cabeçalho da carta; antes estava no 1º raio, cela 13; agora
estou no 2º rádio, cela 22. a minha situaçom carcerária, por assim dizer,
parece que melhorou. a minha vida decorre, contudo, mais ou menos como antes.
Quero descrevê-la para ti um pouco polo miúdo; assim poderás imaginar cada dia
o que fago: a cela é ampla como um quartinho de estudante; a olho, calculo três
metros por quatro e meio e três e meio de altura. a janela dá ao pátio onde
tomamos o ar: nom é umha janela corrente, como é natural; é umha das chamadas
«boca de lobo», com grades no interior; podese ver somente um pedaço de céu,
nom se pode olhar para o pátio ou para os lados. a disposiçom desta cela é pior
que a da anterior, que estava orientada a sul-sudoeste (o sol via-se contra as
dez, e às duas ocupava o centro da cela, com umha raiola de polo menos 60 cm.);
na cela atual, que deve estar orientada a sudoeste-oeste, o sol vê-se contra as
duas e permanece na cela até tarde, mas com umha faixa de 25 cm. Nesta estaçom,
mais quente, talvez seja melhor assim. de resto: a cela atual está situada
sobre a oficina mecânica do cárcere e ouvese o ruído das máquinas; e porém já
me habituarei. a cela é mui simples e mui completa a um tempo. tenho o catre
contra a parede, com dous colchons (um de lá): cambia-se a roupa branca cada
quinze dias aproximadamente. tenho umha mesinha e umha espécie de
armário-cómoda, um espelho, umha bacia e umha jarra de ferro esmaltado. Possuo
muitos objetos de alumínio comprados na seçom que a Rinascente33
33 a Rinascente
era (e continua a ser) uns grandes armazéns com sucursais em várias cidades
italianas e ao que parece também no cárcere (N. do T.).
organizou no cárcere. Possuo alguns livros de meu; cada
semana recebo para ler oito livros da biblioteca do cárcere (dupla assinatura).
Para que te fagas umha ideia, fago-che a listagem desta semana, que contudo é
excecional, polo relativo valor dos livros que me tocárom:
1° Pietro Colletta, Storia del Reame di Napoli (ótimo); 2°
V. alfieri, Autobiografia; 3°
Molière, Commedie scelte, traduzidas
polo senhor Moretti (umha traduçom ridícula); 4° Carducci, 2 v. das obras
completas (bem medíocre, entre os piores de Carducci); 5° artur Lévy, Napoleone intimo (curioso, apologia de
Napoleom como «homem moral»); 6° Gina Lombroso, Nell’America meridionale (bastante medíocre); 7° Harnack, L’essenza del Cristianesimo; Virgilio
Brocchi, Il destino in pugno, romance
(pom medo); salvator Gotta, La donna mia
(ainda bem que é sua, porque é bem aborrecida).
de manhá acordo às seis
e meia, às sete tocam diana: café, asseio, limpeza da cela; tomo meio litro de
leite e como umha sandes; por volta das oito saimos ao pátio durante duas
horas. Passeio, estudo a gramática alemá, leio a Signorina contadina de Puškin e aprendo de cor umha vintena de
linhas do texto. Compro Il Sole,
jornal da indústria e o comércio, e leio algumha notícia económica (lim-me
todas os relatórios anuais das sociedades anónimas); às terças compro Il Corriere
dei Piccoli, que me diverte; às quintas o Domenica del Corriere; às sextas, o Guerin Meschino, supostamente humorístico. depois do pátio, o café;
recibo três jornais, Corriere, Popolo d’Italia, Secolo, que leio (agora o Secolo
sai à tarde e nom o vou comprar mais, porque já nom vale para nada); o jantar
chega a distintas horas, das doze às três; aqueço a sopa (era isso ou massa),
como um bocado de carne (desde que nom seja de boi, porque ainda nom consigo
comer carne de boi), um pamzinho, um pedaço de queijo —nom gosto da fruta— e um
quartel de litro de vinho. Leio um livro, passeio, reflito sobre muitas cousas. Às quatro-quatro e meia recibo
outros dous jornais, a Stampa e o Giornale d’Italia. Às sete ceio (a ceia chega às seis), sopa, dous ovos crus,
um quartel de litro de vinho; o queixo nom o dou comido. Às sete e meia toca a
silêncio; vou para a cama e leio livros até as onze-doze. desde há dous dias,
contra as 9 bebo umha xícara de chá
de macela. (Continuarei no próximo número, porque quero escrever-che sobre
outras cousas):
1° Nom me fai falta
roupa branca, etc. Já tenho suficiente e nom saberia onde meter outros objetos.
os sapatos que tenho som ótimos; tenho também os chinelos. Para já, o uniforme
vai bem como uniforme carcerário. tenho um abrigo que me ajudou nos messes
frios e que agora nom me vale para nada. tenho todas as tuas colheres e as
colheres de café, que me prestárom muito (mesmo sem cabo). tenho seis ou sete
nacos de sabom, escovas, escova de dentes, peites, etc, etc. Verdadeiramente,
nom me fai falta nada essencial. a tua chegada aqui, poder-te ver, seria umha
grandíssima cousa para mim, bem o podes crer!
No entanto, cumpre
saber, em primeiro lugar, se vou ficar aqui; em segundo lugar, é preciso termos
a certeza de que che vam dar a licença para a conversa. deves lembrar que do
ponto de vista jurídico nós nom somos parentes, porque o casal nom foi
registado na Itália; do ponto de vista jurídico, eu som solteiro e tu nom podes
demonstrar que és minha cunhada. escrevo-che isto porque seria terrível para
mim se vinhesses e depois nom pudesses ver-me. Porém, digo-che que nom é
impossível termos a conversa; sei que alguns amigos meus tivérom a conversa com
as suas companheiras, sem serem jurídicamente as suas mulheres; por que entom
havia de ser impossível para as cunhadas? Cumpre falar com um advogado: em
Milám seria preciso que te dirigisses ao advogado arys (Via Unione 1) quem (como escreveu Bordiga desde Ustica) se interessou
por mim. Querida tania, como me alegraria verte; mas nom deves escrever sobre o
tema, se nom for certa a possibilidade de termos a conversa; de outra maneira
sofreria demasiado a desilusom. Um abraço antonio
escuita, querida, para a correspondência, fagamos assim: eu
escrevo-che umha carta cada segunda-feira (neste rádio escreve-se às segundas);
tu escreve-me umha carta cada semana e mais dous postais, também ilustrados, e
manda-me as cartas de Giulia. sabes? a ideia da censura epistolar arrebata-me
outra vez a espontaneidade, como nos primeiros dias em Ustica. espero
converter-me num «sem-vergonha» como antes, mas ainda nom o consigo. escreve a
Giulia que penso muito nela e nas crianças, mas que nom consigo escrever, nom
dou; escreveria como quem trabalha num escritório e é umha cousa que dá
arrepios.
•
(Carta 16)
11 de abril de 1927 Queridíssima tania,
recebim os teus postais de 31 de março e de 3 de abril.
agradeço-che as novas que mandas. espero a tua chegada a Milám, mesmo se —devo
confesá-lo— nom quero contar demasiado com ela. Pensei que nom seria mui
agradável continuar a descriçom, iniciada na anterior carta, da minha vida
atual. É melhor que che escreva de cada vez o que me anda na cabeça, sem um
plano pré-estabelecido. escrever converteu-se para mim num tormento físico,
porque me dam umhas canetinhas horríveis, que riscam o papel e exigem umha
atençom obsessiva à parte mecánica da escrita. Pensava que poderia obter o uso
permanente da caneta-tinteiro e propugera-me redigir os trabalhos que che mencionara;
porém, nom obtivem a licença e anojaria-me insistir. Por isso escrevo apenas
nas duas horas e meia ou três em que se despacha a correspondência semanal
(duas cartas); naturalmente, nom podo tomar apontamentos, isto é, na realidade
nom podo estudar com ordem e com proveito. Leio à custo. Porém, o tempo passa
mui rapidamente, mais do que pensara. decorrêrom cinco messes do dia do arresto
(8 de novembro) e dous messes do dia em que cheguei a Milám. Nom parece verdade
que tenha decorrido tanto tempo. Porém, é preciso entender que nestes cinco
messes as vim de todas as cores e experimentei as impressons mais estranhas e
as mais excecionais da minha vida: roma: de 8 de novembro até 25 de novembro:
isolamento absoluto e rigoroso. 25 de novembro: Nápoles, em companhia dos meus
quatro companheiros deputados até o 29 (três, e nom quatro, porque um deles34
34
enrico
Ferrari.
fora separado em Caserta para as trémiti). embarque para
Palermo e chegada a Palermo o 30. oito dias em Palermo: 3 travessias para
Ustica sem sucesso a causa do mar bravo. Primeiro contato com os detidos
sicilianos da máfia: um mundo novo, que apenas conhecia intelectualmente;
verifico e comprovo as minhas opinions ao respeito, e reconheço-as bastante
exatas. o 7 de dezembro, chegada a Ustica. Conheço o mundo dos presos: cousas
fantásticas e inacreditáveis. Conheço a colónia dos beduínos da Cirenaica, desterrados
políticos: quadro oriental, mui interessante. Vida de Ustica. a 20 de janeiro,
parto novamente. Quatro dias em Palermo. travessia para Nápoles com deliquentes
comuns. Nápoles: conheço toda umha série de tipos do maior interesse para mim,
que do sul só conhecia fisicamente sardenha. em Nápoles, entre outras cousas,
assisto à cena de iniciaçom à camorra:
conheço um condenado a prisom perpétua (um certo arturo) que me deixa umha
impressom indelével. após quatro dias saio de Nápoles; paragem em Cajanello, no
quartel dos carabineiros; conheço os meus companheiros de cadeia, que virám
comigo até Bolónia. dous dias em Isernia, com estes tipos. dous dias em
sulmona. Umha noite em Castellamare adriatico, no quartel dos carabineiros.
ainda: dous dias com aproximadamente 60 detidos. organizam-se festas na minha
honra; os romanos improvisam um recital bem bonito, Pascarella35 e
bosquejos populares do mundo do crime romano. Pulheses, calabreses e sicilianos
desenvolvem umha exibiçom de esgrima com faca segundo as regras dos Quatro
estados do mundo do crime meridional (o estado siciliano, o estado Calabrês, o
estado Pulhês, o estado Napolitano): sicilianos contra Pulheses, Pulheses
contra Calabreses.
35
Cesare
Pascarella (1858-1940), poeta em romanesco («dialeto» de roma).
Foi também pintor e tentou o género épico-lírico.
os sicilianos e os Calabreses nom competem entre si, porque
entre os dous estados os ódios som fortíssimos e incluso a exibiçom acabaria
sendo séria e cruenta. os Pulheses som os mestres de todos: esfaqueadores
insuperáveis, com umha técnica cheia de segredos e letal, desenvolvida por e
para superar todas as outras técnicas. Um velho pulhês, de sessenta e cinco
anos, mui respeitado, mas sem cargo «estatal», derrotou todos os campeons dos
outros «estados»; depois, como fim de festa, pelejou com um outro pulhês,
jovem, de bom corpo e com umha surpreendente agilidade, alto cargo a quem todos
obedeciam, e durante meia hora desenvolvérom toda a técnica habitual em todas
as esgrimas conhecidas. Umha cena verdadeiramente grandiosa e inesquecível, por
tudo, polos atores e polos espetadores: todo um mundo subterráneo, bem
complexo, com umha vida de seu, com sentimentos, com pontos de vista, com um
aquele de honra, com hierarquias férreas e formidáveis, manifestava-se para
mim. as armas eram simples: as colheres, polidas contra a parede, de maneira
que o cal marcava os golpes no uniforme. depois de Bolónia, dous dias, com
outras cenas; a seguir, Milám. Com certeza, estes cinco messes fôrom movidos e
ricos de impressons para um ou dous anos de ruminaçons. Isto pode explicar-che
como passo o tempo, quando nom leio; penso novamente em todas estas cousas,
analiso-as capilarmente, embebo-me deste trabalho bizantino. de outra parte,
converte-se tudo em demasiado interessante, o que acontece em volta minha e o
que consigo compreender. Certo é que me controlo continuamente, porque nom
quero cair nas monomanias que caraterizam a psicologia dos detidos; a isso
ajuda-me principalmente um certo trasgo irónico e cheio de humor que me
acompanha sempre. e tu que fás, em que pensas? Quem che compra os romances de
aventuras, agora que eu nom estou? sei que leche outra vez as maravilhosas
histórias de Corcoran e da sua gentil Lisotta36. Frequentas este ano as aulas do Policlínico? o professor
Baronia, é aquele que achou o bacilo do sarampo37? acompanhei as suas lamentáveis vicissitudes; nom
compreendim polos jornais se também o professor Cirincione fora suspenso. tudo
isto está, polo menos numha parte, ligado ao problema da máfia siciliana. É
inacreditável como os sicilianos, desde o estrato mais baixo às cimas mais
altas, som solidários entre eles e como até os cientistas de valor inegável se
situam nas margens do Código Penal por este sentimento de solidariedade. estou
convencido de que realmente os sicilianos som um caso à parte; há maior
semelhança entre um calabrês e um piemontês que entre um calabrês e um
siciliano. as acusaçons que os meridionais em geral lançam contra os sicilianos
som terríveis: acusam-nos até de canibalismo. Nom teria crido nunca que
existissem tais sentimentos populares. Penso que faria falta ler muitos livros
sobre a história dos últimos séculos, nomeadamente sobre o período da separaçom
de sicília e o sul de Itália durante os reinados de José Bonaparte e Joaquim
Murat em Nápoles, para encontrar a origem de tais sentimentos. estou
entusiasmado com o gorro; onde conseguiche encontrá-lo? Penso que é o gorro de
orgosolo, vermelho e azul, que eu nom conseguira encontrar. Nom poderei mandar
a bola de papelom e igualmente, nem tu vas poder mandar o verniz: acho que é
absolutamente impossível, sobretudo o ver-
36
trata-se
de Les merveilleuses aventures du
capitain Corcoran (1867), o mais
célebre dos livros infantís do romancista e jornalista francês alfred assolant
(1827-1886). Lisotta, ou Louison, é um tigre fémia, companheira inseparável do
capitám Corcoran.
37
Giuseppe
Caronia, catedrático da Universidade de roma, fora suspendido temporariamente
nas suas funçons docentes devido a alguns incidentes acontecidos com doentes da
clínica da universidade. Cirincione (1863-1929), professor de oftalmologia da
Universidade de roma.
niz, que pode ser considerado um veneno, conforme o
regulamento, e exigiria toda umha série de controlos mui complexos. ai o tés,
olha; um outro objeto de análise mui interessante: o regulamento carcerário e a
psicologia que cresce em volta dele, de umha parte, e em volta do contato com
os presos, de outra, entre o pessoal de vigiláncia. eu achava que duas obras
mestras (e digo-o absolutamente a sério) concentravam a experiência milenária
da Humanidade no campo da organizaçom das massas: o manual do cabo e o
catecismo católico. estou convencido de que é preciso acrescentar, embora num
campo muito mais concreto e de caráter excecional, o regulamento carcerário,
que guarda verdadeiros tesouros de introspeçom psicológica. espero as cartas de
Giulia: penso que depois de tê-las lido, conseguirei escrever-lhe diretamente.
Nom penses que isto é umha cousa de crianças. Umha notícia importante: desde há
alguns dias como muito; porém, nom dou comido a verdura; figem esforços
denodados e já renunciei porque me revolve de um jeito terrível.
seja
como for, nom consigo esquecer que ao melhor vés
e
que talvez (ai de mim!) poderemos ver-nos novamente, embora seja durante uns
minutos. Um abraço antonio
•
(Carta 17)
18 de abril de 1927 Minha queridíssima Iulca,
escrevo novamente, depois de tanto tempo. só poucos dias
atrás recebim duas cartas tuas: umha de 14 de fevereiro e outra de 1 de março,
e pensei muito em ti; figem até um inventário de todas as minhas lembranças, e
sabes que imagem me ficou mais impressa? Umha das primeiras, de há muito tempo.
Lembras quando te foras do Bosque de Prata38,
no fim do teu mês de férias? acompanhara-te até a beira da estrada principal e
ficara um bom pedaço a olhar-te, enquanto te afastavas. acabávamos de
conhecer-nos, e contudo já che tinha feito bastantes desprezos e figera-che
também chorar; mofava-me de ti com a assembleia dos mouchos e tu pugeras-me a
pele de galinha ao tocares Beethoven. assim te vejo sempre, afastando-te com
passos breves, com o violino numha mao e na outra o teu bolso de viagem, tam
pitoresco.
Qual é agora o meu
estado de ánimo? escreverei-che mais por extenso as próximas vezes (pedirei
escrever umha carta dupla) e procurarei descrever-che os aspetos positivos da
minha vida nestes messes (os aspetos negativos fôrom já esquecidos); umha vida
interessantíssima, como podes imaginar, polos homens que tivem ao pé de mim e
as cenas a que assistim. o meu estado de ánimo geral está marcado pola mais
grande tranquilidade. Como podo resumi-lo? Lembras a viagem de Nansen ao Pólo?
e lembras como se levou a cabo? Como
38
em
russo Serebriany bor, um lugar das
aforas de Moscovo, onde G. passara um período de descanso no verao de 1922 e onde
conheceu primeiro a Genia schucht, também internada ali, e depois a Giulia, que
fora visitar sua irmá e dar concertos para os doentes.
nom estou mui convencido de que o lembres, lembrarei-cho
eu. Nansen, depois de estudar as correntes marinhas e aéreas do oceano árctico
e tendo observado que nas praias de Gronelândia se encontravam árvores e
resíduos que deviam de ser de origem asiática, pensou que poderia chegar ao
Pólo, ou polo menos perto do Pólo, deixando que os gelos transportassem o seu
barco. assim, deixou-se aprisionar polos gelos e durante três anos e meio o seu
barco apenas se moveu na medida em que se deslocavam, bem devagar, os gelos. o
meu estado de ánimo pode comparar-se com o dos marinheiros de Nansen durante
esta viagem fantástica, que sempre me impressionou pola sua conceiçom,
verdadeiramente épica.
Conseguim explicar-me?
(como diriam os meus amigos sicilianos de Ustica). Nom cho poderia explicar de
umha maneira mais breve e mais sintética. Portanto, nom te preocupes por esta
parte da minha existência. Contudo, se quigeres que te lembre sempre com
tenrura (estou a brincar, bem o sabes!), escreve-me com mais vagar,
descrevendo-me a tua vida e a dos meninhos. tudo me interessa, incluso os
pormenores. e manda-me fotografias, cada tanto. assim seguirei também com os
olhos o desenvolvimento das crianças. e escreve-me sobre ti, muito. Viche
algumha vez o senhor Bianco39?
e viche aquele curioso modelo de africanista que umha vez me prometera um frito
de rins de rinoceronte? Quem sabe se se lembra ainda de mim; se o vês, fala-lhe
nesse frito e escreve-me as suas respostas; divertirei-me imensamente. sabes
que nom
39
Vincenzo
Bianco (nascido em 1889), operário turinês, conheceu a G. nos anos de L’Ordine nuovo e fijo parte do grupo de
«educaçom comunista», organizado polo próprio G. em 1920 em turim. emigrado a
Moscovo em abril de 1923, manteve correspondência epistolar com G. e
converteu-se em íntimo amigo da família schucht.
fago outra cousa: pensar no passado e repassar todas as
cenas e os episódios mais ridículos; isto ajuda-me a passar o tempo, algumha
vez até rio à vontade, sem dar por isso. Querida, tania anuncia-me outras
cartas tuas; como as espero! saúda todos os teus. Quero-te muito. antonio
tania é mesmo umha ótima rapariga. Por isso a figem sofrer
tanto.
•
(Carta 18)
25 de abril de 1927 Queridíssima mae,
recebim a tua carta hoje mesmo, que che agradeço muito.
estou mui contente polas boas notícias que me dás, nomeadamente sobre Carlo.
Nom sabia quais eram as suas condiçons no trabalho e na vida. acho que Carlo é
um ótimo rapaz, apesar de algumha falcatruada sua do passado, e acho também que
é mais sólido nos negócios do que o eram (e talvez o sejam ainda) tanto Nannaro
quanto Mario, que eram dados a ver ganhos fabulosos e a construir castelos no
ar por qualquer pequena cousa.
ai
de mim! todos na nossa casa (com a minha única exce-
çom) acreditaram ter umha especial aptitude para os
negócios e eu nom quereria que todos tivessem umha experiência como aquela
famosa do «galinheiro»; lembras? e Carlo, lembra? seria preciso lembrar-lha
como umha humilhaçom perpétua para os Gramsci que queiram dedicar-se aos
negócios. eu hei de lembrá-la sempre, também porque aquelas galinhas, que nom
punham nunca, me picárom e estragárom três ou quatro romances de Carolina
Invernizio (ainda bom é!)40.
a minha vida decorre sempre igual. Leio, como, durmo e penso. Nom podo fazer
outra cousa. tu, contudo, nom deves pensar tudo quanto pensas e sobretudo nom
deves iludir-te. Nom porque nom esteja seguríssimo de que hei voltar a ver-te e
a fazer que conheças os meus filhos (receberás a fotografia de delio, como che
anunciei; mas nom che entregara já Carlo umha no 1925? Quando virá Carlo a
roma? e Chicchinu Mameli41
deu-che um escudo de prata que lhe enviara a Mea para que figesse umha colher
de café? e umha tabaqueira de madeira especial para ti? (esqueço sempre
perguntar-che estas cousas), mas também porque tenho a certeza total de que
serei condenado, e quem sabe a quantos anos. deves entender que isto nom tem
nada a ver, em absoluto, nem com a minha integridade, nem com a minha
consciência, nem com a minha inocência ou culpabilidade. É algo que se chama
Política, com a qual todas estas belíssimas cousas nom tenhem nada a ver. sabes
o que se fai com as crianças que mijam na cama, nom é? ameaçase com queimá-las
com umha estopa ardendo no estremo da forquilha. Pois bem: imagina que na
Itália há umha criança mui gorda, que ameaça continuamente com mijar na cama
desta grande mae produtora de cereais e de heróis; eu e algum outro somos a
estopa ardendo (ou o farrapo) que se ensina para ameaçar ao impertinente e
impedir que ensuje os imaculados lençóis. Visto que as cousas som assim, nom é
preciso nem alarmar-se, nem iludir-se; é preciso apenas esperar com grande
paciência e resignaçom. Portanto, força, ainda és forte
40
Carolina
Invernizio (1851-1916), conhecidíssima autora de romances por entregas, como La sepolta viva, umha das mais famosas.
41
Francesco
Mameli, conhecido da família Gramsci.
e jovem: havemos de ver-nos novamente. entretanto,
escreveme e fai que me escrevam os demais: manda-me muitas notícias de
Ghilarza, de abbasanta, de Boroneddu, de tadasuni e de oristano. tia antioga
Putzulu, vive ainda? e quem é o podestà?42
Felle tariggia, acho. e Nassi que fai? e os tios de oristano vivem ainda? sabe
tio serafino43 que chamei
delio a meu filho? e o hospitalinho rematárom-no? e as casas populares em
Careddu, continuárom-nas? Vês quantas cousas quero saber? e fala-se, como
penso, em unir Ghilarza a abbasanta? e sem que os abbasanteses se levantem em
armas? e a bacia do tirso serve finalmente para algo? escreve-me, escreve-me e
manda-me as fotografias, nomeadamente as das crianças.
Beijos
para todos e muitos, muitos para ti. Nino e Grazietta por que nom me escreve
nem umha linha?
•
42
Nome
com reminiscências medievais que recebia o Presidente da Cámara municipal
durante a época fascista. semelhante ao nosso «regedor»[N. do T.].
43
serafino
delogu, primo da mae de G. Proprietário de umha farmácia em oristano, ajudou e
cuidou a G. quando era um rapaz. anos mais tarde, G. deu aulas a um dos seus
filhos, delio. (ver a carta 24).
(Carta 19)
25 de abril de 1927 Queridíssima tania,
recebim a tua carta do 12 e propugem-me fria e cinicamente
fazer-te raivar. sabes que és umha grande presunçosa? Querocho demonstrar de
maneira objetiva e divirto-me já a imaginar a tua cólera (nom te amoles, porém;
isso desgostariame). Que a carta que me enviache a Ustica estava cheia de
erros, é verdade; mas nom se te deve responsabilizar por isso. É impossível
imaginar a vida de Ustica, o ambiente de Ustica, porque é absolutamente
excecional e está fora de toda experiência normal de convivência humana.
Poderias imaginar cousas como esta?; escuita: cheguei a Ustica no dia 7 de dezembro,
após oito dias de atraso na chegada do barco e após quatro travessias sem
sucesso. era o quinto desterrado político che chegava. Logo me avisárom de que
me aprovisionasse de cigarros, pois as reservas estavam para acabar-se; fum ao
tabaqueiro e pedim-lhe dez pacotes de macedónia (dezasseis liras), pondo sobre
o balcom umha nota de cinquenta liras. a vendedora (umha mulher jovem, de
aparência absolutamente normal) surpreendeu-se pola a minha petiçom, figem que
a repetisse, tomou dez pacotes, abriu-nos, começou a contar os cigarros um a
um, perdeu a conta, recomeçou, apanhou um fólio, fijo longas contas a lápis,
interrompeu-nas, apanhou as cinquenta liras, observou-nas por toda a parte;
finalmente perguntou-me quem era. sabendo que era um desterrado político,
deu-me os cigarros e devolveu-me as cinquenta liras, dizendo-me que poderia
pagar-lhe depois de ter trocado a nota. o mesmo sucesso repetiu-se noutro lugar
e esta é a explicaçom: em Ustica existe unicamente umha economia do peso;
vende-se por pesos e nunca se gastam mais de cinquenta cêntimos. a unidade
económica de Ustica é o preso, que recebe quatro liras por dia, duas das quais
estám já empenhadas ao usurário ou ao vendedor de vinho, alimentando-se com as
outras duas, comprando trezentas gramas de massa e botando-lhe como condimento
um peso de pimenta moída. os cigarros vendem-se um de cada vez; um macedónia
custa dezasseis cêntimos, isto é, três pesos e um cêntimo; o preso que compra
um macedónia por dia, deixa um peso em depósito e dele desconta um cêntimo por
dia durante cinco dias. Para calcular o preço de cem macedónias, era pois
preciso fazer cem vezes o cálculo dos dezasseis cêntimos (três pesos e um
cêntimo) e ninguém pode negar que este é um cálculo razoavelmente difícil e
complexo. e estava a tabaqueira, isto é, umha das comerciantes mais importantes
da ilha. Pois bem: a psicologia dominante em toda a ilha é a psicologia que
teria como base a economia do peso, a economia que apenas conhece a soma e a
resta das unidades simples, a economia sem a tábua pitagórica. escuita estoutra
(e falo-che apenas de factos que me acontecêrom a mim pessoalmente; e falo-che
dos factos que julgo nom ham de ser objeto de censura): fum chamado ao
escritório polo empregado encarregado da revisom da recepçom do correio;
entregárom-me umha carta, dirigida a mim, e pedírom-me que desse explicaçons
sobre o seu conteúdo. Um amigo escrevia-me desde Milám, oferecendo-me um
aparelho radiofónico, pedindo-me os dados técnicos para comprá-lo, polo menos
com um alcance de Ustica a roma. a verdade é que nom entendia a pergunta que me
faziam no escritório e dixem de que se tratava; acharam que eu queria falar com
roma e negárom-me a licença para que me enviassem o aparelho. Mais tarde, o podestà chamou-me pola sua conta e dixo-me
que o Concelho compraria o aparelho por própria iniciativa, e por isso nom
insistim; o podestà era favorável a
que se me concedesse a licença, porque estivera em Palermo e vira que com o
aparelho radiofónico nom é possível comunicar-se. Poderias ter imaginado todo
isto? Nom. Portanto, na minha observaçom nom havia nem umha sombra sequer de
malícia ao teu respeito. Nom se pode pedir a alguém que imagine cousas novas;
porém, o que se pode pedir (digo-o assim, por dizer) é exercitar a fantasia,
para completar a realidade vivida com os elementos já conhecidos. eis onde
quero golpear-te e fazer-te raivar. tu, como todas as mulheres em geral, tés
muita imaginaçom e pouca fantasia e além disso, a imaginaçom em ti (como nas
mulheres em geral) trabalha numha única direçom, naquela que eu chamaria (já te
vejo a saltar)... protetora dos animais, vegetariana, de enfermeira: as
mulheres som líricas (por elevar-nos um pouco), mas nom som dramáticas.
Imaginam a vida dos demais (também dos filhos) do exclusivo ponto de vista da
dor animal, mas nom sabem recriar com a fantasia a vida toda dos demais, no seu
conjunto, em todos os seus aspetos. (Lembra que eu constato, nom julgo, nem
ouso tirar consequências para o futuro; descrevo aquilo que existe hoje). eis
aonde queria chegar. tu sabes que estou aqui, em prisom, num espaço limitado,
onde me «devem» faltar tantas cousas; pensas na casa de banho, nos insetos, na
roupa branca, etc. se eu che escrevesse que me fai falta um dentífrico
especial, por exemplo, com certeza serias capaz de correr de cima para abaixo
por roma, de saltares o jantar e a cena, de apanhares febre; estou certo disso.
escreves
anunciando-me umha carta de Giulia; mais tar-
de voltas escrever-me, anunciando-me outra; depois recebo
umha carta tua (e aprecio muito as tuas cartas), mas nom recibo as cartas de
Giulia e ainda nom as recebim. Pois bem, nom podes fazer-te bem umha ideia da
minha existência aqui na cadeia. Nom imaginas como eu, recebendo o anúncio,
espero cada dia e cada dia tenho umha desilusom, e isso repercute em todos os
minutos de todas as horas de todas as jornadas; como eu leio e a cada momento
abandono a leitura e me ponho a passear de cima para abaixo e penso e volto
pensar e cismo e digo sem parar: ai, esta tania, esta tania! Mas nom deves
enfadar-te demasiado, sabe-lo, e também nom deves sentir demasiado desgosto (um
pouquinho, sim, contudo; assim envias aginha as cartas, sem anunciá-las antes e
sem fazerme pensar sempre que se perdêrom). Viche quantas voltas dei para dizer
cousa tam simples? e quantos contos che contei? som ruim, mesmo ruim. Mas como
nom percebes que eu muitas vezes quero brincar e me respondes tam séria? sabes
quanto me rim quando me respondeche, totalmente séria, a propósito das
fotografias que levei à cela? o mesmo quando confundiche os dous santo
antónios; também estava a brincar. Umha outra cousa que nom entendeche. tu,
precisamente tu (como pudeche esquecê-lo?) me escreveras que nom devia pensar
(visto que nom recebia as tuas cartas) que me quigesses menos ou que me
tivesses esquecido. e eu respondim que se tivesse pensado isso, nom che teria
escrito mais, como figem algumha vez no passado, nom já porque eu tenha sempre
«necessidade de ser amado, cuidado, etc. etc.» (ó, psicologia de... sociedade
protetora dos animais!), mas sim porque odeio todo quanto é convencional e que
cheira às rotinas dos escritórios. eu nom som um angustiado que deva ser
consolado; nunca me converterei nisso. Mesmo antes de que me enviassem para a
cadeia, conhecia o isolamento e sabia encontrá-lo mesmo no meio das multitudes.
Nom é isso, nom é o que pensache. Na verdade, é justamente o contrário. Umha
carta tua enche-me bastantes jornadas. se pudesses ver-me quando recebo umha
carta, certamente havias de escrever umha por dia (mas isso seria mau, aliás).
Mas já chega de todo isto.
entretanto, nesta
semana nom podo escrever para Giulia. sabes? o teu pacote chegou, e vim as
cousas tam bonitas que me enviache: porém, só me dérom o chocolate. Nom se
exclui, contudo, que também me entreguem o resto: é preciso fazer umha petiçom,
que já está em andamento. o chocolate é ótimo: como-o em pedazinhos, por causa
dos dentes (eis umha cousa que che interessa: dérom-me o chocolate, mas nom o
papel de cores do envoltório, precisamente porque se pode utilizar para tingir:
contudo, a bola tem umha cor natural de papelom, mui útil agora que está
completamente enxuita). o endereço de minha mae é este: Peppina Gramsci, Ghi-
larza (Cagliari); escrevo-lhe hoje mesmo anunciando-lhe a
fotografia. receberás (polo que me asseguram) um pacote de uva de Pantelleria
para delio e Giuliano; verás que uva maravilhosa; nada a ver com a uva grega!
deixo-che que comas umhas poucas, para que o comproves. Giulia estará mui
contenta e delio quererá comê-la todo depressa. asseguro-che que esta uva me
surpreendeu polo arrecendo, o sabor e a carnosidade da sua polpa seca. Querida
tania, nom te azougues demasiado; quero-te muito, muito, e desesperaria-me bastante
magoar-te de maneira demasiado intensa. Um abraço antonio
•
(Carta 20)
23 de maio de 1927 Queridíssima tania,
recebim na semana passada um postal teu e mais umha carta,
além da carta de Giulia. Quero tranquilizar-te no que respeita à minha saúde:
estou bastante bem e falo a sério. de facto, nesta última semana como com umha
responsabilidade que me surpreende a mim mesmo: conseguim que me dessem quase
que toda a comida como eu gosto e creio que até engordei. aliás, desde há algum
tempo dedico um pouco de tempo, tanto de manhá como de tarde, à ginástica;
ginástica de quarto, que nom creio que seja mui racional, mas que me presta
muitíssimo igualmente ou assim me parece. Fago assim: procuro fazer movimentos
que impulsem todas as articulaçons e todos os músculos, em ordem e procurando
aumentar cada semana em algumha unidade o número de movimentos; que isto é útil
demonstra-se, para mim, em que nos primeiros dias me sentia todo dorido e só
podia fazer certos movimentos pouquíssimas vezes, enquanto agora já conseguim
triplicar o número de movimentos sem experimentar nengumha moléstia. acho que
esta inovaçom me prestou também psicologicamente, distraindo-me principalmente
das leituras demasiado aborrecidas e feitas apenas para matar o tempo. também
nom deves crer que estude a mais. Um autêntico e adequado estudo acho que é
impossível para mim, por muitas razons, nom apenas psicológicas, mas também
técnicas; é mui difícil abandonar-me completamente a um tema ou a umha matéria
e aprofundar somente nela, precisamente como se fai quando se estuda de
verdade, para captar todas as relaçons possíveis e uni-las harmonicamente. se
calhar começa a acontecer-me algo nesse sentido no que di respeito do estudo
das línguas, que procuro fazer de maneira sistemática, quer dizer, sem
descuidar nengum elemento gramatical, como nom figera até agora, já que me
contentava com saber o suficiente para falar, e nomeadamente para ler. Por isso
nom che escrevim até agora que me enviasses nengum dicionário: o dicionário
alemám de Kohler, que me enviache a Ustica, perdêrom-no os meus amigos de lá;
escreverei-che que me envies o outro dicionário, o Langescheid, quando tiver estudado toda a gramática; escreverei
entom que me envies também os Gespräche de
Goethe com eckermann, para fazer análises da sua sintaxe e estilo, e nom apenas
para ler; neste momento leio os contos dos irmaos Grimm, que som mui básicos.
estou mesmo decidido a estudar as línguas de que me ocupo de maneira
predominante; quero retomar de maneira sistemática, após o alemám e o russo, o
inglês, o espanhol e o português, que estudara pouco e mal em anos passados;
para além do romeno, que estudara na universidade apenas na sua parte neolatina
e que agora penso que podo estudar completamente, quer dizer, também com a
parte eslava do seu dicionário (que de resto é mais de 50% do vocabulário
romeno). Como vês, todo isto demonstra que estou completamente tranquilo,
também no aspeto psicológico; de facto, nom sofro mais dos nervos, nem de
acessos de cólera surda, como nos primeiros tempos; aclimatei-me e o tempo
passa bastante depressa; penso em semanas, nom em dias, e a segunda-feira é o
ponto de referência, porque escrevo e fago a barba, operaçons eminentemente
rotineiras.
Quero fazer-che um
catálogo da minha biblioteca permanente, isto é, dos livros da minha
propriedade, que manejo continuamente e que tento estudar. Vejamos. o Corso di Scienza delle Finanze da
einaudi, eis um sólido livro para digerir de forma sistemática. sobre finanças
tenho tambén Gli ordinamenti finanziari italiani, coletánea de palestras
pronunciadas na Universidade de roma por técnicos da administraçom estatal;
ótimo livro e de grande interesse. Umha Storia
dell’Inflazione, escrita por Lewinsohn, mui interessante, ainda que de tipo
jornalístico. Um livro sobre a Stabilizzazione
monetaria nel Belgio escrito polo
ministro Frank. de economia nom tenho nengum texto: tinha em Ustica aquele tam
bom de Marshall, se bem que os amigos ficárom com ele. Porém, tenho as «Prospettive economiche» de Mortara para 1927; a «Inchiesta Agraria» de stefano Jacini; o livro de Ford Oggi e domani, que me diverte bastante, porque Ford, embora seja um grande
industrial, parece-me bastante cómico como teórico; o livro de Prato sobre a
estrutura económica do Piemonte e de turim e um fascículo dos «Annali di Economia» com umha pesquisa
mui diligente sobre a estrutura económica da regiom de Vercelli (zona arroceira
italiana) e umha série de conferências sobre a situaçom económica inglesa (há
também umha conferência de Loria). de história tenho pouquíssimo, e o mesmo no
caso da literatura: um livro de Gioachino Volpe sobre os últimos cinquenta anos
de história italiana, embora atual, de caráter principalmente polémico, La storia della lett. italiana e os Saggi critici de de sanctis. aqueles que
tinha em Ustica tivem que deixar-lhos aos amigos de lá, que se encontravam
também em dificuldades.
Quigem-che escrever
isto tudo porque acho que é a melhor maneira de que tanto tu quanto Giulia vos
fagades umha ideia, polo menos aproximada, da minha vida e do curso ordinário
dos meus pensamentos. de resto, nom devedes pensar que esteja completamente só
e isolado; todos os dias, de umha maneira ou de outra, há algum movimento. de
manhá tenho o passeio; quando me toca umha boa posiçom no pátio pequeno,
observo os rostos dos que vam e dos que venhem ocupar os outros pátios
pequenos. depois vendem os jornais permitidos a todos os presos. de volta para
a cela, trazemme os jornais políticos que me permitem ler; depois fago a
compra, mais tarde trazem a compra feita o dia anterior, a seguir trazem o
almorço, etc., etc. em resumo, vem-se continuamente novos rostos, cada um dos
quais esconde umha personalidade que adivinhar. de resto, poderia, renunciando
à leitura dos jornais políticos, estar na companhia de outros presos durante
quatro ou cinco horas por dia. Pensei-no um pouco, mas logo me decidim a estar
só, mantendo a leitura dos jornais; umha companhia ocasional divertiria-me
durante alguns dias, se calhar durante umha semana, mas depois, com toda a
probabilidade, nom conseguiria substituir a leitura dos jornais. o que achades?
ou é que a companhia, em si e por si, vos parece um elemento psicológico que
deva apreciar mais? tania, como doutora tu deves dar-me um conselho, mesmo de
caráter técnico, porque é possível que eu nom seja capaz de julgar com a
objetividade se calhar necessária.
esta
é, pois, a estrutura geral da minha vida e dos meus
pensamentos. Nom quero falar dos meus pensamentos dirigidos
a vós todos e às crianças: esta parte devedes imaginá-la, e penso que a
sentides.
Querida tania, no teu
postal falas-me outra vez da tua chegada a Milám e da possibilidade de que nos
vejamos na conversa. será verdade desta vez? sabes que já vam mais de seis
messes sem ver nengum familiar? Nesta ocasiom esperote a sério. abraços.
antonio
•
(Carta 21)
6 de junho de 1927 Queridíssima mae,
recebim a tua carta de 23 de maio. agradeço-cho, porque me
escreveche com vagar e mandache muitas notícias interessantes. devias
escrever-me sempre assim e mandar-me sempre muitas notícias sobre a vida local,
mesmo se a ti nom che parece que tenham demasiada importância. Por exemplo:
escreves que vam anexionar a Ghilarza outros oito concelhos; mas quais som? e
depois: que significado tem esta anexaçom e quais som as suas consequências?
Haverá um único podestà e um único
governo municipal, mas as escolas, por exemplo, como se organizarám?
Manterám-se em cada um dos concelhos atuais as escolas elementares, ou bem as
crianças de Narbello ou de domusnovas terám de ir cada dia a Ghilarza, também
no ensino primário? estabelecerám um imposto municipal único? os impostos que
os proprietários de terra ghilarzeses paguem em todos estes concelhos vam-se
gastar nas diferentes paróquias ou vam-se gastar se para embelecer Ghilarza?
esta
é a questom principal, na minha opiniom, porque
no passado o orçamento municipal de Ghilarza era
paupérrimo, pois os seus habitantes tinham propriedades no território dos
concelhos próximos e pagavam neles a maior parte dos impostos locais. É disto
que deves escrever-me, em lugar de pensar sempre na minha posiçom crítica,
triste etc., etc. eu gostava de tranquilizar-te deste ponto de vista.
entendamonos: nom é que pense que a minha posiçom é mui brilhante, mas sabes
que cada cousa tem um valor que depende também do nosso modo de ver e de sentir.
em definitivo, estou mui tranquilo e vejo tudo com umha grande calma e umha
grande confiança, nom nos acontecimentos imediatos que me atingem, mas sim no
meu porvir futuro; estou convencido, como já escrevim a teresina, de que nom
terei de ficar por sempre a murchar na cadeia; eu penso, assim, ao chou, que
vou ficar dentro nom mais de três anos, embora me condenem, ponhamos, a vinte
anos. Vês que te escrevo com a máxima sinceridade, sem tentar criar-che
nengumha ilusom; penso que só assim também tu serás forte e terás paciência.
deves pois estar absolutamente tranquila quanto às minhas condiçons de força
moral e também de saúde física. No que di respeito à força moral, já me
conheces um pouco. Lembra aquela vez (se calhar nom cho dixem na altura) que figemos
umha aposta entre rapazes para ver quem resistia mais golpes nos dedos: batimos
neles com umha pedra até que saiu umha pinga de sangue na ponta.
talvez
agora nom seja capaz já de resistir estas provas
selvagens, mas certamente conseguim ter umha maior
capacidade para resistir as marteladas na cabeça que os acontecimentos me
trouxérom e que ainda me trarám. Pensa que desde os dez anos, mais ou menos, me
encontro num ambiente de luita e que me figem bastante forte; poderia ter sido
assassinado umha dúzia de vezes, mas ainda estou vivo: já é um ganho
incalculável. de resto, fum feliz durante algum tempo; tenho dous filhos bem
bonitos, que com certeza som educados e crescem como eu gosto, para chegar a
ser dous homens enérgicos e fortes. Portanto, estou tranquilo e calmo, e nom
necessito em absoluto nem compaixom nem consolo. e fisicamente também estou
bastante bem. Nestes seis messes vim-nas e passei-nas de todas as cores, e
descobrim que fisicamente também som muito, muito mais forte do que eu mesmo
pensava. tenho a certeza de poder resistir também no futuro e por isso tenho
também toda a certeza de que voltarei a abraçar-te e a ver-te contente.
de tanto em tanto tenho
nostalgia de Giulia e dos nossos filhos, e sei que estám bem. tenho a certeza
de que as crianças som educadas também com demasiadas comodidades e cuidados:
sua mae, os avôs e as tias privariam-se do pam desde que nom lhes faltassem a
eles as bolachas e a roupinha bonita. de Nannaro nom conseguim saber nada
preciso, nunca: sabia apenas que morava em París, que trabalhava e mais nada.
Nannaro nom está bem da cabeça, está raro e acho que foi precisamente ele quem
nom quijo que soubesse nada dele, porque se calhar pensou que eu me enfadara
com ele, por ter cobrado o meu salário durante cinco ou seis messes sem me
dizer nada, enquanto eu estava ingressado no sanatório. assim o penso eu, polo
menos; e por isso acho que nom está bem. eu sabia em que estado se encontrava,
como fora ferido pola minha causa e nem teria pensado botar-lho na cara ou
pedirlhe um peso44.
Querida mamae, sê
forte, fica tranquila e nom sejas demasiado feroz com os abbasanteses.
abraço-te afetuosamente Nino
•
(Carta 22)
8 de agosto de 1927 Queridíssima tania,
recebim a tua carta de 28 de julho e a carta de Giulia. Nom
recebia cartas desde 11 de julho e estava mui preocupado, tanto que figem algo
que che há de parecer umha parvoíce, mas que nom che quero contar; já cho
contarei quando vinheres à conversa.
Lamento que te sintas
moralmente cansa. Lamento-o muito mais na medida em que estou convencido de ter
contribuído para a tua depressom. Querida tania, tenho sem-
44
Pedir-lho
a Gennaro («Nannaro»). Gennaro trabalhou na administraçom do jornal L’Ordine Nuovo; espancado até sangrar
polos fascistas no dia 18 de dezembro de 1922, na Cámara do trabalho de turim,
e posto a salvo de maneira corajosa por umha camarada turinesa, Pia Carena,
emigrando afinal para a França e a Bélgica.
pre um grande temor a que estejas pior do que me escreves e
que podas ver-te, pola minha causa, nalgumha dificuldade. este é um estado de
ánimo que nom pode ser destruído por nada, porque está radicado em mim. sabes
que no passado levei sempre umha vida de urso na caverna, justamente por esse
estado de ánimo, já que nom queria que ninguém se visse relacionado com as
minhas adversidades. Procurei também que a minha família me esquecesse,
escrevendo para a casa o menos possível.
Já chega! Gostava de
fazer algo que polo menos che figesse-sorrir. Contarei-che a história dos meus
pardalinhos. deves saber que tenho um passarinho e que tivem outro que morreu,
acho que envenenado por algum insecto (umha barata ou umha centopéia). o primeiro
pardalinho era muito mais simpático do que o atual. era mui orgulhoso e de umha
grande vivacidade. o atual é modestíssimo, de ánimo servil e sem iniciativa. o
primeiro converteu-se rapidamente no amo da cela. acho que tinha um espírito
eminentemente goethiano, como lim numha biografia sobre esse homem. Ueber allen Gipfeln45:
conquistava quanta altura havia na cela e depois deixava-se estar durante
alguns minutos para saborear umha paz sublime. subir ao tampo de umha
garrafinha de tamarindo era umha teima sua constante; e por isso caiu umha vez
num recipiente cheio das borras do café e estivo bem perto de afogar. do que
gostava desse pardal era de que nom queria que o tocassem. revolvia-se
ferozmente, com as asas extendidas, e picava a mao com grande energia. estava
domesticado, mas nom permitia demasiadas confidências. o curioso é que a
relativa familiaridade nom foi gradual, mas imprevista.
45
«sobre
todos os cumes», primeiro verso da composiçom de Göethe Ein Gleiches, e título de umha antologia göethiana.
Movia-se pola cela, mas sempre no extremo oposto a mim.
Para atraê-lo, oferecia-lhe umha mosca numha caixinha de mistos; só a apanhava
quando eu ficava longe. Umha vez, em vez de umha, havia na caixinha cinco ou
seis moscas; antes de comê-las dançou freneticamente em volta durante alguns
segundos; a dança repetia-se sempre que as moscas eram muitas. Umha manhá,
voltando do passeio, encontrei-me o pardal mui perto; nom se afastou mais, quer
dizer, desde entom ficou sempre ao pé de mim, olhando-me atentamente e vindo
cada pouco a picar nos sapatos para que lhe desse algo. Mas nom se deixou nunca
apanhar com a mao sem revirar-se e tentar fugir rapidamente. Morreu devagar,
isto é, tivo um ataque imprevisto: essa tarde, enquanto permanecia acaçapado
baixo a mesinha, berrou justo como umha criança, mas só morreu no dia a seguir:
tinha o lado direito paralisado e arrastava-se penosamente para comer e beber;
depois, de repente, morreu. o pássaro atual, polo contrário, é de umha
domesticidade nojenta; sempre quer que lhe dem de comer, mesmo se come
perfeitamente por si mesmo; vem onda o sapato e mete-se no pregue das calças:
se tivesse as asas inteiras voaria até o joelho; vê-se que quer fazê-lo, porque
se estica e se agita e depois vai até o sapato. Penso que também este vai
morrer, porque tem o costume de comer as pontas queimadas dos mistos, à parte
de que comer sempre pam molhado deve provocar a estes pardalinhos umhas
moléstias mortais. Para já, ele tem boa saúde, mas nom é vivaz; nom corre, fica
sempre perto e já apanhou involuntariamente algum ponta-pé. e esta era a
história dos meus pardalinhos.
escreverás também a
Giulia por mim, nom é? Pensei em escrever-lhe diretamente; que che parece?
seria o mesmo, mas como fazer para escrever cada semana a ti e a Giulia por
separado? toda a minha correspondência estaria já coberta; por outro lado,
quero escrever-che a ti cada semana. Querida tania, quero-te muito. Um abraço
antonio
•
(Carta 23)
12/IX/1927
Queridíssima tania,
recebim as tuas duas cartas; cada dia recebo a fruta que me
mandas. alegrei-me muito de ver-te e por poder trocar contigo algumhas
palavras. Foi mesmo um consolo ver-te, após estes quatro messes de ánsias e de
maus pensamentos. Por que me encontrache mudado? eu nom o dou notado. É verdade
que as mudanças, com esta vida, se sucedem tam lentamente que o «doente» pode
nom senti-las. tenho a impressom de que tu nom mudache grande cousa; talvez
demasiado ansiosa polo medo de me veres, nom é? eu, polo contrário, penso que
desenvolvim o sentido da frieza e da indiferença externas, que perdim muito do
meu «meridionalismo». Nom acho que me tenha convertido num insensível, antes
polo contrário; talvez adquirisse, em troca, um pouco de sensibilidade nervosa
e doentia, mas perdim o hábito externo da sensibilidade. É verdade que me
lembraste Giulia; reparei em que vos parecedes muito, apesar de alguns traços
importantes de personalidade próprios e inconfundíveis. além disso, lembras que
umha tarde em roma che dirigim a palavra crendo que eras Giulia?
Nom sei quando poderei
ter a segunda conversa. Gostaria de dizer-che em pessoa, melhor que da outra
vez, que nom deves preocupar-te mais por mim. sabes que passárom já dez messes
desde o dia do meu arresto? o tempo passa bem rápido, é verdade, mas também se
fai bem longo. Penso que já impugem demasiados sacrifícios a meus irmaos e
também a ti. Nom podo contar mais com o meu irmao Mario. Compreendim-no há um
mês, logo de umha carta de minha mae. Minha mae escrevia que recebera umha
carta da mulher de Mario, com muitos lamentos, etc. escrevim-lhe a Mario que
vinhesse à conversa; pareceu-me mui incómodo. após a conversa, escreveu à minha
aldeia, para o meu irmao Carlo, de maneira mui preocupante, polo que podo
imaginar. Carlo escreveu-me como se eu estivesse à beira da tumba; falava em
vir a Milám e até pensou em trazer a minha mae, umha mulher perto dos setenta
anos, que nom se moveu nunca da aldeia e que nunca viajou de trem mais de 40
quilómetros. Cousas mais próprias de um manicómio, que me magoárom e me
irritárom um pouco também com Mario, que bem podia ser mais sincero comigo e
nom aterrorizar a nossa velha mae.
Já chega. Por todo isto
decidim pôr fim a este estado das cousas, limitando-me, se for preciso, à
simples comida do cárcere. Porém, há temas pendentes e preocupam-me bastante.
desculpa o desabafo, querida tania, e nom te angusties. Podes ver que che
escrevo mesmo como a umha irmá e em todo este tempo foche para mim mais que
umha irmá. Por isso também te atormentei um pouco, nalgumha ocasiom. e nom é
seica verdade que se atormenta precisamente aqueles que nos som mais queridos?.
Quero que fagas de todo para curar e sanar. desta maneira, poderás escrever e
ter-me informado de Giulia, das crianças e consolar-me com o teu afeto.
Já recebim as 300 liras
que me enviache em junho; penso que já cho devim ter escrito. ainda nom me
entregárom o dicionário alemám; mas por que o enviache? Podia prescindir dele
por enquanto, à espera de poder ter o meu. em termos gerais, nom deves
mandar-me nada que eu nom che pida ou cujo envio nom me tenham concedido.
Confia em que esta é a linha mais racional, à parte do facto, como tu dis, de
que eu nunca pido nada. Nom é verdade; eu, quando o necessito, pido-o; mas
procuro fazê-lo de maneira racional, para nom criar-me maus costumes que depois
é mais doloroso abandonar. Para viver tranquilo no cárcere é preciso
habituar-se ao puramente necessário; entende bem que qualquer pequena
comodidade, neste ambiente, se converte numha espécie de vício que depois é
difícil extirpar, dada a ausência de distraçons. se se quiger permanecer forte
e manter intata a própria capacidade de resistência, é preciso impor-se um
regime e segui-lo firmemente. Por exemplo: porque sofrim tanto com o teu
silêncio? Porque me habituara a umha certa regularidade na correspondência:
qualquer irregularidade adquiria por isso um significado sinistro. Mas este
costume da correspondência regular, contudo, deves criar-mo, sabes? Nom penses
que che autorizo a nom escrever-me, com a teoria dos nom-costumes!
Queridíssima, aguardo a
nova conversa, embora nom podamos nem dar-nos a mao. aliás, sabes que durante
muito tempo pensei em dar-che algumha flor crescida na minha cela (estás a ver
que romantismo carcerário!)? Mas as plantas secárom e por isso nom pudem
conservar nengumha das cinco ou seis florzinhas que abriram, bastante feias,
para dizer a verdade. abraço-te, com afeto antonio
•
(Carta 24)
12/IX/1927
Queridíssimo Carlo,
recebim juntas a tua carta de 30 de agosto e mais a
registrada de 2 de setembro. agradeço-cho de todo coraçom. Nom sei o que che
escreveu Mario; tenho a impressom de que te preocupou demasiado, enquanto eu
achava que a sua visita teria contribuído para tranquilizar a mamae.
enganei-me.
a
tua carta de 30 de agosto, pois, é até mesmo dramá-
tica. Quero, de agora em adiante, escrever-che amiúde, para
procurar convencer-te de que o teu estado de ánimo nom é digno de um homem (e
tu nom já és tam jovem). É o estado de ánimo de quem é presa do pánico, de quem
vê perigos e ameaças por toda a parte, e que por isso devém impotente para agir
com seriedade e para vencer as dificuldades reais, assim forem concretizadas e
discernidas das imaginárias, que só a fantasia criara.
e
antes de mais, queria dizer que tu, como o resto da fa-
mília, me conheces bem pouco e por isso tés umha opiniom
completamente errada sobre a minha capacidade de resistência. acho que foi há
quase vinte e dous anos quando deixei atrás a família; dos catorze anos em
diante fum por casa apenas duas vezes, no 1920 e no 1924. ora, em todo este
tempo nunca levei umha vida de senhor; antes polo contrário; tenho passado
amiúde períodos péssimos e incluso passei fome, no sentido mais literal da
palavra. em certos momentos é preciso dizer estas cousas, porque [ ... ]46 consegues tranquilizar.
Provavelmente algumha vez tiveche inveja de mim, porque eu pudem estudar. Mas
tu, com certeza, nom conheces de que
46 Palavras
ilegíveis no manuscrito.
maneira pudem estudar. somente quero lembrar-che o que me
aconteceu nos anos de 1910 a 1912. No 10, visto que Nannaro arranjara um
emprego em Cagliari, fum onda ele. recebim o primeiro soldo, mas depois nom
recebim mais nada: tudo ficava a cargo de Nannaro, que nom ganhava mais de 100
liras por mês. Mudámos de pensom. eu tinha um quarto pequeno que perdera toda a
cal pola humidade e tinha somente umha janela que dava para umha espécie de
poço, mais latrina do que pátio. rapidamente reparei em que nom podíamos sair
adiante polo mau humor de Nannaro, que a tomava sempre comigo. Comecei a nom
tomar mais o pouco café da manhá, logo fum adiando o jantar para mais tarde e
assim poupávamos a ceia. durante aproximadamente oito messes comim assim, umha
única vez por dia, e cheguei ao fim do 3° ano da secundária em condiçons mui
graves de desnutriçom. somente no fim do ano escolar soubem que existia a bolsa
de estudo do Colégio Carlo alberto, mas no concurso era preciso examinar-se de
todas as matérias dos três anos de secundária; portanto, devia fazer um esforço
enorme nos três messes das férias. somente o tio serafino reparou nas
deploráveis condiçons de fraqueza em que me encontrava, e convidou-me a morar
com ele em oristano, como professor de passantias de delio. ali fiquei um mês e
meio, e por pouco nom toleio. Nom podia estudar para o concurso, porque delio
me absorvia completamente e a preocupaçom, unida à fraqueza, me fulminava.
escapei às agachadas. tinha só um mês de tempo para estudar. Partim para turim
como se estivesse num estado de sonambulismo. tinha apenas 55 liras no bolso;
gastara 45 das 100 liras que me deram na casa na viagem em terceira classe. era
pola exposiçom, e devia pagar 3 liras por dia somente polo quarto.
devolvêrom-me o importe da viagem em segunda classe, umhas oitenta liras, mas
nom era para estar tam contente, porque os exames duravam perto de quinze dias
e só polo quarto devia pagar umhas cinquenta liras. Nom sei como figem para me
examinar, porque esvaecim duas ou três vezes. Conseguim-no, mas começárom outra
vez os problemas. de casa tardárom por volta de dous messes em enviar-me os
documentos para a inscriçom na universidade, e como suspendim a inscriçom,
suspenderam-me também as 70 liras mensais da bolsa. salvou-me um porteiro, que
me encontrou umha pensom de 70 liras, onde me fiárom; eu estava tam deprimido que
queria que a polícia me enviasse para a casa. assim é que recebia 70 liras e
gastava-as por umha pensom misérrima. e passei o inverno sem um casaco, com um
traje de meia estaçom, bom para Cagliari. Contra o mês de março de 1912 decaíra
tanto que já nom dei falado durante messes: ao falar trabucava as palavras.
ainda por cima, morava justo à beira do dora e a geada dava cabo de mim.
Porque che escrevo todo
isto? Para que te convenças de que já me encontrei outras vezes em condiçons
terríveis, sem por isso desesperar. toda esta vida endureceu-me o caráter.
Convencim-me de que mesmo quando todo está ou parece perdido, é preciso pôr-se
novamente maos à obra tranquilamente, recomeçando do início. Convencim-me de
que é sempre preciso contar apenas com um mesmo e com as próprias forças; nom
esperar nada de ninguém e nom procurar-se portanto desilusons. Que é necessário
propor-se fazer somente o que se sabe e o que se pode fazer, e seguir o próprio
caminho. a minha posiçom moral é ótima: haverá quem acredite que som um satanás
e quem acredite que som quase um santo. eu nom quero ser um mártir nem um
herói. simplesmente, creio ser um homem médio, que tem as suas convicçons
profundas, e que nom as muda por nada no mundo. Poderia-che contar algumha
anedota divertida. Nos primeiros messes que passei aqui, em Milám, um vigilante
perguntou-me ingenuamente se era verdade que eu, se tivesse trocado de
bandeira, teria chegado a ser ministro. respondim-lhe sorrindo que ministro era
um pouco de mais, mas que subsecretário dos Correios ou de obras Públicas
poderia tê-lo sido, dado que tais eram as encomendas que nos governos se faziam
aos deputados sardos. sacudiu os ombros e perguntou-me entom por que nom me
convertera num troca-tintas, tocando-se a fronte com o dedo. tomara a sério a
minha resposta e cria-me louco de atar.
Portanto, alegria! e
nom te deixes asobalhar polo ambiente sardo e de aldeia: é sempre preciso ser
superiores ao ambiente em que se vive, sem por isso desprezá-lo ou crerse
superiores. Compreender e razoar, nom choromicar como umhas mocinhas!
Compreendes? devo ser precisamente eu, que estou em prisom, com umhas
perspetivas bastante feias, a encorajar um mocinho que se pode mover
livremente, que pode aplicar a sua inteligência ao trabalho diário e tornar-se
útil? abraço-te afetuosamente junto a todos os da casa. Nino
Manda-me o me que prometeche assim que puderes, porque o
necessito de verdade. espero que nom tenha que recorrer à tua ajuda num tempo.
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(Carta 25)
26 de setembro de 1927 Queridíssima tania,
pensara escrever esta carta para Giulia. Mas nom o consigo,
nom dou; nem consigo começar. estou ainda baixo o efeito da sua última carta,
recebida por mim, de 31 de maio, mas é um efeito certamente anacrónico. Penso
que nestes messes a vida de Giulia deveu sofrer muitas mudanças, visto que
Giuliano começaria a falar e a andar, e ela terá experimentado outra vez, mas
com novos matizes, as impressons dos primeiros movimentos de delio, que hoje
deve ser já um espetador sensato das altas empresas de seu irmaozinho; da mesma
maneira, todas as relaçons sentimentais se complicárom com novidades
fundamentais de enorme alcance. Nom achas? Portanto, eu nom iria ao compasso;
desentoaria, com certeza: isso preocupa-me e tira-me a iniciativa. Pensas
realmente que Giulia estará mui doída por nom ter recebido diretamente as
minhas cartas? (olha que nom quero pôr em dúvida a sua sensibilidade!). eu
penso nisso, mas seja como for, nom dou. É mesmo necessário ter algumha carta
sua mais recente. Porém, podemos fazer assim: fazer-lhe chegar esta carta, por
exemplo. Lendo-a, ela há compreender perfeitamente o meu estado de ánimo e há
de perdoar-me. se calhar, nem julga necessário um verdadeiro perdom. Neste
momento deveria escrever um grande elogio da sua bondade, mas alguém poderia
pensar que o fago a propósito ad
captandam benevolentiam!.
Querida tania, espero
encontra-te um pouco melhor que a última vez; pareceu-me que estavas com algo
de febre.
aguardo-te
na quarta-feira. Um abraço antonio
(Carta 26)
10 de outubro de 1927 Queridíssima tania,
depois da conversa da quinta-feira, pensei com calma e
decidim escrever-che aquilo que nom tivem a coragem de dizer em pessoa. Creio
que nom deves ficar mais tempo em Milám por mim. o sacrifício que fás é
demasiado desproporcionado. Nom poderás recuperar a saúde com este clima
húmido. Para mim, certamente, é um grande consolo ver-te, mas nom achas que
depois nom vou pensar constantemente no teu aspeto doentio e nom hei de sentir
remorsos, por ser a causa e o objeto do teu sacrifício? acho ter adivinhado o
motivo principal da tua vontade de ficar: pensas que poderás partir no mesmo
trem em que serei trasladado e que poderás, durante a viagem, tratar de
procurar-me, de algumha maneira, umha certa comodidade. adivinhei? Pois bem:
este motivo nom vai ter nengumha hipótese prática de se manifestar. as
disposiçons para a transferência serám certamente mui severas e a escolta nom
vai permitir de maneira nengumha que os «cristaos» se preocupem polos detidos.
(abro um parêntese para explicar-che que os presos e os detidos dividem as
pessoas em duas categorias: «cristaos» e presos ou detidos). a tua proposiçom
seria inútil e talvez prejudicial, porque poderia causar desconfiança e um
aumento da severidade e do rigor. só conseguirias viajar nas piores condiçons,
chegando a roma doente para outros quatro messes. Queridíssima tania, acho que
é preciso sermos práticos e realistas, também na bondade. Nom é que esgotes a
tua bondade, mas esgotas as tuas energias e as tuas forças; e eu nom podo
consentir isso por mais tempo. refletim sobre o tema, mesmo durante muito tempo
e teria que ter-cho dito em pessoa; quando te vim, pensei que se calhar iria
afligir-te mais e faltou-me a coragem.
Querida, abraço-te com tenrura. antonio
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http://estaleiroeditora.blogaliza.org/files/2011/08/cartas_do_carcere_gramsci_pant.pdf