Cartas do Cárcere 27 a 66

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 (Carta 27)

17 de outubro de 1927 Queridíssima tania,
recebim antes de ontem a tua carta de 27 de setembro. alegrame que gostes de Milám e que che ofereça possibilidades de lazer. Visitache os museus e as galerias? Porque do ponto de vista da sua estrutura urbana, penso que a curiosidade deve esgotar-se bastante depressa. a diferença fundamental entre roma e Milám penso que consiste precisamente nisso: roma é inesgotável como «panorama» urbano, enquanto Milám é inesgotável como chez soi, como vida íntima dos milaneses, que som mais tradicionais de quanto se pensa. Por isso, Milám é pouco conhecida polos habituais forasteiros, se bem que tem atraído fortemente homens como stendhal, que pudérom penetrar nas suas famílias e nos seus salons, conhecê-la intimamente. o seu núcleo social mais consistente é a aristocracia, que soubo conservar umha homogeneidade e umha coesom únicas na Itália, enquanto os outros grupos, incluídos os operários som, mais ou menos, acampamentos ciganos sem estabilidade e estrutura, com camadas pertencentes a todas as variedades regionais italianas. esta é a força e a debilidade nacional de Milám, empório gigantesco da indústria e do comércio, dominados na prática por umha élite de velhas famílias aristocratas, que tenhem a força da tradiçom de governo local (ligado a esta situaçom, deves saber que Milám tem até um culto católico de seu, o culto ambrosiano, do qual os velhos milaneses som mui devotos). desculpa a digressom. Mas sabes que som um grande fascinado e que me deixo arrastar por qualquer tema que me interessa.
Com respeito aos livros: naturalmente, nom deves levar encima tanto peso como bagagem. acho que é mesmo melhor enviares os livros para o meu endereço do Cárcere de roma, de maneira que a visita do cobrador de impostos e da polícia se faga no cárcere.
tenho no depósito umha mala de fibra e umha bolsa de viagem, bastante adequadas; serám suficientes. Para o meu uso pessoal, há de chegar umha funda de almofada, onde meter a roupa branca e os objetos indispensáveis. Farei a petiçom para que che entreguem estas cousas na porta. Na mala devo ter: um termo —que nom me fai falta, porque nom podo utilizá-lo—, umhas embalagens de leite Nestlé, uns pedaços de sabom, além do relógio e a caneta estilográfica, que podem estropiar-se se nom forem utilizados. Poderás guardá-los e utilizá-los, se bem que o relógio está longe de ser elegante e moderno (a propósito: Giulia tentou em várias ocasions conseguir a cadeinha, que na verdade é pior que o relógio, e nunca lha dei precisamente porque me parecia um capricho extravagante).
escreve-me mais impressons de Milám. abraço-te afetu-
osamente. aguardo-te. antonio

(Carta 28)

7 de novembro de 1927 Queridíssima Iulca,
recebim as tuas duas cartas, escritas por volta de metade de setembro. esquecim assim o longo período de tempo decorrido sem notícias tuas. No entanto, é mui feio estar tanto tempo assim, sem notícias. Já nom me dou orientado, por exemplo: sinto-me um bocado confuso e terei ainda que fazer um certo esforço para tirar a surdina dos meus pensamentos e dos meus sentimentos. Nom deves impressionar-te por estas palavras. Certamente, ando algo torpe e quero descrever-che exatamente o meu estado de ánimo. deves ajudar-me a desnovelar-me pouco a pouco. deves escrever-me com mais vagar, e sempre que che for possível, sobre a tua vida e sobre a das crianças, da qual ignoro tudo, salvo as genéricas notícias sobre a sua saúde.
abraço-te com tenrura antonio

(Carta 29)

14 de novembro de 1927 Querida Giulia,
quero polo menos saudar-te cada vez que me permitem escrever. decorreu um ano desde o dia do meu arresto e quase um ano do dia em que che escrevim a primeira carta do cárcere. Mudei muito neste tempo: penso que estou mais forte e melhor adaptado. o estado de ánimo que me dominava quando che escrevim essa primeira carta (nom quero tentar sequer descrevê-lo, porque che horrorizaria) fai-me agora rir um bocado. Penso que delio deveu ter durante este ano a possibilidade de receber impressons que o acompanharám durante toda a vida; isso fai-me estar alegre. abraço-te com tenrura. antonio

(Carta 30)

21 de novembro de 1927 Queridíssima tania,
recebim os seguintes livros: Francesco Crispi: I Mille; Broccardo, Gentile, etc.: Goffredo Mameli e i suoi tempi; C. Maurras: L’ «Action Française» et le Vatican. esquecim, na última conversa, de agradecer-che o lenço e de dar-che os devidos parabéns. Na minha opiniom, os gansinhos quedárom-che de maravilha. Nom lembro se che contei algumha vez a história dos lenços bordados por Genia; eu divertia-me imensamente burlando-me dela, afirmando que as andorinhas ou o resto de ornamentos do bordado eram sempre lagartijas. e na verdade, tanto os ornamentos como os números daqueles lenços, tinham umha tendência notável a assumirem aspetos saurianos: Genia inquietava-se mesmo por ver desprezados o mérito dos seus labores femininos. sendo leais, devo reconhecer que os teus labores, polo contrário, estám bem feitos e renovo os meus parabéns.
Queria escrever-che com vagar sobre a questom do novo uniforme. Para mim é umha questom completamente ociosa. É preciso ter presente que o julgamento se celebrará num prazo relativamente próximo e que depois da condena e da transferência para umha penitenciaria, a administraçom carcerária entrega a roupa regulamentar de presidiário. É verdade que o regulamento utiliza, a propósito disto, umha fórmula bastante vaga; di mais ou menos assim: «o detido será rasurado e vestirá com um casaco, se for o caso». Pareceria que podem existir exceçons. Mas eu nom tenho nengumha prevençom específica contra o casaco e nom farei petiçons especiais para ser umha «exceçom». Para que, entom, fazer um fato novo? Para o julgamento, como poderiam dizer que o meu atual casaco é umha exibiçom «demagógica», porei o fato que tenho no depósito e que está num estado bastante decente. Naturalmente, nom quero pelejar contigo sobre um tema assim, nem quero contrariar-te; parto de pressupostos absolutamente utilitários, que podem ser corrigidos e modificados apenas pola preocupaçom de nom contrariar-te. abraço-te com tenrura antonio

(Carta 31)

21 de novembro de 1927 Queridíssima Giulia,
no pátio onde vou dar o passeio regulamentar, na companhia do resto de presos, houvo umha exposiçom de fotografias dos filhos de cada um. delio tivo um grande sucesso e foi mui admirado. desde há alguns dias, já nom estou isolado, mas numha cela normal, com outro preso político, que tem umha filha pequena de três anos, simpática e educada, que se chama Maria Luisa. segundo um costume sardo decidimos que delio casará com Maria Luisa mal tenham chegado os dous à idade matrimonial; que che parece? Naturalmente, esperamos o consenso das duas maes para darmos ao contrato um maior valor de compromisso, embora isso constitua umha grave derrogaçom dos costumes e dos princípios do meu país. Imagino que sorris e isso fai-me feliz; só consigo com grande dificuldade imaginar-te sorridente.
abraço-te com tenrura, querida. antonio

(Carta 32)

12/XII/1927 Queridíssima mae,
recebim a tua carta de 30 de novembro, depois de quase um mês sem receber mais notícias. seria bom que me escrevesses ou que figesses que me escrevessem cada quinze dias, polo menos; chegaria incluso com um único postal. Na vida que estou obrigado a levar, a ausência de notícias converte-se em ocasions num autêntico tormento.
Nom sei que mais escrever para te consolar e fazer que estejas tranquila. Nom deves duvidar nunca sobre a minha tranquilidade. Nom som umha criança nem um monicreque, nom achas? as minhas convicçons, que nom fôrom, certamente, nem caprichos passageiros nem improvisaçons do momento regulárom e dirigirom sempre a minha vida. É por isso que, mesmo o cárcere era umha possibilidade que devia enfrontar, embora nom como umha leve diversom, sim como umha necessidade de facto, que nom me punha medo como hipótese e nom me envilece como estado real das cousas. aliás, também as minhas condiçons de saúde, que nos primeiros tempos me preocupavam um pouco, hoje tranquilizam-me. a experiência provou-me que som bem mais forte, também fisicamente, de quanto eu mesmo achava; tudo isto contribui para me fazer ver o futuro próximo com frieza e serenidade. Gostaria de que também tu te convencesses disso.
recebim notícias, bastante boas, das crianças e de Giulia. delio desenvolve-se mui bem. Com três anos e quatro messes já mede um metro e vem-lhe estreito o pequeno fato para crianças de cinco anos comprado em roma; o desenvolvimento intelectual é paralelo a este desenvolvimento físico tam prometedor.
se quigeres mandar um pacote a tatiana, penso que seria
bem que o encaminhes à senhora com quem mora: — senhora Isabella Galli — Via Montebello, 7, Milám, — no caso de umha saída prevista para roma, que se fai cada dia mais provável. o pacote, na melhor das hipóteses, dado que o tempo é limitado e dada grande quantidade de pacotes que viajam por ocasiom das próximas festas, poderá chegar para o fim de ano ou para reis; é por isso que, seria bom que nom envies cousas que se estraguem rapidamente.
Muitas felicidades polas festas de Natal; espero que as passedes sem tristeza e que pensedes que com certeza conseguiremos festejar ainda muitos Natais juntos, comendo muitas cabeças de cabrito ao forno. abraço-te com tenrura junto aos demais da casa Nino

(Carta 33)

26/XII/1927
Queridíssima tania,
e assim passou também a festa do Natal, que imagino o trabalhosa que deveu ser para ti. Na verdade, pensei no seu caráter extraordinário apenas deste ponto de vista, o único que me pudo interessar. Nom houvo nada destacável, salvo umha geral tensom dos ánimos em todo o ambiente do cárcere; podia-se notar como o fenómeno se vinha gestando desde havia umha semana inteira. todos esperavam algo excecional, e a espera determinava toda umha série de pequenas manifestaçons típicas que davam no conjunto esta impressom de um pulo vital. Para muitos, a exceçom era umha porçom de pasta asciutta e um quartel de vinho que a administraçom passa três vezes por ano, em vez da habitual sopa: mas que acontecimento importante é este, contudo. Nom creias que me divirto ou que me rio disto. teria-o feito, se calhar, antes de ter passado a experiência do cárcere. Mas vim demasiadas cenas comovedoras de presos que comiam o seu prato de sopa com religioso pesar, arrepanhando com a miga de pam até o último rasto de preve que pudesse ficar colado à louça! Um detido chorou porque num quartel dos guardas, onde estávamos de passagem, em lugar da sopa regulamentar distribuírom apenas umha porçom dupla de pam; desde havia dous anos estava no cárcere e a sopa quente era para ele o seu sangue, a sua vida. entende-se porque o Pai Nosso pom o acento no pam de cada dia.
Pensei na tua bondade e na tua abnegaçom, querida tania. Mas a jornada decorreu um pouco como todas as demais. se calhar, parolámos menos e limos mais. eu lim um livrinho de Brunetière sobre Balzac, umha espécie de castigo para meninhos maus. Mas nom quero aborrecer-te com este tema. antes polo contrário, quero contar-che um episódio quase natalício da minha infáncia, que te divertirá e que che oferecerá um traço caraterístico da vida na minha terra.
tinha catorze anos e fazia o terceiro ano de Ginnasio47 em santu Lussurgiu, umha aldeia a uns 18 quilómetros da minha, e onde creio que existe ainda um ginnasio municipal, verdadeiramente em péssimo estado. eu e outro rapaz, para ganharmos vinte quatro horas com a família, saímos no dia 23 de dezembro ao caminho, depois de comer, a pé, em vez de esperar a diligência da manhá seguinte. Caminha que te caminha, estávamos aproximadamente na metade da viagem, num sítio completamente deserto e solitário; à esquerda, a uns cem metros do caminho, alongava-se umha fileira de choupos com matogueiras de lentiscos. disparárom-nos um primeiro disparo de espingarda sobre a testa; a bala assobiou a uns dez metros de altura. achávamos que era um disparo casual e continuámos tranquilos. Um segundo e um terceiro disparo mais baixos advertírom-nos rapidamente que estávamos mesmo no ponto da mira e por isso nos deitamos na berma, permanecendo ocultos um pedaço. Quando provámos a erguer-nos, outro disparo, e assim durante umhas duas horas, com umha dúzia de disparos que nos seguiam enquanto nos afastávamos de rastos, cada vez que tentávamos voltar ao caminho. era mui possivelmente um grupo de moinantes que queria divertir-se assustando-nos; que bonita brincadeira, nom é? Chegámos a
47 desde 1877, o ensino primário e obrigatório na Itália era de três anos, indo dos seis aos nove anos; o ensino secundário estava dividido entre o Ginnasio, de cinco anos (a cargo dos concelhos), seguido do Liceo, de três anos (a cargo do estado); ao liceu só se podia ir nas capitais da província, equivalente à comarca galega ou ao concelho português. [N. do T.]
casa com noite fechada, discretamente cansos e enlameados e nom contámos a história para ninguém, por nom assustar a família, mas nós nom nos assustamos grande cousa, dado que nas seguintes férias do entroido a viagem de a pé foi repetida sem incidentes de nengumha classe. e olha como enchim quase por inteiro as quatro folhinhas!
abraço-te com tenrura. antonio
Mas a história é mesmo verdade; nom se trata em absoluto de umha história de bandoleiros!

(Carta 34)

2 de janeiro de 1928
Queridíssima tania,
e assim também começou o ano novo. teria de fazer programas de vida nova, segundo o costume; mas por muito que o pense, ainda nom conseguim organizar um programa assim. Foi sempre esta umha grande dificuldade na minha vida desde os primeiros anos de atividade académica. Nas escolas elementares, todos os anos por esta altura estabeleciam como tema de composiçom a pergunta: «o que faredes na vida?». árdua pergunta, que resolvim a primeira vez, com 8 anos, escolhendo a profissom de arrieiro. Parecia-me que o arrieiro unia todas as caraterísticas do útil e do agradável: estalava o chicote e guiava os cavalos, mas ao mesmo tempo desempenhava um trabalho que enobrece o homem e que lhe procura o pam diário. Permanecim fiel a esta orientaçom também no ano seguinte, mas por razons que chamaria extrínsecas. se tivesse sido sincero, teria dito que a minha mais viva aspiraçom era a de converter-me em porteiro de um tribunal. Por que? Porque naquele ano vinhera à minha aldeia como porteiro de tribunal um senhor maior que tinha um cadelinho negro simpatiquíssimo, enfeitado sempre com um lacinho vermelho na cola, gualdrapinha no lombo, colar envernizado e arreios na cabeça. eu mesmo nom conseguia separar a imagem do cadelinho da do seu proprietário e da sua profissom. e porém renunciei, com muito pesar, a embalar-me nesta perspetiva que tanto me seduzia. era de umha lógica formidável e de umha integridade moral, capaz de fazer corar os mais grandes heróis do dever. sim, considerava-me indigno de converter-me em porteiro do tribunal e ter portanto cadelinhos tam maravilhosos: nom sabia de cor os 84 artigos do estatuto do reino! assim mesmo. Figera a segunda classe elementar (primeira revelaçom das virtudes cívicas do arrieiro!) e pensara fazer no mês de novembro os exames de isençom, para passar à quarta saltando a terceira classe: estava convencido de ser capaz de muito, mas quando me apresentei diante do diretor didático para lhe apresentar a petiçom protocolar, sentim que me fazia a queima-roupa a pergunta: «Mas, sabes os 84 artigos do estatuto48?» Nem pensara nestes artigos: limitara-me a estudar as noçons de «direitos e deveres do cidadao» contidas no livro de texto. e foi para mim umha terrível repreensom, que me impressionou tanto mais polo facto de no dia 20 de setembro anterior ter participado pola primeira vez no desfile comemorativo com umha lanterna veneziana, e gritado como os demais: «Viva o leom de Caprera! Viva o morto de staglie-
48      está a falar do estatuto real, um remedo de constituiçom do reino de sardenha, (que incluia o Piemonte), com capital em turim, núcleo do reino de Itália [N. do t].
no49!» (Nom lembro se se gritava o «morto» ou o «profeta» de staglieno: talvez, as duas cousas, por variar!), certo como estava de aprovar o exame e de conquistar os títulos jurídicos para o eleitorado, convertendo-me num cidadao ativo e completo. Contudo, nom conhecia os 84 artigos do estatuto. Que cidadao era entom? e como podia aspirar ambiciosamente a converter-me em porteiro de tribunal e possuir um cam com o lacinho e a gualdrapa? o porteiro de tribunal é umha pequena peça do estado (eu pensava que era umha grande peça); é um depositário e um guardador da lei, também contra os possíveis tiranos que a quigessem pisar. e eu ignorava os 84 artigos! assim é que limitei os meus horizontes e, mais umha vez, exaltei as virtudes cívicas do arrieiro que podia, no entanto, ter um cam também ele, mesmo que fosse sem lacinho e sem gualdrapa. olha como os programas pré-estalecidos de maneira demasiado rígida e esquemática batem, e depois rompem, contra a dura realidade, quando se tem umha consciência vigilante do dever! Querida tania, parece-che que nom fum ao rego? ri e desculpa-me. Um abraço. antonio
49      Garibaldi

(Carta 35)

20 de fevereiro de 1928 Queridíssima teresina,
recebim a tua carta de 30 de janeiro e a fotografia dos teus filhos. estou-che agradecido e estaria mui contente se recebesse mais cartas tuas.
a pior desgraça da minha vida atual é o aborrecimento. estas jornadas sempre iguais, estas horas e estes minutos que se sucedem com a monotonia de umha pingueira e que acabárom por corroer-me os nervos. Polo menos, os primeiros três messes após o arresto fôrom mui movidos: empurrado de um estremo ao outro da península, embora fosse com muitos sofrimentos físicos, nom tinha tempo para o aborrecimento. sempre novos espectáculos que observar, novos tipos excecionais que catalogar: parecia-me que vivia realmente num romance fantástico. Mas agora, desde há mais de um ano, estou parado em Milám, num ócio forçoso. Podo ler, mas nom podo estudar, porque nom me permitem ter papel e caneta-tinteiro à minha disposiçom, nem com toda a vigiláncia pedida polo chefe50, dado que passo por ser um terrível indivíduo, capaz de pôr lume aos quatro cantinhos do país, ou quase. a correspondência é a minha maior distracçom. Mas mui pouca gente me escreve. aliás, há um mês minha cunhada adoeceu e nem sequer tenho a conversa semanal com ela.
Preocupa-me muito o estado de ánimo de mamae; além disso, nom sei como fazer para tranquilizá-la e consolá-la. Gostaria de lhe infundir o convencimento de que estou mui tranquilo, como estou realmente, mas vejo que nom o consigo. Há toda umha zona de sentimentos e de maneiras de
50 o «chefe», isto é, o Chefe do Governo, Benito Mussolini.
pensar que se converteu numha espécie de abismo entre nós. Para ela, o meu encarceramento é umha desgraça tam terrível como misteriosa nas suas concatenaçons de causas e efeitos; para mim, é um episódio da luita política que se combatia e se continuará a combater nom apenas na Itália, mas em todo o mundo, durante quem sabe quanto tempo ainda. estou preso assim como durante a guerra se podia cair prisioneiro, sabendo que isto podia acontecer e que podia acontecer também algo pior. Mas temo que também tu penses como mamae e que estas explicaçons che pareçam umha adivinha, exprimida aliás numha língua desconhecida. observei com calma a fotografia, comparando-a com
aquelas que me mandaras anteriormente.
(tivem que interromper a carta para me fazer a barba; já nom lembro o que queria escrever e nom tenho vontade de repensá-lo. outra vez será).
saudaçons afetuosas para todos. Um abraço. Nino

(Carta 36)

27 de fevereiro de 1928 Queridíssima tania,
por umha felicíssima conjunçom de astros favoráveis, entregárom-me o 24 a tua carta do 20, junto à carta de Giulia. admirei a tua competência no diagnóstico, mas nom caim na trampa subtil da tua arte literária. Nom achas que seria preferível empregar a própria competência noutros temas e nom sobre um mesmo? (Nom é por desejar-lhe mal ao próximo, entenda-se, se de próximo se pode falar neste caso. Leche e estudache bem as ideias de tolstoi? devias confirmar-me o significado preciso que tolstoi dá à noçom evangélica de «próximo». em minha opiniom, limita-o ao significado literal, etimológico da palavra: «quem está mais perto de ti, quer dizer, os da tua família e, no máximo, os da tua aldeia»). em resumo, nom conseguiche mudar as minhas cartas na mesa, pondo-me diante, como demonstraçom, as provas da tua competência como médica, para fazer que refletisse menos na tua condiçom de doente. sobre a flebite, aliás, criei-me umha cultural especial, já que nos últimos quinze dias de residência em Ustica tivem que escuitar as longas disquisiçons de um velho advogado perugino que a sofria e que fijo que lhe enviassem quatro ou cinco publicaçons a propósito. sei que se trata de um mal bastante grave e mui doloroso; terás verdadeiramente a paciência necessária para curar bem, sem pressa? espero que sim. eu podo contribuir para conseguir que tenhas paciência, escrevendo-che cartas mais longas do habitual. É um pequeno esforço que nom me custará grande cousa, se te contentares com a minha tagarelice. e afinal, afinal estou muito mais aliviado do que antes.
a carta de Giulia tranquilizou mais o meu estado de áni-
mo. Hei de escrever-lhe à parte, com algo mais de vagar, se for possível, porque nom lhe quero discutir e aliás, nom vejo como vou poder escrever-lhe com mais vagar sem discutir. achas justo, de facto, que nom me escreva quando está mal ou está angustiada? eu acho que, precisamente em tais circunstáncias, deveria escrever-me mais e com mais vagar. Mas nom quero converter esta carta numha série de reproches.
Para fazer-che passar o tempo, contarei-che umha pequena discussom «carcerária» que se desenvolveu por etapas. Um tipo, que devia ser evangelista ou metodista ou presbiteriano (lembrei-me dele a propósito do tal «próximo») estava mui indignado, porque se permitia circular ainda polas nossas cidades a esses pobres chineses que vendem pequenos objetos, com certeza fabricados em série na alemanha, mas que dam a impressom aos compatriotas de incorporarem polo menos um pedacinho do folclore do Catai. segundo o nosso evangelista, o perigo para a homogeneidade das crenças e das maneiras de pensar da civilizaçom ocidental era grande: trata-se, em sua opiniom, de umha inserçom da idolatria asiática no cepo do cristianismo europeu. as pequenas imagens de Buda acabariam por exercer umha fascinaçom especial, que poderiam ser como um reativo sobre a psicologia europeia, exercendo um pulo para novas formaçons ideológicas totalmente diferentes da tradicional. Que um elemento social como o evangelista mostrasse nas suas palavras preocupaçons semelhantes, era verdadeiramente interessantíssimo, mesmo se tais preocupaçons tinham umha origem mui longínqua. Porém, nom foi difícil metê-lo num beco, sem saída para ele, fazendo-lhe observar:
1°. Que a influência do budismo sobre a civilizaçom ocidental tem raízes muito mais profundas do que parece porque durante toda a Idade Média, desde a invasom dos árabes até por volta de 1200, a vida de Buda circulou por europa como a vida de um mártir cristao, santificado pola Igreja, a qual só depois de bastantes séculos reparou no erro cometido e desconsagrou o pseudo santo. a influência que pudo ter exercido um episódio assim naquele tempo, quando a ideologia religiosa estava mui viva e constituía a única maneira de pensar das massas, é incalculável.
2°. o budismo nom é umha idolatria. deste ponto de vista, se existir um perigo, é antes o constituído pola música e pola dança dos pretos importado por europa. esta música conquistou na verdade todo um estrato da populaçom europeia culta, criou até um autêntico fanatismo. Neste momento, é impossível imaginar que a repetiçom continuada dos gestos físicos que os pretos fam ao dançar em volta dos seus ídolos ou o facto de terem sempre nos ouvidos o ritmo sincopado das jazz-bands, nom tenha consequências ideológicas; a) trata-se de um fenómeno enormemente difundido, que atinge milhons e milhons de pessoas, nomeadamente jovens; b) trata-se de impressons mui enérgicas e violentas, isto é, que deixam pegadas profundas e duradouras; c) trata-se de fenómenos musicais, quer dizer, de manifestaçons que se espremem na linguagem mais universal hoje existente, na linguagem que comunica mais rapidamente imagens e impressons totais de umha civilizaçom nom só estranha à nossa, mas com certeza menos complexa do que a asiática, primitiva e elementar, isto é, facilmente assimilável e generalizável da música e da dança para o resto do mundo psíquico. em resumo, o pobre evangelista convenceu-se de que tendo medo de converter-se num asiático, na realidade ele, sem dar por isso, estava a converter-se num preto, e que tal processo estava terrivelmente avançado, polo menos até a fase da mestizagem. Nom sei em que resultou mas penso que já nom é capaz de renunciar ao café com acompanhamento de jazz e que de agora em diante se verá com mais atençom no espelho, para surpreender os pigmentos de cor no seu sangue.
Querida tania, desejo que te recuperes bem e rapidamente: um abraço.
antonio

(Carta 37)

27 de fevereiro de 1928 Queridíssima Giulia,
recebim a tua carta do 26-XII-1927, com a apostila de 24 de janeiro e a notinha anexa. Fum mesmo feliz por receber estas cartas tuas. Mas desde havia algum tempo já conseguira estar mais tranquilo. Mudei muito em todo este tempo. Certos dias acreditei que me convertera num ser apático e inerte. Hoje penso que errei na análise de mim mesmo. Igualmente, também nom acredito que estivesse desorientado. tratava-se de umha crise de resistência a umha nova maneira de viver, que se impunha implacavelmente pola pressom de todo o ambiente carcerário, com as suas normas, com a sua rotina, com as suas privaçons, com as suas necessidades, um complexo enorme de pequeníssimas cousas que se sucedem de maneira mecánica durante dias, durante messes, durante anos, sempre iguais, sempre com o mesmo ritmo, como os graos de areia de umha gigantesca clepsidra. todo o meu organismo físico e psíquico opunha-se tenazmente, com cada molécula, à absorçom deste ambiente exterior, mas era necessário de quando em vez reconhecer que umha certa quantidade da pressom conseguira vencer a resistência e modificara umha certa zona de mim mesmo, e entom verificava-se um abalo rápido e total, para rejeitar de um golpe o invasor. Hoje, todo um ciclo de mudanças se tem desenvolvido, porquanto cheguei à decisom calma de nom me opor, com os meios e nas maneiras de antes, que eram ineficazes e ineptos, àquilo que é necessário e inelutável, mas de dominar e controlar, com um certo espírito irónico, o processo em curso. de resto, convencim-me de que nunca chegarei a ser um perfeito filisteu. em qualquer momento serei capaz, com um abalo, de deitar fora a pele, meio de asno e meio de ovelha, que o ambiente desenvolve sobre a autêntica pele natural. talvez umha cousa nom a consiga jamais: devolver à minha pele natural e física a cor afumada. Valia51 nom poderá chamar-me mais o camarada afumado. temo que delio, apesar da tua colaboraçom, já estará mais afumado do que eu! (Protestas?) este inverno fiquei quase três messes sem ver o sol, nom sendo algum reflexo longínquo. a cela recebe umha luz que está metade entre a luz de umha adega e a luz de um aquário.
de resto, nom deves pensar que a minha vida decorre tam monótona e idêntica como a primeira vista poderia parecer. Umha vez habituado à vida de aquário e adaptados os sentidos a captarem as impressons amortecidas e crepusculares que fluem por aqui (sempre colocando-se numha posiçom um pouco irónica), todo um mundo começa a fervilhar em volta, com umha vivacidade sua particular, com as suas leis individuais, com um curso essencial de seu. acontece como quando se lança um olhar a um velho tronco meio desfeito polo tempo e pola intempérie e depois, bem devagar, se detém, cada vez mais fixamente, a atençom. Primeiro só se vê algumha fungosidade húmida, com algumha lesma que ressuma baba, que se arrasta lentamente. depois vê-se, um pouco ao redor, todo um conjunto de colónias de pequenos insetos que se movem e passam trabalhos, fazendo e refazendo os mesmos esforços, o mesmo caminho. se se conservar a própria posiçom extrínseca, se nom se chegar a ser umha lesma ou umha formiguinha, todo isto acaba por interessar e fazer decorrer o tempo.
Cada detalhe que consigo captar da tua vida e da vida das crianças oferece-me a possibilidade de tentar elaborar umha
51 sobrinho de tatiana.
representaçom mais ampla. Mas estes elementos som demasiado escassos e a minha experiência foi demasiado escassa. ainda: nesta idade sua, as crianças devem mudar demasiado rápido como para que seja capaz de as seguir em todos os movimentos e me faga umha ideia. Com certeza, nisto devo andar bastante desorientado. Mas é inevitável que assim seja.
abraço-te com tenrura. antonio

(Carta 38)

5 de março de 1928 Queridíssima tania,
a tua carta de 28 de fevereiro chegou-me também com umha rapidez assombrosa; nada menos que no dia 3 de março, apenas quatro dias mais tarde. desejo que continue assim e que essa rapidez se estenda a toda a correspondência. Polo contrário, minha pobre mae está desesperada, porque desde há dous messes nom recebe as minhas cartas; a 27 de fevereiro nom recebera ainda umha carta minha de 9 de janeiro, que lembro perfeitamente ter escrito, e por isso pensa que estou gravemente doente e com impossibilidade física de escrever.
dou-che todos os meus parabéns polas forças recobradas,
que che permitírom erguer-te e caminhar. Mas és demasiado otimista por princípio e acreditas de mais numha espécie de justiça cósmica! seria melhor que tivesses paciência e que aguardasses a estar completamente reestabelecida, fora de todo perigo de recaída e de complicaçons. tés que ter sentido! em caso contrário, tomarei medidas draconianas contra o teu cabelo, sem preocupar-me ou comover-me polas acusaçons de barbárie!
Lim com muito interesse a tua carta, polas observaçons que pudeche fazer e polas novas experiências. acho que nom é necessário recomendar-che indulgência e nom apenas a «indulgência prática», mas também aquela que chamarei de espiritual. estivem sempre convencido de que existe umha Itália desconhecida, que nom se vê, mui diferente da aparente e visível. Quero dizer —dado que é um fenómeno que se verifica em todos os países— que a separaçom entre o que se vê e o que nom se vê é, entre nós, mais profunda do que nas outras assim denominadas «naçons civilizadas». entre nós, a praça, com os seus gritos, os seus entusiasmos verbais, a sua vaidade, supera o chez soi muito mais do que noutro lugar, de umha maneira relativa. Igualmente, formárom-se toda umha série de preconceitos e de afirmaçons gratuitas, sobre a solidez da estrutura familiar, como sobre a dose de genialidade que a providência se teria dignado dar ao nosso povo, etc., etc. Mesmo num livro recentíssimo de Michels se repete que a média dos camponeses calabreses, mesmo os analfabetas, é mais inteligente que a média dos professores universitários alemaos52; assim, muita gente acredita estar exonerada da obriga de fazer desaparecer o analfabetismo em Calábria. acho que os costumes familiares das cidades, dada a recente formaçom dos centros urbanos na Itália, nom podem ser julgados sem abstrai-los da situaçom média geral de todo o país, que é ainda mais baixa e que pode ser, deste ponto de vista, resumida neste traço caraterístico: um extremo egoísmo das geraçons entre os 20 e os 50 anos, verificado em prejuízo
52                  a afirmaçom, que se remonta a enrico Ferri, é citada por robert Michels em A França contemporânea, Milám, 1927, quem parece em parte aceitá-la.
das crianças e dos velhos. Naturalmente, nom se trata de um estigma de inferioridade civil permanente: seria absurdo e louco pensá-lo. trata-se de um dado de facto, historicamente controlável e explicável e que poderá ser superado, indubitavelmente, por meio da elevaçom do nível de vida material. a explicaçom, para mim, está na estrutura demográfica do país, que antes da guerra punha 83 pessoas passivas a cargo de 100 trabalhadores, enquanto a França, com umha riqueza enormemente superior, o cargo era apenas de 52 por cada 100. demasiados velhos e demasiadas crianças em comparaçom com as geraçons médias, empobrecidas numericamente pola emigraçom. eis a base deste «egoísmo geracional», que adquire em ocasions aspetos de umha crueldade terrível. Há sete ou oito messes os jornais referiam este episódio tam atroz: um pai massacrara toda a família (a mulher e os três filhos) porque, à volta das labores do campo, tinha encontrado a ceia escassa devorada polo ninho faminto. Igualmente, mais ou menos na mesma data, desenvolveu-se em Milám um julgamento contra o marido e a mulher que deixaram morrer o seu filho de quatro anos, mantendo-o durante messes ao pé da mesa com um fio de ferro. entendia-se, polo debate, que o homem duvidava da fidelidade da mulher e que esta, antes que perder o marido por defender o meninho do mal-tratamento, concordou com a sua eliminaçom. Fôrom condenados a oito anos de reclusom. este é um tipo de crime que antigamente era considerado nas estatísticas anuais da criminalidade com umha denominaçom exclusiva; o senador Garofalo53 considerava a média de 50 condenas por ano por crimes semelhantes apenas como um índice da tendência criminal, porque os pais culpa-
53                  raffaele Garofalo (1851-1934), um dos fundadores da escola positiva do direito Penal.
dos conseguiam na maior parte das vezes eludir qualquer sançom, polo costume geral de prestar pouca atençom à higiene e à saúde das crianças e polo difuso fatalismo religioso, que leva a considerar quase que com umha particular benevolência do céu a assunçom de novos anjinhos na corte divina. esta é, infelizmente, a ideologia mais difundida e nom surpreende que ainda, embora sob formas atenuadas e edulcoradas, se reflita também nas cidades mais avançadas e modernas. olha que a indulgência nom está fora de lugar, polo menos para quem nom acredita no caráter absoluto dos princípios nestas relaçons, mas só no seu desenvolvimento progressivo junto ao desenvolvimento da vida em geral. os melhores, melhores desejos. abraço-te. antonio

(Carta 39)

12 de março 1928 Queridíssima mae,
na carta passada (de 5 de março) cometim um erro, que contudo corrigiche por ti própria: a registrada chegou-me a dia 4 de fevereiro e eu escrevim que me avisasses no dia 6 de fevereiro; nom de janeiro, como escrevim, mas sim de fevereiro, em definitivo.
recentemente recebim notícias das crianças e de Giulia. delio estivo sempre bem, mas o pequeno estivo gravemente doente, em perigo durante alguns messes e por isso nom me mandavam notícias. a doença atrasou o seu desenvolvimento, nos dentes e na fala, mas desde há algum tempo, depois da cura, está a melhorar muito e recupera o tempo perdido. escrevem-me montes de detalhes, que nom che repito, porque no fundo som os habituais da vida das crianças pequenas, embora as maes os considerem sempre extraordinários e maravilhosos e só próprios dos seus pequenos.
Parece certo, desta vez, que está próxima a partida para roma e mais o julgamento. se calhar, até é provável partir num prazo brevíssimo; procurarei informar-te da partida com um telegrama, de maneira que podas escrever depressa para o novo endereço dos Cárceres Judiciários de roma. repitoche, mais umha vez, que nom deves alarmar-te, seja qual for a confusom de notícias que os jornais se comprazam em publicar. as mesmas acusaçons, relativas aos mesmos artigos do Código Penal, fôrom dirigidas contra mim no 1923, quando estava no estrangeiro. Fomos absolvidos já em primeira instáncia, embora houvesse um documento com muitas assinaturas reconhecidas autênticas polos imputados54. Certamente, desta vez serei condenado a muitos anos, apesar de que as acusaçons contra mim assentam numha simples relaçom da polícia e em impressons genéricas nom verificáveis; porém, a comparaçom entre o 23 e o 28 chega para dar a noçom da «gravidade» em si do processo atual e para caraterizá-lo. eis porque eu estou tam tranquilo. Pensas que só devem contar nom estas circunstáncias acessórias, mas sim o facto real da condena e do cárcere que é preciso sofrer? e porém, também deves ter em conta a posiçom moral, nom che parece? de fac-
54        G. refere-se ao julgamento celebrado perante o tribunal de roma, de 16 a 23 de outubro de 1923, contra os dirigentes comunistas (Bordiga, Grieco, Fortichieri, terracini, etc.), por incitaçom ao ódio de classe e por atividades antifascistas. todos os acusados fôrom absolvidos por falta de provas. segundo os documentos oficiais, o arresto estivo motivado pola descoberta de um manifesto da Internacional Comunista e da Internacional dos sindicatos vermelhos contra o fascismo.
to, é apenas isto o que dá forças e dignidade. o cárcere é umha cousa bem feia; mas para mim seria incluso pior a desonra pola fraqueza moral e pola covardia. É por isso que nom deves alarmar-te e sentir demasiado pesar, e nom deves pensar nunca que eu estou desanimado e desesperado. deves ter paciência e, em qualquer caso, nom acreditares nas mentiras que podam publicar sobre mim.
espero que já tenhas recebido todas as minhas cartas an-
teriores. renovo os desejos mais sentidos e afetuosos polo teu santo e abraço-te com tenrura. Nino

(Carta 40)

9 de abril de 1928 Queridíssima tania,
recebim ontem a tua carta do 5, com rapidez completamente pascoal. recebim também os cabelos de Giuliano e estou mui contente polas notícias que me contas. a dizer a verdade, nom sei tirar muitas consequências delas. Quanto à maior ou menor rapidez da fala das crianças, nom tenho outro elemento de juízo que umha anedota sobre Giordano Bruno quem, polo que contam, nom falou até a idade de três anos, apesar de compreendê-lo todo: umha manhá, ao acordar, viu que de umha fenda do muro da choupana onde morava, umha serpe grossa se dirigia para o seu leito; rapidamente chamou o pai polo nome, a quem nunca chamara, e foi salvado do perigo; desde aquele dia começou a falar mesmo a mais, como também sabem os judeus revendedores do Campo dei Fiori55.
55 G. é irónico, porque Giordano Bruno morreu precisamente por «falar de
sinto que te sintas deprimida, como escreves, e que te aches por isso livre de me escrever mais amiúde. esta é umha injustiça notória, pola qual poderia apelar a que estou ainda mais desanimado do que tu e nom escrever-che em absoluto; certamente, isso há de acontecer se continuas a provocar-me com essas depressons. deverias escrever-me polo menos duas vezes por semana: e entom como é que chegache a ser tam preguiçosa? Que fás em todo o dia? e como passache a Páscoa? recebim há alguns dias as Prospettive Economiche e o Al-
manacco cartario. todos os anos, a partir do 25, regalava a Giulia este almanaque. Nom o farei este ano. Caiu mui baixo. reproduz umhas anedotas, consideradas humorísticas, que dantes estavam reservadas aos periodicuchos semipornográficos, publicados para os jovens recrutas que venhem por primeira vez à cidade. estou certo de que fazer umha constataçom assim pode ter a sua importáncia. o sábado recebim um novo pacote de livros, embora nom me foi entregue ainda; acho que se trata de um certo número de revistas de história e de filosofia; pudem dar-lhe apenas umha vista de olhos, no momento em que assinava o recibo para os correios. de qualquer maneira, figem novamente umha certa provisom de leituras para o período em que ainda ficarei em Milám. estivem pensando que delio fará quatro anos no dia 10 de agosto e que agora já é suficientemente maior como para fazer-lhe um presente sério. a senhora Pina prometeu que me faria chegar o catálogo do «Meccano»: espero que as diferentes combinaçons estejam expostas nom só em ordem aos preços (de 27 a 2000 liras!) mas também em relaçom à simplicidade e à idade dos rapazes. Com certeza, o princípio
mais», dado que foi condenado pola Inquisiçom papal a morrer na fogueira, nessa mesma praça romana, pola sua teoria de um universo infinito. [N. do T.]
do mecano é ótimo para as crianças modernas; vou escolher a combinaçom que me parece mais oportuna e já che direi qual é. até agosto há tempo avondo. Nom sei que disposiçom prevalece em delio, se é que a evidenciou. eu, quando era um rapaz, tinha umha forte disposiçom polas ciências exatas e pola matemática. Perdim-na durante o licéu, porque nom tivem mestres que valessem mais do que um figo seco. assim é que trás acabar o 1° ano do secundário nom estudei mais matemática, antes polo contrário escolhim o grego (na altura tinha a opçom); porém, no 3° ano do secundário demonstrei imprevistamente que conservara umha «capacidade» notável. acontecia entom que em 3° ano do secundário era preciso, para estudares física, conhecer os elementos da matemática e que os alunos que optárom polo grego nom tiveram a obriga de os conhecer. o professor de física, que era brilhantíssimo, divertia-se imensamente metendo-nos em sarilhos. No último interrogatório do 3° trimestre, fijo-me perguntas de física ligadas à matemática, dizendo-me que da exposiçom que figesse iria depender a média anual e portanto a passagem de licença, com ou sem exame: divertia-se muito vendo-me no quadro, onde me deixou estar todo o tempo que quigem. Pois bem, fiquei meia hora no quadro, pugem-me branco com o giz, dos cabelos até os sapatos, tentei, tentei novamente, escrevim, apaguei, mas finalmente «inventei» umha demonstraçom que foi acolhida polo professor como ótima, embora nom aparecesse em qualquer manual. este professor conhecia de Cagliari meu irmao maior56 e embora me atormentou com as suas gargalhadas durante todo o tempo da escola: chamava-me o «físico helenizante».
56 Gennaro.
Queridíssima tania, proibo as depressons e escreve-me amiúde. abraço-te.
antonio
esquecim contar-che como procurei incomodar ontem a senhora Pina. Visto que o sábado tulli foi à conversa, perguntou-me se tinha algum desejo especial para o jantar de Páscoa. eu tivem sempre desejos que nunca dei satisfeito: quereria comer rins de rinoceronte e umha coxa de pangolim57; como segunda opçom, contentaria-me com umha pequena cabeça de cabrito ao forno. tulli negou-se a cumprir a encomenda do rinoceronte e do pangolim, justamente preocupado com nom obrigar a mulher a procuras demasiado longas nos talhos; queria limitar-se apenas à cabeça de cabrito. Mas ontem a pequena cabeça nom chegou, naturalmente; foi anunciada somente para amanhá, terça-feira. Nem creio que para amanhá, porque os anhos e os cabritos chegam à cidade sem cabeça, mas quero saber o final que terá a aventura. aguardo que a senhora Pina nom se alporiçasse comigo demasiado; fai-me o favor de dizer-lhe tu umhas boas palavras.
57        animal recoberto de escamas duras e afiadas. Mora em ásia e em áfrica e alimenta-se de formigas e termites.

(Carta 41)

30 de abril de 1928 Queridíssima mae,
envio-che a fotografia de delio. o meu julgamento foi marcado para 28 de maio: desta vez a partida deve estar próxima. seja como for, mirarei de enviar-che um telegrama. a minha saúde é bastante boa. o julgamento próximo fai-me estar melhor, porque polo menos sairei desta monotonia. Nom te preocupes e nom te assustes, seja qual for a condena que me imponham: acho que será de 14 a 17 anos, mas poderia ser até mais grave, precisamente porque nom há provas na minha contra: o que podo ter cometido, sem deixar provas? Fica bem-humorada.
abraço-te. Nino

(Carta 42)

30 de abril de 1928 Queridíssima tania, recebim a tua carta de 25 de abril, junto com a carta de Giulia. agradeço-che as notícias que me envias. alegrou-me muito receber as tuas notícias; estava mui preocupado.
Nom sei se te informárom de que o julgamento foi marcado para 28 de maio, o qual significa que a partida se aproxima. Já estivem com o advogado aris. a proximidade destas novidades excita-me bastante; de umha maneira agradável, porém. sinto vibrar em mim a vida novamente: haverá umha certa luita, imagino. embora só seja durante uns poucos dias, vereime num ambiente diferente do carcerário.
Quero protestar contra as tuas deduçons a propósito das... cabeças de cabrito. estou informadíssimo no relativo a este comércio. em turim figem, em 1919, umha ampla pesquisa porque o Concelho boicotava os anhos e os cabritos sardos em benefício dos coelhos piemonteses: havia em turim por volta de 4.000 pastores e camponeses sardos em missom especial58 e eu queria ilustrá-los sobre este tema. os anhos e os cabritos meridionais chegam aqui sem cabeça, mas há umha pequena percentagem de comércio local que fornece também as cabeças. É difícil encontrá-las, de aí que a cabeça pequena, comprometida para o domingo, só se pudo conseguir na quarta-feira. aliás, nom tinha muita certeza de que se tratasse de anho ou cabrito, embora fosse mui boa (para mim; a tulli horrorizava-o). devia ser um estranho cabrito, sem cérebro e cego de um olho, com o cránio mui parecido com o de um lobicam triturado polo tranvia! (mas, por amor de deus, nom lho digas à senhora Pina!). ai, estes carniceiros!
sinto muito que Giulia ficasse tanto tempo sem notícias. Veremo-nos mais umha vez antes da minha partida? Nom o creio. Nom deves cometer nengumha imprudência; deves recuperar-te bem. só assim estarei tranquilo. Pensa que de agora em diante poderei escrever-che mui poucas vezes. abraço-te. antonio
58 trata-se dos 4.000 soldados da «Brigada sassari», composta na sua maioria por camponeses e pastores, enviados a turim a começos de 1919 com tarefas repressivas anti-operárias, entre os quais despregou G. um eficaz trabalho de propaganda. a Brigada foi afastada de turim uns messes depois, na véspera da greve geral de 20-21 de julho.

(Carta 43)

10 de maio de 1928 Queridíssima mae,
estou para partir para roma59. Já está confirmado. Concedêrom-me esta carta precisamente para anunciar o traslado. É por isso que, de agora em diante e enquanto nom te avisar doutro traslado, escreve-me para roma.
ontem recebim umha registrada de Carlo de 5 de maio. escreve que me mandará umha fotografia tua: fará-me mui feliz. a esta hora já deve ter chegado a fotografia de delio que che enviei há uns dez dias, registrada.
Queridíssima mae, nom gostaria de repetir o que já che escrevim para tranquilizar-te em relaçom às minhas condiçons físicas e morais. Gostaria, para estar mesmo tranquilo, de que nom te assustasses ou te turbasses demasiado, seja qual for a condena que me imponham. Que compreendesses bem, também com o sentimento, que fum detido por razons políticas e serei condenado por razons políticas, que nom tenho nem terei nunca que avergonhar-me desta situaçom. Que, no fundo, o arresto e a condena quigem-nas eu mesmo, em certa maneira, porque nunca quigem mudar as minhas opinions; por elas estaria disposto a dar a vida e nom só a estar em prisom. Que por isso nom podo senom estar tranquilo e contento de mim mesmo. Querida mae, gostaria mesmo de abraçar-te mui forte, para que sentisses o muito que te quero e como gostaria de te consolar desta pena que te causo: mas nom pudem fazer de outra maneira. a vida é assim, duríssima, e os filhos em ocasions tenhem que dar grandes desgostos às suas maes, se quigerem conservar a sua honra e a sua dignidade de homens.
59 G. deixou o cárcere judiciário de Milám na noite de 11 de maio de 1928.
abraço-te com tenrura. Nino
escreverei-te desde roma rapidamente. di para Carlo que esteja alegre e que lhe estou agradecido infinitamente. Beijos para todos.

(Carta 44)

27 de junho de 1928 Queridíssima tania,
nengumha novidade à vista, até este momento. Ignoro quando partirei60.Porém, nom deve excluir-se que a minha partida seja dentro duns dias; poderia pôr-me a caminho hoje mesmo.
recebim umha carta de minha mae há alguns dias. escreve que nom recebeu as minhas cartas desde 22 de
60                  G. chegou ao cárcere de regina Coeli na manhá de 12 de maio. o julgamento contra G. e os dirigentes do Partido Comunista Italiano desenvolveu-se no dia 28 desse mês até 4 de junho, perante o tribunal especial para a defesa do estado. o presidente era o general alessandro saporiti e o fiscal o advogado Michele Isgrò. a defesa estava constituída polos avogados Giovanni ariis, adelmo Niccolaj e Giuseppe sardo. a imprensa internacional estava representada polo correspondente em roma do «Manchester Guardian» e polo jornalista soviético V. antonov. entre o escasso público admitido nas audiências encontrava-se o irmao de G., Carlo. Imputado e reconhecido culpável dos crimes de conspiraçom e incitaçom ao ódio de classe, de incitaçom à guerra civil, à insurrecçom e à mudança violenta da constituiçom e da forma do governo, G. foi condenado no dia 4 de junho de 1928 a vinte anos, quatro messes e cinco dias de reclusom. destinado primeiro à penitenciaria de Portolongone, trás umha visita médica especial foi destinado à penitenciaria de turi, para condenados afetados por doenças físicas e psíquicas, e deixou roma no dia 8 de julho de 1928, em «transporte ordinário». Imediatamente após a condena, Umberto terracini apresentou perante o tribunal supremo, no nome de todos os seus camaradas, umha petiçom para a revisom do julgamento. o supremo declarou-se incompente para a acolher.
maio61, isto é, desde quando estava em Milám. desde roma escrevim para a casa três vezes no mínimo: também enviei a última carta para meu irmao Carlo. escreve tu umha carta para minha mae, explicando-lhe que eu neste momento podo escrever pouquíssimo, apenas umha vez cada quinze dias, e que devo distribuir as duas cartas mensais entre ela e tu. Polo contrário, podo receber cartas sem limites: minha mae acredita no entanto que há um limite também para a recepçom. Informa-lhe sobre a questom da minha partida suspendida para Portolongone após a visita especial do médico, e sobre a probabilidade de um destino melhor. tranquiliza-a em geral e escreve-lhe que para estar tranquilo nom necessito consolaçons; antes ao contrário, no que me di respeito estou mui tranquilo e sereno. É este um ponto no qual nom dei conseguido nunca sucessos notáveis com minha mae, que se fai um quadro terrorífico e literário da minha posiçom de condenado a prisom perpétua: pensa que [estou] sempre calado, devorado pola desesperaçom, etc., etc. Podias escrever-lhe que me viste recentemente e que nom estou para nada desesperado, deprimido, etc. mas sim com umha boa disposiçom para rir e brincar. talvez o acredite, ao mesmo tempo que pensa que lhe escrevo nesse sentido só para a consolar.
Queridíssima tania, sinto encomendar-che isto mais umha vez. aliás, esta carta decidira escrevê-la para ti e nom quero faltar ao sistema pré-estabelecido. aguardo ver-te ainda antes de partir. abraço-te com tenrura. antonio
61                  Sic no original; na realidade, G. estava em roma desde o 12. Veja-se a nota anterior.

(Carta 45)

19 de novembro de 192862
Queridíssima Giulia,
Portei-me mesmo mal contigo. as justificaçons, na verdade, nom som mui fundadas. após a partida de Milám, estivem enormemente canso. todas as minhas condiçons vitais se agravárom. sentim mais o cárcere. agora estou um pouco melhor. o mesmo facto de que se desse umha certa estabilidade, que a vida se desenvolvesse conforme certas regras, normalizou em certa medida também o curso dos meus pensa- mentos.
Fum mui feliz ao receber a tua fotografia e a das crianças. Quando se cria demasiada distáncia de tempo entre as impressons visuais, o intervalo enche-se com feios pensamentos; nom sabia o que pensar, nomeadamente sobre Giuliano, nom tinha conservado nengumha imagem na memória. agora estou mesmo contente. em geral, desde há alguns messes, sintome mais isolado e afastado de toda a vida do mundo. Leio muito, livros e revistas; muito, em relaçom à vida intelectual que se pode levar em reclusom. Mas perdim muito do gosto pola leitura. os livros e as revistas dam apenas ideias gerais, esboços de correntes gerais da vida do mundo (melhor ou pior conseguidos), mas nom podem dar a impressom imediata, direta, viva, da vida de Pietro, de Paolo, de Giovanni, de pessoas individuais reais, sem entender as quais nom se pode tampouco entender o universalizado e generalizado. Há muitos anos, no 19 e no 20, conhecia um jovem operário, mui ingénuo e bem simpático. Cada sábado de tarde, após a saída do traba-
62                  desde a prisom de turi, em Bari [apúlia, no calcanhar da bota que seria a península italiana. N. do T.].
lho, vinha ao meu escritório para ser dos primeiros em ler a revista que eu elaborava63. ele dizia-me amiúde: «Nom pudem dormir, oprimido polo pensamento: que fará o Japom?» . Precisamente o Japom obcecava-o, porque nos jornais italianos só se fala do Japom quando morre o Mikado ou quando um terremoto mata no mínimo 10.000 pessoas. o Japom escapavalhe; por isso nom conseguia ter umha imagem sistemática das potencias mundiais, e por isso lhe parecia nom compreender nada de nada. eu ria entom de um estado de ánimo semelhante e burlava-me do meu amigo. Hoje entendo-o. também eu tenho o meu Japom: é a vida de Pietro, de Paolo e também de Giulia, de delio, de Giuliano. tenho mesmo saudades da sensaçom molecular: como poderia, mesmo que de maneira sumária, perceber a vida de todo o complexo? até sinto a minha própria vida como retesa e paralisada: como poderia ser de outra maneira, se me falta a sensaçom da tua vida e da das crianças? além disso, tenho sempre o medo de ser dominado pola rotina carcerária. ela é umha máquina monstruosa que esmaga e nivela conforme umha certa escala. Quando vejo agir e sinto falar a homens que estám no cárcere desde há cinco, oito ou dez anos, e observo as deformaçons psíquicas que eles tenhem sofrido, arrepio-me de verdade, e tenho dúvidas na previsom sobre mim mesmo. Penso que também os demais tenhem pensado (nom todos, mas polo menos algum) nom deixar-se dominar e, contudo, sem sequer dar por isso, tam lento e capilar como é o processo, hoje vem-se mudados e nom o sabem, nom podem julgá-lo, por quê é que mudárom por completo. Certamente, eu vou resistir. Mas advirto, por exemplo, que já nom sei rir de mim mesmo, como anta-
63                  o semanário L’Ordine Nuovo, publicado em turim, de maio de 1919 a dezembro de 1920.
no, e isto é grave. Querida Giulia, interessam-che todas estas parolas? e dam-che umha ideia da minha vida? No entanto, interesso-me também por aquilo que acontece no mundo, sabes?. Nestes últimos tempos lim umha certa quantidade de livros sobre a atividade católica. eis um novo «Japom»: através de que fases passará o radicalismo francês para se cindir e dar vida a um partido católico francês? este problema «nom me deixa dormir» como lhe acontecia ao meu jovem amigo. e também outros, naturalmente. Gostache do abre-cartas? sabes que me custou quase um mês de trabalho e estragar metade das pontas dos dedos? Querida, escreve-me com um pouco de vagar sobre ti e sobre as crianças. deverias mandar-me as vossas fotografias polo menos cada seis messes, para que poda seguir o seu desenvolvimento e ver o teu sorriso mais amiúde.
abraço-te com tenrura, querida. antonio
apostila para tania — És bem ruim, tania!. desde há quanto tempo nom recibo notícias tuas? Nom importa se nom escreves cartas longas, chega mesmo com um postal ilustrado. sabes que também eu sinto cada vez mais a força da inércia que me empurra para nom escrever? e devo luitar para vencê-la. Mas vencerei sempre? aqui há gente que nom escreve desde há messes e desde há anos. também eu hei de acabar igual, certamente, se nom encontro correspondentes ativos. Querida tania, abraço-te, esperando que nom te encontres mal. antonio

(Carta 46)

31 de dezembro de 1928 Queridíssimo Carlo, recebim montes de cousas: os medicamentos, as 200 liras, etc. agradeço-cho de coraçom. o médico64 dixo-me que o soro Casali certamente há de fazer bem. Parece que é a cura mais ajeitada. Polo Natal véu a turi tatiana; demorou-se bastante para poder ter várias conversas. deu-me a sensaçom de que mesmo nos dias de Natal me sentia um pouco mal. tivem um ataque de uricemia, com grandes dores nos rins, nos intestinos e na vesícula, mas que já está a caminho de desaparecer. assim, temo que tatiana se figesse umha impressom falsa da minhas condiçons gerais de saúde. Na realidade, este é um mal doloroso só quando se fai agudo; o qual pode acontecer em poucas ocasions, desde que se esteja atento a excluir da alimentaçom qualquer alimento picante ou requente. de agora em diante hei de estar ainda mais atento do que no passado e aguardo evitar qualquer outra ocasiom. a visita de tatiana, à parte deste contratempo, agradou-me muito, como podes imaginar.
recebim a carta de mamae do 24, com a pequena carta e o debuxinho de edmea. estou mui contente de que mamae esteja melhor e que se vaia recuperando. dá-lhe muitos beijos a edmea da minha parte, mais algum leve belisco nas façulas, e agradece-lhe as suas expressons tam educadas e tam bem ditas. Porém, parece que ela, embora redija bastante bem e saiba pôr em frases espontáneas e vivas os seus sentimentos, comete um número de disparates ortográficos demasiado grande, mesmo para umha aluna que está ainda no terceiro ano.
64 trata-se, quase com certeza, do doutor Cisternino, médico da prisom de turi.
deve estar pouco atenta e sempre apurada: penso que também quando fala, em algumha ocasiom se parece com um turbilhom e come metade das palavras, tragando o r com particular gosto. É preciso estardes atentos para obrigá-la a fazer os deveres com diligência e com muita disciplina. Nas escolas rurais sardas acontece que umha meninha, ou umha criança, habituada na casa a falar italiano (mesmo se pouco e mal), acha por este único facto que é superior aos seus condiscípulos, que apenas conhecem o sardo e aprendem portanto a ler e a escrever, a falar, a redigir numha língua completamente nova. os primeiros parece que som mais inteligentes e espertos, embora por vezes nom o sejam, e por isso em família e na escola, se desleixa habituá-los ao trabalho metódico e disciplinado, pensando que com a «inteligência» ham de superar todas as dificuldades, etc. ora, a ortografia é mesmo o calcanhar de aquiles desta inteligência. se Mea nom estuda bem e se nom corrige esta deficiência, que se poderá pensar? Poderá-se pensar que se trata de umha dessas muitas meninhas que levam as fitinhas nos cabelos, os vestidinhos bem passados e que logo tenhem as calcinhas sujas. dizide-lho com um certo tato, para nom causar-lhe demasiado desgosto. Nom gosto nada do seu desenhinho: nom tem qualquer espontaneidade nem gosto.
e porém seria ótimo que aprendesse um pouco de desenho.
Querido Carlo, nom deves preocupar-te demasiado com o dinheiro que me mandas. Nom deves fazer parvoíces inúteis. sabes que som mui positivo e prático nestas cousas. Neste momento tenho na caderneta 950 liras, livres de qualquer gravame (paguei-no já na caixa). Isso significa que necessidades urgentes nom podo tê-las, e que nom deves estar preocupado se durante alguns messes nom che é fácil enviar-me sequer um peso. Nom achas? os melhores desejos para todos no novo ano.
Beijos afetuosos antonio

(Carta 47)

14 de janeiro de 1929 Queridíssima Giulia,
ainda aguardo a tua resposta à minha última carta. Quando tenhamos retomado umha conversa regular (mesmo com demorados intervalos), escreverei-che muitas cousas sobre a minha vida, sobre as minhas impressons etc., etc. Para já, deves informar-me sobre como interpreta delio o mecano. É algo que me interessa muito, porque nunca soubem decidir se o mecano, que tira ao meninho o seu próprio espírito inventivo, é o brinquedo moderno mais recomendável. o que pensas tu disto e o que pensa o teu pai? em geral, acho que a cultura moderna (tipo americano), cuja expressom é o mecano, produz um homem um pouco seco, maquinal, burocrático, e cria umha mentalidade abstrata (num sentido diferente do que por «abstrato» se entendia no século passado). Houvo umha abstraçom causada por umha intoxicaçom metafísica e há umha abstraçom causada por umha intoxicaçom matemática. Que interessante deve ser observar as reaçons destes princípios pedagógicos no cérebro de umha meninho pequeno, que por outro lado é nosso, e ao qual estamos vencelhados por um sentimento bem diferente que nom é o simples «interesse científico». Queridíssima, escreve-me umha longa carta.
abraço-te forte forte.
antonio

(Carta 48)

9 de fevereiro de 1929 Queridíssima Giulia,
tinha pensado escrever umha carta particular, mesmo pessoal, para delio mas tania escreve que ele está na casa de anna e, após a tua brilhante narraçom sobre as consequências de lhe ter contado que fumei na neve, fai-me duvidar. Quero ter antes o teu conselho. Na minha opiniom, delio é mui reativo, como o era já em roma e em trafoi, e nom quereria impressionar demasiado a sua sensibilidade. É por isso que prefiro aguardar polo teu parecer. a minha impressom sobre tania é bastante boa. Quando a vim em Milám pola última vez, mas sobretudo em roma, há sete messes aproximadamente, estava mui débil. Polo contrário, em dezembro pareceu-me em parte reposta e mais forte. Nom teria querido que figesse umha viagem tam longa para ter umha meia hora de conversa: mas véu de improviso, e além disso, naturalmente, fijo-me mui feliz. agora deveria fazer-che um grande elogio de tatiana, e da sua grande bondade. Mas nom o fago, porque em ocasions exagera e acaba por se comportar como se me julgasse completamente falto de sentido prático, absolutamente incapaz de viver sem um precetor ou umha ama. algumha vez até me fijo enfadar e mais amiúde me fijo rir, mesmo se desde há algum tempo rio pouco e nom tenho vontade de brincar como antano. Creio que esta é a mudança mais notável acontecida em mim. em resumo, concluim que tatiana é o melhor exemplar de toda a família schucht, que incluso o famoso deusgott65
65 V. degott, revolucionário russo. em 1919 estivo na Itália como representante da Internacional Comunista. [G. fai brincadeira com o seu nome, visto que «gott», em alemám, é deus. [N. do T.].
afirmava que era umha família modelo (nom cho dixera nunca, mas digo-cho agora para fazer que te enfades!); a única que se parece verdadeiramente com tua mae.
Querida, é mesmo verdade o que escreves: também eu quereria escrever-che muitas cousas, mas nom consigo vencer-me, superar umha espécie de reserva. Creio que vem determinado pola nossa formaçom mental moderna, que nom encontrou ainda uns meios de expressom adequados e próprios. som sempre um pouco cético e burlom, e acho que se expressasse tudo quanto quigesse, nom poderia superar um certo convencionalismo e um certo melodramatismo que está quase incorporado à linguagem tradicional. o mesmo estudo profissional que fixem das formas técnicas da linguagem obceca-me, vendo em qualquer expressom umhas formas fossilizadas e ossificadas que me repugnam. Porém, tenho a certeza de que entre nós nom se perderá nunca a intimidade.
abraço-te forte forte antonio

(Carta 49)

22 de abril de 1929 Queridíssima tania,
recebim os teus postais de 13 e de 19 de abril. Ficarei pacientemente à espera das notícias da casa. acho que também tu tés notado, nos poucos momentos em que nos vimos, o paciente que cheguei a ser. também antes o era, mas só graças a um grande esforço sobre mim mesmo: era umha certa qualidade diplomática, necessária para entrar em relaçom com os estúpidos e com gente aborrecida à qual, infelizmente, nom se pode renunciar. agora, polo contrário, nom me custa trabalho nengum: converteu-se num costume; é a expressom necessária da rotina carcerária e é também um elemento de auto-defesa instintiva. Porém, algumha vez esta «paciência» converte-se numha espécie de apatia e indiferença que nom consigo superado: acho que também notache isto e que nom gostache muito. Nem sequer isto é umha novidade, sabes? tua mae observara-o em 1925 e Giulia contou-mo. a verdade é que desde aqueles anos eu, por dizê-lo com umha metáfora de Kipling, era como umha cabra que perdeu um olho e gira em círculo, sempre sobre a mesma amplitude de rádio. Mas vaiamos a algo mais alegre.
a rosa apanhou umha terrível insolaçom: todas as folhas e as partes mais tenras estám queimadas e carbonizadas; tem um aspecto desolado e triste, mas novamente bota fora os rebentos. Nom morreu, polo menos até agora. a catástrofe solar era inevitável, já que só pudera cobri-la com papel, que o vento levava; teria sido necessário ter um bom feixe de palha, que é umha má condutora da calor e ao mesmo tempo protege dos raios diretos. seja como for, o prognóstico é favorável, com a exceçom de complicaçons extraordinárias. as sementes tardárom muito em se tornarem pequenas plantas: todo um grupo teima em fazer umha vida podpolie66. eram, com certeza, sementes velhas e que em parte criárom bicho. aquelas que saírom à luz do mundo desenvolvem-se lentamente e som irreconhecíveis. Penso que o jardineiro, quando che dixo que umha parte das sementes eram ótimas, queria dizer que eram aptas para se comer; com efeito, estranhamente algumhas plantas parecem mais salsa e cebolinhas do que flores.
66 Podpole em russo é «subterrâneo» e, em sentido figurado, «clandestinidade».
todos os dias tenho a tentaçom de tirar por ela um pouco para ajudá-la a crescer, mas fico na incerteza entre as duas conceiçons do mundo e da educaçom: ser rousseauniano, e deixar fazer à natureza, que nom se equivoca nunca e que é fundamentalmente boa, ou ser voluntarista, e forçar a natureza, introduzindo na evoluçom a mao esperta do ser humano e o princípio de autoridade. Por enquanto, a incerteza nom acabou e as duas ideologias estám em tensom na minha cabeça. as seis plantinhas de chicória sentírom-se rapidamente na sua casa e nom tivérom medo do sol: já botam fora o tronco, que dará as sementes para os próximos messes. as dálias e o bambu dormem baixo terra e ainda nom dérom sinais de vida. as dálias, principalmente, acho que estám verdadeiramente acabadas.
Já que estamos com este tema, quero pedir que me mandes outra vez quatro classes de sementes: 1° de cenouras, mas da classe denominada pastinaca, que é umha agradável lembrança da minha primeira infáncia: a sassari chegavam aquelas que pesam meio quilo e que antes da guerra custavam um peso, fazendo umha certa concorrência ao alcaçuz; 2° de ervilhas; 3° de espinafres; 4° de aipos. Num quarto de metro quadrado quero meter quatro ou cinco sementes por espécie e ver o que sai. Podes encontrá-las em Ingegnoli, que tem a loja na Piazza del Duomo e na Via Buenos Ayres; igualmente pede que che dem também o catálogo, onde se indica o mês mais propício para a sementeira.
recebim outra pequena carta da senhora Malvina sanna (Corso Indipendenza 23). transmite-lhe estas linhas:
«Compreendo as dificuldades financeiras para obter os livros indicados por mim anteriormente. também eu chamei a atençom para isto, mas o que se me encomendara era responder perguntas concretas. respondo hoje umha pergunta que, mesmo se nom dirigida a mim, era implícita, e porque entendo que responde a umha necessidade geral para quem está preso: «como fazer para nom perder o tempo no cárcere e para estudar algo de algumha maneira?» antes de mais, vejo necessário renunciar ao hábito mental «escolástico», e nom meter-se na cabeça seguir cursos regulares e profundos: isso é impossível, mesmo para quem se encontra nas melhores condiçons. entre os estudos mais proveitosos está, é claro, o das línguas modernas: chega com umha gramática, que pode encontrar-se também, por pouquíssimo dinheiro, nas bancas dos livros usados, e algum livro (também este usado, talvez) da língua escolhida para o estudo. Nom se pode apreender a pronúncia oral, é verdade, mas saberá-se ler, e isto é já um resultado considerável. aliás: muitos presos desvalorizam a biblioteca do cárcere. Certamente, as bibliotecas carcerárias, em geral, nom tenhem umha ordem: os livros fôrom reunidos ao acaso, pola doaçom de padroados que recebem fundos de armazém das editoras, ou por livros deixados por excarcerados. abundam os livros devotos e de romances de terceira categoria. todavia, acho que um preso político deve também buscar o fogo na ameixoeira. tudo consiste em dar um fim às próprias leituras e em saber apanhar apontamentos (se se tiver licença para escrever). Ponho dous exemplos: em Milám lim umha certa quantidade de livros de todos os géneros, nomeadamente romances populares, até que o diretor me permitiu ir eu mesmo à biblioteca escolher entre os livros ainda nom disponíveis para a leitura ou entre aqueles que devido a um particular teor político ou moral, nom davam para ler a todos. Pois bem, encontrei que também sue, Montépin, Ponson du terrail, etc. bastavam se forem lidos deste ponto de vista: «por quê esta literatura é sempre a mais lida e a mais impressa? que necessidades satisfai? a que aspiraçons responde? que sentimentos e pontos de vista som representados nestes livrecos, para gostar tanto?» Porque eugenio sue é diverso de Montépin? e Victor Hugo, nom pertence também ele a esta série de escritores polos temas que trata? e Scampolo ou l’Aigrette ou a Volata de dario Nicodemi nom som, se calhar, a descendência directa deste baixo romantismo do 48? etc., etc., etc. o segundo exemplo é este: um historiador alemao, Gruithausen67, publicou recentemente um grosso volume em que estuda as ligaçons entre o catolicismo francês e a burguesia nos dous séculos anteriores ao 1789. ele estudou toda a literatura devota destes dous séculos: coletáneas de sermons, catecismos das diversas dioceses etc. etc. e reuniu um magnífico volume. acho que avonda para demonstrar que também se pode buscar fogo nas ameixoeiras, porque neste caso ameixoeiras nom há. Qualquer livro, especialmente se for de história, pode ser útil para ler. em qualquer livreco é possível encontrar algo útil... principalmente quando se estiver na nossa condiçom e o tempo nom puder ser valorizado de jeito normal.
Querida tatiana, escrevim mesmo demasiado e obrigareite a fazer um exercício de caligrafia. a propósito, lembra pedir que nom me mandem livros, até que eu nom os avise. se por acaso aparecessem livros que consideras úteis para mim, fai que os apartem e que os enviem assim que os pedir. Queridíssima, aguardo de verdade que a viagem nom te cansasse demasiado. abraço-te afetuosamente.
67 Groethuysen.

(Carta 50)

20 de maio de 1929 Querida Giulia,
quem che dixo que eu poderia escrever mais? Infelizmente, nom é verdade. Podo escrever apenas duas vezes por mês e só por Páscoa e Natal disponho de umha carta extraordinária. Lembras-te do que dizia Bianco, no 23, quando partia? Bianco tinha razom, do ponto de vista da sua experiência; sempre tivera umha adversom invencível à epistolografia. desde que estou no cárcere, escrevim polo menos o duplo de cartas que no período anterior: devo ter escrito polo menos 200 cartas, um verdadeiro horror!.
assim que nom é exato que esteja tranquilo. ao contrá-
rio, estou mais do que tranquilo, estou apático e passivo. e isto nom me surpreende e nem sequer fago qualquer esforço para sair do marasmo. de resto, isto talvez seja umha força e nom um estado de marasmo. Houvo longos períodos em que me sentia mui isolado, afastado de qualquer vida que nom fosse a própria; sofria terrivelmente umha demora da correspondência e a ausência de respostas congruentes com aquilo que pedira provocavam-me estados de irritaçom que me esgotavam. depois, passou o tempo e afastou-se cada vez mais a perspetiva do período anterior; todo aquilo que de acidental, de transitório existia na zona dos sentimentos e da vontade foi desaparecendo aos poucos e ficárom apenas os motivos essenciais e permanentes da vida. É natural que isso acontecesse, nom achas? Nom se pode evitar que durante algum tempo o passado e as suas imagens nos dominem, mas no fundo este olhar sempre para o passado acaba por ser incómodo e inútil. acho ter superada a crise que se produz em todos durante os primeiros anos de cárcere, e que amiúde causa umha rutura neta com o passado, num sentido radical. a dizer verdade, esta crise sentim-na e vim-na nos demais, mais do que em mim próprio; fijo-me sorrir, e isto já era umha superaçom. Nunca teria acreditado em que tanta gente tivesse um medo tam grande à morte; pois bem, é mesmo neste medo que consiste a causa de todos os fenómenos psicológicos carcerários. Na Itália dim que umha pessoa é velha quando começa a pensar na morte; acho que é umha observaçom mui sensata. No cárcere, esta viragem psicológica verifica-se assim que o preso sente que caiu na armadilha e que já nom pode escapar: dá-se umha mudança rápida e radical, tanto mais forte quanto mais até esse momento se tomasse pouco a sério a própria vida, os ideais e as convicçons. Vim alguns embrutecerem de maneira inacreditável. e foi-me útil, como aos rapazes espartanos era útil verem a depravaçom dos ilotas.
assim é que agora estou absolutamente tranquilo e nem me desacouga sequer a falta prolongada de notícias, embora saiba que isso poderia ser evitado com um pouco de boa vontade... também da tua parte. de outra parte, tania vai dandome todas as notícias que recebe. referiu-me, por exemplo, as caraterísticas das crianças segundo teu pai e que me interessárom muito e durante muitos dias. e outras notícias, que me comentou com muita destreza. olha que nom cho quero botar na cara! relim nestes dias as tuas cartas de um ano para aqui, e isso fijo-me sentir novamente a tua tenrura. sabes que algumhas vezes, quando escrevo para ti, penso que som demasiado seco e sombrio, em comparaçom contigo, que com tanta naturalidade me escreves? Parece-me que é como quando algumha vez te figem chorar, principalmente a primeira vez, lembras?, quando fum mesmo ruim, conscientemente. Queria saber o quê che escreveu tania da sua viagem a turi.
Porque acho que tania concebe a minha vida de umha maneira demasiado idílica e arcádica, tanto que me atormenta nom pouco. Nom consegue convencer-se de que estou na obriga de permanecer dentro de certos limites e nom deve mandar-me nada que eu nom tenha pedido, porque nom tenho ao meu dispor um depósito de meu. agora anuncia-me algumhas cousas, absolutamente inúteis e que nunca poderei utilizar, em vez de ater-se estritamente àquilo que lhe encomendei.
envio-che duas fotografias: a grande reproduz os dous fi-
lhos de minha irmá teresina: Franco e Maria; a outra, a minha mae, com a mesma meninha no colo, um pouco maior. Meu pai afirma que a meninha se parece com Giuliano; eu nom som capaz de julgar. Com certeza, o meninho nom se parece com ninguém da minha família: é o retrato do pai, que é um autêntico sardo, enquanto nós somos apenas meio sardos: a meninha, polo contrário, tem um maior ar da família. Qual é a tua opiniom?
acabei de ler estes dias umha história de rússia do prof. Platonof68, da ex Universidade de sam Petersburgo, um grosso volume de aproximadamente 1.000 páginas. acho que é um verdadeiro calote editorial. Quem era este prof. Platonof? Parece-me que a historiografia do passado tinha um teor bem baixo se este prof. Platonof era um dos seus corifeus, vendo o que escreveu o professor Lo Gatto nos seus trabalhos sobre a cultura russa. sobre as origens das cidades e do comércio russo no tempo dos Normandos lim umha vintena de páginas do historiador belga Pirenne69, que valem por toda a trapalhada de Platonof. o volume chega apenas até 1905, com duas páginas suplementares até a abdicaçom do grande duque Miguel
68      s. Platonof, Histoire de la russie des origines à 1918, Payot, Paris, 1929.
69      Henri Pirenne, Les villes du moyen âge, M. Lamertin, Bruxelas, 1927.
e com umha nota da data da morte de Nicolau II, mas tem o título de História das origens até 1918: um calote duplo, como vês.
Querida Giulia, escreve-me sobre os comentários de delio à carta que lhe escrevo; abraço-te com tenrura antonio

(Carta 51)

20 de maio de 1929 Querido delio,
soubem que vás à escola, que medes 1 metro e 8 centímetros de altura e que pesas 18 quilos. Penso entom que já és bem maior e que dentro de pouco tempo me escreverás cartas. À espera disso, hoje podias fazer que tua mae, sob o teu ditado, escreva cartas como os pimpò que me fazias escrever em roma para a avó. assim poderás contar-me o que apreendes, se gostas dos outros meninhos da escola ou ao que preferes jogar. sei que constróis avions, e trens, e que participas ativamente na industrializaçom do país, mas afinal esses aeroplanos voam de verdade? e correm esses trens? se estivesse ali, polo menos meteria o meu cigarro na chaminé, para que se visse um pouco de fume!.
de resto, devias escrever-me algo sobre Giuliano. Que che parece? ajuda-che com os teus deveres? É também um construtor ou ainda é demasiado pequeno para merecer este qualificativo? em resumo, quero saber um monte de cousas e visto que és tam maior e que —isso dim—também um pouco tagarelo, tenho a certeza de que me escreverás para já, com a mao da tua mae, umha carta mui longa, com todas essas notícias e mais outras. eu falarei-te de umha rosa que plantei e de umha lagartixa* que quero adestrar. dá um beijo a Giuliano da minha parte e também a tua mai e a todos os da casa, e mae, por sua vez, dará-che um beijo por mim. Toi papa70
*Pensei que talvez nom conheças as lagartixas: som de umha espécie de crocodilos que ficam sempre pequenos.

(Carta 52)

[20 de maio de 1929] Queridíssima Giulia,
os meus cumprimentos para ti e também para delio e Giuliano. e dado que é mui provável que se produzam demoras na recepçom das minhas cartas, será necessário que che envie hoje mesmo os parabéns para o quinto aniversário de delio. seja como for, encomendo-che os parabéns: que sejam muitos, muitos. Lembrarás-te? Cinco anos já. e agora delio é já maior. Quem sabe que impressom che produz vê-lo crescer. Lembroo em abril de 25, quando tinha a tosse convulsa e me parecia tam infeliz! Quando o vim de novo no 26 pareceu-me outro, absolutamente diferente. Neste momento, atendendo para os limites legais da minha condena, deveria vê-lo novamente quando tenha vinte e três anos e, com a pressa dos jovens, quando já tenha mulher e filhos. será bem mais diferente do que em abril de 25. estou a brincar, mas penso que terá filhos,
70 transcriçom inexata do russo tvoi papa, «teu papai»
porque, se a cidade quer defender-se da invasom do campo e nom perder a sua hegemonia histórica, as novas geraçons deverám mudar os seus pontos de vista sobre a prolificidade, nomeadamente entre vós. se a cidade cresce pola imigraçom e nom pola sua própria força genética, poderá cumprir a sua funçom dirigente ou será submergida, com todas as suas experiências acumuladas, polas labregas, tam parideiras? Penso que a geraçom de delio deverá colocar-se este problema e que sobre a sua base deverá nascer umha nova ética sexual, mais elevada do que a atual.
abraço-te com tenrura antonio

(Carta 53)

[1 de julho de 1929] Querida Giulia,
podes dizer-lhe para delio que a notícia que mandache me interessou muitíssimo, por importante e por ser suficientemente séria. Porém, aguardo que alguém, com um pouco de cola, tenha consertado o dano feito por Giuliano e que o chapeu nom se tenha convertido em papel de estraça. Lembras como delio pensava em roma que eu podia arranjar todas as cousas rotas? Com certeza, já o esqueceu. e ele, tem a tendência a consertar? esta, para mim, seria um indício de construtividade, de caráter positivo, mais do que o jogo do mecano. enganas-te se acreditas que eu tinha quando criança tendências... literárias e filosóficas, como escreveche. era, polo contrário, um intrépido aventureiro e nom saia da casa sem ter no bolso graos de trigo e mistos envoltos em pedacinhos de hule, nom fosse acabar num ilha deserta abandonado aos meus únicos meios. era pois um audaz construtor de barcas e de carrinhos, e conhecia da ginjeira toda a nomenclatura marinheira: o meu maior sucesso foi quando um latoeiro da aldeia me pediu o modelo em papel de umha maravilhosa goleta de dous mastros, para a reproduzir em lata. estava mesmo obcecado por estas cousas, porque aos sete anos lera Robinson e a Ilha Misteriosa. ora bem, acho que umha vida infantil como aquela de há trinta anos é hoje impossível: hoje, as crianças, ao nascerem, tenhem já 80 anos, como o Lao-tsé chinês71. o rádio e o aeroplano destruírom para sempre o robinsonismo, que foi a maneira de fantasiar para muitas geraçons. a invençom mesma do Meccano indica como o meninho se intelectualiza rapidamente; o seu herói nom pode ser robinson, mas o polícia ou o ladrom científico, polo menos em ocidente. Portanto, pode-se-lhe dar a volta ao teu parecer e só entom será exato. Nom achas?
escreveche o peso de Giuliano, mas nom a estatura. ta-
tiana dixo-me que delio, quando pesava 18 quilos, media um metro e oito centímetros de altura. estas notícias interessamme muito, porque me dam impressons concretas: e porém envias demasiado poucas. aguardo que tatiana, sendo ainda mais boa do que tu, me envie, quando estiver convosco, muitas, muitas notícias de todo o tipo, sobre as crianças e também sobre ti. sabes que che vai levar umha máquina fotográfica? Lembrei-me que che prometera umha no 26 e que figera a encomenda para tatiana. Para tua mae, visto que já há castanhas (no 25, tua mae desgostou-se comigo porque nom lhe leva-
71 Lao-tsé (604?-531 a.C.), filósofo chinês, considerado o fundador do taoísmo. Conta a lenda que estivo setenta anos no ventre materno e que nasceu com os cabelos brancos
ra castanhas) direi-lhe a tatiana que faga umha escolma de cigarros de diferentes países, para levar-lhos no meu nome; gostará deles? tenho a certeza de que sim. Querida, abraço-te com as crianças.
antonio

(Carta 54)

30 de julho de 1929 Querida Iulca,
recebim a tua carta do 7. as fotografias nom me chegárom ainda; aguardo que esteja também a tua. É claro que quero verte, polo menos umha vez por ano, para ter umha impressom um pouco mais viva: de outra maneira, o que poderia pensar? Que mudache muito fisicamente, que estás mais magra, que tés muitos cabelos brancos, etc. etc. e depois é preciso que che dê os parabéns polo teu aniversário com antecipaçom: se calhar, a próxima carta ainda chega a tempo, mas nom che estou certo. se me chegar a tua fotografia, significa que hei de repetir os parabéns. entende-me, quereria ver-te em grupo junto às crianças, como na fotografia do ano passado, porque no grupo há algo movimentado, dramático, captam-se as relaçons, que podem ser prolongadas, imaginadas noutras cenas, em episódios da vida concreta, quando o objetivo do fotógrafo nom estiver aberto.
de resto, creio conhecer-te o suficiente como para ima-
ginar outras cenas, mas nom podo imaginar o suficiente as açons e reaçons das crianças nas relaçons contigo, e compreendo as açons e reaçons vivas vez por vez, nom já os sentimentos e as disposiçons gerais: as fotografias dim-me pouco e as minhas lembranças de criança nom me ajudam, porque as penso com demasiados detalhes e imagino que agora é tudo diferente, num mundo sentimental novo e com duas geraçons de diferença (poderia-se dizer mesmo que mais, porque entre umha criança educada numha aldeia sarda e umha criança sarda educada numha grande cidade moderna, já por este único facto, existe umha diferença de duas geraçons, polo menos). sabes?, em ocasions gostaria de escrever sobre ti, sobre a tua força, que é superior cem vezes ao que tu pensas, mas duvidei sempre, porque me parece que som... um negreiro que apalpa umha besta de trabalho. escrevim-no assim, tal qual o tenho pensado tantas vezes. de resto, se já o pensei, tanto fai escrevê-lo também. Nom deveria pensálo, mas será porque ainda sobrevivem em mim, no estado de sentimentos reprimidos, muitas concepçons do passado, superadas criticamente, mas nom apagadas ainda por completo. É claro que muitas vezes me obceca o pensamento de que a ti che correspondêrom os pesos mais duros da nossa relaçom —os mais duros objetivamente, se quigeres, embora só seja um matiz—e por isso nom podo deixar de pensar na tua força, que admirei tantas vezes, sem dizê-lo, tenho tendência antes, polo contrário, a pensar nas tuas fraquezas, nos teus possíveis cansaços, com umha grande efusom de tenrura, que poderia ser exprimida com umha carícia, mas dificilmente com palavras. e depois, som ainda bastante invejoso, porque nem podo desfrutar a primeira frescura das impressons sobre a vida das crianças, ajudando-te a guiá-los e educá-los. Lembro muitas pequenas cousas da vida de delio em roma e também os princípios de que tu e Genia partíades ao tratar com ele e penso novamente nisso, e procuro desenvolvê-lo e adaptá-lo a novas situaçons. sempre chego à conclusom de que Genebra e o ambiente saturado de rousseau e do doutor Fulpius72, que devia ser tipicamente suíço, genebrino e rousseauniano, deixou umha grande impressom em vós. Contudo, afastei-me demasiado (se calhar, devia escrever noutra ocasiom sobre este tema, se estiveres interessada, para atacar-te com rousseau, que naquela ocasiom (lembras ?) che alporiçara tanto. Querida, abraço-te. antonio

(Carta 55)

26 de agosto de 1929 Querida tatiana,
recebim a fotografia das crianças e estou mui contente, como podes imaginar. também estou mui satisfeito porque me convencim com os meus olhos de que tenhem um corpo e umhas pernas: desde os três anos só lhes via as cabeças e começara a nascer em mim a dúvida de que se tivessem convertido em querubins, só que sem as pequenas asas atrás das orelhas. em resumo, tivem umha impressom de vida mais intensa. Naturalmente, nom partilho por completo as tuas entusiastas apreciaçons. acho, de maneira mais realista, que a sua compostura está determinada pola sua posiçom diante da maquina fotográfica; delio está na posiçom de quem tem que cumprir umha corveia, aborrecida mas necessária, e que toma a sério;
72     Charles Fulpius ensinava numha escola de Genebra. G. tinha no cárcere um livro dele, um Cours de morale sociale basé sur l’évolution, I année, préface de auguste dide, auteur de La fin des religions. Manuel destiné à l’Éducation des enfants de 9 à 15 ans par Ch. Fulpius, Proprieté de la societé des Libres-Penseurs de Genève [1905].
Giuliano esbugalha os olhos diante desse couso misterioso, sem estar convencido de que nom haja umha surpresa algo incerta: poderia saltar fora um gato raivoso ou talvez um lindo pavom. Porque se nom lhe teriam dito que olhasse nessa direçom e que nom se movesse? tés razom quando dis que se parece de maneira extraordinária com tua mae e nom só nos olhos, mas em toda a parte superior do rosto e da cabeça. sabes? escrevo-che de má vontade, porque nom tenho a certeza de que a carta che chegue antes da tua partida. e à parte, ando mais umha vez algo escangalhado. Choveu muito e a temperatura refrescou: isso fai-me estar mal. Venhem-me dores nos rins e neuralgias e o estômago rejeita a comida. Mas é umha cousa normal em mim e por isso nom me preocupa demasiado. de resto, como um quilo de uva por dia, quando a vendem; por isso nom podo morrer de fame: a uva como-a com prazer e é de umha qualidade ótima.
Já lera um artigo do editor Formiggini relativo às más traduçons e às propostas feitas para obviar esta epidemia, chegando mesmo um editor a propor que se figesse responsáveis penais aos editores polos despropósitos publicados; Formiggini respondia ameaçando com fechar o negócio, porque até o mais escrupuloso editor nom pode evitar publicar disparates, e com muito humor eu já via um agente da polícia apresentando-se e dizendo: «si levasse e venisse con mia in Questura. dovesse rispondere di oltraggio alla lingua italiana!»73
(os sicilianos falam um pouco assim e muitos guardas som
73     Gramsci reproduz nesta frase o italiano regional da sicília. É umha piada difícil de traduzir e nem sequer fai muito sentido traduzi-la, mas para reproduzir o seu caráter cómico poderíamos dizer que umha versom aproximada é: «erguesse e vinhesse com eu à esquadra. tivesse que responder pela ultragem à lingua italiana». em definitivo, na sicília, o imperfeito do subjuntivo utiliza-se com valor imperativo.
sicilianos). a questom é complexa e nom será resolvida. os tradutores som mal pagos e traduzem pior. No 1921 dirigimme à delegaçom italiana da sociedade de autores franceses com a finalidade de obter a licença para publicar um romance por fascículos74. Por 1.000 liras obtivem a licença e a traduçom foi feita por um fulano que era advogado. o negócio apresentava-se mui bem e o advogado-tradutor parecia ser um profissional. enviei entom para a gráfica, para que imprimissem o material de 10 fascículos, de maneira que sempre estivessem prontos. No entanto, na noite anterior ao início da publicaçom quigem revisá-la, por um escrúpulo, e pedim que me levassem as provas de imprensa. depois de poucas linhas dei um chimpo: encontrei que sobre umha montanha havia um enorme barco. Nom se tratava do monte ararat e portanto da arca de Noé, mas sim de umha montanha suíça e de um grande hotel. a traduçom era toda assim: «Morceau de roi» era traduzido como «pedacinho de rei», «goujat!», «peixinho!» e assim para a frente, de maneira ainda mais humorística. Perante o meu protesto, o obradoiro abonou 300 liras para refazer a traduçom e indenizar pola composiçom perdida, mas o bom foi que no momento em que o advogado-tradutor tivo na mao as 700 liras restantes, que devia entregar ao patrom, escapou para Viena com umha moça. até agora, polo menos, as traduçons dos clássicos foram feitas com cuidado e escrúpulo, se nom sempre com elegáncia. agora, mesmo neste campo acontecem cousas extraordinárias. Para umha coleçom quase que de caráter estatal (o estado deu um subsídio de 100.000 liras) de clássicos gregos e latinos75, a traduçom da Germania de tácito
74     No jornal L’Ordine Nuovo.
75     G. alude à Collezzione Romana dirigida por ettore romagnoli, da real academia Italiana, publicada polo Istituto editoriale Italiano. a traduçom de F.
foi confiada a... Marinetti, que por outro lado é licenciado em Letras pola sorbona. Lim numha revista umha listagem das barbaridades escritas por Marinetti, cuja traduçom foi mui louvada pelos... jornalistas. «exigere plagas» (examinar as feridas) é traduzido: «exigir as pragas» e penso que avonda: um estudante de secundária repararia em que é umha asneira sem sentido.
Querida tatiana, quem sabe se poderás ter a carta antes da tua partida. Gostaria de que me buscasses em roma entre os meus livros dous ou três volumes: a coletánea de conferências sobre a Europa política no século XIX, impressa pola Câmara de Comércio de Brescia e o volume de Michels sobre o Partido político e as tendências oligárquicas da democracia moderna, que possuo na traduçom francesa anterior à guerra e na nova ediçom italiana de 1924, mui aumentada e enriquecida.
Pedira-che há bem tempo que me buscasses um pequeno volume de Vincenzo Morello (rastignac) sobre o canto X do Inferno de dante, impresso polo editor Mondadori há alguns anos (no 27 ou no 28): conseguirás lembrar-te disso agora? sobre esse canto de dante figem umha pequena descoberta que acho interessante e que viria a corrigir em parte umha tese demasiado absoluta de Benedetto Croce sobre a Divina Comédia. Nom che exponho o tema porque ocuparia demasiado espaço. acho que a conferência de Morello é a última sobre o Canto X, cronologicamente, e por isso pode ser-me útil, para ver se alguém mais fijo já as minhas observaçons; estranharia-me, porque no canto X todos estám fascinados pola figura de Farinata e detenhem-se apenas para a exami-
t. Marinetti aparecera em 1928.
nar e sublimar, e Morello, que nom é um estudioso, mas um retórico, terá-se mantido sem dúvida fiel à tradiçom, embora de todas as maneiras gostaria de a ler. Hei de escrever mais tarde a minha «nota dantesca» e se calhar hei-cha de enviar como um presente, escrita com umha boa caligrafia. digo por brincar, porque para escrever umha nota deste tipo, deveria revisar umha certa quantidade de material (por exemplo, a reproduçom das pinturas de Pompeia) que se encontra apenas em grandes bibliotecas. Por outras palavras, deveria reunir os elementos históricos que provam como, tradicionalmente, da arte clássica até o medievo, os pintores rejeitárom reproduzir a dor nas suas formas mais elementares e profundas (dor materna): nas pinturas de Pompeia Medeia, que degola os filhos tidos com Jasom, é representada com a face coberta por um veu, porque o pintor considera sobre-humano e desumano dar umha expressom à sua face.
todavia, tomarei apontamentos e talvez faga umha versom preparatória para umha futura nota. Vês quantas trapalhadas che escrevim? tudo porque nom tinha a certeza de que a carta che chegasse a tempo e nom permanecesse em troca descansando durante algumhas semanas sobre a tua mesinha, à espera da tua volta. Igualmente, teria escrito também, como é habitual, a parte para Giulia; enfim, a próxima vez escreverei as quatro páginas inteiras para ela.
ainda: tenta conseguir o Catálogo geral do material esco-
lástico e subsídios didáticos da editora G. B. Paravia, que tem também filiais em Milám e em roma. e ainda: lembrarás esta vez favas americanas? acho que para as encontrar tes que ir a umha farmácia grande, que tenha na medida do possível também um laboratório. (tudo na hipótese de que a carta chegue!).
Queridíssima, abraço-te afetuosamente.antonio

(Carta 56)

16 de dezembro de 1929 Queridíssima tatiana,
este mês escreveche pouquinho pouquinho: um postal de 28 de novembro e umha cartinha do 29 dentro da carta de Giulia. Porém, hás de saber que nem eu tenho neste momento muita vontade de escrever. Parece-me que todos os vínculos com o mundo externo vam rompendo um por um. Quando estava no cárcere de Milám duas cartas por semana nunca me chegavam: tinha a teima de parolar por escrito. Lembras como escrevia longas, longas cartas? Poderia-se dizer que na altura todos os meus pensamentos, durante a semana, se concentravam na segunda-feira: «sobre que podo escrever? de que maneira podo escrever sobre isto ou sobre isto outro, para que nom retenham a carta?» agora nom sei mais sobre que escrever, como começar. estou-me encasulando por completo. a minha atençom dirige-se ao que leio e traduzo. Quando reflexiono sobre mim mesmo tenho a impressom de ter caído novamente no estado de obsessom em que me encontrava nos anos da universidade, quando me concentrava numha questom e ela me absorvia de tal maneira que já nom reparava em nada e algumhas vezes corria o perigo de acabar sob o elétrico.
dis que escreva para Giulia tantas pequenas cousas, deta-
lhes da minha vida. Mas o facto é que na minha vida nom há nem pequenas cousas, nem detalhes, nom há claro-escuros. e é bom que seja assim. Quando a vida no cárcere é movida, é um sinal mui feio. o único campo que nom é como aquela pintura que representava um negro na escuridade é o cerebral. Mas há limites, substanciais e formais. Formais, porque estou no cárcere e tenho limites regulamentares. substanciais, porque aquilo que me interessa tem amiúde um valor muito relativo. Neste momento, interessa-me a questom de se a língua dos Niam Niam, que se chamam a si mesmos o povo dos sandeh (enquanto o nome Niam Niam é atribuído por eles aos vizinhos dinka) pertence ou nom ao ramo sudanês ocidental, mesmo se o território onde se fala está situado no sudám oriental, entre 22° e 28° graus de longitude Leste. em definitivo, se a classificaçom das línguas deveria fazer-se melhor conforme a distribuiçom geográfica ou conforme o processo histórico de filiaçom, etc., etc.
esta é também a razom pola qual nem sequer esta vez
escrevo a Giulia. Nom sei mesmo o que escrever. e nom quero escrever umha carta de cortesia, como se di. devo refletir ainda sobre alguns problemas e como nom os resolvim, nom consigo escrever. (Nem sei se os conseguirei resolver). o problema fundamental é este: devo pensar em Giulia e tratar com ela conforme os esquemas da psicologia banal, atribuídos ordinariamente ao mundo feminino? repugnaria-me em sumo grau. Porém... como achas que que deve interpretar-se a sua carta, onde me di que após a minha carta de 30 de julho se sentiu mais próxima de mim e que de outra parte ficasse quatro messes sem escrever-me, precisamente depois dessa carta? até agora nom conseguim encontrar a síntese superior desta contradiçom e nom sei se a conseguirei encontrar. É por isso que me abstenho. escreves que nom te decides a mandar a Giulia a minha última carta, porque poderia fazer-lhe mal. É certo que lhe fará mal, mas nom considero que isso seja umha boa razom. aliás, tenho a certeza de que ela mesma prefere conhecer exatamente o meu estado de ánimo. achas que me alegra escrever estas cousas? Porém, cheguei ao ponto em que me encontrava, como já dixem, quando estava na universidade: naquela época nunca escrevia cartas. Quando eu me encontro diante de umha questom que nom podo resolver e estou convencido de que realmente nom podo resolvêla, abandono-a e nom penso mais nela. Fago-o por respeito a mim próprio e também por respeito aos demais: estimo demasiado Giulia como para considerá-la umha burguesinha sentimental, que sei eu, como a protagonista de eugénio onéguin76, por exemplo. Nom achas, querida tatiana? enfim, envia esta carta para Giulia: nom deixa de estar dirigida a ela, mesmo se de maneira indirecta. Queridíssima tatiana, vês quantos desgostos che estou a dar nestes últimos tempos? Lamento-o muitíssimo, podes-me crer. abraço-te com tenrura. antonio

(Carta 57)

19 de dezembro de 1929 Queridíssimo Carlo, recebim a carta de 4 de dezembro de mamae e a tua do 13. agradeço-che o zelo com que levaste a cabo as minhas encomendas. entre os objetos de vestiário que tinha em roma nom che entregárom também um casaco? acho que estava ainda aceitável, mesmo se já nom era mui novo. estou a falar de um casaco de inverno, porque o outro, tipo gabardina, já estava feito um farrapo. Mas se calhar recebeche-lo e esqueceche escrever-me a respeito disso. dos dous pares de sapatos nom lembro mais nada: porém, penso que devem estar mui estragados e já inservíveis.
76      tatiana Larina, protagonista do romance em verso de Pushkin.
Naturalmente, pido-che que nom lhe metas mais na cabeça a mamae que é capaz de fazer umha viagem a turi: só pensar na hipótese pom-me medo. acho que já abusa demasiado da sua fibra excecional trabalhando com a sua idade e com tanta teimosia: já deveria ter direito à reforma, de existir a reforma para as maes de família. acho que o primeiro contato com o cárcere causou em ti umha impressom mesmo péssima: imagina que impressom lhe poderia causar a ela. Nom se trata tanto de que a viagem seja longa, com todos os seus incómodos, para umha mulher anciá que nunca fijo mais de 40 km. em trem, nem atravessou o mar (se calhar, a viagem em si poderia diverti-la): trata-se de umha viagem deste tipo, feita para visitar um filho no cárcere. Parece-me que cumpre evitá-la, custe o que custar.
e afinal que lhe contache? espero que nom exagerasses em nengum sentido: polo demais, tu mesmo viste que nom estou nem abatido, nem desanimado, nem deprimido. o meu estado de ánimo é tal que, mesmo se me condenassem a morte, continuaria a estar tranquilo e mesmo na tarde anterior à execuçom talvez estudaria umha liçom de chinês. a tua carta, e aquilo que escreves sobre Nannaro, interessou-me muito, mas também me surpreende. Vós os dous tendes feito a guerra: nomeadamente Nannaro, que fijo a guerra em condiçons extraordinárias, como mineiro, baixo terra, sentindo através do diafragma que separava a sua galeria da galeria austríaca como trabalhava o inimigo apurando o estourido da mina para mandá-lo polo ar. opino que em condiçons semelhantes, prolongadas durante anos, com essas experiências psicológicas, o homem deveria ter alcançado o grau máximo de serenidade estoica e ter adquirido a convicçom profunda de que tem em si próprio a fonte das próprias forças morais, que tudo depende de si, da sua energia, da sua vontade, da férrea coerência dos fins que se propom e dos meios que desprega para os levar à prática, para nom desesperar nunca mais e nom cair mais nesses estados de ánimo vulgares e banais que se chamam pessimismo e otimismo. o meu estado de ánimo sintetiza estes dous sentimentos e supera-os: som pessimista com a inteligência, mas otimista pola vontade77. Penso, em qualquer circunstáncia, na pior das hipóteses, para pôr em movimento todas as reservas de vontade e ser capaz de derrubar os obstáculos. Nunca me figem ilusons nem desilusons. em particular, armei-me sempre com umha paciência ilimitada, nom passiva, inerte, mas animada de perseverança.
Com certeza, hoje há umha crise moral mui grave, mas no passado houvo-as bem mais graves e há umha diferença entre hoje e o passado. [...]78. Por isso, som também um pouco indulgente e pido-che que sejas indulgente com Nannaro que, vim-no eu mesmo, também sabe ser forte. só quando está isolado, perde a cabeça e se encoleriza. talvez lhe escreva a próxima vez.
Querido Carlo, dei-che um sermom em toda a regra. esquecia entretanto recomendar-che que cumprimentes muito e dês os parabéns para teresina e também para Paolo, naturalmente, pola sua nova filha. além disso, devo dar os parabéns gerais polo Natal e por todas as outras festas que virám. eu festejarei o Natal o melhor possível, um pouco como o famoso senhor Chiu, de quem falava mamae quando éramos pequenos.
77      esta expressom, frequentemente citada, é do escritor romain rolland; foi assumida por G. quase como lema.
78      seis linhas riscadas pola censura. G. refere-se à crise económica mundial que estourou em outubro de 1929, com umha enorme queda de títulos na Bolsa de Nova Iorque, cujas consequências atingírom bem depressa a Itália, com um aumento das crebas finaceiras, do desemprego, etc.
abraça a todos afetuosamente e nomeadamente a mamae. teu antonio

(Carta 58)

30 de dezembro de 1929 Querida Giulia,
nom me lembrei de perguntar a tatiana, com quem conversei há alguns dias, se che enviou as duas últimas cartas minhas para ela. acho que sim, porque lhe pedira que o figesse; dado que eu queria que estivesses informada de um certo estado de ánimo meu, que se atenuou, mas que ainda nom desapareceu por completo, mesmo a custo de procurar-che algum desgosto.
Lim com muito interesse a carta em que me dás umha impressom do grau de desenvolvimento de delio. as observaçons que faga tenhem que ser julgadas, naturalmente, tendo presente alguns critérios limitativos: 1) que ignoro quase todo sobre o desenvolvimento das crianças, precisamente no período em que o desenvolvimento apresenta o quadro mais caraterístico da sua formaçom intelectual e moral, após os dous anos, quando dominam com umha certa precisom a linguagem e começam a formar nexos lógicos, além das imagens e as representaçons; 2) que o melhor juízo do itinerário educativo das crianças é, e só pode ser, de quem as conhece de perto e pode acompanhá-las em todo o processo de desenvolvimento, desde que nom se deixe cegar polos sentimentos, perdendo com isso qualquer critério, abandonando-se à pura contemplaçom estética do meninho, que é degradado de maneira implícita à funçom de umha obra de arte.
Portanto, tendo em conta estes dous critérios, que som aliás um único critério com duas coordenadas, penso que o estado de desenvolvimento intelectual de delio, como se depreende daquilo que me escreves, está mui atrasado para a sua idade, é demasiado infantil. Quando tinha dous anos, em roma, tocava o pianoforte, isto é, já compreendera a diferente gradaçom local das tonalidades sobre o teclado, por meio dos ruídos dos animais: o pintinho à direita e o urso à esquerda, com os intermédios de outros animais vários. Para umha idade de dous anos ainda nom cumpridos, este procedimento era compatível e normal; mas com cinco anos e algum mês, o mesmo procedimento aplicado à orientaçom, embora seja num espaço muitíssimo maior (nom tanto quanto pode parecer, porque as quatro paredes do quarto limitam e concretam este espaço), está mui atrasado e infantil.
Lembro com muita precisom que com menos de cinco anos, e sem ter saído nunca da aldeia, quer dizer, tendo das dimensons um conceito mui limitado, sabia encontrar com a vara a vila onde vivia, tinha umha impressom do que era umha ilha e encontrava as cidades principais da Itália num grande mapa mural; por outras palavras, tinha um conceito da perspetiva, de um espaço complexo e nom apenas de linhas abstratas de direçom, de um sistema de medidas relacionadas, e da orientaçom conforme a posiçom dos pontos nestas conexons, acima-abaixo, direita-esquerda, como valores espaciais absolutos, fora da posiçom excecional dos meus braços. Nom acho que tenha sido excecionalmente precoz, antes polo contrário. em geral, tenho observado como os «grandes» esquecem facilmente as suas impressons infantis, que a umha certa idade esvaecem num conjunto de sentimentos ou de lamentos ou de comicidade ou outra deformaçom. Igualmente, esquece-se que a criança se desenvolve intelectualmente de umha maneira mui rápida, absorvendo desde os primeiros dias do nascimento umha quantidade extraordinária de imagens que som lembradas ainda depois dos primeiros anos e guiam a criança nesse primeiro período de juízos mais reflexivos, possíveis depois da aprendizagem da linguagem. Naturalmente, nom podo emitir juízos e impressons gerais, devido à ausência de dados específicos e numerosos; ignoro quase tudo, por nom dizer tudo, dado que as impressons que me comunicache nom tenhem qualquer vínculo entre elas, nom mostram um desenvolvimento. Mas a partir do conjunto destes dados tivem a impressom de que a tua conceiçom e a do resto da tua família é demasiado metafísica, quer dizer, pressupom que na criança está em potência o homem completo e que é preciso ajudá-lo a desenvolver aquilo que já contém em latência, sem coerçons, deixando fazer às forças espontáneas da natureza, ou que sei eu. No entanto, penso que o homem é toda umha formaçom histórica, obtida com a coerçom (entendida nom só num sentido brutal e de violência externa) e penso apenas isto: que de outra maneira se cairia numha forma de transcendência ou de imanência. aquilo que se acha força latente nom é, quando menos, senom o conjunto informe e indiferenciado de imagens e de sensaçons dos primeiros dias, dos primeiros messes, dos primeiros anos de vida, imagens e sensaçons que nem sempre som as melhores do que se quer imaginar. esta maneira de conceber a educaçom, como o desnovelamento de um fio pré-existente tivo a sua importáncia quando se contrapunha à escola jesuítica, isto é, quando era a negaçom de umha filosofia ainda pior, mas hoje está igualmente superada. renunciar a formar a criança significa apenas permitir que a sua personalidade se desenvolva, acolhendo de maneira caótica do ambiente geral todos os fundamentos de vida. É estranho e interessante que a psicanálise de Freud esteja a criar, nomeadamente na alemanha (a julgar polas revistas que leio) tendências semelhantes às existentes na França no século dezoito; e que vaia formando um novo tipo de «bom selvagem» corrompido pola sociedade, isto é, pola história. a partir disso nasce umha nova forma de desordem intelectual muito interessante.
em todas estas cousas me fijo pensar a tua carta. Pode
ser, até é mui provável, que algumha apreciaçom minha seja exagerada e até injusta. reconstituir a partir de um ossinho um megatério ou um mastodonte era próprio de Cuvier, mas pode acontecer que com um pedaço da cola de um rato se reconstrua polo contrário umha serpe de mar.
abraço-te afetuosamente. antonio

(Carta 59)

13 de janeiro de 1930 Queridíssima tania,
recebim com algum dia de demora a tua carta do 5, porque foi taxada, certamente por erro. enviaste-la desde turi, sem dúvida e o franqueio de 25 céntimos era pois correto. Haverá que fazer um recurso. seja como for, advirto-che que se neste caso o funcionário dos correios nom tinha razom, noutros casos tinha-a: enches demasiado os postais polo lado do endereço, apesar de que nunca se deve escrever por cima da legenda «carta postal» e talvez nem sequer por cima do emblema do estado. o postal vem taxado com 40 céntimos e em ocasions provoca que se demore três dias por causa das diligências precisas.
agradeço-che as notícias que me enviache sobre a família.
Quanto ao meu estado de ánimo, penso que nom o compreendeche mui bem. Porém, devo dizer que é difícil para qualquer pessoa compreender estas cousas à perfeiçom, porque concorrem demasiados elementos para formá-las, e muitos deles som quase impossíveis de imaginar; tanto menos é possível, certamente, imaginar o conjunto em que se combinam. Nestes dias, justamente, lim um livro, Dal 1848 al 1861, em que se recolhem cartas, escritos, documentos relativos a silvio spaventa79, um patriota abruzzês, deputado no Parlamento napolitano do 48, detido após o falhanço do alçamento nacional, condenado a prisom perpétua e liberado em 1859 polas pressons da França e da Inglaterra; a seguir, ministro do reino e umha das personalidades mais salientes do partido liberal de direita até o 1876. Pareceu-me que em muitas cartas, com a linguagem do tempo, quer dizer, um tanto romántica e sentimental, exprime à perfeiçom uns estados de ánimo semelhantes àqueles polos que passo amiúde. Por exemplo, numha carta ao pai de 17 de julho de 1853 escreve: «de vós, nom tenho notícias desde há dous messes; desde há quatro, ou talvez mais, das irmás; e, desde há algum tempo, de Bertrando (seu irmao). achades vós que para um homem como eu, que me prezo de ter um coraçom afetuoso e em plena juventude, esta privaçom nom há de tornar-se excessivamente dolorosíssima? Nom penso que seja agora menos amado do que o fum sempre pola minha família; mas a desventura costuma ter dous efeitos, que amiúde deixam apagar qualquer afeto polo desventurados e, nom menos amiúde, apaga nos desventurados qualquer afeto por todos. Nom temo o primeiro destes dous efeitos em vós mas o segundo em mim; depois do qual, sequestrado como estou aqui de qualquer trato humano e amoroso, o grande té-
79 silvio spaventa, Dal 1848 al 1861. Lettere, scritti, documenti, publicados por Benedetto Croce, Laterza, Bari, 1923.
dio, o longo cativeiro, a suspeita de ser esquecido por todos me amarga e esteriliza lentamente o coraçom». Como dizia, à parte a linguagem correspondente com o temperamento sentimental da época, o estado de ánimo destaca notavelmente. e, aquilo que me conforta: o spaventa nom foi, com certeza, umha personalidade débil, um choramingas como outros. ele foi dos poucos (uns sessenta) que de entre os mais de seiscentos condenados no 48 nunca quijo pedir a amnistia ao rei de Nápoles; nem se deu à devoçom, polo contrário: como escreve amiúde, foi-se persuadindo cada vez mais de que a filosofia de Hegel era o único sistema e a única conceiçom do mundo racionais e dignas do pensamento naquela altura.
sabes, pois, qual será o efeito prático desta concordáncia
que encontrei entre os meus estados de ánimo e os de um preso político do 48? Que desde de agora ham de parecer-me um pouco cómicos, ridiculamente anacrónicos. Passárom três geraçons e andou-se caminho, em todos os campos. aquilo que era possível para os avós, nom é possível para os netos (nom me refiro aos nossos avós, porque meu avô, nom cho dixem nunca, chegou a ser coronel da gendarmeria borbónica e provavelmente estivo entre os que detivérom o spaventa antiborbónico e fautor de Carlo alberto); objetivamente entende-se, que de maneira subjetiva, isto é, no nível individual, as cousas podem mudar.
Querida tania, ontem foi o teu santo; achava que poderia dar-che os parabéns em pessoa, e porém apenas podo darchos por escrito um dia mais tarde e tu ainda os lerás dentro de alguns dias. aguardo que te reponhas e que podas sair da casa, se o tempo continua como hoje. sabes como lamento que as tuas viagens a turi, para algo mais de meia hora de conversa, te fatiguem tanto e te fagam até cair doente. estou convencido de que te descuidas demasiado: lembro que Genia era mais ou menos como tu quando a conhecim no sanatório e depois, quando entrámos numha certa confiança, devia ameaçá-la com pauladas para fazer que comesse: escondera ao médico centos de ovos que devia ter comido e que no entanto escondera, e assim para a frente. tua mae riu muito quando soubo a história das minhas intimidaçons, mas deu-me a razom. também tu necessitarias que che colhessem das orelhas, embora fosse com um certo benevolência: acho que perdeche o gosto de viver para ti e que vives apenas para os demais. Nom será um erro? e vivendo também para ti, fortalecendo a tua saúde, nom viverás também melhor para os demais, se assim gostas e se isso é o teu único gosto? sinto muita tenrura por ti e quereria ver-te sempre forte e sá; também isto me amarga, saber-te aqui em turi, assim, doentia, débil, somente para me dares um pouco de conforto e romper o meu isolamento. Já chega. esta carta devia ser para minha mae. Pidoche que lhe escrevas, para que nom se alarme por nom receber notícias minhas. Querida, abraço-te.
antonio

(Carta 60)

7 de abril de 1930
Queridíssima tania,
recebim o que me enviache. soubem que che devolvêrom a caneta estilográfica; parece-me que che escrevera que as canetas estilográficas nom podem ser enviadas em nengum caso, mas vê-se que depois o esquecim. de resto, podias te-lo pensado quando mandei a minha, junto com relógio e a medalha, todas eles considerados objetos de valor e que nom se podem conservar, nem sequer no depósito. acho que até o famoso saco nom me poderá servir para nada; a dizer verdade, nom consigo nem imaginar para que pode servir em geral; talvez para ir à caça dos ouriços-cachos? Quem sabe o que pensavas quando mandache que o figessem! Pensarias, é claro, que fazias algo útil e cómodo; por isso che agradeço também este saco; seja como for, há de ser-me mui útil.
estaria-che agradecido se me enviasses umha lista completa dos livros que che enviei para fora: reconstruindo-a polas minhas contas esquecim algum, porque as contas nom me saem. Quereria tê-la para que depois nom me aconteça ter que procurar inutilmente entre o resto.
Il Diavolo a Pontelungo é bastante «histórico», no sentido em que o experimento da Baronata80 e o episódio de Bolonha de 1874 acontecêrom realmente. Como em todos os romances históricos deste mundo, é histórico o marco geral, mas nom as personagens e os acontecimentos concretos, um por um. aquilo que fai com que este romance seja interessante, para além das notáveis qualidades artísticas, é a quase ausência da acridez sectária do autor. Na literatura italiana, para além do romance histórico de Manzoni, existe nesta classe de produçom umha tradiçom essencialmente sectária, que se remonta ao período entre o 48 e o 60; de umha parte, está o fundador da família Guerrazzi81, de outra o padre jesuíta Bresciani. Para
80     a «Baronata», fazenda nas proximidades de Lucarno, comprada por Carlo Cafiero e posta à disposiçom de Bakunin. devia servir como refúgio para os internacionalistas e como depósito de armas. Bakunin dirigiu tam mal a «Baronata», que em 1874 fracassou. o «episódio de Bolónia» é a tentativa insurreccional de 7-9 de agosto de 1874, organizado por Bakunin, terminou com a detençom de numerosos internacionalistas.
81     Francesco Guerrazzi (1804-1873), escritor e patriota. tomou parte nos
Bresciani, todos os patriotas eram canalhas, velhacos, assassinos, etc., enquanto os defensores do trono e do altar, como se dizia entom, eram todos anjinhos baixados à terra para mostrarem milagres. Para Guerrazzi, entende-se, as partes invertiam-se; os papistas eram todos sacos do mais negro carvom, enquanto os defensores da unidade e independência nacionais eram todos os mais puros heróis de lenda. a tradiçom mantivo-se até há pouquíssimo tempo, para a literatura de folhetim publicada em fascículos, nas duas fileiras tradicionais; na literatura chamada artística e culta, a parte jesuítica tivo o monopólio. Bacchelli em Il Diavolo a Pontelungo demonstrase independente, ou quase; o seu humor chega raramente a ser umha opiniom preconcebida, está nas cousas mesmas, mais que numha opiniom extra-artística preconcebida do escritor.
sobre a filha de Costa e da Kulisciof tem um romance especial, a Gironda, de Virgilio Brocchi, que nom sei se leche. Vale bem pouco, é adocicado, todo leite e mel, na linha dos romances de Georges ohnet. Narra precisamente as vicissitudes polas quais andreina Costa casa com o filho do industrial católico Gavazzi e a sucessom de contatos entre as duas atmosferas, católica e materialista, e como se moderam os contrastes: omnia vicit amor. Virgilio Brocchi é o nosso ohnet nacional. o livro de d’Herbigny sobre soloviov está mui antiqua-
do, embora só agora fosse traduzido para o italiano. Porém, d’Herbigny é um monsenhor jesuíta de grandes capacidades; neste momento está à cabeça da seçons oriental da Cúria pontifícia, que trabalha pola volta à unidade entre católicos e ortodoxos.
acontecimentos de 1848-49; os seus romances desempenhárom um grande papel na preparaçom dos ánimos para a conquista da independência italiana.
também o livro sobre L’Action Française et le Vatican fi-
cou já antiquado: é apenas o primeiro volume de umha série que talvez continue ainda, porque daudet e Maurras nom se cansam de servirem, com diferentes molhos, os mesmos pratos: mas justamente por isso este volume, como exposiçom de princípios, pode parecer ainda interessante. Nom sei se chegache a perceber toda a importáncia histórica que o conflito entre o Vaticano e os monárquicos franceses tem na França: ele equivale, em certa medida, à reconciliaçom italiana. É a forma francesa de umha conciliaçom profunda entre o estado e a Igreja: os católicos franceses, como massa organizada na açom Católica francesa, cindem-se da minoria monárquica, quer dizer, deixam de ser a reserva popular potencial para um golpe de estado legitimista e tendem, polo contrário, a formarem um vasto partido de governo republicano católico, que quereria absorver, e absorverá certamente, umha parte notável do atual partido radical (Herriot e Cia.). Foi normal que no 26, durante a crise parlamentar francesa, enquanto a «Action Française» pré-anunciava o golpe de força, e publicava os nomes dos futuros ministros que deviam constituir o governo provisório que teria reclamado o pretendente Jean IV de orleans, o chefe dos católicos aceitasse entrar a fazer parte de um governo de coaliçom republicana. a lívida rábia de daudet e Maurras contra o cardeal Gasparri e o núncio pontifício em Paris deve-se mesmo à consciência adquirida de terem diminuído politicamente 90%, por dizer pouco.
Queridíssima, esqueço sempre escrever que me envies alguns medicamentos: lembram-mo as nevrálgias que voltárom hoje. Queria um pouco de aspirina Bayer e uns poucos comprimidos do doutor Faivre contra a hemicrania. Para dormir nom me envies nada, porque estou estável; durmo pouco, é verdade (3 ou 4 horas por noite), mas já nom me acontece o estar sem dormir mais do que 4 ou 5 noites seguidas, que é já um grande progresso.
Há alguns dias recebim umha breve carta de Carlo; pedeme para responderes umha carta sua. o pobre está mui triste, porque está no desemprego e está preocupado porque, como nom me tem mandado dinheiro desde há alguns messes, pensa que estou desprovido; escreve-lhe que tenho ainda dinheiro e que o terei ainda durante messes. Por outra parte, eu mesmo poderei escrever-lhe dentro de uns dias, porque terei a carta extraordinária de Páscoa. Queridíssima, estou contente porque segues, como dis, a cura dos ovos. acho isto fundamental para ti; estou convencido, por experiência, de que umha parte notável do teu mal-estar está causada pola escassa nutriçom. deves procurar aumentar polo menos dez quilos e voltar ser como eras quando frequentavas a universidade, tal qual apareces numha fotografia que lembro, feita na clínica da universidade, acho. deves fazer mesmo assim.
abraço-te com tenrura. antonio

(Carta 61)

5 de maio de 1930 Queridíssima Giulia,
numha conversa recente, tatiana pintou-me um quadro discretamente escuro do teu estado de ánimo e das tuas condiçons de saúde. Numha carta anterior informara-me das doenças que atingírom tanto delio como Giuliano. ora bem, pareceu-me que a própria tatiana está escassamente informada e apenas por via indireta, e nom sei que juízo formar-me.
Vejo pavorosamente longínquo o tempo em que me asseguravas que nom me ocultarias nada relativo à tua saúde e ao desenvolvimento das crianças. Vê-se que mudache de opiniom, e algumha razom deve haver para esta mudança, embora nom consiga imaginá-la. Penso que deves estar verdadeiramente mui mal, deves estar mesmo cansa. Mas qual o motivo de nom fazer-me saber algumha cousa, por que fazer aumentar o sentido da impotência que já tenho por todas as limitaçons da vontade e da liberdade a que fum condenado polo tribunal especial para a defesa do estado? se tatiana nom tivesse estado na Itália e nom me tivesse informado de quando em quando, nom sei que poderia ter feito; se calhar, teria recorrido ao consulado. Penso que deves fazer um grande esforço por ti mesma, para me informares com muita sinceridade e franqueza sobre as tuas condiçons e as das crianças, sem agacharme mesmo nada; estou reduzido a tal condiçom que prefiro receber más notícias antes do que nom receber notícias em absoluto, o qual me fai pensar nas piores cousas.
espero. abraço-te. antonio

(Carta 62)

19 de maio de 1930 Queridíssima tatiana,
recebim as tuas cartas e postais. Fijo-me sorrir outra vez a curiosa conceiçom que tés da minha situaçom carcerária. Nom sei se leche as obras de Hegel, que escreveu que «o criminoso tem direito à sua pena»82. tu imaginas-me, mais ou
82 G. alude à seguinte passagem da Philosophie des Rechts: «a pena que co-
menos, como um que reivindica com insistência o direito de sofrer, de ser martirizado, de nom ser defraudado nem um minuto, nem um segundo num matiz da sua caneta. seria um novo Gandhi, que quer dar testemunho perante os superiores e os inferiores dos tormentos do povo indiano, um novo Jeremias ou elias, ou nom sei que outro profeta de Israel que ia para a praça comer cousas imundas, para se oferecer em holocausto ao deus da vingança, etc. etc. Nom sei como te figeche essa ideia, que é mui ingénua nas tuas relaçons pessoais e bastante injusta nas tuas relaçons para comigo, injusta e desconsiderada. dixem-che que som eminentemente prático; penso que nom entendes o que quero dizer com esta expressom, porque nom fás nengum esforço para te pôr na minha posiçom (provavelmente, devo aparecer pois ante ti como um comediante, ou que sei eu). a minha praticidade consiste nisto: em saber que se bato a cabeça contra a parede é a cabeça que rompe, e nom o muro. Mui elementar, como vês, e contudo mui difícil de entender para quem nom deveu pensar nunca em poder bater a cabeça contra a parede, mas que sentiu dizer que chega com dizer: «abre-te sésamo!», para que o muro se abra. a tua atitude é inconscientemente cruel; tu vês alguém atado (na verdade, nom o vês atado, nom consigues ver as ataduras) que nom quer mover-se, porque nom pode mover-se. Pensas que nom se move porque nom quer (e nom vês que, por ter querido mover-se, as ataduras mancárom-lhe
rresponde ao delinquente, nom é apenas justa em si —, entanto que justa é, ao mesmo tempo, a sua vontade e é, em si, umha existência da sua liberdade, o seu direito; também é um direito, que reside no próprio delinquente, quer dizer, na sua vontade existente, na sua açom. Pois na sua açom, como na de qualquer ser racional, há algo de universal; por meio dela, afirma-se umha lei, que reconheceu para si e sob a qual, portanto, pode ser subsumido, como sob o seu direito» (trad. da versom it. de F. Messineo, Laterza, Bari, 1954, s 100, p. 97).
as carnes) e entom, dá-lhe, atíça-lo com varas de ferro incandescentes. Que obtés? Consegues que se contorcione e às ataduras que já o dessangram acrescentas as queimaduras. este quadro horripilante, próprio de um romance de fo-
lhetim sobre a Inquisiçom espanhola, penso que nom che há de convencer, abofé, e continuarás; e como as varas incandescentes som também puramente metafóricas, acontecerá que continuarei ainda com o meu «costume» de nom romper os muros a cabeçadas (já me dói avondo a cabeça para aturar semelhantes golpes), deixando de parte, sem resolver, aqueles problemas para os que me faltam os elementos indispensáveis. esta é a minha força, a minha única força, e esta, precisamente, é a que gostaríades de me tirar. aliás, é umha força que nom se pode oferecer para os demais, infelizmente; pode perder-se, mas nom se pode presentear nem transmitir. acho que tu nom meditache avondo sobre o meu caso e nom sabes descompô-lo nos seus elementos. estou submetido a vários regimes carcerários: está o regime carcerário constituído polas quatro paredes, pola grade, polo janelo, etc., etc., que já fora previsto por mim, e como probabilidade secundária, porque a probabilidade primária, desde 1921 a novembro de 1926, nom era o cárcere, mas sim perder a vida. o que nom fora previsto por mim era o outro cárcere, que se acrescentou ao primeiro, constituído pola perda, nom só da vida social, mas também da vida familiar, etc. , etc.
Podia prever os golpes dos adversários que combatia; nom podia prever que me chegariam golpes também de outras partes, desde onde menos podia suspeitá-los (golpes metafóricos, entenda-se, mas também o código distingue nos crimes entre atos e omissons; isto é, também as omissons som culpas ou golpes). eis todo. Mas estás tu, dirás. É verdade, és mui boa e eu quero-te muito. Mas nom som estas cousas em que sirva a substituiçom da pessoa e além de mais, a cousa é mui, mui complicada e difícil de explicar bem (até pola questom dos muros nom metafóricos). eu, para dizer verdade, nom som mui sentimental, e nom som as questons sentimentais as que me atormentam. Nom é que seja insensível (nom quero adotar a pose de cínico ou de blasé); antes polo contrário, também as questons sentimentais que se me apresentam vivo-as em combinaçom com os outros elementos (ideológicos, filosóficos, políticos, etc.), de maneira que nom saberia dizer até onde chega o sentimento e onde começa, polo contrário, um dos outros elementos; se calhar, nem sei dizer de umha maneira precisa que elementos som estes, tam unidos como estám num tudo inseparável e com umha vida única. talvez seja esta umha força; talvez seja também umha debilidade, porque leva a analisar os demais da mesma maneira, e consequentemente, se calhar, a tirar conclusons erradas. Mas nom continuo, porque estou escrevendo umha dissertaçom e polo que parece é melhor nom escrever nada antes do que escrever dissertaçons.
Queridíssima tatiana, nom te preocupes tanto polas camisolas; com as que tenho podo fazer aguardar as que me enviares. Nom me mandes o termos ou antes, manda-mo só depois de conseguires, por parte da direçom, a certeza de que mo darám; para tê-lo no depósito é melhor nom tê-lo.
a senhora Pina mora justo na via Montebello 7; nom penso que vaia vir para já, antes polo contrário. enviarei-che para fora outros poucos livros e duas camisas esfarrapadas.
escreve para a minha mae, sauda-a da minha parte e as-
segura-lhe que estou bastante bem.
abraço-te com tenrura. antonio

(Carta 63)

2 de junho de 1930 Queridíssima tatiana,
recebim as camisolas que me enviache e agradeço-cho. Nom tenho mais roupa branca estragada para te enviar, além das duas camisas que recebeche; até estas se rasgárom justo nestas duas últimas semanas; estavam mui desgastadas, mas nom estavam esfarrapadas, como tu mesma podes verificar se as observares. Por isso, nom esperes nada; as tuas virtudes de remendona nom terám ocasions para se manifestarem, polo menos desta vez. recebim também as tuas duas cartas de 24 e de 31 de maio. estás mui enganada se pensas que devo compadecer-te, porque «estás decidida a nom esconder-me nada», ou quando escreves que «a tua sinceridade te obriga a ser cruel, sem esconder-me a verdade». Polo contrário, parece-me que foste bem mais cruel por esperares três anos para me escrever certas notícias. Mas nom cho levo a mal: renunciei a entender algumhas cousas, já me convencim de que, por umha razom ou por outra, nunca conseguirei ter elementos suficientes para entender algumhas cousas. os postais de teu pai, que me transcreves, convencêrom-me justamente disso.
Queridíssima, quero escrever-che sobre um tema que te há de aborrecer ou que te fará rir. dando umha vista de olhos ao pequeno Larousse, voltou-me à memória um problema bastante curioso. sendo criança, era um incansável caçador de lagartixas e de serpes e dava de comer a um falcom mui bonito que domesticara. durante aquelas caçarias nos campos da minha aldeia (Ghilarza), aconteceu-me três ou quatro vezes encontrar um animal muito semelhante com a serpe comum (culebra), só que com quatro patinhas, duas perto da cabeça e duas bem longe das primeiras, perto da cauda (se se pode chamar assim): o animal media 60-70 centímetros de longitude, era mui largo em relaçom à longitude; a sua largura corresponde com a de umha culebra de 1 metro 20 ou de um 1 metro e 50. as patinhas nom lhe eram mui úteis, porque fugia deslizando mui devagar. Na minha aldeia, este réptil chamase de scurzone, que viria sendo «cortado» (curzu quer dizer «curto») e o nome refere-se, é claro, ao facto de ele parecer umha culebra cortada (olha que existe também o licranço, que une à pouca longitude a proporcionada finura do seu corpo). em santu Lussurgiu, onde figem os três últimos anos do ginnasio, perguntara ao professor de História Natural (que era na realidade um antigo engenheiro do lugar) como é que se chamava em italiano ao scurzone. ele riu e dijo-me que era um animal imaginário, o áspide ou o basilisco, e que nom conhecia qualquer animal como o que eu descrevia. os rapazes de santu Lussurgiu explicárom que na sua aldeia scurzone era precisamente o basilisco, e que o animal descrito por mim se chamava coloru (coluber latino), enquanto a culebra se chamava colora em feminino, mas o professor dixo que eram todas superstiçons de camponeses e que as culebras com patas nom existem. sabes como fai raivar a um rapaz ver que nom lhe dam a razom, quando sabe porém que tem a razom, ou que até se burlem dele por supersticioso, quando se trata de cousas reais; acho que se ainda lembro o episódio é devido a esta reaçom contra umha autoridade posta ao serviço da ignoráncia segura de si mesma. aliás, na minha aldeia nom ouvira nunca falar nas propriedades maléficas do basilisco-scurzone, que no entanto era temido e circundado de lendas noutros países. ora, precisamente no Larousse vim na tábua dos répteis um sauriano, o seps, que é justamente umha culebra com quatro patinhas (o Larousse di que vive na espanha e na França meridional; é da família dos scincidés, cujo representante típico é o scinque (talvez o lagarto verde?). a figura do seps nom condiz muito com o scurzone da minha aldeia: o seps é umha culebra regular, fina, longa, proporcionada, e as patinhas estám unidas ao corpo de forma harmoniosa; o scurzone, polo contrário, é um animal repelente: a sua cabeça é mui grande e nom pequena, como a das culebras; a «cauda» é bastante cónica; as duas patinhas de diante estám demasiado próximas da cabeça, e além disso estám demasiado afastadas das patas traseiras; as patas som alvacentas, mal-sás, como as do proteu, e dam a impressom de monstruosidade, de anormalidade. o animal todo, que vive em lugares húmidos (eu via-o sempre que fazia rolar grandes pedras) dá umha impressom falta de graça, nom como a lagartixa ou a culebra, que à parte da repulsom genérica do homem polos répteis, som no fundo elegantes e graciosas. Gostava de saber agora, graças à tua sabedoria em história natural, se este animal tem um nome italiano e se se conhece que em sardenha existe esta espécie, que deve ser da mesma família do seps francês. É possível que a lenda do basilisco impedira procurar o animal em sardenha; o professor de santu Lussurgiu nom era um estúpido, antes polo contrário, era mesmo mui estudioso; fazia coleçons mineralógicas, etc., e no entanto nom acreditava em que existisse o «scurzone» como umha realidade bem pedestre, sem o hálito venenoso e os olhos incendiários. Com certeza, este animal nom é mui comum: vim-no nom mais de umha meia dúzia de vezes, e sempre baixo uns penhascos, enquanto que vim milheiros de culebras sem necessidade de mover pedras.
Querida tatiana, nom te enfades demasiado por estas divagaçons minhas. abraço-te com tenrura.
antonio

(Carta 64)

11 de agosto de 1930 Queridíssima Giulia,
nom tenho nengumha vontade de escrever umha carta, só quero saudar-te. tania escreveu-me que já estás na casa de repouso; aguardo que te ponhas forte e que te recuperes rapidamente, até o ponto de retomares a tua atividade. escreve-me que significado exato tem, ou pode ter para as crianças, o facto de eles terem mais um ano. Nom sei como é que festejades vós este aniversário e que força estimulante e energética se pode tirar dele na prática. realmente nom sei nada de todo o sistema educativo e é umha cousa que me interessa muitíssimo. tania escreveu-me que o amigo Piero83 devia levar presentes para delio: di-me algo disso. Lembras aquela bola de celulose que delio tinha em roma, meio cheia de água e com os cisnes que boiavam? era um presente de Piero, mas lembro que delio se interessava especialmente em querê-la abrir, quer dizer, em destrui-la como brinquedo, o qual demonstra que nom respondia muito à sua finalidade. escreve-me sobre o teu repouso e sobre muitas outras cousas. abraço-te. antonio
83 Piero sraffa realizou umha viagem à Uniom soviética em agosto de 1930.

(Carta 65)

6 de outubro de 1930 Queridíssima tania,
estivem contente pola chegada de Carlo. dixo-me que estás bastante reposta, mas gostava de ter notícias mais precisas sobre as tuas condiçons de saúde. agradeço-che todo o que mandache. ainda nom me entregárom os dous livros: a «Bibliografia fascista» e as novelinhas de Chesterton, que lerei com muito prazer, por duas razons. Primeiro, porque imagino que som interessantes, polo menos tanto como a primeira série, e segundo, porque procurarei reconstruir a impressom que devêrom causar em ti. Confesso-che que este será o meu maior prazer. Lembro com exatitude o teu estado de ánimo ao leres a primeira série: tinhas umha disposiçom afortunada para receberes as impressons mais imediatas e menos complicadas polos sedimentos culturais. Nem deras percebido que Chesterton escreveu umha delicadíssima caricatura das novelas policiais, mais do que novelas policiais propriamente ditas. o padre Brown é um católico que ridiculariza a maneira mecánica de pensar dos protestantes e o livro é fundamentalmente umha apologia da Igreja romana contrária à Igreja anglicana. sherlock Holmes é o polícia «protestante», que apanha o fio à intriga criminal partindo do externo, baseando-se na ciência, no método experimental, na induçom. Padre Brown é o sacerdote católico, que através das requintadas experiências psicológicas oferecidas pola confissom e por meio do labor de casuística moral dos padres, mesmo sem desleixar a ciência e a experiência, se baseia especialmente na deduçom e na introspeçom, batendo sherlock Holmes plenamente e fazendo-o parecer um rapazinho pretensioso, ao mostrar a sua angústia e a sua mesquinhez. Para além disso, Chesterton é um grande artista, enquanto Conan doyle era um escritor medíocre, mesmo se o figérom baronete84 por méritos literários; é por isso que, há em Chesterton umha separaçom estilística entre o conteúdo, a intriga policial e a forma e portanto umha fina ironia em relaçom à matéria tratada que fai com que as histórias sejam mais saborosas. Nom achas? Lembro que lias estas novelas como se fossem crónicas de feitos verdadeiros, e ensimesmavas-te até exprimires umha sincera admiraçom polo padre Brown e a sua maravilhosa agudeza, de umha maneira tam ingénua que me divertia extraordinariamente. Porém, nom deves ofender-te, porque nesta diversom havia um ponto de inveja por essa capacidade tua para o fresco e sincero impressionismo, por assim dizer. se che digo a verdade, nom tenho muita vontade de escrever: tenho a cabeça noutra parte.
abraço-te afetuosamente. antonio

(Carta 66)

6 de outubro de 1930 Queridíssima Giulia,
recebim duas cartas tuas: umha de 16 de agosto e a seguinte, acho que de setembro. teria gostado de escrever com vagar, mas nom som capaz, porque nom consigo juntar, em certos momentos, as lembranças e as impressons sentidas quando lim as tuas cartas. Porém, só podo escrever, infelizmente, nuns dias e a umhas horas que nom decido eu e que por vezes coin-
84 Na verdade, ele foi nomeado sir, rango superior ao de baronete, e inferior ao de barom [N. do T.].
cidem com momentos de depressom nervosa. Gostei muito do que escreves: que, ao reler novamente as minhas cartas do 28 e do 29, reparache na identidade dos nossos pensamentos. Gostaria de saber no entanto em que circunstáncias e especialmente em volta de que que objeto reparache nessa identidade. Na nossa correspondência falta precisamente umha «correspondência» efetiva e concreta: nunca conseguimos estabelecer um «diálogo»: as nossas cartas som umha série de «monólogos» que nem sempre conseguem pôr-se de acordo, nem sequer nas linhas gerais; se a isto se acrescenta o elemento tempo, que fai esquecer o que foi escrito anteriormente, a impressom de puro «monólogo» reforça-se. Nom achas? Lembro um conto popular escandinavo: três gigantes vivem na escandinávia, longe uns dos outros como as grandes montanhas. após milheiros de anos de silêncio, o primeiro gigante grita para os outros dous: «sinto bruar um rebanho de vacas!». após trezentos anos o segundo gigante intervém: «também eu ouvim o bruado!» e após outros 300 anos o terceiro gigante ordena: «se continuardes a fazer tanto barulho, vou-me!»
Bom! Nom tenho mesmo vontade de escrever, há um vento de siroco que lhe dá a um a impressom de estar bêbedo.
Querida, abraço-te com tenrura, junto aos nossos filhos.
antonio

http://estaleiroeditora.blogaliza.org/files/2011/08/cartas_do_carcere_gramsci_pant.pdf