(Carta 27)
17 de outubro de 1927 Queridíssima tania,
recebim antes de ontem a tua carta de 27 de setembro.
alegrame que gostes de Milám e que che ofereça possibilidades de lazer.
Visitache os museus e as galerias? Porque do ponto de vista da sua estrutura
urbana, penso que a curiosidade deve esgotar-se bastante depressa. a diferença
fundamental entre roma e Milám penso que consiste precisamente nisso: roma é
inesgotável como «panorama» urbano, enquanto Milám é inesgotável como chez soi, como vida íntima dos
milaneses, que som mais tradicionais de quanto se pensa. Por isso, Milám é
pouco conhecida polos habituais forasteiros, se bem que tem atraído fortemente
homens como stendhal, que pudérom penetrar nas suas famílias e nos seus salons,
conhecê-la intimamente. o seu núcleo social mais consistente é a aristocracia,
que soubo conservar umha homogeneidade e umha coesom únicas na Itália, enquanto
os outros grupos, incluídos os operários som, mais ou menos, acampamentos
ciganos sem estabilidade e estrutura, com camadas pertencentes a todas as variedades
regionais italianas. esta é a força e a debilidade nacional de Milám, empório
gigantesco da indústria e do comércio, dominados na prática por umha élite de
velhas famílias aristocratas, que tenhem a força da tradiçom de governo local
(ligado a esta situaçom, deves saber que Milám tem até um culto católico de
seu, o culto ambrosiano, do qual os velhos milaneses som mui devotos). desculpa
a digressom. Mas sabes que som um grande fascinado e que me deixo arrastar por
qualquer tema que me interessa.
Com respeito aos
livros: naturalmente, nom deves levar encima tanto peso como bagagem. acho que
é mesmo melhor enviares os livros para o meu endereço do Cárcere de roma, de
maneira que a visita do cobrador de impostos e da polícia se faga no cárcere.
tenho no depósito umha
mala de fibra e umha bolsa de viagem, bastante adequadas; serám suficientes.
Para o meu uso pessoal, há de chegar umha funda de almofada, onde meter a roupa
branca e os objetos indispensáveis. Farei a petiçom para que che entreguem
estas cousas na porta. Na mala devo ter: um termo —que nom me fai falta, porque
nom podo utilizá-lo—, umhas embalagens de leite Nestlé, uns pedaços de sabom,
além do relógio e a caneta estilográfica, que podem estropiar-se se nom forem
utilizados. Poderás guardá-los e utilizá-los, se bem que o relógio está longe
de ser elegante e moderno (a propósito: Giulia tentou em várias ocasions
conseguir a cadeinha, que na verdade é pior que o relógio, e nunca lha dei
precisamente porque me parecia um capricho extravagante).
escreve-me
mais impressons de Milám. abraço-te afetu-
osamente. aguardo-te.
antonio
•
(Carta 28)
7 de novembro de 1927 Queridíssima Iulca,
recebim as tuas duas cartas, escritas por volta de metade
de setembro. esquecim assim o longo período de tempo decorrido sem notícias
tuas. No entanto, é mui feio estar tanto tempo assim, sem notícias. Já nom me
dou orientado, por exemplo: sinto-me um bocado confuso e terei ainda que fazer
um certo esforço para tirar a surdina dos meus pensamentos e dos meus sentimentos.
Nom deves impressionar-te por estas palavras. Certamente, ando algo torpe e
quero descrever-che exatamente o meu estado de ánimo. deves ajudar-me a
desnovelar-me pouco a pouco. deves escrever-me com mais vagar, e sempre que che
for possível, sobre a tua vida e sobre a das crianças, da qual ignoro tudo,
salvo as genéricas notícias sobre a sua saúde.
abraço-te com tenrura antonio
•
(Carta 29)
14 de novembro de 1927 Querida Giulia,
quero polo menos saudar-te cada vez que me permitem
escrever. decorreu um ano desde o dia do meu arresto e quase um ano do dia em
que che escrevim a primeira carta do cárcere. Mudei muito neste tempo: penso
que estou mais forte e melhor adaptado. o estado de ánimo que me dominava
quando che escrevim essa primeira carta (nom quero tentar sequer descrevê-lo,
porque che horrorizaria) fai-me agora rir um bocado. Penso que delio deveu ter
durante este ano a possibilidade de receber impressons que o acompanharám
durante toda a vida; isso fai-me estar alegre. abraço-te com tenrura. antonio
•
(Carta 30)
21 de novembro de 1927 Queridíssima tania,
recebim os seguintes livros: Francesco Crispi: I Mille; Broccardo, Gentile, etc.: Goffredo Mameli e i suoi tempi; C.
Maurras: L’ «Action Française» et le
Vatican. esquecim, na última conversa, de agradecer-che o lenço e de
dar-che os devidos parabéns. Na minha
opiniom, os gansinhos quedárom-che de maravilha. Nom lembro se che contei
algumha vez a história dos lenços
bordados por Genia; eu divertia-me imensamente burlando-me dela, afirmando que
as andorinhas ou o resto de ornamentos do bordado eram sempre lagartijas. e na
verdade, tanto os ornamentos como os
números daqueles lenços, tinham umha tendência notável a assumirem aspetos
saurianos: Genia inquietava-se mesmo por ver desprezados o mérito dos seus
labores femininos. sendo leais, devo reconhecer que os teus labores, polo
contrário, estám bem feitos e renovo os meus parabéns.
Queria escrever-che com
vagar sobre a questom do novo uniforme. Para mim é umha questom completamente
ociosa. É preciso ter presente que o julgamento se celebrará num prazo
relativamente próximo e que depois da condena e da transferência para umha
penitenciaria, a administraçom carcerária entrega a roupa regulamentar de
presidiário. É verdade que o regulamento utiliza, a propósito disto, umha
fórmula bastante vaga; di mais ou menos assim: «o detido será rasurado e
vestirá com um casaco, se for o caso».
Pareceria que podem existir exceçons. Mas eu nom tenho nengumha prevençom
específica contra o casaco e nom farei petiçons especiais para ser umha
«exceçom». Para que, entom, fazer um fato novo? Para o julgamento, como
poderiam dizer que o meu atual casaco é umha exibiçom «demagógica», porei o
fato que tenho no depósito e que está num estado bastante decente.
Naturalmente, nom quero pelejar contigo sobre um tema assim, nem quero
contrariar-te; parto de pressupostos absolutamente utilitários, que podem ser
corrigidos e modificados apenas pola preocupaçom de nom contrariar-te.
abraço-te com tenrura antonio
•
(Carta 31)
21 de novembro de 1927 Queridíssima Giulia,
no pátio onde vou dar o passeio regulamentar, na companhia
do resto de presos, houvo umha exposiçom de fotografias dos filhos de cada um.
delio tivo um grande sucesso e foi mui admirado. desde há alguns dias, já nom
estou isolado, mas numha cela normal, com outro preso político, que tem umha
filha pequena de três anos, simpática e educada, que se chama Maria Luisa.
segundo um costume sardo decidimos que delio casará com Maria Luisa mal tenham
chegado os dous à idade matrimonial; que che parece? Naturalmente, esperamos o
consenso das duas maes para darmos ao contrato um maior valor de compromisso,
embora isso constitua umha grave derrogaçom dos costumes e dos princípios do
meu país. Imagino que sorris e isso fai-me feliz; só consigo com grande
dificuldade imaginar-te sorridente.
abraço-te com tenrura, querida. antonio
•
(Carta 32)
12/XII/1927 Queridíssima mae,
recebim a tua carta de 30 de novembro, depois de quase um
mês sem receber mais notícias. seria bom que me escrevesses ou que figesses que
me escrevessem cada quinze dias, polo menos; chegaria incluso com um único
postal. Na vida que estou obrigado a levar, a ausência de notícias converte-se
em ocasions num autêntico tormento.
Nom sei que mais
escrever para te consolar e fazer que estejas tranquila. Nom deves duvidar
nunca sobre a minha tranquilidade. Nom som umha criança nem um monicreque, nom
achas? as minhas convicçons, que nom fôrom, certamente, nem caprichos
passageiros nem improvisaçons do momento regulárom e dirigirom sempre a minha
vida. É por isso que, mesmo o cárcere era umha possibilidade que devia
enfrontar, embora nom como umha leve diversom, sim como umha necessidade de
facto, que nom me punha medo como hipótese e nom me envilece como estado real
das cousas. aliás, também as minhas condiçons de saúde, que nos primeiros
tempos me preocupavam um pouco, hoje tranquilizam-me. a experiência provou-me
que som bem mais forte, também fisicamente, de quanto eu mesmo achava; tudo
isto contribui para me fazer ver o futuro próximo com frieza e serenidade.
Gostaria de que também tu te convencesses disso.
recebim notícias,
bastante boas, das crianças e de Giulia. delio desenvolve-se mui bem. Com três
anos e quatro messes já mede um metro e vem-lhe estreito o pequeno fato para
crianças de cinco anos comprado em roma; o desenvolvimento intelectual é
paralelo a este desenvolvimento físico tam prometedor.
se
quigeres mandar um pacote a tatiana, penso que seria
bem que o encaminhes à senhora com quem mora: — senhora
Isabella Galli — Via Montebello, 7,
Milám, — no caso de umha saída prevista para roma, que se fai cada dia mais
provável. o pacote, na melhor das hipóteses, dado que o tempo é limitado e dada
grande quantidade de pacotes que viajam por ocasiom das próximas festas, poderá
chegar para o fim de ano ou para reis; é por isso que, seria bom que nom envies
cousas que se estraguem rapidamente.
Muitas felicidades
polas festas de Natal; espero que as passedes sem tristeza e que pensedes que
com certeza conseguiremos festejar ainda muitos Natais juntos, comendo muitas
cabeças de cabrito ao forno. abraço-te com tenrura junto aos demais da casa
Nino
•
(Carta 33)
26/XII/1927
Queridíssima tania,
e assim passou também a festa do Natal, que imagino o
trabalhosa que deveu ser para ti. Na verdade, pensei no seu caráter
extraordinário apenas deste ponto de vista, o único que me pudo interessar. Nom
houvo nada destacável, salvo umha geral tensom dos ánimos em todo o ambiente do
cárcere; podia-se notar como o fenómeno se vinha gestando desde havia umha
semana inteira. todos esperavam algo excecional, e a espera determinava toda
umha série de pequenas manifestaçons típicas que davam no conjunto esta
impressom de um pulo vital. Para muitos, a exceçom era umha porçom de pasta asciutta e um quartel de vinho que
a administraçom passa três vezes por ano, em vez da habitual sopa: mas que
acontecimento importante é este, contudo. Nom creias que me divirto ou que me
rio disto. teria-o feito, se calhar, antes de ter passado a experiência do
cárcere. Mas vim demasiadas cenas comovedoras de presos que comiam o seu prato
de sopa com religioso pesar, arrepanhando com a miga de pam até o último rasto
de preve que pudesse ficar colado à louça! Um detido chorou porque num quartel
dos guardas, onde estávamos de passagem, em lugar da sopa regulamentar
distribuírom apenas umha porçom dupla de pam; desde havia dous anos estava no
cárcere e a sopa quente era para ele o seu sangue, a sua vida. entende-se
porque o Pai Nosso pom o acento no pam de cada dia.
Pensei na tua bondade e
na tua abnegaçom, querida tania. Mas a jornada decorreu um pouco como todas as
demais. se calhar, parolámos menos e limos mais. eu lim um livrinho de
Brunetière sobre Balzac, umha espécie de castigo para meninhos maus. Mas nom
quero aborrecer-te com este tema. antes polo contrário, quero contar-che um
episódio quase natalício da minha infáncia, que te divertirá e que che
oferecerá um traço caraterístico da vida na minha terra.
tinha catorze anos e
fazia o terceiro ano de Ginnasio47 em santu Lussurgiu, umha
aldeia a uns 18 quilómetros da minha, e onde creio que existe ainda um ginnasio municipal, verdadeiramente em
péssimo estado. eu e outro rapaz, para ganharmos vinte quatro horas com a
família, saímos no dia 23 de dezembro ao caminho, depois de comer, a pé, em vez
de esperar a diligência da manhá seguinte. Caminha que te caminha, estávamos
aproximadamente na metade da viagem, num sítio completamente deserto e
solitário; à esquerda, a uns cem metros do caminho, alongava-se umha fileira de
choupos com matogueiras de lentiscos. disparárom-nos um primeiro disparo de
espingarda sobre a testa; a bala assobiou a uns dez metros de altura. achávamos
que era um disparo casual e continuámos tranquilos. Um segundo e um terceiro
disparo mais baixos advertírom-nos rapidamente que estávamos mesmo no ponto da
mira e por isso nos deitamos na berma, permanecendo ocultos um pedaço. Quando provámos
a erguer-nos, outro disparo, e assim durante umhas duas horas, com umha dúzia
de disparos que nos seguiam enquanto nos afastávamos de rastos, cada vez que
tentávamos voltar ao caminho. era mui possivelmente um grupo de moinantes que
queria divertir-se assustando-nos; que bonita brincadeira, nom é? Chegámos a
47 desde 1877, o ensino primário e obrigatório na Itália
era de três anos, indo dos seis aos nove anos; o ensino secundário estava
dividido entre o Ginnasio, de cinco
anos (a cargo dos concelhos), seguido do Liceo,
de três anos (a cargo do estado); ao liceu só se podia ir nas capitais da
província, equivalente à comarca galega ou ao concelho português. [N. do T.]
casa com noite fechada, discretamente cansos e enlameados e
nom contámos a história para ninguém, por nom assustar a família, mas nós nom
nos assustamos grande cousa, dado que nas seguintes férias do entroido a viagem
de a pé foi repetida sem incidentes de nengumha classe. e olha como enchim
quase por inteiro as quatro folhinhas!
abraço-te com tenrura. antonio
Mas a história é mesmo verdade; nom se trata em absoluto de
umha história de bandoleiros!
•
(Carta 34)
2 de janeiro de 1928
Queridíssima tania,
e assim também começou o ano novo. teria de fazer programas
de vida nova, segundo o costume; mas por muito que o pense, ainda nom conseguim
organizar um programa assim. Foi sempre esta umha grande dificuldade na minha
vida desde os primeiros anos de atividade académica. Nas escolas elementares,
todos os anos por esta altura estabeleciam como tema de composiçom a pergunta:
«o que faredes na vida?». árdua pergunta, que resolvim a primeira vez, com 8
anos, escolhendo a profissom de arrieiro. Parecia-me que o arrieiro unia todas
as caraterísticas do útil e do agradável: estalava o chicote e guiava os
cavalos, mas ao mesmo tempo desempenhava um trabalho que enobrece o homem e que
lhe procura o pam diário. Permanecim fiel a esta orientaçom também no ano
seguinte, mas por razons que chamaria extrínsecas. se tivesse sido sincero,
teria dito que a minha mais viva aspiraçom era a de converter-me em porteiro de
um tribunal. Por que? Porque naquele ano vinhera à minha aldeia como porteiro
de tribunal um senhor maior que tinha um cadelinho negro simpatiquíssimo,
enfeitado sempre com um lacinho vermelho na cola, gualdrapinha no lombo, colar
envernizado e arreios na cabeça. eu mesmo nom conseguia separar a imagem do
cadelinho da do seu proprietário e da sua profissom. e porém renunciei, com
muito pesar, a embalar-me nesta perspetiva que tanto me seduzia. era de umha
lógica formidável e de umha integridade moral, capaz de fazer corar os mais
grandes heróis do dever. sim, considerava-me indigno de converter-me em
porteiro do tribunal e ter portanto cadelinhos tam maravilhosos: nom sabia de
cor os 84 artigos do estatuto do reino! assim mesmo. Figera a segunda classe
elementar (primeira revelaçom das virtudes cívicas do arrieiro!) e pensara
fazer no mês de novembro os exames de isençom, para passar à quarta saltando a
terceira classe: estava convencido de ser capaz de muito, mas quando me
apresentei diante do diretor didático para lhe apresentar a petiçom protocolar,
sentim que me fazia a queima-roupa a pergunta: «Mas, sabes os 84 artigos do
estatuto48?» Nem pensara nestes artigos: limitara-me a estudar as
noçons de «direitos e deveres do cidadao» contidas no livro de texto. e foi
para mim umha terrível repreensom, que me impressionou tanto mais polo facto de
no dia 20 de setembro anterior ter participado pola primeira vez no desfile
comemorativo com umha lanterna veneziana, e gritado como os demais: «Viva o
leom de Caprera! Viva o morto de staglie-
48
está
a falar do estatuto real, um remedo de constituiçom do reino de sardenha, (que
incluia o Piemonte), com capital em turim, núcleo do reino de Itália [N. do t].
no49!»
(Nom lembro se se gritava o «morto» ou o «profeta» de staglieno: talvez, as
duas cousas, por variar!), certo como estava de aprovar o exame e de conquistar
os títulos jurídicos para o eleitorado, convertendo-me num cidadao ativo e
completo. Contudo, nom conhecia os 84 artigos do estatuto. Que cidadao era
entom? e como podia aspirar ambiciosamente a converter-me em porteiro de
tribunal e possuir um cam com o lacinho e a gualdrapa? o porteiro de tribunal é
umha pequena peça do estado (eu pensava que era umha grande peça); é um
depositário e um guardador da lei, também contra os possíveis tiranos que a
quigessem pisar. e eu ignorava os 84 artigos! assim é que limitei os meus
horizontes e, mais umha vez, exaltei as virtudes cívicas do arrieiro que podia,
no entanto, ter um cam também ele, mesmo que fosse sem lacinho e sem gualdrapa.
olha como os programas pré-estalecidos de maneira demasiado rígida e
esquemática batem, e depois rompem, contra a dura realidade, quando se tem umha
consciência vigilante do dever! Querida tania, parece-che que nom fum ao rego?
ri e desculpa-me. Um abraço. antonio
•
49
Garibaldi
(Carta 35)
20 de fevereiro de 1928 Queridíssima teresina,
recebim a tua carta de 30 de janeiro e a fotografia dos
teus filhos. estou-che agradecido e estaria mui contente se recebesse mais
cartas tuas.
a pior desgraça da
minha vida atual é o aborrecimento. estas jornadas sempre iguais, estas horas e
estes minutos que se sucedem com a monotonia de umha pingueira e que acabárom
por corroer-me os nervos. Polo menos, os primeiros três messes após o arresto
fôrom mui movidos: empurrado de um estremo ao outro da península, embora fosse
com muitos sofrimentos físicos, nom tinha tempo para o aborrecimento. sempre
novos espectáculos que observar, novos tipos excecionais que catalogar:
parecia-me que vivia realmente num romance fantástico. Mas agora, desde há mais
de um ano, estou parado em Milám, num ócio forçoso. Podo ler, mas nom podo
estudar, porque nom me permitem ter papel e caneta-tinteiro à minha disposiçom,
nem com toda a vigiláncia pedida polo chefe50,
dado que passo por ser um terrível indivíduo, capaz de pôr lume aos quatro
cantinhos do país, ou quase. a correspondência é a minha maior distracçom. Mas
mui pouca gente me escreve. aliás, há um mês minha cunhada adoeceu e nem sequer
tenho a conversa semanal com ela.
Preocupa-me muito o
estado de ánimo de mamae; além disso, nom sei como fazer para tranquilizá-la e
consolá-la. Gostaria de lhe infundir o convencimento de que estou mui
tranquilo, como estou realmente, mas vejo que nom o consigo. Há toda umha zona
de sentimentos e de maneiras de
50 o
«chefe», isto é, o Chefe do Governo, Benito Mussolini.
pensar que se converteu numha espécie de abismo entre nós.
Para ela, o meu encarceramento é umha desgraça tam terrível como misteriosa nas
suas concatenaçons de causas e efeitos; para mim, é um episódio da luita
política que se combatia e se continuará a combater nom apenas na Itália, mas
em todo o mundo, durante quem sabe quanto tempo ainda. estou preso assim como
durante a guerra se podia cair prisioneiro, sabendo que isto podia acontecer e
que podia acontecer também algo pior. Mas temo que também tu penses como mamae
e que estas explicaçons che pareçam umha adivinha, exprimida aliás numha língua
desconhecida. observei com calma a fotografia, comparando-a com
aquelas que me mandaras anteriormente.
(tivem que interromper
a carta para me fazer a barba; já nom lembro o que queria escrever e nom tenho
vontade de repensá-lo. outra vez será).
saudaçons afetuosas para todos. Um abraço. Nino
•
(Carta 36)
27 de fevereiro de 1928 Queridíssima tania,
por umha felicíssima conjunçom de astros favoráveis,
entregárom-me o 24 a tua carta do 20, junto à carta de Giulia. admirei a tua
competência no diagnóstico, mas nom caim na trampa subtil da tua arte
literária. Nom achas que seria preferível empregar a própria competência
noutros temas e nom sobre um mesmo? (Nom é por desejar-lhe mal ao próximo,
entenda-se, se de próximo se pode falar neste caso. Leche e estudache bem as
ideias de tolstoi? devias confirmar-me o significado preciso que tolstoi dá à
noçom evangélica de «próximo». em minha opiniom, limita-o ao significado
literal, etimológico da palavra: «quem está mais perto de ti, quer dizer, os da
tua família e, no máximo, os da tua aldeia»). em resumo, nom conseguiche mudar
as minhas cartas na mesa, pondo-me diante, como demonstraçom, as provas da tua
competência como médica, para fazer que refletisse menos na tua condiçom de
doente. sobre a flebite, aliás, criei-me umha cultural especial, já que nos
últimos quinze dias de residência em Ustica tivem que escuitar as longas
disquisiçons de um velho advogado perugino que a sofria e que fijo que lhe
enviassem quatro ou cinco publicaçons a propósito. sei que se trata de um mal
bastante grave e mui doloroso; terás verdadeiramente a paciência necessária
para curar bem, sem pressa? espero que sim. eu podo contribuir para conseguir
que tenhas paciência, escrevendo-che cartas mais longas do habitual. É um
pequeno esforço que nom me custará grande cousa, se te contentares com a minha
tagarelice. e afinal, afinal estou muito mais aliviado do que antes.
a
carta de Giulia tranquilizou mais o meu estado de áni-
mo. Hei de escrever-lhe à parte, com algo mais de vagar, se
for possível, porque nom lhe quero discutir e aliás, nom vejo como vou poder
escrever-lhe com mais vagar sem discutir. achas justo, de facto, que nom me
escreva quando está mal ou está angustiada? eu acho que, precisamente em tais
circunstáncias, deveria escrever-me mais e com mais vagar. Mas nom quero
converter esta carta numha série de reproches.
Para fazer-che passar o
tempo, contarei-che umha pequena discussom «carcerária» que se desenvolveu por
etapas. Um tipo, que devia ser evangelista ou metodista ou presbiteriano
(lembrei-me dele a propósito do tal «próximo») estava mui indignado, porque se
permitia circular ainda polas nossas cidades a esses pobres chineses que vendem
pequenos objetos, com certeza fabricados em série na alemanha, mas que dam a
impressom aos compatriotas de incorporarem polo menos um pedacinho do folclore
do Catai. segundo o nosso evangelista, o perigo para a homogeneidade das
crenças e das maneiras de pensar da civilizaçom ocidental era grande: trata-se,
em sua opiniom, de umha inserçom da idolatria asiática no cepo do cristianismo
europeu. as pequenas imagens de Buda acabariam por exercer umha fascinaçom
especial, que poderiam ser como um reativo sobre a psicologia europeia,
exercendo um pulo para novas formaçons ideológicas totalmente diferentes da
tradicional. Que um elemento social como o evangelista mostrasse nas suas
palavras preocupaçons semelhantes, era verdadeiramente interessantíssimo, mesmo
se tais preocupaçons tinham umha origem mui longínqua. Porém, nom foi difícil
metê-lo num beco, sem saída para ele, fazendo-lhe observar:
1°. Que a influência do
budismo sobre a civilizaçom ocidental tem raízes muito mais profundas do que
parece porque durante toda a Idade Média, desde a invasom dos árabes até por
volta de 1200, a vida de Buda circulou por europa como a vida de um mártir
cristao, santificado pola Igreja, a qual só depois de bastantes séculos reparou
no erro cometido e desconsagrou o pseudo santo. a influência que pudo ter
exercido um episódio assim naquele tempo, quando a ideologia religiosa estava
mui viva e constituía a única maneira de pensar das massas, é incalculável.
2°. o budismo nom é
umha idolatria. deste ponto de vista, se existir um perigo, é antes o
constituído pola música e pola dança dos pretos importado por europa. esta
música conquistou na verdade todo um estrato da populaçom europeia culta, criou
até um autêntico fanatismo. Neste momento, é impossível imaginar que a
repetiçom continuada dos gestos físicos que os pretos fam ao dançar em volta
dos seus ídolos ou o facto de terem sempre nos ouvidos o ritmo sincopado das jazz-bands, nom tenha consequências
ideológicas; a) trata-se de um fenómeno enormemente difundido, que atinge
milhons e milhons de pessoas, nomeadamente jovens; b) trata-se de impressons
mui enérgicas e violentas, isto é, que deixam pegadas profundas e duradouras;
c) trata-se de fenómenos musicais, quer dizer, de manifestaçons que se espremem
na linguagem mais universal hoje existente, na linguagem que comunica mais
rapidamente imagens e impressons totais de umha civilizaçom nom só estranha à
nossa, mas com certeza menos complexa do que a asiática, primitiva e elementar,
isto é, facilmente assimilável e generalizável da música e da dança para o
resto do mundo psíquico. em resumo, o pobre evangelista convenceu-se de que
tendo medo de converter-se num asiático, na realidade ele, sem dar por isso,
estava a converter-se num preto, e que tal processo estava terrivelmente
avançado, polo menos até a fase da mestizagem. Nom sei em que resultou mas
penso que já nom é capaz de renunciar ao café com acompanhamento de jazz e que
de agora em diante se verá com mais atençom no espelho, para surpreender os
pigmentos de cor no seu sangue.
Querida tania, desejo
que te recuperes bem e rapidamente: um abraço.
antonio
•
(Carta 37)
27 de fevereiro de 1928 Queridíssima Giulia,
recebim a tua carta do 26-XII-1927, com a apostila de 24 de
janeiro e a notinha anexa. Fum mesmo feliz por receber estas cartas tuas. Mas
desde havia algum tempo já conseguira estar mais tranquilo. Mudei muito em todo
este tempo. Certos dias acreditei que me convertera num ser apático e inerte.
Hoje penso que errei na análise de mim mesmo. Igualmente, também nom acredito
que estivesse desorientado. tratava-se de umha crise de resistência a umha nova
maneira de viver, que se impunha implacavelmente pola pressom de todo o
ambiente carcerário, com as suas normas, com a sua rotina, com as suas
privaçons, com as suas necessidades, um complexo enorme de pequeníssimas cousas
que se sucedem de maneira mecánica durante dias, durante messes, durante anos,
sempre iguais, sempre com o mesmo ritmo, como os graos de areia de umha
gigantesca clepsidra. todo o meu organismo físico e psíquico opunha-se
tenazmente, com cada molécula, à absorçom deste ambiente exterior, mas era
necessário de quando em vez reconhecer que umha certa quantidade da pressom
conseguira vencer a resistência e modificara umha certa zona de mim mesmo, e
entom verificava-se um abalo rápido e total, para rejeitar de um golpe o
invasor. Hoje, todo um ciclo de mudanças se tem desenvolvido, porquanto cheguei
à decisom calma de nom me opor, com os meios e nas maneiras de antes, que eram
ineficazes e ineptos, àquilo que é necessário e inelutável, mas de dominar e
controlar, com um certo espírito irónico, o processo em curso. de resto, convencim-me
de que nunca chegarei a ser um perfeito filisteu. em qualquer momento serei
capaz, com um abalo, de deitar fora a pele, meio de asno e meio de ovelha, que
o ambiente desenvolve sobre a autêntica pele natural. talvez umha cousa nom a
consiga jamais: devolver à minha pele natural e física a cor afumada. Valia51 nom poderá chamar-me mais
o camarada afumado. temo que delio, apesar da tua colaboraçom, já estará mais
afumado do que eu! (Protestas?) este inverno fiquei quase três messes sem ver o
sol, nom sendo algum reflexo longínquo. a cela recebe umha luz que está metade
entre a luz de umha adega e a luz de um aquário.
de resto, nom deves
pensar que a minha vida decorre tam monótona e idêntica como a primeira vista
poderia parecer. Umha vez habituado à vida de aquário e adaptados os sentidos a
captarem as impressons amortecidas e crepusculares que fluem por aqui (sempre
colocando-se numha posiçom um pouco irónica), todo um mundo começa a fervilhar
em volta, com umha vivacidade sua particular, com as suas leis individuais, com
um curso essencial de seu. acontece como quando se lança um olhar a um velho
tronco meio desfeito polo tempo e pola intempérie e depois, bem devagar, se
detém, cada vez mais fixamente, a atençom. Primeiro só se vê algumha fungosidade
húmida, com algumha lesma que ressuma baba, que se arrasta lentamente. depois
vê-se, um pouco ao redor, todo um conjunto de colónias de pequenos insetos que
se movem e passam trabalhos, fazendo e refazendo os mesmos esforços, o mesmo
caminho. se se conservar a própria posiçom extrínseca, se nom se chegar a ser
umha lesma ou umha formiguinha, todo isto acaba por interessar e fazer decorrer
o tempo.
Cada detalhe que
consigo captar da tua vida e da vida das crianças oferece-me a possibilidade de
tentar elaborar umha
51 sobrinho
de tatiana.
representaçom mais ampla. Mas estes elementos som demasiado
escassos e a minha experiência foi demasiado escassa. ainda: nesta idade sua,
as crianças devem mudar demasiado rápido como para que seja capaz de as seguir
em todos os movimentos e me faga umha ideia. Com certeza, nisto devo andar
bastante desorientado. Mas é inevitável que assim seja.
abraço-te com tenrura.
antonio
•
(Carta 38)
5 de março de 1928 Queridíssima tania,
a tua carta de 28 de fevereiro chegou-me também com umha
rapidez assombrosa; nada menos que no dia 3 de março, apenas quatro dias mais
tarde. desejo que continue assim e que essa rapidez se estenda a toda a
correspondência. Polo contrário, minha pobre mae está desesperada, porque desde
há dous messes nom recebe as minhas cartas; a 27 de fevereiro nom recebera
ainda umha carta minha de 9 de janeiro, que lembro perfeitamente ter escrito, e
por isso pensa que estou gravemente doente e com impossibilidade física de
escrever.
dou-che
todos os meus parabéns polas forças recobradas,
que che permitírom erguer-te e caminhar. Mas és demasiado
otimista por princípio e acreditas de mais numha espécie de justiça cósmica!
seria melhor que tivesses paciência e que aguardasses a estar completamente
reestabelecida, fora de todo perigo de recaída e de complicaçons. tés que ter
sentido! em caso contrário, tomarei medidas draconianas contra o teu cabelo,
sem preocupar-me ou comover-me polas acusaçons de barbárie!
Lim com muito interesse
a tua carta, polas observaçons que pudeche fazer e polas novas experiências.
acho que nom é necessário recomendar-che indulgência e nom apenas a
«indulgência prática», mas também aquela que chamarei de espiritual. estivem
sempre convencido de que existe umha Itália desconhecida, que nom se vê, mui
diferente da aparente e visível. Quero dizer —dado que é um fenómeno que se
verifica em todos os países— que a separaçom entre o que se vê e o que nom se
vê é, entre nós, mais profunda do que nas outras assim denominadas «naçons
civilizadas». entre nós, a praça, com os seus gritos, os seus entusiasmos
verbais, a sua vaidade, supera o chez soi
muito mais do que noutro lugar, de umha maneira relativa. Igualmente,
formárom-se toda umha série de preconceitos e de afirmaçons gratuitas, sobre a
solidez da estrutura familiar, como sobre a dose de genialidade que a
providência se teria dignado dar ao nosso povo, etc., etc. Mesmo num livro
recentíssimo de Michels se repete que a média dos camponeses calabreses, mesmo
os analfabetas, é mais inteligente que a média dos professores universitários
alemaos52; assim, muita
gente acredita estar exonerada da obriga de fazer desaparecer o analfabetismo
em Calábria. acho que os costumes familiares das cidades, dada a recente
formaçom dos centros urbanos na Itália, nom podem ser julgados sem abstrai-los
da situaçom média geral de todo o país, que é ainda mais baixa e que pode ser,
deste ponto de vista, resumida neste traço caraterístico: um extremo egoísmo
das geraçons entre os 20 e os 50 anos, verificado em prejuízo
52
a
afirmaçom, que se remonta a enrico Ferri, é citada por robert Michels em A França contemporânea, Milám, 1927,
quem parece em parte aceitá-la.
das crianças e dos velhos. Naturalmente, nom se trata de um
estigma de inferioridade civil permanente: seria absurdo e louco pensá-lo.
trata-se de um dado de facto, historicamente controlável e explicável e que
poderá ser superado, indubitavelmente, por meio da elevaçom do nível de vida
material. a explicaçom, para mim, está na estrutura demográfica do país, que
antes da guerra punha 83 pessoas passivas a cargo de 100 trabalhadores,
enquanto a França, com umha riqueza enormemente superior, o cargo era apenas de
52 por cada 100. demasiados velhos e demasiadas crianças em comparaçom com as
geraçons médias, empobrecidas numericamente pola emigraçom. eis a base deste
«egoísmo geracional», que adquire em ocasions aspetos de umha crueldade
terrível. Há sete ou oito messes os jornais referiam este episódio tam atroz:
um pai massacrara toda a família (a mulher e os três filhos) porque, à volta
das labores do campo, tinha encontrado a ceia escassa devorada polo ninho
faminto. Igualmente, mais ou menos na mesma data, desenvolveu-se em Milám um
julgamento contra o marido e a mulher que deixaram morrer o seu filho de quatro
anos, mantendo-o durante messes ao pé da mesa com um fio de ferro. entendia-se,
polo debate, que o homem duvidava da fidelidade da mulher e que esta, antes que
perder o marido por defender o meninho do mal-tratamento, concordou com a sua
eliminaçom. Fôrom condenados a oito anos de reclusom. este é um tipo de crime
que antigamente era considerado nas estatísticas anuais da criminalidade com
umha denominaçom exclusiva; o senador Garofalo53 considerava a média de 50 condenas por ano por crimes
semelhantes apenas como um índice da tendência criminal, porque os pais culpa-
53
raffaele
Garofalo (1851-1934), um dos fundadores da escola positiva do direito Penal.
dos conseguiam na maior parte das vezes eludir qualquer
sançom, polo costume geral de prestar pouca atençom à higiene e à saúde das
crianças e polo difuso fatalismo religioso, que leva a considerar quase que com
umha particular benevolência do céu a assunçom de novos anjinhos na corte
divina. esta é, infelizmente, a ideologia mais difundida e nom surpreende que
ainda, embora sob formas atenuadas e edulcoradas, se reflita também nas cidades
mais avançadas e modernas. olha que a indulgência nom está fora de lugar, polo
menos para quem nom acredita no caráter absoluto dos princípios nestas
relaçons, mas só no seu desenvolvimento progressivo junto ao desenvolvimento da
vida em geral. os melhores, melhores desejos. abraço-te. antonio
•
(Carta 39)
12 de março 1928 Queridíssima mae,
na carta passada (de 5 de março) cometim um erro, que
contudo corrigiche por ti própria: a registrada chegou-me a dia 4 de fevereiro
e eu escrevim que me avisasses no dia 6 de fevereiro; nom de janeiro, como
escrevim, mas sim de fevereiro, em definitivo.
recentemente
recebim notícias das crianças e de Giulia. delio estivo sempre bem, mas o
pequeno estivo gravemente doente, em perigo durante alguns messes e por isso
nom me mandavam notícias. a doença atrasou o seu desenvolvimento, nos dentes e
na fala, mas desde há algum tempo, depois da cura, está a melhorar muito e
recupera o tempo perdido. escrevem-me montes de detalhes, que nom che repito,
porque no fundo som os habituais da vida das crianças pequenas, embora as maes
os considerem sempre extraordinários e maravilhosos e só próprios dos seus
pequenos.
Parece certo, desta
vez, que está próxima a partida para roma e mais o julgamento. se calhar, até é
provável partir num prazo brevíssimo; procurarei informar-te da partida com um
telegrama, de maneira que podas escrever depressa para o novo endereço dos
Cárceres Judiciários de roma. repitoche, mais umha vez, que nom deves
alarmar-te, seja qual for a confusom de notícias que os jornais se comprazam em
publicar. as mesmas acusaçons, relativas aos mesmos artigos do Código Penal,
fôrom dirigidas contra mim no 1923, quando estava no estrangeiro. Fomos
absolvidos já em primeira instáncia, embora houvesse um documento com muitas
assinaturas reconhecidas autênticas polos imputados54. Certamente, desta vez serei condenado a muitos anos,
apesar de que as acusaçons contra mim assentam numha simples relaçom da polícia
e em impressons genéricas nom verificáveis; porém, a comparaçom entre o 23 e o
28 chega para dar a noçom da «gravidade» em si do processo atual e para caraterizá-lo.
eis porque eu estou tam tranquilo. Pensas que só devem contar nom estas
circunstáncias acessórias, mas sim o facto real da condena e do cárcere que é
preciso sofrer? e porém, também deves ter em conta a posiçom moral, nom che
parece? de fac-
54
G. refere-se ao julgamento
celebrado perante o tribunal de roma, de 16 a 23 de outubro de 1923, contra os
dirigentes comunistas (Bordiga, Grieco, Fortichieri, terracini, etc.), por
incitaçom ao ódio de classe e por atividades antifascistas. todos os acusados
fôrom absolvidos por falta de provas. segundo os documentos oficiais, o arresto
estivo motivado pola descoberta de um manifesto da Internacional Comunista e da
Internacional dos sindicatos vermelhos contra o fascismo.
to, é apenas isto o que dá forças e dignidade. o cárcere é
umha cousa bem feia; mas para mim seria incluso pior a desonra pola fraqueza
moral e pola covardia. É por isso que nom deves alarmar-te e sentir demasiado
pesar, e nom deves pensar nunca que eu estou desanimado e desesperado. deves ter
paciência e, em qualquer caso, nom acreditares nas mentiras que podam publicar
sobre mim.
espero
que já tenhas recebido todas as minhas cartas an-
teriores.
renovo os desejos mais sentidos e afetuosos polo teu santo e abraço-te com
tenrura. Nino
•
(Carta 40)
9 de abril de 1928 Queridíssima tania,
recebim ontem a tua carta do 5, com rapidez completamente
pascoal. recebim também os cabelos de Giuliano e estou mui contente polas
notícias que me contas. a dizer a verdade, nom sei tirar muitas consequências
delas. Quanto à maior ou menor rapidez da fala das crianças, nom tenho outro
elemento de juízo que umha anedota sobre Giordano Bruno quem, polo que contam,
nom falou até a idade de três anos, apesar de compreendê-lo todo: umha manhá,
ao acordar, viu que de umha fenda do muro da choupana onde morava, umha serpe
grossa se dirigia para o seu leito; rapidamente chamou o pai polo nome, a quem
nunca chamara, e foi salvado do perigo; desde aquele dia começou a falar mesmo
a mais, como também sabem os judeus revendedores do Campo dei Fiori55.
55 G. é
irónico, porque Giordano Bruno morreu precisamente por «falar de
sinto que te sintas
deprimida, como escreves, e que te aches por isso livre de me escrever mais
amiúde. esta é umha injustiça notória, pola qual poderia apelar a que estou
ainda mais desanimado do que tu e nom escrever-che em absoluto; certamente,
isso há de acontecer se continuas a provocar-me com essas depressons. deverias
escrever-me polo menos duas vezes por semana: e entom como é que chegache a ser
tam preguiçosa? Que fás em todo o dia? e como passache a Páscoa? recebim há
alguns dias as Prospettive Economiche e
o Al-
manacco cartario. todos os anos, a
partir do 25, regalava a Giulia este almanaque. Nom o farei este ano. Caiu mui
baixo. reproduz umhas anedotas, consideradas humorísticas, que dantes estavam
reservadas aos periodicuchos semipornográficos, publicados para os jovens
recrutas que venhem por primeira vez à cidade. estou certo de que fazer umha
constataçom assim pode ter a sua importáncia. o sábado recebim um novo pacote
de livros, embora nom me foi entregue ainda; acho que se trata de um certo
número de revistas de história e de filosofia; pudem dar-lhe apenas umha vista
de olhos, no momento em que assinava o recibo para os correios. de qualquer
maneira, figem novamente umha certa provisom de leituras para o período em que
ainda ficarei em Milám. estivem pensando que delio fará quatro anos no dia 10
de agosto e que agora já é suficientemente maior como para fazer-lhe um
presente sério. a senhora Pina prometeu que me faria chegar o catálogo do
«Meccano»: espero que as diferentes combinaçons estejam expostas nom só em
ordem aos preços (de 27 a 2000 liras!) mas também em relaçom à simplicidade e à
idade dos rapazes. Com certeza, o princípio
mais», dado que foi condenado pola Inquisiçom papal a
morrer na fogueira, nessa mesma praça romana, pola sua teoria de um universo
infinito. [N. do T.]
do mecano é ótimo para as crianças modernas; vou escolher a
combinaçom que me parece mais oportuna e já che direi qual é. até agosto há
tempo avondo. Nom sei que disposiçom prevalece em delio, se é que a evidenciou.
eu, quando era um rapaz, tinha umha forte disposiçom polas ciências exatas e
pola matemática. Perdim-na durante o licéu, porque nom tivem mestres que
valessem mais do que um figo seco. assim é que trás acabar o 1° ano do
secundário nom estudei mais matemática, antes polo contrário escolhim o grego
(na altura tinha a opçom); porém, no 3° ano do secundário demonstrei
imprevistamente que conservara umha «capacidade» notável. acontecia entom que
em 3° ano do secundário era preciso, para estudares física, conhecer os
elementos da matemática e que os alunos que optárom polo grego nom tiveram a
obriga de os conhecer. o professor de física, que era brilhantíssimo,
divertia-se imensamente metendo-nos em sarilhos. No último interrogatório do 3°
trimestre, fijo-me perguntas de física ligadas à matemática, dizendo-me que da
exposiçom que figesse iria depender a média anual e portanto a passagem de
licença, com ou sem exame: divertia-se muito vendo-me no quadro, onde me deixou
estar todo o tempo que quigem. Pois bem, fiquei meia hora no quadro, pugem-me
branco com o giz, dos cabelos até os sapatos, tentei, tentei novamente,
escrevim, apaguei, mas finalmente «inventei» umha demonstraçom que foi acolhida
polo professor como ótima, embora nom aparecesse em qualquer manual. este
professor conhecia de Cagliari meu irmao maior56 e embora me atormentou com as suas gargalhadas
durante todo o tempo da escola: chamava-me o «físico helenizante».
56 Gennaro.
Queridíssima tania,
proibo as depressons e escreve-me amiúde. abraço-te.
antonio
esquecim contar-che como procurei incomodar ontem a senhora
Pina. Visto que o sábado tulli foi à conversa, perguntou-me se tinha algum desejo
especial para o jantar de Páscoa. eu tivem sempre desejos que nunca dei
satisfeito: quereria comer rins de rinoceronte e umha coxa de pangolim57; como segunda opçom,
contentaria-me com umha pequena cabeça de cabrito ao forno. tulli negou-se a
cumprir a encomenda do rinoceronte e do pangolim, justamente preocupado com nom
obrigar a mulher a procuras demasiado longas nos talhos; queria limitar-se
apenas à cabeça de cabrito. Mas ontem a pequena cabeça nom chegou,
naturalmente; foi anunciada somente para amanhá, terça-feira. Nem creio que
para amanhá, porque os anhos e os cabritos chegam à cidade sem cabeça, mas
quero saber o final que terá a aventura. aguardo que a senhora Pina nom se
alporiçasse comigo demasiado; fai-me o favor de dizer-lhe tu umhas boas palavras.
•
57 animal
recoberto de escamas duras e afiadas. Mora em ásia e em áfrica e alimenta-se de
formigas e termites.
(Carta 41)
30 de abril de 1928 Queridíssima mae,
envio-che a fotografia de delio. o meu julgamento foi
marcado para 28 de maio: desta vez a partida deve estar próxima. seja como for,
mirarei de enviar-che um telegrama. a minha saúde é bastante boa. o julgamento
próximo fai-me estar melhor, porque polo menos sairei desta monotonia. Nom te
preocupes e nom te assustes, seja qual for a condena que me imponham: acho que
será de 14 a 17 anos, mas poderia ser até mais grave, precisamente porque nom
há provas na minha contra: o que podo ter cometido, sem deixar provas? Fica
bem-humorada.
abraço-te. Nino
•
(Carta 42)
30 de abril de 1928 Queridíssima tania, recebim a tua carta
de 25 de abril, junto com a carta de Giulia. agradeço-che as notícias que me
envias. alegrou-me muito receber as tuas notícias; estava mui preocupado.
Nom sei se te
informárom de que o julgamento foi marcado para 28 de maio, o qual significa
que a partida se aproxima. Já estivem com o advogado aris. a proximidade destas
novidades excita-me bastante; de umha maneira agradável, porém. sinto vibrar em
mim a vida novamente: haverá umha certa luita, imagino. embora só seja durante uns
poucos dias, vereime num ambiente diferente do carcerário.
Quero protestar contra
as tuas deduçons a propósito das... cabeças de cabrito. estou informadíssimo no
relativo a este comércio. em turim figem, em 1919, umha ampla pesquisa porque o
Concelho boicotava os anhos e os cabritos sardos em benefício dos coelhos
piemonteses: havia em turim por volta de 4.000 pastores e camponeses sardos em
missom especial58 e eu
queria ilustrá-los sobre este tema. os anhos e os cabritos meridionais chegam
aqui sem cabeça, mas há umha pequena percentagem de comércio local que fornece
também as cabeças. É difícil encontrá-las, de aí que a cabeça pequena,
comprometida para o domingo, só se pudo conseguir na quarta-feira. aliás, nom
tinha muita certeza de que se tratasse de anho ou cabrito, embora fosse mui boa
(para mim; a tulli horrorizava-o). devia ser um estranho cabrito, sem cérebro e
cego de um olho, com o cránio mui parecido com o de um lobicam triturado polo
tranvia! (mas, por amor de deus, nom lho digas à senhora Pina!). ai, estes
carniceiros!
sinto muito que Giulia
ficasse tanto tempo sem notícias. Veremo-nos mais umha vez antes da minha
partida? Nom o creio. Nom deves cometer nengumha imprudência; deves
recuperar-te bem. só assim estarei tranquilo. Pensa que de agora em diante
poderei escrever-che mui poucas vezes. abraço-te. antonio
•
58 trata-se dos 4.000 soldados da «Brigada sassari»,
composta na sua maioria por camponeses e pastores, enviados a turim a começos
de 1919 com tarefas repressivas anti-operárias, entre os quais despregou G. um
eficaz trabalho de propaganda. a Brigada foi afastada de turim uns messes
depois, na véspera da greve geral de 20-21 de julho.
(Carta 43)
10 de maio de 1928 Queridíssima mae,
estou para partir para roma59. Já está confirmado. Concedêrom-me esta carta
precisamente para anunciar o traslado. É por isso que, de agora em diante e
enquanto nom te avisar doutro traslado, escreve-me para roma.
ontem recebim umha
registrada de Carlo de 5 de maio. escreve que me mandará umha fotografia tua:
fará-me mui feliz. a esta hora já deve ter chegado a fotografia de delio que
che enviei há uns dez dias, registrada.
Queridíssima mae, nom
gostaria de repetir o que já che escrevim para tranquilizar-te em relaçom às
minhas condiçons físicas e morais. Gostaria, para estar mesmo tranquilo, de que
nom te assustasses ou te turbasses demasiado, seja qual for a condena que me
imponham. Que compreendesses bem, também com o sentimento, que fum detido por
razons políticas e serei condenado por razons políticas, que nom tenho nem
terei nunca que avergonhar-me desta situaçom. Que, no fundo, o arresto e a
condena quigem-nas eu mesmo, em certa maneira, porque nunca quigem mudar as
minhas opinions; por elas estaria disposto a dar a vida e nom só a estar em
prisom. Que por isso nom podo senom estar tranquilo e contento de mim mesmo.
Querida mae, gostaria mesmo de abraçar-te mui forte, para que sentisses o muito
que te quero e como gostaria de te consolar desta pena que te causo: mas nom
pudem fazer de outra maneira. a vida é assim, duríssima, e os filhos em
ocasions tenhem que dar grandes desgostos às suas maes, se quigerem conservar a
sua honra e a sua dignidade de homens.
59 G.
deixou o cárcere judiciário de Milám na noite de 11 de maio de 1928.
abraço-te com tenrura. Nino
escreverei-te desde roma rapidamente. di para Carlo que
esteja alegre e que lhe estou agradecido infinitamente. Beijos para todos.
•
(Carta 44)
27 de junho de 1928 Queridíssima tania,
nengumha novidade à vista, até este momento. Ignoro quando
partirei60.Porém, nom
deve excluir-se que a minha partida seja dentro duns dias; poderia pôr-me a
caminho hoje mesmo.
recebim umha carta de
minha mae há alguns dias. escreve que nom recebeu as minhas cartas desde 22 de
60
G.
chegou ao cárcere de regina Coeli na manhá de 12 de maio. o julgamento contra
G. e os dirigentes do Partido Comunista Italiano desenvolveu-se no dia 28 desse
mês até 4 de junho, perante o tribunal especial para a defesa do estado. o
presidente era o general alessandro saporiti e o fiscal o advogado Michele
Isgrò. a defesa estava constituída polos avogados Giovanni ariis, adelmo
Niccolaj e Giuseppe sardo. a imprensa internacional estava representada polo
correspondente em roma do «Manchester
Guardian» e polo jornalista soviético V. antonov. entre o escasso público
admitido nas audiências encontrava-se o irmao de G., Carlo. Imputado e
reconhecido culpável dos crimes de conspiraçom e incitaçom ao ódio de classe,
de incitaçom à guerra civil, à insurrecçom e à mudança violenta da constituiçom
e da forma do governo, G. foi condenado no dia 4 de junho de 1928 a vinte anos,
quatro messes e cinco dias de reclusom. destinado primeiro à penitenciaria de
Portolongone, trás umha visita médica especial foi destinado à penitenciaria de
turi, para condenados afetados por doenças físicas e psíquicas, e deixou roma
no dia 8 de julho de 1928, em «transporte ordinário». Imediatamente após a
condena, Umberto terracini apresentou perante o tribunal supremo, no nome de
todos os seus camaradas, umha petiçom para a revisom do julgamento. o supremo
declarou-se incompente para a acolher.
maio61,
isto é, desde quando estava em Milám. desde roma escrevim para a casa três
vezes no mínimo: também enviei a última carta para meu irmao Carlo. escreve tu
umha carta para minha mae, explicando-lhe que eu neste momento podo escrever
pouquíssimo, apenas umha vez cada quinze dias, e que devo distribuir as duas
cartas mensais entre ela e tu. Polo contrário, podo receber cartas sem limites:
minha mae acredita no entanto que há um limite também para a recepçom.
Informa-lhe sobre a questom da minha partida suspendida para Portolongone após
a visita especial do médico, e sobre a probabilidade de um destino melhor.
tranquiliza-a em geral e escreve-lhe que para estar tranquilo nom necessito
consolaçons; antes ao contrário, no que me di respeito estou mui tranquilo e
sereno. É este um ponto no qual nom dei conseguido nunca sucessos notáveis com
minha mae, que se fai um quadro terrorífico e literário da minha posiçom de
condenado a prisom perpétua: pensa que [estou] sempre calado, devorado pola
desesperaçom, etc., etc. Podias escrever-lhe que me viste recentemente e que
nom estou para nada desesperado, deprimido, etc. mas sim com umha boa
disposiçom para rir e brincar. talvez o acredite, ao mesmo tempo que pensa que
lhe escrevo nesse sentido só para a consolar.
Queridíssima tania,
sinto encomendar-che isto mais umha vez. aliás, esta carta decidira escrevê-la
para ti e nom quero faltar ao sistema pré-estabelecido. aguardo ver-te ainda
antes de partir. abraço-te com tenrura. antonio
61
Sic no original; na
realidade, G. estava em roma desde o 12. Veja-se a nota anterior.
(Carta 45)
19 de novembro de 192862
Queridíssima Giulia,
Portei-me mesmo mal contigo. as justificaçons, na verdade,
nom som mui fundadas. após a partida de Milám, estivem enormemente canso. todas
as minhas condiçons vitais se agravárom. sentim mais o cárcere. agora estou um
pouco melhor. o mesmo facto de que se desse umha certa estabilidade, que a vida
se desenvolvesse conforme certas regras, normalizou em certa medida também o
curso dos meus pensa- mentos.
Fum mui feliz ao
receber a tua fotografia e a das crianças. Quando se cria demasiada distáncia
de tempo entre as impressons visuais, o intervalo enche-se com feios
pensamentos; nom sabia o que pensar, nomeadamente sobre Giuliano, nom tinha
conservado nengumha imagem na memória. agora estou mesmo contente. em geral,
desde há alguns messes, sintome mais isolado e afastado de toda a vida do
mundo. Leio muito, livros e revistas; muito, em relaçom à vida intelectual que
se pode levar em reclusom. Mas perdim muito do gosto pola leitura. os livros e
as revistas dam apenas ideias gerais, esboços de correntes gerais da vida do
mundo (melhor ou pior conseguidos), mas nom podem dar a impressom imediata,
direta, viva, da vida de Pietro, de Paolo, de Giovanni, de pessoas individuais
reais, sem entender as quais nom se pode tampouco entender o universalizado e
generalizado. Há muitos anos, no 19 e no 20, conhecia um jovem operário, mui
ingénuo e bem simpático. Cada sábado de tarde, após a saída do traba-
62
desde
a prisom de turi, em Bari [apúlia, no calcanhar da bota que seria a península
italiana. N. do T.].
lho, vinha ao meu escritório para ser dos primeiros em ler
a revista que eu elaborava63.
ele dizia-me amiúde: «Nom pudem dormir, oprimido polo pensamento: que fará o
Japom?» . Precisamente o Japom obcecava-o, porque nos jornais italianos só se
fala do Japom quando morre o Mikado ou quando um terremoto mata no mínimo
10.000 pessoas. o Japom escapavalhe; por isso nom conseguia ter umha imagem
sistemática das potencias mundiais, e por isso lhe parecia nom compreender nada
de nada. eu ria entom de um estado de ánimo semelhante e burlava-me do meu
amigo. Hoje entendo-o. também eu tenho o meu Japom: é a vida de Pietro, de
Paolo e também de Giulia, de delio, de Giuliano. tenho mesmo saudades da
sensaçom molecular: como poderia, mesmo que de maneira sumária, perceber a vida
de todo o complexo? até sinto a minha própria vida como retesa e paralisada:
como poderia ser de outra maneira, se me falta a sensaçom da tua vida e da das
crianças? além disso, tenho sempre o medo de ser dominado pola rotina
carcerária. ela é umha máquina monstruosa que esmaga e nivela conforme umha
certa escala. Quando vejo agir e sinto falar a homens que estám no cárcere
desde há cinco, oito ou dez anos, e observo as deformaçons psíquicas que eles
tenhem sofrido, arrepio-me de verdade, e tenho dúvidas na previsom sobre mim
mesmo. Penso que também os demais tenhem pensado (nom todos, mas polo menos
algum) nom deixar-se dominar e, contudo, sem sequer dar por isso, tam lento e
capilar como é o processo, hoje vem-se mudados e nom o sabem, nom podem
julgá-lo, por quê é que mudárom por completo. Certamente, eu vou resistir. Mas
advirto, por exemplo, que já nom sei rir de mim mesmo, como anta-
63
o
semanário L’Ordine Nuovo, publicado
em turim, de maio de 1919 a dezembro de 1920.
no, e isto é grave. Querida Giulia, interessam-che todas
estas parolas? e dam-che umha ideia da minha vida? No entanto, interesso-me
também por aquilo que acontece no mundo, sabes?. Nestes últimos tempos lim umha
certa quantidade de livros sobre a atividade católica. eis um novo «Japom»:
através de que fases passará o radicalismo francês para se cindir e dar vida a
um partido católico francês? este problema «nom me deixa dormir» como lhe
acontecia ao meu jovem amigo. e também outros, naturalmente. Gostache do
abre-cartas? sabes que me custou quase um mês de trabalho e estragar metade das
pontas dos dedos? Querida, escreve-me com um pouco de vagar sobre ti e sobre as
crianças. deverias mandar-me as vossas fotografias polo menos cada seis messes,
para que poda seguir o seu desenvolvimento e ver o teu sorriso mais amiúde.
abraço-te com tenrura,
querida. antonio
apostila para tania — És bem ruim, tania!. desde há quanto
tempo nom recibo notícias tuas? Nom importa se nom escreves cartas longas,
chega mesmo com um postal ilustrado. sabes que também eu sinto cada vez mais a
força da inércia que me empurra para nom escrever? e devo luitar para vencê-la.
Mas vencerei sempre? aqui há gente que nom escreve desde há messes e desde há
anos. também eu hei de acabar igual, certamente, se nom encontro
correspondentes ativos. Querida tania, abraço-te, esperando que nom te
encontres mal. antonio
•
(Carta 46)
31 de dezembro de 1928 Queridíssimo Carlo, recebim montes
de cousas: os medicamentos, as 200 liras, etc. agradeço-cho de coraçom. o
médico64 dixo-me que o
soro Casali certamente há de fazer bem. Parece que é a cura mais ajeitada. Polo
Natal véu a turi tatiana; demorou-se bastante para poder ter várias conversas.
deu-me a sensaçom de que mesmo nos dias de Natal me sentia um pouco mal. tivem
um ataque de uricemia, com grandes dores nos rins, nos intestinos e na
vesícula, mas que já está a caminho de desaparecer. assim, temo que tatiana se
figesse umha impressom falsa da minhas condiçons gerais de saúde. Na realidade,
este é um mal doloroso só quando se fai agudo; o qual pode acontecer em poucas
ocasions, desde que se esteja atento a excluir da alimentaçom qualquer alimento
picante ou requente. de agora em diante hei de estar ainda mais atento do que
no passado e aguardo evitar qualquer outra ocasiom. a visita de tatiana, à
parte deste contratempo, agradou-me muito, como podes imaginar.
recebim a carta de
mamae do 24, com a pequena carta e o debuxinho de edmea. estou mui contente de
que mamae esteja melhor e que se vaia recuperando. dá-lhe muitos beijos a edmea
da minha parte, mais algum leve belisco nas façulas, e agradece-lhe as suas
expressons tam educadas e tam bem ditas. Porém, parece que ela, embora redija
bastante bem e saiba pôr em frases espontáneas e vivas os seus sentimentos,
comete um número de disparates ortográficos demasiado grande, mesmo para umha
aluna que está ainda no terceiro ano.
64 trata-se,
quase com certeza, do doutor Cisternino, médico da prisom de turi.
deve estar pouco atenta e sempre apurada: penso que também
quando fala, em algumha ocasiom se parece com um turbilhom e come metade das
palavras, tragando o r com particular gosto. É preciso estardes atentos para
obrigá-la a fazer os deveres com diligência e com muita disciplina. Nas escolas
rurais sardas acontece que umha meninha, ou umha criança, habituada na casa a
falar italiano (mesmo se pouco e mal), acha por este único facto que é superior
aos seus condiscípulos, que apenas conhecem o sardo e aprendem portanto a ler e
a escrever, a falar, a redigir numha língua completamente nova. os primeiros
parece que som mais inteligentes e espertos, embora por vezes nom o sejam, e por
isso em família e na escola, se desleixa habituá-los ao trabalho metódico e
disciplinado, pensando que com a «inteligência» ham de superar todas as
dificuldades, etc. ora, a ortografia é mesmo o calcanhar de aquiles desta
inteligência. se Mea nom estuda bem e se nom corrige esta deficiência, que se
poderá pensar? Poderá-se pensar que se trata de umha dessas muitas meninhas que
levam as fitinhas nos cabelos, os vestidinhos bem passados e que logo tenhem as
calcinhas sujas. dizide-lho com um certo tato, para nom causar-lhe demasiado
desgosto. Nom gosto nada do seu desenhinho: nom tem qualquer espontaneidade nem
gosto.
e porém seria ótimo que aprendesse um pouco de desenho.
Querido Carlo, nom
deves preocupar-te demasiado com o dinheiro que me mandas. Nom deves fazer
parvoíces inúteis. sabes que som mui positivo e prático nestas cousas. Neste
momento tenho na caderneta 950 liras, livres de qualquer gravame (paguei-no já
na caixa). Isso significa que necessidades urgentes nom podo tê-las, e que nom
deves estar preocupado se durante alguns messes nom che é fácil enviar-me
sequer um peso. Nom achas? os melhores desejos para todos no novo ano.
Beijos afetuosos antonio
•
(Carta 47)
14 de janeiro de 1929 Queridíssima Giulia,
ainda aguardo a tua resposta à minha última carta. Quando
tenhamos retomado umha conversa regular (mesmo com demorados intervalos),
escreverei-che muitas cousas sobre a minha vida, sobre as minhas impressons
etc., etc. Para já, deves informar-me sobre como interpreta delio o mecano. É
algo que me interessa muito, porque nunca soubem decidir se o mecano, que tira
ao meninho o seu próprio espírito inventivo, é o brinquedo moderno mais
recomendável. o que pensas tu disto e o que pensa o teu pai? em geral, acho que
a cultura moderna (tipo americano), cuja expressom é o mecano, produz um homem
um pouco seco, maquinal, burocrático, e cria umha mentalidade abstrata (num
sentido diferente do que por «abstrato» se entendia no século passado). Houvo
umha abstraçom causada por umha intoxicaçom metafísica e há umha abstraçom
causada por umha intoxicaçom matemática. Que interessante deve ser observar as
reaçons destes princípios pedagógicos no cérebro de umha meninho pequeno, que
por outro lado é nosso, e ao qual estamos vencelhados por um sentimento bem
diferente que nom é o simples «interesse científico». Queridíssima, escreve-me
umha longa carta.
abraço-te forte forte.
antonio
(Carta 48)
9 de fevereiro de 1929 Queridíssima Giulia,
tinha pensado escrever umha carta particular, mesmo
pessoal, para delio mas tania escreve que ele está na casa de anna e, após a
tua brilhante narraçom sobre as consequências de lhe ter contado que fumei na
neve, fai-me duvidar. Quero ter antes o teu conselho. Na minha opiniom, delio é
mui reativo, como o era já em roma e em trafoi, e nom quereria impressionar
demasiado a sua sensibilidade. É por isso que prefiro aguardar polo teu
parecer. a minha impressom sobre tania é bastante boa. Quando a vim em Milám
pola última vez, mas sobretudo em roma, há sete messes aproximadamente, estava
mui débil. Polo contrário, em dezembro pareceu-me em parte reposta e mais
forte. Nom teria querido que figesse umha viagem tam longa para ter umha meia
hora de conversa: mas véu de improviso, e além disso, naturalmente, fijo-me mui
feliz. agora deveria fazer-che um grande elogio de tatiana, e da sua grande
bondade. Mas nom o fago, porque em ocasions exagera e acaba por se comportar
como se me julgasse completamente falto de sentido prático, absolutamente
incapaz de viver sem um precetor ou umha ama. algumha vez até me fijo enfadar e
mais amiúde me fijo rir, mesmo se desde há algum tempo rio pouco e nom tenho
vontade de brincar como antano. Creio que esta é a mudança mais notável
acontecida em mim. em resumo, concluim que tatiana é o melhor exemplar de toda
a família schucht, que incluso o famoso deusgott65
65 V. degott, revolucionário russo. em 1919 estivo na
Itália como representante da Internacional Comunista. [G. fai brincadeira com o
seu nome, visto que «gott», em alemám, é deus. [N. do T.].
afirmava que era umha família modelo (nom cho dixera nunca,
mas digo-cho agora para fazer que te enfades!); a única que se parece
verdadeiramente com tua mae.
Querida, é mesmo
verdade o que escreves: também eu quereria escrever-che muitas cousas, mas nom
consigo vencer-me, superar umha espécie de reserva. Creio que vem determinado
pola nossa formaçom mental moderna, que nom encontrou ainda uns meios de
expressom adequados e próprios. som sempre um pouco cético e burlom, e acho que
se expressasse tudo quanto quigesse, nom poderia superar um certo
convencionalismo e um certo melodramatismo que está quase incorporado à
linguagem tradicional. o mesmo estudo profissional que fixem das formas
técnicas da linguagem obceca-me, vendo em qualquer expressom umhas formas
fossilizadas e ossificadas que me repugnam. Porém, tenho a certeza de que entre
nós nom se perderá nunca a intimidade.
abraço-te forte forte antonio
•
(Carta 49)
22 de abril de 1929 Queridíssima tania,
recebim os teus postais de 13 e de 19 de abril. Ficarei
pacientemente à espera das notícias da casa. acho que também tu tés notado, nos
poucos momentos em que nos vimos, o paciente que cheguei a ser. também antes o
era, mas só graças a um grande esforço sobre mim mesmo: era umha certa
qualidade diplomática, necessária para entrar em relaçom com os estúpidos e com
gente aborrecida à qual, infelizmente, nom se pode renunciar. agora, polo
contrário, nom me custa trabalho nengum: converteu-se num costume; é a expressom
necessária da rotina carcerária e é também um elemento de auto-defesa
instintiva. Porém, algumha vez esta «paciência» converte-se numha espécie de
apatia e indiferença que nom consigo superado: acho que também notache isto e
que nom gostache muito. Nem sequer isto é umha novidade, sabes? tua mae
observara-o em 1925 e Giulia contou-mo. a verdade é que desde aqueles anos eu,
por dizê-lo com umha metáfora de Kipling, era como umha cabra que perdeu um
olho e gira em círculo, sempre sobre a mesma amplitude de rádio. Mas vaiamos a
algo mais alegre.
a rosa apanhou umha
terrível insolaçom: todas as folhas e as partes mais tenras estám queimadas e
carbonizadas; tem um aspecto desolado e triste, mas novamente bota fora os
rebentos. Nom morreu, polo menos até agora. a catástrofe solar era inevitável,
já que só pudera cobri-la com papel, que o vento levava; teria sido necessário
ter um bom feixe de palha, que é umha má condutora da calor e ao mesmo tempo
protege dos raios diretos. seja como for, o prognóstico é favorável, com a
exceçom de complicaçons extraordinárias. as sementes tardárom muito em se
tornarem pequenas plantas: todo um grupo teima em fazer umha vida podpolie66.
eram, com certeza, sementes velhas e que em parte criárom bicho. aquelas que
saírom à luz do mundo desenvolvem-se lentamente e som irreconhecíveis. Penso
que o jardineiro, quando che dixo que umha parte das sementes eram ótimas,
queria dizer que eram aptas para se comer; com efeito, estranhamente algumhas
plantas parecem mais salsa e cebolinhas do que flores.
66 Podpole em
russo é «subterrâneo» e, em sentido figurado, «clandestinidade».
todos os dias tenho a tentaçom de tirar por ela um pouco
para ajudá-la a crescer, mas fico na incerteza entre as duas conceiçons do
mundo e da educaçom: ser rousseauniano, e deixar fazer à natureza, que nom se
equivoca nunca e que é fundamentalmente boa, ou ser voluntarista, e forçar a
natureza, introduzindo na evoluçom a mao esperta do ser humano e o princípio de
autoridade. Por enquanto, a incerteza nom acabou e as duas ideologias estám em
tensom na minha cabeça. as seis plantinhas de chicória sentírom-se rapidamente
na sua casa e nom tivérom medo do sol: já botam fora o tronco, que dará as
sementes para os próximos messes. as dálias e o bambu dormem baixo terra e
ainda nom dérom sinais de vida. as dálias, principalmente, acho que estám
verdadeiramente acabadas.
Já que estamos com este
tema, quero pedir que me mandes outra vez quatro classes de sementes: 1° de
cenouras, mas da classe denominada pastinaca,
que é umha agradável lembrança da minha primeira infáncia: a sassari chegavam
aquelas que pesam meio quilo e que antes da guerra custavam um peso, fazendo
umha certa concorrência ao alcaçuz; 2° de ervilhas; 3° de espinafres; 4° de
aipos. Num quarto de metro quadrado quero meter quatro ou cinco sementes por
espécie e ver o que sai. Podes encontrá-las em Ingegnoli, que tem a loja na Piazza del Duomo e na Via Buenos Ayres; igualmente pede que che
dem também o catálogo, onde se indica o mês mais propício para a sementeira.
recebim outra pequena
carta da senhora Malvina sanna (Corso
Indipendenza 23). transmite-lhe estas linhas:
«Compreendo as
dificuldades financeiras para obter os livros indicados por mim anteriormente.
também eu chamei a atençom para isto, mas o que se me encomendara era responder
perguntas concretas. respondo hoje umha pergunta que, mesmo se nom dirigida a
mim, era implícita, e porque entendo que responde a umha necessidade geral para
quem está preso: «como fazer para nom perder o tempo no cárcere e para estudar
algo de algumha maneira?» antes de mais, vejo necessário renunciar ao hábito
mental «escolástico», e nom meter-se na cabeça seguir cursos regulares e profundos:
isso é impossível, mesmo para quem se encontra nas melhores condiçons. entre os
estudos mais proveitosos está, é claro, o das línguas modernas: chega com umha
gramática, que pode encontrar-se também, por pouquíssimo dinheiro, nas bancas
dos livros usados, e algum livro (também este usado, talvez) da língua
escolhida para o estudo. Nom se pode apreender a pronúncia oral, é verdade, mas
saberá-se ler, e isto é já um resultado considerável. aliás: muitos presos
desvalorizam a biblioteca do cárcere. Certamente, as bibliotecas carcerárias,
em geral, nom tenhem umha ordem: os livros fôrom reunidos ao acaso, pola doaçom
de padroados que recebem fundos de armazém das editoras, ou por livros deixados
por excarcerados. abundam os livros devotos e de romances de terceira
categoria. todavia, acho que um preso político deve também buscar o fogo na
ameixoeira. tudo consiste em dar um fim às próprias leituras e em saber apanhar
apontamentos (se se tiver licença para escrever). Ponho dous exemplos: em Milám
lim umha certa quantidade de livros de todos os géneros, nomeadamente romances
populares, até que o diretor me permitiu ir eu mesmo à biblioteca escolher
entre os livros ainda nom disponíveis para a leitura ou entre aqueles que
devido a um particular teor político ou moral, nom davam para ler a todos. Pois
bem, encontrei que também sue, Montépin, Ponson du terrail, etc. bastavam se
forem lidos deste ponto de vista: «por quê esta literatura é sempre a mais lida
e a mais impressa? que necessidades satisfai? a que aspiraçons responde? que
sentimentos e pontos de vista som representados nestes livrecos, para gostar
tanto?» Porque eugenio sue é diverso de Montépin? e Victor Hugo, nom pertence
também ele a esta série de escritores polos temas que trata? e Scampolo ou l’Aigrette ou a Volata de
dario Nicodemi nom som, se calhar, a descendência directa deste baixo
romantismo do 48? etc., etc., etc. o segundo exemplo é este: um historiador
alemao, Gruithausen67,
publicou recentemente um grosso volume em que estuda as ligaçons entre o
catolicismo francês e a burguesia nos dous séculos anteriores ao 1789. ele
estudou toda a literatura devota destes dous séculos: coletáneas de sermons,
catecismos das diversas dioceses etc. etc. e reuniu um magnífico volume. acho
que avonda para demonstrar que também se pode buscar fogo nas ameixoeiras,
porque neste caso ameixoeiras nom há. Qualquer livro, especialmente se for de
história, pode ser útil para ler. em qualquer livreco é possível encontrar algo
útil... principalmente quando se estiver na nossa condiçom e o tempo nom puder
ser valorizado de jeito normal.
Querida tatiana,
escrevim mesmo demasiado e obrigareite a fazer um exercício de caligrafia. a
propósito, lembra pedir que nom me mandem livros, até que eu nom os avise. se
por acaso aparecessem livros que consideras úteis para mim, fai que os apartem
e que os enviem assim que os pedir. Queridíssima, aguardo de verdade que a
viagem nom te cansasse demasiado. abraço-te afetuosamente.
•
67 Groethuysen.
(Carta 50)
20 de maio de 1929 Querida Giulia,
quem che dixo que eu poderia escrever mais? Infelizmente,
nom é verdade. Podo escrever apenas duas vezes por mês e só por Páscoa e Natal
disponho de umha carta extraordinária. Lembras-te do que dizia Bianco, no 23,
quando partia? Bianco tinha razom, do ponto de vista da sua experiência; sempre
tivera umha adversom invencível à epistolografia. desde que estou no cárcere,
escrevim polo menos o duplo de cartas que no período anterior: devo ter escrito
polo menos 200 cartas, um verdadeiro horror!.
assim
que nom é exato que esteja tranquilo. ao contrá-
rio, estou mais do que tranquilo, estou apático e passivo.
e isto nom me surpreende e nem sequer fago qualquer esforço para sair do
marasmo. de resto, isto talvez seja umha força e nom um estado de marasmo.
Houvo longos períodos em que me sentia mui isolado, afastado de qualquer vida
que nom fosse a própria; sofria terrivelmente umha demora da correspondência e
a ausência de respostas congruentes com aquilo que pedira provocavam-me estados
de irritaçom que me esgotavam. depois, passou o tempo e afastou-se cada vez
mais a perspetiva do período anterior; todo aquilo que de acidental, de
transitório existia na zona dos sentimentos e da vontade foi desaparecendo aos
poucos e ficárom apenas os motivos essenciais e permanentes da vida. É natural
que isso acontecesse, nom achas? Nom se pode evitar que durante algum tempo o
passado e as suas imagens nos dominem, mas no fundo este olhar sempre para o
passado acaba por ser incómodo e inútil. acho ter superada a crise que se
produz em todos durante os primeiros anos de cárcere, e que amiúde causa umha
rutura neta com o passado, num sentido radical. a dizer verdade, esta crise
sentim-na e vim-na nos demais, mais do que em mim próprio; fijo-me sorrir, e
isto já era umha superaçom. Nunca teria acreditado em que tanta gente tivesse
um medo tam grande à morte; pois bem, é mesmo neste medo que consiste a causa
de todos os fenómenos psicológicos carcerários. Na Itália dim que umha pessoa é
velha quando começa a pensar na morte; acho que é umha observaçom mui sensata.
No cárcere, esta viragem psicológica verifica-se assim que o preso sente que
caiu na armadilha e que já nom pode escapar: dá-se umha mudança rápida e
radical, tanto mais forte quanto mais até esse momento se tomasse pouco a sério
a própria vida, os ideais e as convicçons. Vim alguns embrutecerem de maneira
inacreditável. e foi-me útil, como aos rapazes espartanos era útil verem a
depravaçom dos ilotas.
assim é que agora estou
absolutamente tranquilo e nem me desacouga sequer a falta prolongada de
notícias, embora saiba que isso poderia ser evitado com um pouco de boa
vontade... também da tua parte. de outra parte, tania vai dandome todas as
notícias que recebe. referiu-me, por exemplo, as caraterísticas das crianças segundo
teu pai e que me interessárom muito e durante muitos dias. e outras notícias,
que me comentou com muita destreza. olha que nom cho quero botar na cara! relim
nestes dias as tuas cartas de um ano para aqui, e isso fijo-me sentir novamente
a tua tenrura. sabes que algumhas vezes, quando escrevo para ti, penso que som
demasiado seco e sombrio, em comparaçom contigo, que com tanta naturalidade me
escreves? Parece-me que é como quando algumha vez te figem chorar,
principalmente a primeira vez, lembras?, quando fum mesmo ruim,
conscientemente. Queria saber o quê che escreveu tania da sua viagem a turi.
Porque acho que tania concebe a minha vida de umha maneira
demasiado idílica e arcádica, tanto que me atormenta nom pouco. Nom consegue
convencer-se de que estou na obriga de permanecer dentro de certos limites e
nom deve mandar-me nada que eu nom tenha pedido, porque nom tenho ao meu dispor
um depósito de meu. agora anuncia-me algumhas cousas, absolutamente inúteis e
que nunca poderei utilizar, em vez de ater-se estritamente àquilo que lhe
encomendei.
envio-che
duas fotografias: a grande reproduz os dous fi-
lhos de minha irmá teresina: Franco e Maria; a outra, a
minha mae, com a mesma meninha no colo, um pouco maior. Meu pai afirma que a
meninha se parece com Giuliano; eu nom som capaz de julgar. Com certeza, o
meninho nom se parece com ninguém da minha família: é o retrato do pai, que é
um autêntico sardo, enquanto nós somos apenas meio sardos: a meninha, polo
contrário, tem um maior ar da família. Qual é a tua opiniom?
acabei de ler estes
dias umha história de rússia do prof. Platonof68, da ex Universidade
de sam Petersburgo, um grosso volume de aproximadamente 1.000 páginas. acho que
é um verdadeiro calote editorial. Quem era este prof. Platonof? Parece-me que a
historiografia do passado tinha um teor bem baixo se este prof. Platonof era um
dos seus corifeus, vendo o que escreveu o professor Lo Gatto nos seus trabalhos
sobre a cultura russa. sobre as origens das cidades e do comércio russo no
tempo dos Normandos lim umha vintena de páginas do historiador belga Pirenne69,
que valem por toda a trapalhada de Platonof. o volume chega apenas até 1905,
com duas páginas suplementares até a abdicaçom do grande duque Miguel
68
s.
Platonof, Histoire de la russie des
origines à 1918, Payot, Paris, 1929.
69
Henri
Pirenne, Les villes du moyen âge, M.
Lamertin, Bruxelas, 1927.
e com umha nota da data da morte de Nicolau II, mas tem o
título de História das origens até 1918:
um calote duplo, como vês.
Querida Giulia,
escreve-me sobre os comentários de delio à carta que lhe escrevo; abraço-te com
tenrura antonio
•
(Carta 51)
20 de maio de 1929 Querido delio,
soubem que vás à escola, que medes 1 metro e 8 centímetros
de altura e que pesas 18 quilos. Penso entom que já és bem maior e que dentro
de pouco tempo me escreverás cartas. À espera disso, hoje podias fazer que tua
mae, sob o teu ditado, escreva cartas como os pimpò que me fazias escrever em roma para a avó. assim poderás
contar-me o que apreendes, se gostas dos outros meninhos da escola ou ao que
preferes jogar. sei que constróis avions, e trens, e que participas ativamente
na industrializaçom do país, mas afinal esses aeroplanos voam de verdade? e
correm esses trens? se estivesse ali, polo menos meteria o meu cigarro na chaminé,
para que se visse um pouco de fume!.
de resto, devias
escrever-me algo sobre Giuliano. Que che parece? ajuda-che com os teus deveres?
É também um construtor ou ainda é demasiado pequeno para merecer este
qualificativo? em resumo, quero saber um monte de cousas e visto que és tam
maior e que —isso dim—também um pouco tagarelo, tenho a certeza de que me
escreverás para já, com a mao da tua mae, umha carta mui longa, com todas essas
notícias e mais outras. eu falarei-te de umha rosa que plantei e de umha lagartixa*
que quero adestrar. dá um beijo a Giuliano da minha parte e também a tua mai e
a todos os da casa, e mae, por sua vez, dará-che um beijo por mim. Toi papa70
*Pensei que talvez nom conheças as lagartixas: som de umha
espécie de crocodilos que ficam sempre pequenos.
•
(Carta 52)
[20 de maio de 1929] Queridíssima Giulia,
os meus cumprimentos para ti e também para delio e
Giuliano. e dado que é mui provável que se produzam demoras na recepçom das
minhas cartas, será necessário que che envie hoje mesmo os parabéns para o
quinto aniversário de delio. seja como for, encomendo-che os parabéns: que
sejam muitos, muitos. Lembrarás-te? Cinco anos já. e agora delio é já maior.
Quem sabe que impressom che produz vê-lo crescer. Lembroo em abril de 25,
quando tinha a tosse convulsa e me parecia tam infeliz! Quando o vim de novo no
26 pareceu-me outro, absolutamente diferente. Neste momento, atendendo para os
limites legais da minha condena, deveria vê-lo novamente quando tenha vinte e
três anos e, com a pressa dos jovens, quando já tenha mulher e filhos. será bem
mais diferente do que em abril de 25. estou a brincar, mas penso que terá
filhos,
70 transcriçom
inexata do russo tvoi papa, «teu
papai»
porque, se a cidade quer defender-se da invasom do campo e
nom perder a sua hegemonia histórica, as novas geraçons deverám mudar os seus pontos
de vista sobre a prolificidade, nomeadamente entre vós. se a cidade cresce pola
imigraçom e nom pola sua própria força genética, poderá cumprir a sua funçom
dirigente ou será submergida, com todas as suas experiências acumuladas, polas
labregas, tam parideiras? Penso que a geraçom de delio deverá colocar-se este
problema e que sobre a sua base deverá nascer umha nova ética sexual, mais
elevada do que a atual.
abraço-te com tenrura antonio
•
(Carta 53)
[1 de julho de 1929] Querida Giulia,
podes dizer-lhe para delio que a notícia que mandache me
interessou muitíssimo, por importante e por ser suficientemente séria. Porém,
aguardo que alguém, com um pouco de cola, tenha consertado o dano feito por
Giuliano e que o chapeu nom se tenha convertido em papel de estraça. Lembras
como delio pensava em roma que eu podia arranjar todas as cousas rotas? Com
certeza, já o esqueceu. e ele, tem a tendência a consertar? esta, para mim,
seria um indício de construtividade, de caráter positivo, mais do que o jogo do
mecano. enganas-te se acreditas que eu tinha quando criança tendências...
literárias e filosóficas, como escreveche. era, polo contrário, um intrépido
aventureiro e nom saia da casa sem ter no bolso graos de trigo e mistos
envoltos em pedacinhos de hule, nom fosse acabar num ilha deserta abandonado
aos meus únicos meios. era pois um audaz construtor de barcas e de carrinhos, e
conhecia da ginjeira toda a nomenclatura marinheira: o meu maior sucesso foi
quando um latoeiro da aldeia me pediu o modelo em papel de umha maravilhosa
goleta de dous mastros, para a reproduzir em lata. estava mesmo obcecado por
estas cousas, porque aos sete anos lera Robinson
e a Ilha Misteriosa. ora bem,
acho que umha vida infantil como aquela de há trinta anos é hoje impossível:
hoje, as crianças, ao nascerem, tenhem já 80 anos, como o Lao-tsé chinês71.
o rádio e o aeroplano destruírom para sempre o robinsonismo, que foi a maneira
de fantasiar para muitas geraçons. a invençom mesma do Meccano indica como o
meninho se intelectualiza rapidamente; o seu herói nom pode ser robinson, mas o
polícia ou o ladrom científico, polo menos em ocidente. Portanto, pode-se-lhe
dar a volta ao teu parecer e só entom será exato. Nom achas?
escreveche
o peso de Giuliano, mas nom a estatura. ta-
tiana dixo-me que delio, quando pesava 18 quilos, media um
metro e oito centímetros de altura. estas notícias interessamme muito, porque
me dam impressons concretas: e porém envias demasiado poucas. aguardo que
tatiana, sendo ainda mais boa do que tu, me envie, quando estiver convosco,
muitas, muitas notícias de todo o tipo, sobre as crianças e também sobre ti.
sabes que che vai levar umha máquina fotográfica? Lembrei-me que che prometera
umha no 26 e que figera a encomenda para tatiana. Para tua mae, visto que já há
castanhas (no 25, tua mae desgostou-se comigo porque nom lhe leva-
71 Lao-tsé (604?-531 a.C.), filósofo chinês, considerado o
fundador do taoísmo. Conta a lenda que estivo setenta anos no ventre materno e
que nasceu com os cabelos brancos
ra castanhas) direi-lhe a tatiana que faga umha escolma de
cigarros de diferentes países, para levar-lhos no meu nome; gostará deles?
tenho a certeza de que sim. Querida, abraço-te com as crianças.
antonio
•
(Carta 54)
30 de julho de 1929 Querida Iulca,
recebim a tua carta do 7. as fotografias nom me chegárom
ainda; aguardo que esteja também a tua. É claro que quero verte, polo menos
umha vez por ano, para ter umha impressom um pouco mais viva: de outra maneira,
o que poderia pensar? Que mudache muito fisicamente, que estás mais magra, que
tés muitos cabelos brancos, etc. etc. e depois é preciso que che dê os parabéns
polo teu aniversário com antecipaçom: se calhar, a próxima carta ainda chega a
tempo, mas nom che estou certo. se me chegar a tua fotografia, significa que hei
de repetir os parabéns. entende-me, quereria ver-te em grupo junto às crianças,
como na fotografia do ano passado, porque no grupo há algo movimentado,
dramático, captam-se as relaçons, que podem ser prolongadas, imaginadas noutras
cenas, em episódios da vida concreta, quando o objetivo do fotógrafo nom
estiver aberto.
de
resto, creio conhecer-te o suficiente como para ima-
ginar outras cenas, mas nom podo imaginar o suficiente as
açons e reaçons das crianças nas relaçons contigo, e compreendo as açons e reaçons
vivas vez por vez, nom já os sentimentos e as disposiçons gerais: as
fotografias dim-me pouco e as minhas lembranças de criança nom me ajudam,
porque as penso com demasiados detalhes e imagino que agora é tudo diferente,
num mundo sentimental novo e com duas geraçons de diferença (poderia-se dizer
mesmo que mais, porque entre umha criança educada numha aldeia sarda e umha
criança sarda educada numha grande cidade moderna, já por este único facto,
existe umha diferença de duas geraçons, polo menos). sabes?, em ocasions
gostaria de escrever sobre ti, sobre a tua força, que é superior cem vezes ao
que tu pensas, mas duvidei sempre, porque me parece que som... um negreiro que
apalpa umha besta de trabalho. escrevim-no assim, tal qual o tenho pensado tantas
vezes. de resto, se já o pensei, tanto fai escrevê-lo também. Nom deveria
pensálo, mas será porque ainda sobrevivem em mim, no estado de sentimentos
reprimidos, muitas concepçons do passado, superadas criticamente, mas nom
apagadas ainda por completo. É claro que muitas vezes me obceca o pensamento de
que a ti che correspondêrom os pesos mais duros da nossa relaçom —os mais duros
objetivamente, se quigeres, embora só seja um matiz—e por isso nom podo deixar
de pensar na tua força, que admirei tantas vezes, sem dizê-lo, tenho tendência
antes, polo contrário, a pensar nas tuas fraquezas, nos teus possíveis
cansaços, com umha grande efusom de tenrura, que poderia ser exprimida com umha
carícia, mas dificilmente com palavras. e depois, som ainda bastante invejoso,
porque nem podo desfrutar a primeira frescura das impressons sobre a vida das
crianças, ajudando-te a guiá-los e educá-los. Lembro muitas pequenas cousas da
vida de delio em roma e também os princípios de que tu e Genia partíades ao
tratar com ele e penso novamente nisso, e procuro desenvolvê-lo e adaptá-lo a
novas situaçons. sempre chego à conclusom de que Genebra e o ambiente saturado
de rousseau e do doutor Fulpius72, que devia ser tipicamente suíço,
genebrino e rousseauniano, deixou umha grande impressom em vós. Contudo,
afastei-me demasiado (se calhar, devia escrever noutra ocasiom sobre este tema,
se estiveres interessada, para atacar-te com rousseau, que naquela ocasiom
(lembras ?) che alporiçara tanto. Querida, abraço-te. antonio
•
(Carta 55)
26 de agosto de 1929 Querida tatiana,
recebim a fotografia das crianças e estou mui contente,
como podes imaginar. também estou mui satisfeito porque me convencim com os
meus olhos de que tenhem um corpo e umhas pernas: desde os três anos só lhes
via as cabeças e começara a nascer em mim a dúvida de que se tivessem
convertido em querubins, só que sem as pequenas asas atrás das orelhas. em
resumo, tivem umha impressom de vida mais intensa. Naturalmente, nom partilho
por completo as tuas entusiastas apreciaçons. acho, de maneira mais realista,
que a sua compostura está determinada pola sua posiçom diante da maquina
fotográfica; delio está na posiçom de quem tem que cumprir umha corveia,
aborrecida mas necessária, e que toma a sério;
72
Charles
Fulpius ensinava numha escola de Genebra. G. tinha no cárcere um livro dele, um
Cours de morale sociale basé sur
l’évolution, I année, préface de auguste dide, auteur de La fin des religions. Manuel destiné à l’Éducation des enfants de 9
à 15 ans par Ch. Fulpius, Proprieté de la societé des Libres-Penseurs de
Genève [1905].
Giuliano esbugalha os olhos diante desse couso misterioso,
sem estar convencido de que nom haja umha surpresa algo incerta: poderia saltar
fora um gato raivoso ou talvez um lindo pavom. Porque se nom lhe teriam dito
que olhasse nessa direçom e que nom se movesse? tés razom quando dis que se
parece de maneira extraordinária com tua mae e nom só nos olhos, mas em toda a
parte superior do rosto e da cabeça. sabes? escrevo-che de má vontade, porque
nom tenho a certeza de que a carta che chegue antes da tua partida. e à parte,
ando mais umha vez algo escangalhado. Choveu muito e a temperatura refrescou:
isso fai-me estar mal. Venhem-me dores nos rins e neuralgias e o estômago
rejeita a comida. Mas é umha cousa normal em mim e por isso nom me preocupa
demasiado. de resto, como um quilo de uva por dia, quando a vendem; por isso
nom podo morrer de fame: a uva como-a com prazer e é de umha qualidade ótima.
Já lera um artigo do
editor Formiggini relativo às más traduçons e às propostas feitas para obviar
esta epidemia, chegando mesmo um editor a propor que se figesse responsáveis
penais aos editores polos despropósitos publicados; Formiggini respondia
ameaçando com fechar o negócio, porque até o mais escrupuloso editor nom pode
evitar publicar disparates, e com muito humor eu já via um agente da polícia
apresentando-se e dizendo: «si levasse e venisse con mia in Questura. dovesse
rispondere di oltraggio alla lingua italiana!»73
(os sicilianos falam um pouco assim e muitos guardas som
73
Gramsci
reproduz nesta frase o italiano regional da sicília. É umha piada difícil de
traduzir e nem sequer fai muito sentido traduzi-la, mas para reproduzir o seu
caráter cómico poderíamos dizer que umha versom aproximada é: «erguesse e
vinhesse com eu à esquadra. tivesse que responder pela ultragem à lingua
italiana». em definitivo, na sicília, o imperfeito do subjuntivo utiliza-se com
valor imperativo.
sicilianos). a questom é complexa e nom será resolvida. os
tradutores som mal pagos e traduzem pior. No 1921 dirigimme à delegaçom
italiana da sociedade de autores franceses com a finalidade de obter a licença
para publicar um romance por fascículos74. Por 1.000 liras obtivem a
licença e a traduçom foi feita por um fulano que era advogado. o negócio
apresentava-se mui bem e o advogado-tradutor parecia ser um profissional.
enviei entom para a gráfica, para que imprimissem o material de 10 fascículos,
de maneira que sempre estivessem prontos. No entanto, na noite anterior ao
início da publicaçom quigem revisá-la, por um escrúpulo, e pedim que me
levassem as provas de imprensa. depois de poucas linhas dei um chimpo:
encontrei que sobre umha montanha havia um enorme barco. Nom se tratava do
monte ararat e portanto da arca de Noé, mas sim de umha montanha suíça e de um
grande hotel. a traduçom era toda assim: «Morceau de roi» era traduzido como «pedacinho de rei», «goujat!», «peixinho!» e assim para a frente, de maneira ainda mais
humorística. Perante o meu protesto, o obradoiro abonou 300 liras para refazer
a traduçom e indenizar pola composiçom perdida, mas o bom foi que no momento em
que o advogado-tradutor tivo na mao as 700 liras restantes, que devia entregar
ao patrom, escapou para Viena com umha moça. até agora, polo menos, as
traduçons dos clássicos foram feitas com cuidado e escrúpulo, se nom sempre com
elegáncia. agora, mesmo neste campo acontecem cousas extraordinárias. Para umha
coleçom quase que de caráter estatal (o estado deu um subsídio de 100.000
liras) de clássicos gregos e latinos75, a traduçom da Germania de tácito
74
No
jornal L’Ordine Nuovo.
75
G.
alude à Collezzione Romana dirigida
por ettore romagnoli, da real academia Italiana, publicada polo Istituto
editoriale Italiano. a traduçom de F.
foi confiada a... Marinetti, que por outro lado é
licenciado em Letras pola sorbona. Lim numha revista umha listagem das
barbaridades escritas por Marinetti, cuja traduçom foi mui louvada pelos...
jornalistas. «exigere plagas»
(examinar as feridas) é traduzido: «exigir as pragas» e penso que avonda: um
estudante de secundária repararia em que é umha asneira sem sentido.
Querida tatiana, quem
sabe se poderás ter a carta antes da tua partida. Gostaria de que me buscasses
em roma entre os meus livros dous ou três volumes: a coletánea de conferências
sobre a Europa política no século XIX, impressa
pola Câmara de Comércio de Brescia e
o volume de Michels sobre o Partido
político e as tendências oligárquicas da democracia moderna, que possuo na
traduçom francesa anterior à guerra e na nova ediçom italiana de 1924, mui
aumentada e enriquecida.
Pedira-che há bem tempo
que me buscasses um pequeno volume de Vincenzo Morello (rastignac) sobre o
canto X do Inferno de dante, impresso
polo editor Mondadori há alguns anos (no 27 ou no 28): conseguirás lembrar-te
disso agora? sobre esse canto de dante figem umha pequena descoberta que acho
interessante e que viria a corrigir em parte umha tese demasiado absoluta de Benedetto
Croce sobre a Divina Comédia. Nom che
exponho o tema porque ocuparia demasiado espaço. acho que a conferência de
Morello é a última sobre o Canto X, cronologicamente, e por isso pode ser-me
útil, para ver se alguém mais fijo já as minhas observaçons; estranharia-me,
porque no canto X todos estám fascinados pola figura de Farinata e detenhem-se
apenas para a exami-
t. Marinetti aparecera em 1928.
nar e sublimar, e Morello, que nom é um estudioso, mas um retórico, terá-se mantido sem dúvida
fiel à tradiçom, embora de todas as maneiras gostaria de a ler. Hei de escrever
mais tarde a minha «nota dantesca» e se calhar hei-cha de enviar como um presente, escrita com umha boa
caligrafia. digo por brincar, porque para escrever umha nota deste tipo,
deveria revisar umha certa quantidade de material (por exemplo, a reproduçom
das pinturas de Pompeia) que se encontra apenas em grandes bibliotecas. Por
outras palavras, deveria reunir os elementos históricos que provam como,
tradicionalmente, da arte clássica até o medievo, os pintores rejeitárom
reproduzir a dor nas suas formas mais elementares e profundas (dor materna):
nas pinturas de Pompeia Medeia, que degola os filhos tidos com Jasom, é
representada com a face coberta por um veu, porque o pintor considera sobre-humano
e desumano dar umha expressom à sua face.
todavia, tomarei
apontamentos e talvez faga umha versom preparatória para umha futura nota. Vês
quantas trapalhadas che escrevim? tudo porque nom tinha a certeza de que a
carta che chegasse a tempo e nom permanecesse em troca descansando durante
algumhas semanas sobre a tua mesinha, à espera da tua volta. Igualmente, teria
escrito também, como é habitual, a parte para Giulia; enfim, a próxima vez
escreverei as quatro páginas inteiras para ela.
ainda:
tenta conseguir o Catálogo geral do
material esco-
lástico e subsídios
didáticos da
editora G. B. Paravia, que tem também filiais em Milám e em roma. e ainda:
lembrarás esta vez favas americanas? acho que para as encontrar tes que ir a
umha farmácia grande, que tenha na medida do possível também um laboratório.
(tudo na hipótese de que a carta chegue!).
Queridíssima, abraço-te afetuosamente.antonio
(Carta 56)
16 de dezembro de 1929 Queridíssima tatiana,
este mês escreveche pouquinho pouquinho: um postal de 28 de
novembro e umha cartinha do 29 dentro da carta de Giulia. Porém, hás de saber
que nem eu tenho neste momento muita vontade de escrever. Parece-me que todos
os vínculos com o mundo externo vam rompendo um por um. Quando estava no
cárcere de Milám duas cartas por semana nunca me chegavam: tinha a teima de
parolar por escrito. Lembras como escrevia longas, longas cartas? Poderia-se
dizer que na altura todos os meus pensamentos, durante a semana, se concentravam
na segunda-feira: «sobre que podo escrever? de que maneira podo escrever sobre
isto ou sobre isto outro, para que nom retenham a carta?» agora nom sei mais
sobre que escrever, como começar. estou-me encasulando por completo. a minha
atençom dirige-se ao que leio e traduzo. Quando reflexiono sobre mim mesmo
tenho a impressom de ter caído novamente no estado de obsessom em que me
encontrava nos anos da universidade, quando me concentrava numha questom e ela
me absorvia de tal maneira que já nom reparava em nada e algumhas vezes corria
o perigo de acabar sob o elétrico.
dis
que escreva para Giulia tantas pequenas cousas, deta-
lhes da minha vida. Mas o facto é que na minha vida nom há
nem pequenas cousas, nem detalhes, nom há claro-escuros. e é bom que seja
assim. Quando a vida no cárcere é movida, é um sinal mui feio. o único campo
que nom é como aquela pintura que representava um negro na escuridade é o
cerebral. Mas há limites, substanciais e formais. Formais, porque estou no
cárcere e tenho limites regulamentares. substanciais, porque aquilo que me
interessa tem amiúde um valor muito relativo. Neste momento, interessa-me a
questom de se a língua dos Niam Niam, que se chamam a si mesmos o povo dos
sandeh (enquanto o nome Niam Niam é atribuído por eles aos vizinhos dinka)
pertence ou nom ao ramo sudanês ocidental, mesmo se o território onde se fala
está situado no sudám oriental, entre 22° e 28° graus de longitude Leste. em
definitivo, se a classificaçom das línguas deveria fazer-se melhor conforme a
distribuiçom geográfica ou conforme o processo histórico de filiaçom, etc.,
etc.
esta
é também a razom pola qual nem sequer esta vez
escrevo a Giulia. Nom sei mesmo o que escrever. e nom quero
escrever umha carta de cortesia, como se di. devo refletir ainda sobre alguns
problemas e como nom os resolvim, nom consigo escrever. (Nem sei se os
conseguirei resolver). o problema fundamental é este: devo pensar em Giulia e
tratar com ela conforme os esquemas da psicologia banal, atribuídos
ordinariamente ao mundo feminino? repugnaria-me em sumo grau. Porém... como
achas que que deve interpretar-se a sua carta, onde me di que após a minha
carta de 30 de julho se sentiu mais próxima de mim e que de outra parte ficasse
quatro messes sem escrever-me, precisamente depois dessa carta? até agora nom
conseguim encontrar a síntese superior desta contradiçom e nom sei se a
conseguirei encontrar. É por isso que me abstenho. escreves que nom te decides
a mandar a Giulia a minha última carta, porque poderia fazer-lhe mal. É certo
que lhe fará mal, mas nom considero que isso seja umha boa razom. aliás, tenho
a certeza de que ela mesma prefere conhecer exatamente o meu estado de ánimo.
achas que me alegra escrever estas cousas? Porém, cheguei ao ponto em que me
encontrava, como já dixem, quando estava na universidade: naquela época nunca
escrevia cartas. Quando eu me encontro diante de umha questom que nom podo
resolver e estou convencido de que realmente nom podo resolvêla, abandono-a e
nom penso mais nela. Fago-o por respeito a mim próprio e também por respeito
aos demais: estimo demasiado Giulia como para considerá-la umha burguesinha
sentimental, que sei eu, como a protagonista de eugénio onéguin76,
por exemplo. Nom achas, querida tatiana? enfim, envia esta carta para Giulia: nom
deixa de estar dirigida a ela, mesmo se de maneira indirecta. Queridíssima
tatiana, vês quantos desgostos che estou a dar nestes últimos tempos? Lamento-o
muitíssimo, podes-me crer. abraço-te com tenrura. antonio
•
(Carta 57)
19 de dezembro de 1929 Queridíssimo Carlo, recebim a carta
de 4 de dezembro de mamae e a tua do 13. agradeço-che o zelo com que levaste a
cabo as minhas encomendas. entre os objetos de vestiário que tinha em roma nom
che entregárom também um casaco? acho que estava ainda aceitável, mesmo se já
nom era mui novo. estou a falar de um casaco de inverno, porque o outro, tipo
gabardina, já estava feito um farrapo. Mas se calhar recebeche-lo e esqueceche
escrever-me a respeito disso. dos dous pares de sapatos nom lembro mais nada:
porém, penso que devem estar mui estragados e já inservíveis.
76
tatiana
Larina, protagonista do romance em verso de Pushkin.
Naturalmente, pido-che
que nom lhe metas mais na cabeça a mamae que é capaz de fazer umha viagem a
turi: só pensar na hipótese pom-me medo. acho que já abusa demasiado da sua
fibra excecional trabalhando com a sua idade e com tanta teimosia: já deveria
ter direito à reforma, de existir a reforma para as maes de família. acho que o
primeiro contato com o cárcere causou em ti umha impressom mesmo péssima:
imagina que impressom lhe poderia causar a ela. Nom se trata tanto de que a
viagem seja longa, com todos os seus incómodos, para umha mulher anciá que
nunca fijo mais de 40 km. em trem, nem atravessou o mar (se calhar, a viagem em
si poderia diverti-la): trata-se de umha viagem deste tipo, feita para visitar
um filho no cárcere. Parece-me que cumpre evitá-la, custe o que custar.
e afinal que lhe
contache? espero que nom exagerasses em nengum sentido: polo demais, tu mesmo
viste que nom estou nem abatido, nem desanimado, nem deprimido. o meu estado de
ánimo é tal que, mesmo se me condenassem a morte, continuaria a estar tranquilo
e mesmo na tarde anterior à execuçom talvez estudaria umha liçom de chinês. a
tua carta, e aquilo que escreves sobre Nannaro, interessou-me muito, mas também
me surpreende. Vós os dous tendes feito a guerra: nomeadamente Nannaro, que
fijo a guerra em condiçons extraordinárias, como mineiro, baixo terra, sentindo
através do diafragma que separava a sua galeria da galeria austríaca como
trabalhava o inimigo apurando o estourido da mina para mandá-lo polo ar. opino
que em condiçons semelhantes, prolongadas durante anos, com essas experiências
psicológicas, o homem deveria ter alcançado o grau máximo de serenidade estoica
e ter adquirido a convicçom profunda de que tem em si próprio a fonte das
próprias forças morais, que tudo depende de si, da sua energia, da sua vontade,
da férrea coerência dos fins que se propom e dos meios que desprega para os
levar à prática, para nom desesperar nunca mais e nom cair mais nesses estados
de ánimo vulgares e banais que se chamam pessimismo e otimismo. o meu estado de
ánimo sintetiza estes dous sentimentos e supera-os: som pessimista com a
inteligência, mas otimista pola vontade77. Penso, em qualquer
circunstáncia, na pior das hipóteses, para pôr em movimento todas as reservas
de vontade e ser capaz de derrubar os obstáculos. Nunca me figem ilusons nem
desilusons. em particular, armei-me sempre com umha paciência ilimitada, nom
passiva, inerte, mas animada de perseverança.
Com certeza, hoje há
umha crise moral mui grave, mas no passado houvo-as bem mais graves e há umha
diferença entre hoje e o passado. [...]78. Por isso, som também um
pouco indulgente e pido-che que sejas indulgente com Nannaro que, vim-no eu
mesmo, também sabe ser forte. só quando está isolado, perde a cabeça e se
encoleriza. talvez lhe escreva a próxima vez.
Querido Carlo, dei-che
um sermom em toda a regra. esquecia entretanto recomendar-che que cumprimentes
muito e dês os parabéns para teresina e também para Paolo, naturalmente, pola
sua nova filha. além disso, devo dar os parabéns gerais polo Natal e por todas
as outras festas que virám. eu festejarei o Natal o melhor possível, um pouco
como o famoso senhor Chiu, de quem falava mamae quando éramos pequenos.
77
esta
expressom, frequentemente citada, é do escritor romain rolland; foi assumida
por G. quase como lema.
78
seis
linhas riscadas pola censura. G. refere-se à crise económica mundial que
estourou em outubro de 1929, com umha enorme queda de títulos na Bolsa de Nova
Iorque, cujas consequências atingírom bem depressa a Itália, com um aumento das
crebas finaceiras, do desemprego, etc.
abraça a todos
afetuosamente e nomeadamente a mamae. teu antonio
•
(Carta 58)
30 de dezembro de 1929 Querida Giulia,
nom me lembrei de perguntar a tatiana, com quem conversei
há alguns dias, se che enviou as duas últimas cartas minhas para ela. acho que
sim, porque lhe pedira que o figesse; dado que eu queria que estivesses
informada de um certo estado de ánimo meu, que se atenuou, mas que ainda nom
desapareceu por completo, mesmo a custo de procurar-che algum desgosto.
Lim com muito interesse
a carta em que me dás umha impressom do grau de desenvolvimento de delio. as
observaçons que faga tenhem que ser julgadas, naturalmente, tendo presente
alguns critérios limitativos: 1) que ignoro quase todo sobre o desenvolvimento
das crianças, precisamente no período em que o desenvolvimento apresenta o
quadro mais caraterístico da sua formaçom intelectual e moral, após os dous
anos, quando dominam com umha certa precisom a linguagem e começam a formar
nexos lógicos, além das imagens e as representaçons; 2) que o melhor juízo do
itinerário educativo das crianças é, e só pode ser, de quem as conhece de perto
e pode acompanhá-las em todo o processo de desenvolvimento, desde que nom se
deixe cegar polos sentimentos, perdendo com isso qualquer critério,
abandonando-se à pura contemplaçom estética do meninho, que é degradado de
maneira implícita à funçom de umha obra de arte.
Portanto, tendo em
conta estes dous critérios, que som aliás um único critério com duas
coordenadas, penso que o estado de desenvolvimento intelectual de delio, como
se depreende daquilo que me escreves, está mui atrasado para a sua idade, é
demasiado infantil. Quando tinha dous anos, em roma, tocava o pianoforte, isto
é, já compreendera a diferente gradaçom local das tonalidades sobre o teclado,
por meio dos ruídos dos animais: o pintinho à direita e o urso à esquerda, com
os intermédios de outros animais vários. Para umha idade de dous anos ainda nom
cumpridos, este procedimento era compatível e normal; mas com cinco anos e
algum mês, o mesmo procedimento aplicado à orientaçom, embora seja num espaço
muitíssimo maior (nom tanto quanto pode parecer, porque as quatro paredes do
quarto limitam e concretam este espaço), está mui atrasado e infantil.
Lembro com muita
precisom que com menos de cinco anos, e sem ter saído nunca da aldeia, quer
dizer, tendo das dimensons um conceito mui limitado, sabia encontrar com a vara
a vila onde vivia, tinha umha impressom do que era umha ilha e encontrava as
cidades principais da Itália num grande mapa mural; por outras palavras, tinha
um conceito da perspetiva, de um espaço complexo e nom apenas de linhas
abstratas de direçom, de um sistema de medidas relacionadas, e da orientaçom
conforme a posiçom dos pontos nestas conexons, acima-abaixo, direita-esquerda,
como valores espaciais absolutos, fora da posiçom excecional dos meus braços.
Nom acho que tenha sido excecionalmente precoz, antes polo contrário. em geral,
tenho observado como os «grandes» esquecem facilmente as suas impressons
infantis, que a umha certa idade esvaecem num conjunto de sentimentos ou de
lamentos ou de comicidade ou outra deformaçom. Igualmente, esquece-se que a
criança se desenvolve intelectualmente de umha maneira mui rápida, absorvendo
desde os primeiros dias do nascimento umha quantidade extraordinária de imagens
que som lembradas ainda depois dos primeiros anos e guiam a criança nesse
primeiro período de juízos mais reflexivos, possíveis depois da aprendizagem da
linguagem. Naturalmente, nom podo emitir juízos e impressons gerais, devido à
ausência de dados específicos e numerosos; ignoro quase tudo, por nom dizer
tudo, dado que as impressons que me comunicache nom tenhem qualquer vínculo
entre elas, nom mostram um desenvolvimento. Mas a partir do conjunto destes
dados tivem a impressom de que a tua conceiçom e a do resto da tua família é
demasiado metafísica, quer dizer, pressupom que na criança está em potência o
homem completo e que é preciso ajudá-lo a desenvolver aquilo que já contém em
latência, sem coerçons, deixando fazer às forças espontáneas da natureza, ou
que sei eu. No entanto, penso que o homem é toda umha formaçom histórica,
obtida com a coerçom (entendida nom só num sentido brutal e de violência
externa) e penso apenas isto: que de outra maneira se cairia numha forma de
transcendência ou de imanência. aquilo que se acha força latente nom é, quando
menos, senom o conjunto informe e indiferenciado de imagens e de sensaçons dos
primeiros dias, dos primeiros messes, dos primeiros anos de vida, imagens e
sensaçons que nem sempre som as melhores do que se quer imaginar. esta maneira
de conceber a educaçom, como o desnovelamento de um fio pré-existente tivo a
sua importáncia quando se contrapunha à escola jesuítica, isto é, quando era a
negaçom de umha filosofia ainda pior, mas hoje está igualmente superada.
renunciar a formar a criança significa apenas permitir que a sua personalidade
se desenvolva, acolhendo de maneira caótica do ambiente geral todos os
fundamentos de vida. É estranho e interessante que a psicanálise de Freud
esteja a criar, nomeadamente na alemanha (a julgar polas revistas que leio)
tendências semelhantes às existentes na França no século dezoito; e que vaia
formando um novo tipo de «bom selvagem» corrompido pola sociedade, isto é, pola
história. a partir disso nasce umha nova forma de desordem intelectual muito
interessante.
em
todas estas cousas me fijo pensar a tua carta. Pode
ser, até é mui provável, que algumha apreciaçom minha seja
exagerada e até injusta. reconstituir a partir de um ossinho um megatério ou um
mastodonte era próprio de Cuvier, mas pode acontecer que com um pedaço da cola
de um rato se reconstrua polo contrário umha serpe de mar.
abraço-te afetuosamente. antonio
•
(Carta 59)
13 de janeiro de 1930 Queridíssima tania,
recebim com algum dia de demora a tua carta do 5, porque
foi taxada, certamente por erro. enviaste-la desde turi, sem dúvida e o
franqueio de 25 céntimos era pois correto. Haverá que fazer um recurso. seja
como for, advirto-che que se neste caso o funcionário dos correios nom tinha
razom, noutros casos tinha-a: enches demasiado os postais polo lado do
endereço, apesar de que nunca se deve escrever por cima da legenda «carta
postal» e talvez nem sequer por cima do emblema do estado. o postal vem taxado
com 40 céntimos e em ocasions provoca que se demore três dias por causa das
diligências precisas.
agradeço-che
as notícias que me enviache sobre a família.
Quanto ao meu estado de ánimo, penso que nom o
compreendeche mui bem. Porém, devo dizer que é difícil para qualquer pessoa
compreender estas cousas à perfeiçom, porque concorrem demasiados elementos
para formá-las, e muitos deles som quase impossíveis de imaginar; tanto menos é
possível, certamente, imaginar o conjunto em que se combinam. Nestes dias,
justamente, lim um livro, Dal 1848 al
1861, em que se recolhem cartas, escritos, documentos relativos a silvio
spaventa79, um patriota abruzzês, deputado no Parlamento napolitano
do 48, detido após o falhanço do alçamento nacional, condenado a prisom
perpétua e liberado em 1859 polas pressons da França e da Inglaterra; a seguir,
ministro do reino e umha das personalidades mais salientes do partido liberal
de direita até o 1876. Pareceu-me que em muitas cartas, com a linguagem do
tempo, quer dizer, um tanto romántica e sentimental, exprime à perfeiçom uns estados
de ánimo semelhantes àqueles polos que passo amiúde. Por exemplo, numha carta
ao pai de 17 de julho de 1853 escreve: «de vós, nom tenho notícias desde há
dous messes; desde há quatro, ou talvez mais, das irmás; e, desde há algum
tempo, de Bertrando (seu irmao). achades vós que para um homem como eu, que me
prezo de ter um coraçom afetuoso e em plena juventude, esta privaçom nom há de
tornar-se excessivamente dolorosíssima? Nom penso que seja agora menos amado do
que o fum sempre pola minha família; mas a desventura costuma ter dous efeitos,
que amiúde deixam apagar qualquer afeto polo desventurados e, nom menos amiúde,
apaga nos desventurados qualquer afeto por todos. Nom temo o primeiro destes
dous efeitos em vós mas o segundo em mim; depois do qual, sequestrado como
estou aqui de qualquer trato humano e amoroso, o grande té-
79 silvio spaventa, Dal
1848 al 1861. Lettere, scritti, documenti, publicados por Benedetto Croce,
Laterza, Bari, 1923.
dio, o longo cativeiro, a suspeita de ser esquecido por todos
me amarga e esteriliza lentamente o coraçom». Como dizia, à parte a linguagem
correspondente com o temperamento sentimental da época, o estado de ánimo
destaca notavelmente. e, aquilo que me conforta: o spaventa nom foi, com
certeza, umha personalidade débil, um choramingas como outros. ele foi dos
poucos (uns sessenta) que de entre os mais de seiscentos condenados no 48 nunca
quijo pedir a amnistia ao rei de Nápoles; nem se deu à devoçom, polo contrário:
como escreve amiúde, foi-se persuadindo cada vez mais de que a filosofia de
Hegel era o único sistema e a única conceiçom do mundo racionais e dignas do
pensamento naquela altura.
sabes,
pois, qual será o efeito prático desta concordáncia
que encontrei entre os meus estados de ánimo e os de um
preso político do 48? Que desde de agora ham de parecer-me um pouco cómicos,
ridiculamente anacrónicos. Passárom três geraçons e andou-se caminho, em todos
os campos. aquilo que era possível para os avós, nom é possível para os netos
(nom me refiro aos nossos avós, porque meu avô, nom cho dixem nunca, chegou a
ser coronel da gendarmeria borbónica e provavelmente estivo entre os que
detivérom o spaventa antiborbónico e fautor de Carlo alberto); objetivamente
entende-se, que de maneira subjetiva, isto é, no nível individual, as cousas
podem mudar.
Querida tania, ontem
foi o teu santo; achava que poderia dar-che os parabéns em pessoa, e porém
apenas podo darchos por escrito um dia mais tarde e tu ainda os lerás dentro de
alguns dias. aguardo que te reponhas e que podas sair da casa, se o tempo
continua como hoje. sabes como lamento que as tuas viagens a turi, para algo
mais de meia hora de conversa, te fatiguem tanto e te fagam até cair doente.
estou convencido de que te descuidas demasiado: lembro que Genia era mais ou
menos como tu quando a conhecim no sanatório e depois, quando entrámos numha
certa confiança, devia ameaçá-la com pauladas para fazer que comesse: escondera
ao médico centos de ovos que devia ter comido e que no entanto escondera, e
assim para a frente. tua mae riu muito quando soubo a história das minhas
intimidaçons, mas deu-me a razom. também tu necessitarias que che colhessem das
orelhas, embora fosse com um certo benevolência: acho que perdeche o gosto de
viver para ti e que vives apenas para os demais. Nom será um erro? e vivendo
também para ti, fortalecendo a tua saúde, nom viverás também melhor para os
demais, se assim gostas e se isso é o teu único gosto? sinto muita tenrura por
ti e quereria ver-te sempre forte e sá; também isto me amarga, saber-te aqui em
turi, assim, doentia, débil, somente para me dares um pouco de conforto e
romper o meu isolamento. Já chega. esta carta devia ser para minha mae. Pidoche
que lhe escrevas, para que nom se alarme por nom receber notícias minhas.
Querida, abraço-te.
antonio
•
(Carta 60)
7 de abril de 1930
Queridíssima tania,
recebim o que me enviache. soubem que che devolvêrom a
caneta estilográfica; parece-me que che escrevera que as canetas estilográficas
nom podem ser enviadas em nengum caso, mas vê-se que depois o esquecim. de
resto, podias te-lo pensado quando mandei a minha, junto com relógio e a
medalha, todas eles considerados objetos de valor e que nom se podem conservar,
nem sequer no depósito. acho que até o famoso saco nom me poderá servir para
nada; a dizer verdade, nom consigo nem imaginar para que pode servir em geral;
talvez para ir à caça dos ouriços-cachos? Quem sabe o que pensavas quando
mandache que o figessem! Pensarias, é claro, que fazias algo útil e cómodo; por
isso che agradeço também este saco; seja como for, há de ser-me mui útil.
estaria-che agradecido
se me enviasses umha lista completa dos livros que che enviei para fora:
reconstruindo-a polas minhas contas esquecim algum, porque as contas nom me
saem. Quereria tê-la para que depois nom me aconteça ter que procurar
inutilmente entre o resto.
Il
Diavolo a Pontelungo é
bastante «histórico», no sentido em que o experimento da Baronata80
e o episódio de Bolonha de 1874 acontecêrom realmente. Como em todos os
romances históricos deste mundo, é histórico o marco geral, mas nom as
personagens e os acontecimentos concretos, um por um. aquilo que fai com que
este romance seja interessante, para além das notáveis qualidades artísticas, é
a quase ausência da acridez sectária do autor. Na literatura italiana, para
além do romance histórico de Manzoni, existe nesta classe de produçom umha
tradiçom essencialmente sectária, que se remonta ao período entre o 48 e o 60;
de umha parte, está o fundador da família Guerrazzi81, de outra o
padre jesuíta Bresciani. Para
80
a
«Baronata», fazenda nas proximidades de Lucarno, comprada por Carlo Cafiero e
posta à disposiçom de Bakunin. devia servir como refúgio para os
internacionalistas e como depósito de armas. Bakunin dirigiu tam mal a
«Baronata», que em 1874 fracassou. o «episódio de Bolónia» é a tentativa
insurreccional de 7-9 de agosto de 1874, organizado por Bakunin, terminou com a
detençom de numerosos internacionalistas.
81
Francesco
Guerrazzi (1804-1873), escritor e patriota. tomou parte nos
Bresciani, todos os patriotas eram canalhas, velhacos,
assassinos, etc., enquanto os defensores do trono e do altar, como se dizia
entom, eram todos anjinhos baixados à terra para mostrarem milagres. Para
Guerrazzi, entende-se, as partes invertiam-se; os papistas eram todos sacos do
mais negro carvom, enquanto os defensores da unidade e independência nacionais
eram todos os mais puros heróis de lenda. a tradiçom mantivo-se até há
pouquíssimo tempo, para a literatura de folhetim publicada em fascículos, nas
duas fileiras tradicionais; na literatura chamada artística e culta, a parte
jesuítica tivo o monopólio. Bacchelli em Il
Diavolo a Pontelungo demonstrase
independente, ou quase; o seu humor chega raramente a ser umha opiniom
preconcebida, está nas cousas mesmas, mais que numha opiniom extra-artística
preconcebida do escritor.
sobre a filha de Costa
e da Kulisciof tem um romance especial, a Gironda,
de Virgilio Brocchi, que nom sei se leche. Vale bem pouco, é adocicado,
todo leite e mel, na linha dos romances de Georges ohnet. Narra precisamente as
vicissitudes polas quais andreina Costa casa com o filho do industrial católico
Gavazzi e a sucessom de contatos entre as duas atmosferas, católica e
materialista, e como se moderam os contrastes: omnia vicit amor. Virgilio Brocchi é o nosso ohnet nacional. o
livro de d’Herbigny sobre soloviov está mui antiqua-
do, embora só agora fosse traduzido para o italiano. Porém,
d’Herbigny é um monsenhor jesuíta de grandes capacidades; neste momento está à
cabeça da seçons oriental da Cúria pontifícia, que trabalha pola volta à
unidade entre católicos e ortodoxos.
acontecimentos de 1848-49; os seus romances desempenhárom
um grande papel na preparaçom dos ánimos para a conquista da independência
italiana.
também
o livro sobre L’Action Française et le
Vatican fi-
cou já antiquado:
é apenas o primeiro volume de umha série que talvez continue ainda, porque
daudet e Maurras nom se cansam de servirem, com diferentes molhos, os mesmos pratos:
mas justamente por isso este volume, como exposiçom de princípios, pode parecer
ainda interessante. Nom sei se chegache a perceber toda a importáncia histórica
que o conflito entre o Vaticano e os monárquicos franceses tem na França: ele
equivale, em certa medida, à reconciliaçom italiana. É a forma francesa de umha
conciliaçom profunda entre o estado e a Igreja: os católicos franceses, como
massa organizada na açom Católica francesa, cindem-se da minoria monárquica,
quer dizer, deixam de ser a reserva popular potencial para um golpe de estado
legitimista e tendem, polo contrário, a formarem um vasto partido de governo
republicano católico, que quereria absorver, e absorverá certamente, umha parte
notável do atual partido radical (Herriot e Cia.). Foi normal que no 26,
durante a crise parlamentar francesa, enquanto a «Action Française» pré-anunciava o golpe de força, e publicava os
nomes dos futuros ministros que deviam constituir o governo provisório que
teria reclamado o pretendente Jean IV de orleans, o chefe dos católicos
aceitasse entrar a fazer parte de um governo de coaliçom republicana. a lívida
rábia de daudet e Maurras contra o cardeal Gasparri e o núncio pontifício em
Paris deve-se mesmo à consciência adquirida de terem diminuído politicamente
90%, por dizer pouco.
Queridíssima, esqueço
sempre escrever que me envies alguns medicamentos: lembram-mo as nevrálgias que
voltárom hoje. Queria um pouco de aspirina Bayer e uns poucos comprimidos do
doutor Faivre contra a hemicrania. Para dormir nom me envies nada, porque estou
estável; durmo pouco, é verdade (3 ou 4 horas por noite), mas já nom me
acontece o estar sem dormir mais do que 4 ou 5 noites seguidas, que é já um
grande progresso.
Há alguns dias recebim
umha breve carta de Carlo; pedeme para responderes umha carta sua. o pobre está
mui triste, porque está no desemprego e está preocupado porque, como nom me tem
mandado dinheiro desde há alguns messes, pensa que estou desprovido;
escreve-lhe que tenho ainda dinheiro e que o terei ainda durante messes. Por
outra parte, eu mesmo poderei escrever-lhe dentro de uns dias, porque terei a
carta extraordinária de Páscoa. Queridíssima, estou contente porque segues,
como dis, a cura dos ovos. acho isto fundamental para ti; estou convencido, por
experiência, de que umha parte notável do teu mal-estar está causada pola
escassa nutriçom. deves procurar aumentar polo menos dez quilos e voltar ser
como eras quando frequentavas a universidade, tal qual apareces numha
fotografia que lembro, feita na clínica da universidade, acho. deves fazer
mesmo assim.
abraço-te com tenrura. antonio
•
(Carta 61)
5 de maio de 1930 Queridíssima Giulia,
numha conversa recente, tatiana pintou-me um quadro
discretamente escuro do teu estado de ánimo e das tuas condiçons de saúde.
Numha carta anterior informara-me das doenças que atingírom tanto delio como
Giuliano. ora bem, pareceu-me que a própria tatiana está escassamente informada
e apenas por via indireta, e nom sei que juízo formar-me.
Vejo pavorosamente longínquo o tempo em que me asseguravas
que nom me ocultarias nada relativo à tua saúde e ao desenvolvimento das
crianças. Vê-se que mudache de opiniom, e algumha razom deve haver para esta
mudança, embora nom consiga imaginá-la. Penso que deves estar verdadeiramente
mui mal, deves estar mesmo cansa. Mas qual o motivo de nom fazer-me saber
algumha cousa, por que fazer aumentar o sentido da impotência que já tenho por
todas as limitaçons da vontade e da liberdade a que fum condenado polo tribunal
especial para a defesa do estado? se tatiana nom tivesse estado na Itália e nom
me tivesse informado de quando em quando, nom sei que poderia ter feito; se
calhar, teria recorrido ao consulado. Penso que deves fazer um grande esforço
por ti mesma, para me informares com muita sinceridade e franqueza sobre as tuas
condiçons e as das crianças, sem agacharme mesmo nada; estou reduzido a tal
condiçom que prefiro receber más notícias antes do que nom receber notícias em
absoluto, o qual me fai pensar nas piores cousas.
espero. abraço-te. antonio
•
(Carta 62)
19 de maio de 1930 Queridíssima tatiana,
recebim as tuas cartas e postais. Fijo-me sorrir outra vez
a curiosa conceiçom que tés da minha situaçom carcerária. Nom sei se leche as
obras de Hegel, que escreveu que «o criminoso tem direito à sua pena»82. tu imaginas-me, mais ou
82 G.
alude à seguinte passagem da Philosophie
des Rechts: «a pena que co-
menos, como um que reivindica com insistência o direito de
sofrer, de ser martirizado, de nom ser defraudado nem um minuto, nem um segundo
num matiz da sua caneta. seria um novo Gandhi, que quer dar testemunho perante
os superiores e os inferiores dos tormentos do povo indiano, um novo Jeremias
ou elias, ou nom sei que outro profeta de Israel que ia para a praça comer
cousas imundas, para se oferecer em holocausto ao deus da vingança, etc. etc.
Nom sei como te figeche essa ideia, que é mui ingénua nas tuas relaçons
pessoais e bastante injusta nas tuas relaçons para comigo, injusta e
desconsiderada. dixem-che que som eminentemente prático; penso que nom entendes
o que quero dizer com esta expressom, porque nom fás nengum esforço para te pôr
na minha posiçom (provavelmente, devo aparecer pois ante ti como um comediante,
ou que sei eu). a minha praticidade consiste nisto: em saber que se bato a
cabeça contra a parede é a cabeça que rompe, e nom o muro. Mui elementar, como
vês, e contudo mui difícil de entender para quem nom deveu pensar nunca em
poder bater a cabeça contra a parede, mas que sentiu dizer que chega com dizer:
«abre-te sésamo!», para que o muro se abra. a tua atitude é inconscientemente
cruel; tu vês alguém atado (na verdade, nom o vês atado, nom consigues ver as
ataduras) que nom quer mover-se, porque nom pode mover-se. Pensas que nom se
move porque nom quer (e nom vês que, por ter querido mover-se, as ataduras mancárom-lhe
rresponde
ao delinquente, nom é apenas justa em si —, entanto que justa é, ao mesmo
tempo, a sua vontade e é, em si, umha existência da sua liberdade, o seu
direito; também é um direito, que reside no próprio delinquente, quer dizer, na
sua vontade existente, na sua açom. Pois na sua açom, como na de qualquer ser
racional, há algo de universal; por meio dela, afirma-se umha lei, que
reconheceu para si e sob a qual, portanto, pode ser subsumido, como sob o seu
direito» (trad. da versom it. de F. Messineo, Laterza, Bari, 1954, s 100, p.
97).
as carnes) e entom, dá-lhe, atíça-lo com varas de ferro
incandescentes. Que obtés? Consegues que se contorcione e às ataduras que já o
dessangram acrescentas as queimaduras. este quadro horripilante, próprio de um
romance de fo-
lhetim sobre a Inquisiçom espanhola, penso que nom che há
de convencer, abofé, e continuarás; e como as varas incandescentes som também
puramente metafóricas, acontecerá que continuarei ainda com o meu «costume» de
nom romper os muros a cabeçadas (já me dói avondo a cabeça para aturar
semelhantes golpes), deixando de parte, sem resolver, aqueles problemas para os
que me faltam os elementos indispensáveis. esta é a minha força, a minha única
força, e esta, precisamente, é a que gostaríades de me tirar. aliás, é umha
força que nom se pode oferecer para os demais, infelizmente; pode perder-se,
mas nom se pode presentear nem transmitir. acho que tu nom meditache avondo
sobre o meu caso e nom sabes descompô-lo nos seus elementos. estou submetido a
vários regimes carcerários: está o regime carcerário constituído polas quatro
paredes, pola grade, polo janelo, etc., etc., que já fora previsto por mim, e
como probabilidade secundária, porque a probabilidade primária, desde 1921 a
novembro de 1926, nom era o cárcere, mas sim perder a vida. o que nom fora
previsto por mim era o outro cárcere, que se acrescentou ao primeiro,
constituído pola perda, nom só da vida social, mas também da vida familiar,
etc. , etc.
Podia prever os golpes
dos adversários que combatia; nom podia prever que me chegariam golpes também
de outras partes, desde onde menos podia suspeitá-los (golpes metafóricos,
entenda-se, mas também o código distingue nos crimes entre atos e omissons;
isto é, também as omissons som culpas ou golpes). eis todo. Mas estás tu,
dirás. É verdade, és mui boa e eu quero-te muito. Mas nom som estas cousas em
que sirva a substituiçom da pessoa e além de mais, a cousa é mui, mui
complicada e difícil de explicar bem (até pola questom dos muros nom metafóricos).
eu, para dizer verdade, nom som mui sentimental, e nom som as questons
sentimentais as que me atormentam. Nom é que seja insensível (nom quero adotar
a pose de cínico ou de blasé); antes
polo contrário, também as questons sentimentais que se me apresentam vivo-as em
combinaçom com os outros elementos (ideológicos, filosóficos, políticos, etc.),
de maneira que nom saberia dizer até onde chega o sentimento e onde começa,
polo contrário, um dos outros elementos; se calhar, nem sei dizer de umha
maneira precisa que elementos som estes, tam unidos como estám num tudo
inseparável e com umha vida única. talvez seja esta umha força; talvez seja
também umha debilidade, porque leva a analisar os demais da mesma maneira, e
consequentemente, se calhar, a tirar conclusons erradas. Mas nom continuo,
porque estou escrevendo umha dissertaçom e polo que parece é melhor nom
escrever nada antes do que escrever dissertaçons.
Queridíssima tatiana,
nom te preocupes tanto polas camisolas; com as que tenho podo fazer aguardar as
que me enviares. Nom me mandes o termos ou
antes, manda-mo só depois de conseguires, por parte da direçom, a certeza de
que mo darám; para tê-lo no depósito é melhor nom tê-lo.
a senhora Pina mora
justo na via Montebello 7; nom penso
que vaia vir para já, antes polo contrário. enviarei-che para fora outros
poucos livros e duas camisas esfarrapadas.
escreve
para a minha mae, sauda-a da minha parte e as-
segura-lhe que estou bastante bem.
abraço-te com tenrura. antonio
•
(Carta 63)
2 de junho de 1930 Queridíssima tatiana,
recebim as camisolas que me enviache e agradeço-cho. Nom
tenho mais roupa branca estragada para te enviar, além das duas camisas que
recebeche; até estas se rasgárom justo nestas duas últimas semanas; estavam mui
desgastadas, mas nom estavam esfarrapadas, como tu mesma podes verificar se as
observares. Por isso, nom esperes nada; as tuas virtudes de remendona nom terám
ocasions para se manifestarem, polo menos desta vez. recebim também as tuas
duas cartas de 24 e de 31 de maio. estás mui enganada se pensas que devo
compadecer-te, porque «estás decidida a nom esconder-me nada», ou quando
escreves que «a tua sinceridade te obriga a ser cruel, sem esconder-me a
verdade». Polo contrário, parece-me que foste bem mais cruel por esperares três
anos para me escrever certas notícias. Mas nom cho levo a mal: renunciei a
entender algumhas cousas, já me convencim de que, por umha razom ou por outra,
nunca conseguirei ter elementos suficientes para entender algumhas cousas. os
postais de teu pai, que me transcreves, convencêrom-me justamente disso.
Queridíssima, quero
escrever-che sobre um tema que te há de aborrecer ou que te fará rir. dando
umha vista de olhos ao pequeno Larousse, voltou-me à memória um problema
bastante curioso. sendo criança, era um incansável caçador de lagartixas e de
serpes e dava de comer a um falcom mui bonito que domesticara. durante aquelas
caçarias nos campos da minha aldeia (Ghilarza), aconteceu-me três ou quatro
vezes encontrar um animal muito semelhante com a serpe comum (culebra), só que
com quatro patinhas, duas perto da cabeça e duas bem longe das primeiras, perto
da cauda (se se pode chamar assim): o animal media 60-70 centímetros de
longitude, era mui largo em relaçom à longitude; a sua largura corresponde com
a de umha culebra de 1 metro 20 ou de um 1 metro e 50. as patinhas nom lhe eram
mui úteis, porque fugia deslizando mui devagar. Na minha aldeia, este réptil
chamase de scurzone, que viria sendo
«cortado» (curzu quer dizer «curto») e o nome refere-se, é claro,
ao facto de ele parecer umha culebra cortada (olha que existe também o
licranço, que une à pouca longitude a proporcionada finura do seu corpo). em
santu Lussurgiu, onde figem os três últimos anos do ginnasio, perguntara ao professor de História Natural (que era na
realidade um antigo engenheiro do lugar) como é que se chamava em italiano ao scurzone. ele riu e dijo-me que era um
animal imaginário, o áspide ou o basilisco, e que nom conhecia qualquer animal
como o que eu descrevia. os rapazes de santu Lussurgiu explicárom que na sua
aldeia scurzone era precisamente o
basilisco, e que o animal descrito por mim se chamava coloru (coluber latino),
enquanto a culebra se chamava colora em
feminino, mas o professor dixo que eram todas superstiçons de camponeses e que
as culebras com patas nom existem. sabes como fai raivar a um rapaz ver que nom
lhe dam a razom, quando sabe porém que tem a razom, ou que até se burlem dele
por supersticioso, quando se trata de cousas reais; acho que se ainda lembro o
episódio é devido a esta reaçom contra umha autoridade posta ao serviço da
ignoráncia segura de si mesma. aliás, na minha aldeia nom ouvira nunca falar
nas propriedades maléficas do basilisco-scurzone,
que no entanto era temido e circundado de lendas noutros países. ora,
precisamente no Larousse vim na tábua dos répteis um sauriano, o seps, que é justamente umha culebra com
quatro patinhas (o Larousse di que vive na espanha e na França meridional; é da
família dos scincidés, cujo representante típico é o scinque (talvez o lagarto verde?). a
figura do seps nom condiz muito com o
scurzone da minha aldeia: o seps é umha culebra regular, fina,
longa, proporcionada, e as patinhas estám unidas ao corpo de forma harmoniosa;
o scurzone, polo contrário, é um
animal repelente: a sua cabeça é mui grande e nom pequena, como a das culebras;
a «cauda» é bastante cónica; as duas patinhas de diante estám demasiado
próximas da cabeça, e além disso estám demasiado afastadas das patas traseiras;
as patas som alvacentas, mal-sás, como as do proteu, e dam a impressom de
monstruosidade, de anormalidade. o animal todo, que vive em lugares húmidos (eu
via-o sempre que fazia rolar grandes pedras) dá umha impressom falta de graça,
nom como a lagartixa ou a culebra, que à parte da repulsom genérica do homem
polos répteis, som no fundo elegantes e graciosas. Gostava de saber agora,
graças à tua sabedoria em história natural, se este animal tem um nome italiano
e se se conhece que em sardenha existe esta espécie, que deve ser da mesma
família do seps francês. É possível
que a lenda do basilisco impedira procurar o animal em sardenha; o professor de
santu Lussurgiu nom era um estúpido, antes polo contrário, era mesmo mui
estudioso; fazia coleçons mineralógicas, etc., e no entanto nom acreditava em
que existisse o «scurzone» como umha
realidade bem pedestre, sem o hálito venenoso e os olhos incendiários. Com
certeza, este animal nom é mui comum: vim-no nom mais de umha meia dúzia de
vezes, e sempre baixo uns penhascos, enquanto que vim milheiros de culebras sem
necessidade de mover pedras.
Querida
tatiana, nom te enfades demasiado por estas divagaçons minhas. abraço-te com
tenrura.
antonio
(Carta 64)
11 de agosto de 1930 Queridíssima Giulia,
nom tenho nengumha vontade de escrever umha carta, só quero
saudar-te. tania escreveu-me que já estás na casa de repouso; aguardo que te
ponhas forte e que te recuperes rapidamente, até o ponto de retomares a tua
atividade. escreve-me que significado exato tem, ou pode ter para as crianças,
o facto de eles terem mais um ano. Nom sei como é que festejades vós este
aniversário e que força estimulante e energética se pode tirar dele na prática.
realmente nom sei nada de todo o sistema educativo e é umha cousa que me
interessa muitíssimo. tania escreveu-me que o amigo Piero83 devia
levar presentes para delio: di-me algo disso. Lembras aquela bola de celulose
que delio tinha em roma, meio cheia de água e com os cisnes que boiavam? era um
presente de Piero, mas lembro que delio se interessava especialmente em
querê-la abrir, quer dizer, em destrui-la como brinquedo, o qual demonstra que
nom respondia muito à sua finalidade. escreve-me sobre o teu repouso e sobre
muitas outras cousas. abraço-te. antonio
•
83 Piero
sraffa realizou umha viagem à Uniom soviética em agosto de 1930.
(Carta 65)
6 de outubro de 1930 Queridíssima tania,
estivem contente pola chegada de Carlo. dixo-me que estás
bastante reposta, mas gostava de ter notícias mais precisas sobre as tuas
condiçons de saúde. agradeço-che todo o que mandache. ainda nom me entregárom
os dous livros: a «Bibliografia fascista»
e as novelinhas de Chesterton, que lerei com muito prazer, por duas razons.
Primeiro, porque imagino que som interessantes, polo menos tanto como a
primeira série, e segundo, porque procurarei reconstruir a impressom que
devêrom causar em ti. Confesso-che que este será o meu maior prazer. Lembro com
exatitude o teu estado de ánimo ao leres a primeira série: tinhas umha
disposiçom afortunada para receberes as impressons mais imediatas e menos
complicadas polos sedimentos culturais. Nem deras percebido que Chesterton
escreveu umha delicadíssima caricatura das novelas policiais, mais do que
novelas policiais propriamente ditas. o padre Brown é um católico que
ridiculariza a maneira mecánica de pensar dos protestantes e o livro é
fundamentalmente umha apologia da Igreja romana contrária à Igreja anglicana.
sherlock Holmes é o polícia «protestante», que apanha o fio à intriga criminal
partindo do externo, baseando-se na ciência, no método experimental, na
induçom. Padre Brown é o sacerdote católico, que através das requintadas
experiências psicológicas oferecidas pola confissom e por meio do labor de
casuística moral dos padres, mesmo sem desleixar a ciência e a experiência, se
baseia especialmente na deduçom e na introspeçom, batendo sherlock Holmes
plenamente e fazendo-o parecer um rapazinho pretensioso, ao mostrar a sua
angústia e a sua mesquinhez. Para além disso, Chesterton é um grande artista,
enquanto Conan doyle era um escritor medíocre, mesmo se o figérom baronete84 por méritos
literários; é por isso que, há em Chesterton umha separaçom estilística entre o
conteúdo, a intriga policial e a forma e portanto umha fina ironia em relaçom à
matéria tratada que fai com que as histórias sejam mais saborosas. Nom achas?
Lembro que lias estas novelas como se fossem crónicas de feitos verdadeiros, e
ensimesmavas-te até exprimires umha sincera admiraçom polo padre Brown e a sua
maravilhosa agudeza, de umha maneira tam ingénua que me divertia
extraordinariamente. Porém, nom deves ofender-te, porque nesta diversom havia
um ponto de inveja por essa capacidade tua para o fresco e sincero
impressionismo, por assim dizer. se che digo a verdade, nom tenho muita vontade
de escrever: tenho a cabeça noutra parte.
abraço-te afetuosamente. antonio
•
(Carta 66)
6 de outubro de 1930 Queridíssima Giulia,
recebim duas cartas tuas: umha de 16 de agosto e a
seguinte, acho que de setembro. teria gostado de escrever com vagar, mas nom
som capaz, porque nom consigo juntar, em certos momentos, as lembranças e as
impressons sentidas quando lim as tuas cartas. Porém, só podo escrever,
infelizmente, nuns dias e a umhas horas que nom decido eu e que por vezes coin-
84 Na verdade, ele foi nomeado sir, rango superior ao de baronete, e inferior ao de barom [N. do
T.].
cidem com momentos de depressom nervosa. Gostei muito do
que escreves: que, ao reler novamente as minhas cartas do 28 e do 29, reparache
na identidade dos nossos pensamentos. Gostaria de saber no entanto em que
circunstáncias e especialmente em volta de que que objeto reparache nessa
identidade. Na nossa correspondência falta precisamente umha «correspondência»
efetiva e concreta: nunca conseguimos estabelecer um «diálogo»: as nossas
cartas som umha série de «monólogos» que nem sempre conseguem pôr-se de acordo,
nem sequer nas linhas gerais; se a isto se acrescenta o elemento tempo, que fai
esquecer o que foi escrito anteriormente, a impressom de puro «monólogo»
reforça-se. Nom achas? Lembro um conto popular escandinavo: três gigantes vivem
na escandinávia, longe uns dos outros como as grandes montanhas. após milheiros
de anos de silêncio, o primeiro gigante grita para os outros dous: «sinto bruar
um rebanho de vacas!». após trezentos anos o segundo gigante intervém: «também
eu ouvim o bruado!» e após outros 300 anos o terceiro gigante ordena: «se
continuardes a fazer tanto barulho, vou-me!»
Bom! Nom tenho mesmo
vontade de escrever, há um vento de siroco que lhe dá a um a impressom de estar
bêbedo.
Querida, abraço-te com tenrura, junto aos nossos filhos.
antonio
•
http://estaleiroeditora.blogaliza.org/files/2011/08/cartas_do_carcere_gramsci_pant.pdf